A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ é_Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    1/73

    11(),7(H I) V_71c('I" IIII( 1I1( ,"IIII, 'IRI\;001 IE J~ , 'OM

    I l f I H ) ' I I I ' d "

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    2/73

    ';J

    l .

    CULTURA BRASILEIRAo que e , como se faz

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    3/73

    o que e - como se fazCultura brasileiraAldo Vannuchio ensino na escolaMichel Saint-OngeInternet na escolaA c l a i l Sobra IJejumPatricio SciadiniA motioadio em sala de aulaJesus Alonso Tapia - Enrique Caturla FitaPesquisa na escola, 2U ed.Marcos BagnoPreconceito lingiiistico, 2U ed.Marcos BagnoA relacdo professor-alunoPedro Morales

    \

    Aldo Vannucchi

    CULTURAo que e , como se faz

    BRASILEIRA

    ' - ' JNIVERSIDADEDE SOROCABA

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    4/73

    Diagramaciio:So Wai Tam

    Universidade de SorocabaAv. Dr. Eugenio Salerno, 14018035-430Sorocaba - SPCaixa Postal 578 .~,snTel.!fax: (15) 221Home page: wwv.e-mail: uniso@ur Ensino Superior Bureau Juridico

    Ex. 2NF 05/03/2008260

    COMPRAEdi~oes LoycRua 1822 nll 347 -"I.Pl.04216-000 Sao Paulo, SPCaixa Postal 42.33504299-970 Sao Paulo, SPFone (0**11) 6914-1922Fax (0**11) 6163-4275Home page e vendas: www.loyola.com.bre-mail: [email protected]

    R$ 0,00I,

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obrapode ser reproduzida ou transmitida por qualquer formaelou quaisquer meios (eletronico ou mectinico, incluindofotoc6pia e grauaciio) ou arquivada em qualquer sistemaou banco de dados sem permissi io escrita da Edi tora.TSBN: 85-15-01949-3?,l! edicao: outubro de 1999 EDIQOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 1999

    iNDICE

    APRESENTAQAO ............. 9INTRODUQAO "....................................... 13

    Primeira ParteUM ronco DEFILOSO~~_J?1.J:;ULTURA BRASILEIRA 17

    1.Coriceftua~io 'decultura ..::............................... 212'.0 ' q u e e civiliza~a"o7 :....................................... 293. 0 que e erudicao? 334. Nacionalidade e cultura 375. Como estudar cultura brasileira? 49

    Segunda ParteA eULTURA BRASILEIRAeOMq PROBLEMA POLITICO ... 59

    1. Cultura e poder ,.......................... 632. Cultura e subdesenvolvimento 673. Cultura e democracia 714. Politica cultural.................................................. 77

    Terceira ParteeULTURA POPULAR BRASILEIRA 93

    1. Conteiido da cultura popular 972. Enfoques da cultura popular brasileira 1013. Especificidade da cultura popular brasileira.. 107

    http://www.loyola.com.br/mailto:[email protected]:[email protected]://www.loyola.com.br/
  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    5/73

    Quarta ParteCULTURA DE MASSA NO BRASIL 111

    1. Caracterizacao historico-conceitual................ 1152. Industria cultural doBrasil............................... 1213. Avaliacao critica 125

    Quinta ParteCULTURA BRASILEIRA DO AMANHA 131

    "Assim como uma doutrina so precisa ser definidaap6s 0 aparecimento de alguma heresia, tambem umapalavra nao necessita desse cuidado ate que tenhasido mal-empregada"T. S. Eliot, Notas para uma definidio de cultura, Sao Paulo, Pers-pectiva, 1988, p. 25.

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    6/73

    APRESENTA

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    7/73

    C U LT U RA B R AS IL ElR A 0 que e , como sefaz

    Cumpre esclarecer, de inicio, que a presente refle-xao insiste em fugir do ufanismo, justamente porque am-biciona ser realista e titil. A nosso ver, ja se discorreumuito sobre 0 tema, em termos laudatorios, fantasiosose tolos. Alimentamos a esperanca de que, ao final, 0leitor tenha agucado a capacidade de pesquisar a iden-tidade nacional sem se limitar a nossos exotismos, ouvalorizar apenas 0 que e brasileiro so por ser brasileiro.E, sim, que sinta a necessidade de estudar mais 0 tema,de forma a obter respostas ou, pelo menos, encaminharo estudo para questoes essenciais e instigantes comoestas: por que e tao dificil caracterizar nacionalidadecultural? 0 que e realmente brasileiro no universo cul-tural em que vivemos? Por que 0 brasileiro comum naoe considerado culto? Qual a essencia e a extensao denossa cultura popular? 0 que pensar e 0 que fazer dacultura de massa, no Pais?

    E oportuno dizer, ainda, que 0Autor tern plena cons-ciencia de que as paginas que se seguem devem muitoa imimeros especialistas, alguns dos quais, alias, sao ci-tados e recomendados, mais de uma vez. Portanto, acaracteristica maior deste livro ha de ser buscada naona originalidade das ideias mas no esforco de organiza-yaO e esclarecimento de urn tern a pleno de variantes eindeflnicoes. Seu merito reside na tentativa de apresen-tar, de maneira clara e simples, a cultura brasileira comoproblema filosoflco e politico, procurando situar nela naoapenas 0 erudito e 0 burgues, mas tam bern 0 estritamentepopular.

    Elaborado a partir de aulas e debates num curso deFilosofia, este livro fundamenta-se na conviccao de que10

    I' Apresentacdo

    a cultura brasileira nao nasce nem se desenvolve ilhadadentro de muros universitarios e de espacos academi-cos, senao na vida cotidiana de todos os brasileiros, comofenomeno historico enraizado em nossa realidade eco-nomica e social. Por outro lado, se cultura brasileira earea vastissima e ate desconcertante para uma so cabe-ca, sejam estas paginas lidas como mera introducao-con-vite ao desbravamento do tema.

    11

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    8/73

    INTRODU

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    9/73

    C U LT U RA B R AS IL EIR A 0 que e , como sefaz

    cia humana e ao atendimento imediato das necessidadesespirituais."Foi por meio desta cultura vulgar - recheada de

    elementos indigenas e africanos - que 0 povo brasileiroedificou, com os tijolos e cimentos de que dispunha, acultura nacional no que tinha assentado na terra e designificativo para toda a populacao.

    A classe dominante branca ou branca-por-autodefi-nicao desta populacao majoritariamente mestica, tendocomo preocupacao maior, no plano racial, salientar suabranquidade e, no plano cultural, sua europeidade, s6aspirava ser lusitana, depois inglesa e francesa, comoagora s6 quer ser norte-americana. E conseguia simu-lar, razoavelmente, estas identiflcacoes nos modos demorar, de vestir, de comer, de educar-se, de rezar, decasar, de morrer, etc. S6 a acao diferenciadora dos fato-res ecol6gicos e do contexto hurnano em que vivia eque, a seu pesar, a tornavam irremediavelmente brasi-leira nestas mesmas coisas.

    A imitacao do estrangeiro que era inevitavel naoseria urn mal em si, mesmo porque as transplantacoesculturais vern associadas, freqiientemente, a fatores deprogresso. 0 mal residia e ainda reside na rejeicao detudo que era nacional e principalmente popular, comosendo ruim, porque impregnado da subalternidade daterra tropical e da inferioridade dos povos de cor. Gera-coes de brasileiros foram alienadas por esta inautentici-dade essencial de sua postura, que os tornava infelizespor serem tal qual eram e vexados pelos ancestrais quetiveram. Nessas circunstancias, a alienacao passou aser14

    a condicao me sma da classe dominante, inconformadacom seu mundo atrasado, que s6 mediocremente conse-guia imitar 0 estrangeiro e cega para os valores de suaterra e de sua gente. 0 mais grave e que esta alienacao,tornando a classe dominante incapaz de ver e compreen-der a sociedade em que vivia, tornava seu componenteerudito tambem inepto para propor urn projeto nacionalde desenvolvimento autonomo ...

    Conforme se verifica, s6 se pode falar de culturabrasileira na acepcao de uma entidade complex a e flui-da que nao corresponde a uma forma dada, senao a umatendencia em busca de uma autenticidade jamais lograda(grifo nosso). Embora se possa dizer que a cultura dequalquer civilizacao do passado ou do presente e tam-bern esta busca de autenticidade, a reconstituicao dosmodos pelos quais ela e buscada e das vicissitudes emque incorremos em busca-la e indispensavel para com-preender nossa criatividade cultural...

    S6 nas ultimas decadas, havendo alcancado, por fim,certa magnitude como sociedade nacional e certo graude autonomia cultural, comecamos, os brasileiros, a criarnossa pr6pria visao do mundo e a exercer uma criativi-dade cultural genuina. E 0 fazemos na medida em quenos reconhecemos como singulares dentro do conjuntodas sociedades que integramos; em que compreende-mos e apreciamos as nossas vivencias que nos fazemdiferentes; e em que, expressando nossa forma de ser,conseguimos emprestar urn conteudo particular as nos-sas criacoes. Entretanto, elas s6 serao gestos de criativi-dade autentica se constituirem contribuicoes nossas ascriacoes da civilizacao a que pertencemos, tao significa-

    15

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    10/73

    CUL TURA BRA SILE lRA 0 que e , como se faz

    tivas para nos mesmos como para os outros povos nelasimersos. Por tudo isto e que, a nosso ver, Ouro Preto noseculo XVIII e Brasilia no seculo XX, como complexosurbanfstico-arquitetonicos, representam, talvez, os pri-meiros atos maduros de criatividade dos brasileiros noplano da cultura erudita. E 0 representam nao porquesejam tipicas e sim porque sao expressoes iguais ou me-lhores que quaisquer outras dos ideais esteticos da civi-lizacao a que pertencem."!

    Donde se pode concluir que, ao se falar de culturabrasileira, dois entendimentos sao posslveis:

    1) a cultura universal de que 0 Brasil participa doseu jeito;2) a cultura especificamente criada pelo povo bra-sileiro.

    1.Darci Ribeiro, Teoria do Brasil: 1" - os brasileiros, Petr6polis,Vozes, 7' ed., 1983, pp. 140-147.16

    PRIMEIRA PARTE

    UM POUCO DE FILOSOFIAD A CULT UR A BRA SILE IR A

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    11/73

    TOda filosofia da cultura ou culturologia decorrede determinada forma de entender 0 ser humano.It por meio dessa antropovisao que se evidenciamos elementos basicos das manifestacoes culturais: 0 quesao elas, de onde nascem e para que servem.

    Veremos isso pela analise, ainda que breve, de cer-tos conceitos usualmente entrelacados com cultura, taiscomo civilizacao, erudicao e nacionalidade, conceitos quetanto preparam e explicitam essa reflexao como tam-bern muitas vezes a emaranham e complicam.

    Posteriormente, trataremos de uma questao pratt-ca, ou seja, de como estudar a nossa cultura.

    19

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    12/73

    1CONCE ITUA

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    13/73

    Urn pouco def ilosofia da cultura brasi leira

    Quando, porem, se procura extrair dessa realidadeviva urn conceito unico e universal de cultura, a dificul-dade surge e se agiganta. Trata-se, efetivamente, de urndos termos mais dificeis de definir de maneira completae univoca. Avulta e passeia, sinuoso e esquivo, por todosos campos do saber. Sao agentes da cultura tanto urnlavrador quanto urn diplomata. 0 vocabulo corre solto,quer em conversas informais, quer em famosas obras deantropologia, sociologia, filosofia e historia. E nao acabasendo intrigante que se fale de cultura tambem em bio-logia, como sinonimo de cultivo de bacterias?

    No entanto, no caso de pessoas interessadas emcultura brasileira, a dificuldade pode ser contomada. Sese con tam imimeras definicoes de cultura - mais decento e cinquenta, segundo levantamento de Kroeber eKluckohn' -, podemos, na pratica, superar essa dificul-dade, valendo-nos de certos procedimentos metodologi-cos plenamente aceitaveis como:1)partir de uma nocao basica de cultura;2)nao erigir nenhuma definicao de cultura como aunica verdadeira e exata;3) procurar sempre captar ou explicitar a area con-ceitual em que se esta trabalhando no momento;4) distinguir claramente cultura de outros termosproximos ou costumeiramente aproximados;5)perceber e diferenciar os enfoques mais cons-tantes e mais ricos de cultura, a saber, 0 enfo-que filosofico, 0 humanista, 0 etnologico e 0 daantropologia cultural.

    1. Culture: a Crit ical Review of Concepts and Def init ion, PeabodyMuseum Papers, Cambridge, Mass., 1952, 47, 1.22

    (

    Conceituacdo de cul tura

    CONCEITO BAsICO DE CULTURAPodemos dizer que cultura e tudo aquilo que nao enatureza. Por sua vez, toda acao humana na natureza ecom a natureza e cultura. A terra e natureza, mas 0plantio e cultura. 0 mar e natureza, mas a navegacao e

    cultura. As arvores sao natureza, mas 0 papel que delasprovem e cultura.Em resumo: tudo 0 que e produzido pelo ser huma-

    no e cultura.

    CONCEITO FILOSOFICO DE CULTURAo ser humano nao pensa apenas. Ele tam bern re-

    flete sobre 0 que pensa. E consciencia espontanea econsciencia critica. Mas, alern de pensar, ele e capaz desentir, fazer, agir. E todas as formas desse pensar-sentir,desse fazer-agir, constituem objeto de sua reflexao.

    Ora, alem do homem comum que pensa, sente, faze age, ou do homem especial que faz ciencia, arte outecnica, ha 0 filosofo - prototipo da consciencia reflex a- sempre ocupado com as perguntas ultimas da exis-tencia humana, sempre perseguindo 0 sentido de tudono mundo. E nessa moldura de vida que ele entende eperscruta a cultura como expressao global da existenciahumana no mundo.

    Quanto mais minuciosamente investiga os dadosempiricos e as analises particularizadas oferecidas pelasciencias, mais 0 filosofo se convence de que 0 existirhumano e essencialmente cultural. Qualquer traco ou

    23

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    14/73

    Umpouco defilosofia da cultura brasileira

    sistema de vida, rude ou refinado, significa uma satisfa-

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    15/73

    ~ ' II,

    Urn pouco de filosofia da cultura brasileira

    Por esse motivo e falso opor como duas culturashostis a tecnocientifica e a humanistico-literaria, Na so-ciedade atual, nao se pode prescindir nem de uma nemde outra. Nem privilegiar uma em detrimento da outra.Ambas constroem a cidade humana, porque e por meiodelas que se erradica a peste da ignorancla e da explo-racao do homem pelo homem.

    CONCEITO ETNOLOGICO DE CULTURANao existe acordo entre os estudiosos sobre 0 con-

    ceito exato de etnologia. Basta verificar as tres defini-yoes que 0 "Aurelio" da para essa ciencia. Para nos, aprimeira delas e significativa: "Etnologia e urn ramo daantropologia que estuda a cultura dos chamados povosprimitivos" .

    Mas 0 que vern a ser cultura, no campo etnologico?Segundo Kroeber e Kluckohn, e "urn conjunto de atribu-tos e de produtos das sociedades humanas e do generohumano; por conseguinte, extra-somaticos e transmissi-veis por meios diferentes da hereditariedade biologica'".

    Em termos mais simples, cultura, nesse enfoque, eo modo de viver tiplco, 0 estilo de vida comum, 0 ser, 0fazer e 0 agir de determinado grupo humano, desta oudaquela etnia. Fala-se, assim, etnologicamente, em cul-tura brasileira, cultura nhambiquara, cultura alema,cultura esquimo etc.

    264. Op. cit., p. 145.

    A titulo de ilustracao, veja-se uma obra especi-alizada, como a de Darci Ribeiro, sobre os kadiweu",ensaios extremamente interessantes sobre os poucos re-manescentes, no Brasil atual, desses indigenas de lin-gua guaicuru, do suI do Pantanal mato-grossense. 0livro todo e uma exposicao da cultura kadiweu: seuespirito guerreiro, seu etnocentrismo, seus mitos cosmo-gonicos, suas praticas rituais, seu xamanismo, suas ex-pressoes artisticas etc.

    E sua concepcao de cultura do ponto de vista etno-logico encontra-se em qualquer pagina do livro, comoneste pequeno trecho, pincado aleatoriamente: "A artecomo todos os aspectos da cultura kadiweu, atravessaem nossos dias uma crise de redefinicao de seus valo-res, em vista das mudancas que se processaram em suasociedade'".

    CONCEITO DE CULTURA EM ANTROPOLOGIA CULTURALAqui, as dificuldades conceituais se acentuam so-

    bremaneira, gracas as diferentes posicoes dos antropo-logos de nosso tempo. Para fins didaticos, podemos dis-tinguir quatro tendencias:

    1a) ha os que veern cultura como sistema de pa-droes de comportamento, de modos de organi-zayao economica e politica, de tecnologias, empermanente adaptacao, em vista do relaciona-

    5. a s Kaditoeu; Petropolis, 2 ' ed. , Vozes , 1980.6. Id., ibid., p. 259.

    27

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    16/73

    Um pouco de filosofia da cultura brasi leira

    mento dos grupos humanos com seus respecti-vos ecossistemas;

    2a) ha os que tratam a cultura como urn sistema deconhecimento da realidade, como 0 codigo men-tal do grupo, nao como urn fenomeno material,mas cognitivo;

    3a) ha tambem os que encaram a cultura como urnsistema estrutural, em que 0 eixo de tudo e abipolaridade natureza-cultura, tendo como cam-pos privilegiados de sua concretizacao 0 mito, aarte, a lingua e 0 parentesco;

    4a) por fim, ha os que entendem cultura como siste-ma simb6lico de urn grupo humano, sistema queso pod era ser apreendido por outro grupo pormeio de interpretacao e nao por mera descricao,

    Essa pluralidade de tendencias e expltcacoes da an-tropologia cultural pode, a primeira vista, acarretar de-cepcao e ate ceticismo. Na realidade, porem, tal ciencia,pelo fato de se fundamentar na observacao empfrica dedados humanos, vale dizer, dados indefinidamente va-riaveis, nao pode pretender encerrar 0 conceito de cul-tura em esquemas universais, exatos e definitivos. Noentanto, prestou inestimavel service ao superar, pelo me-nos no plano teorico, 0 fanatismo etnocentrico que, pormuito tempo, insistiu em diferenciar povos culturalmen-te superiores e outros supostamente inferiores, denomi-nados, pejorativamente, primitivos.

    28

    2o QUE E CIVIUZA~AO?

    Civillzacao nao e termo tao generico e tao amploquanto cultura, mas as diferencas entre urn e outro re-querem atencao e cuidado. Nao raro, empregamos urnapalavra pela outra, com total desenvoltura, como se fos-sem sinonimas. Ate autores de renome e experiencia noramo procedem assim.

    Importa lembrar, contudo, alguns tracos que deli-neiam, razoavelmente, a especificidade do conceito decivilizacao.

    Antes de mais nada, ressalte-se que esse vocabulo,pelo seu etimo latino (civis = cidadao; civilis = civil),revela a ac;ao de tornar alguem civil, isto e, habitante dacidade.

    Se cultura ja circulava pela Roma antiga, civiliza-c;aoe palavra de criacao moderna, fruto tipico do Seculodas Luzes, em cujos meados entrou a figurar, substi-tuindo police, na Franca. Alias, nossos classicos portu-gueses usavam tam bern "polfcia", com esse sentido decivilizacao. E ler OsLusiadas ou, entre nos, Rui Barbosa.Antes dele, 0 Visconde de Cairu e 0 Patriarca da Inde-

    29

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    17/73

    Um pouco de filosofia da cultura brasile ira

    pendencia. Observe-se tambem que 0 "Aurelio" aindaassinala esse arcaismo. Por mais paradoxal que pareca,em born vernaculo gente "policiada" significava gentecivilizada!

    A partir, porem, do inicio do seculo XIX, a palavracivilizacao comeca a se impor no Brasil, e hoje corre 0mundo todo. Contraposta a cultura, costuma indicar urnvasto conjunto organico de dados materiais de urn povo(seus contornos geograficos, sua organizacao social, asrealizacoes tecnicas, artisticas, religiosas etc.), ao passoque cultura designaria uma realidade interior, transcen-dente as conquistas materiais.

    Spengler, na sua famosa obra A decadencia do Oci-dente, chega mesmo a estigmatizar civilizacao como nao--cultura. Para ele, cultura seria a totalidade criadora;civilizacao, a fase desagregadora, a propria decadencia.Sintomaticamente, esse pessimismo reaparece.iaqui e ali,nos mais diversos quadrantes da intelectualidade e atemesmo urn humorista, como nosso Millor Fernandes,tempos arras opinou sobre 0 assunto, no mesmo tomsombrio, qualificando a civilizacao como "0 esforco con-junto da humanidade durante milhoes de anos ate seautodestruir estupidamente'".

    Freud tambem tratou desse tema, em 1927, relu-tando em distinguir entre cultura e civilizacao e chegan-do a sentenciar que "todo individuo e virtualmente ini-migo da civilizacao'", 'Ires anos mais tarde, publica 0

    1. Revista [stoE, 17 dez., 1986.2. 0 futuro de uma ilusiio, cap. 1.30

    o que e cioilizacao?mal-estar na cioilizacdo, em que denuncia 0 abandono aque a cultura capitalista relegou tudo 0 que nao fosseligado diretamente a producao, porque se baseiana re-pres sao ao prazer, como condicao indutora do trabalho.Alias, essa obra pode ser sintetizada numa pergunta: 0que acontecera a uma civilizacao que gera mais infeli-cidade do que felicidade?

    Freqiientemente, define-se tambem civilizacao comocultura estruturada e institucionalizada. Freud ate se re-fere a ela como a "dorninacao organizada". Talvez poresse motivo, nao se tenha consagrado a expressao "civi-lizacao popular", dado que 0 popular sempre florescelivre, as sistematico e fragmentario, 0 certo e que todacivilizacao envolve algo de repressao. Tanto que Marcuseanalisa, em Eros e cioilizacdo, como questao central, apossibilidade de uma civllizacao nao-repressiva,Por ultimo, nao se pode deixar de recordar que aindahoje muitos interpretam a civilizacao de modo mani-queista, contrapondo-a a primitivismo e barbarie, Estaultima seria propria do barbaro, do selvagem, do atrasa-do, ao passo que civilizados seriam os da cidade (cida-daos), os polidos (da polis), os urbanos ou urbanizados(da urbe), os favorecidos pelo progresso teonologico. Sera?Para uma resposta negativa, bastaria rever a historia denossa colonizacao e refletir urn pouco sobre 0 terrfveltrocadilho de Arthur Neiva: "Os europeus trouxeram-nosa civilizacao e tambem a sifilizaciio":

    3.Estudos da lingua nacional, Sao Paulo, Companhia Editora Na-cional, 1940, p. 353.31

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    18/73

    :3o QUE E ERUDI

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    19/73

    Um pouco def ilosofia da cul tura brasi leira

    desprovido de erudicao. E 0 intelectual sobressaira commeritos apenas se nao fizer do seu vasto saber meroexibicionismo de cultura ornamental ou do seu "ladodoutor", ironizado por Oswald de Andrade'.

    Entre os gregos antigos, ja se discutia 0 valor daerudicao, por eles denominada polimatia. Heraclito, porexemplo, tanto a condenava, ensinando que "a polimatianao instrui a inteligencia'", como tambem the rasgavaelogios, pois "os que amam a sabedoria precis am pesqui-sar muitas coisas'". Talvez entendesse preconizar assimo saber autentico, ligado a realidade, e nao 0 conhecimen-to espUrio, 0 saber "idiota", isto e, encerrado em si mesmoe para si mesmo.

    Por sua natureza praticamente ilimitada, identifica--se facilmente erudicao com saber enciclopedico- Admi-ra-se alguem, porque parece "uma eneiclopedia viva".Reflete-se af uma lembranca palida da sociedade heleni-ca, em que se enaltecia com essa palavra - enciclopai-deia - a educac;ao global do cidadao.

    Seculos mais tarde, na Idade Media, Isidoro deSevilha notabilizou-se com sua grandiosa compilacao detoda a massa de conheeimentos da epoca, 0 Livro dasetimologias.

    Mas ninguem melhor que os Iluministas para cor-porificar esse sonho de saber universal, por meio daEnciclopediajrancesa, de 35 volumes, dirigida por Diderot

    , ,

    1. Cf. "Manifesto Pau-Brasil" (1924).2. Fragmento 40.3.Fragmento 35.

    34

    o que Ii erudicdo?e d'Alembert, tendo como colaboradores Rousseau, Vol-taire, Montesquieu e outros ensaistas ilustres.

    No seculo seguinte, Hegel publica sua Enciclopediadas ciencias filosoficas, em que ja se cristaliza a ideia deenciclopedia como apresentacao sistematica de urna cien-cia ou de urn conjunto de ciencias, fixando-se, no mun-do contemporaneo, 0 novo conceito de enciclopedla comoexposicao alfabetica dos conheeimentos da epoca, ou seja,urn dicionario peculiar, com a maxima riqueza de infor-macoes, verbete por verbete.

    De qualquer modo, cumpre insistir que 0 saber en-ciclopedico, ou seja, a erudicao, por uti! e elogiavel queseja, nao e a mesma coisa que cultura. Pode-se ate falarde cultura erudita, na correlacao com cultura popular,mas nao se deve absolutizar ai 0 adjetivo. No caso, e 0que menos conta.

    E bastante comum considerar culto alguem viaja-do, dono de vasta biblioteca, com dominio facil de variosidiomas e outros predicados intelectuais. Tudo isso, semduvida, pode enriquecer culturalmente uma pessoa, masnao constitui cultura no sentido preciso. Trata-se apenasde erudicao, quando nao de meros trunfos de gente maisendinheirada e ladina'.

    Encerrando este capitulo, uma questao pertinentee provocadora: Por que os eruditos patricios nao se poema elaborar, quanto antes, a nossa Enciclopedia brasileira,

    4.Note-se a provocante li~iio hist6rica desse adjetivo: ladino vernde latinu. No principio, quem sabia latim era tido por "culto". Masdepois passou a significar "astuto", "sabido" . ..35

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    20/73

    Um pouco de fi losofia da cultura brasileira

    tentativa de auto-retrato da nossa realidade e tom ada de.~ 'a dos nossos valores? Com toda certeza, talconSClenCI '. _empreendimento - fruto de legitima er~dH;:a~ - . com-provaria a maioridade cultural de urn pals. enfim Iibertodo etnocentrismo europeu ou norte-amencano.

    36

    4-NACIONALIDADE E CULTURA

    Estudar cultura brasileira e empreitada de muitofOlego. Confunde-se com definir a identidade nacional:detectar tudo 0 que contribui para nossa diferenciacaona sociedade universal, aprofundando a analise dessarelacao de alteridade - nos e os outros. Esse debrucar--se sobre a propria cultura nacional, distinta de todas asoutras, mesmo que limitrofes ou afins, nao se reduz aoculto das expressoes nativas, porque muito dado cultu-ral importado tambem se integrou a nossa formacao,nao por mero processo de copia, mas por uma degluticaopositiva. Por sua vez, sabe-se que toda cultura nao souItrapassa os limites nacionais, como tambem supera osarroubos chauvinistas, tendendo ao universal. Nao semmotivo, alias, enfatizam-se hoje certos produtos cultu-rais deste ou daquele pais como legitimo patrirnonio dahumanidade inteira.

    Permanece, porem, a questao: 0 que faz uma cultu-ra ser nacional? Em outras palavras, 0 que e nacionali-dade cultural?

    Considerando-se que nao se deve conceitua-la ape-nas pelos parametres dos contornos flsicos, geograficos,37

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    21/73

    Urn pouco de filosofia da cultura brasileira

    esquecendo os aspectos sociais e os valores morais, tor-na-se evidente a dificuldade da resposta. Basta alinharalguns exemplos mais provocativos, carregados de con-tradicoes, para perceber, de pronto, em que areal move-dico nos coloca essa pergunta no contexto brasileiro.

    Comeca pela lingua. No Brasil, 0 idioma nacional dehoje veio do estrangeiro, imposto pelo conquistador deontem, para desgraca de todo e qualquer vernaculo indi-gena. Por igual razao, 0 catolicismo romano perdurou,por quase quatro seculos, como religiao oficial entre nos.Caso tambem intrigante e 0nosso hino nacional. Naverdade, trata-se de uma peca litero-musical oficializada

    (a rmisica, em 1890; a letra, so em 1922), muito mais pordecreto do que consagrada pelo enraizamento previo, hajavista a penosa dificuldade que a esmagadora maioria dosbrasileiros sente, seja para entende-lo e memoriza-lo doprimeiro ao ultimo verso, seja para interpreta-lo, quantaa letra e ao canto, por mais bonito que ele nos pareca,

    Tambem nao falta quem se empenhe em desvendare afirmar a brasilidade, por meio de manifestacoes cul-turais de acentuada popularidade, como 0 carnaval, 0samba, 0 futebol, alias,!oot-ball, sabidamente importadoda Inglaterra, em fins do seculo XIX. Caberia defini-lo,plenamente, como esporte nacional?

    Se entrarmos em outro campo, 0 da literatura, aproblematica se aguca ainda mais. Qual a nossa obramais nacional? Qual a melhor auto-representacao litera-ria do Brasil? Os sertoes de Euclides da Cunha transpoepor acaso os contornos da regiao e da epoca? De outraparte, obras de universal alcance humano, como as de38

    Nacionalidade e cul tura

    Guimaraes Rosa, Carlos Drummond de Andrade e JoaoCabral de Melo Neto, podenamos rotula-las como 0 re-trato t~Pico ~e toda a nossa gente e realidade? E, paracomphcar amda mais, haveria de se perfazer a analiseda vasta e talentosa producao, sem duvida nacional masde limitada popularidade, de Machado de Assis. '

    Varios exemplos de outras searas poderiam ser apre-sentados, para confirmar que a demaroaean nitida doque e ou nao. e nacional seguidamente nos escapa ou,pelo rnenos, flea sempre muito obscura e discut!vel, jus-tamente porque, no fundo, a culturalidade humana em. ,SI mesma, repele enquadramentos rigidos. Talvez se devaestender a ela 0 que Unamuno escreveu da htstoria: e apossibilidade dos espantos!

    ~esses tern:lOs, seria oportuno, na garimpagem doco~celto de nacl?nalidade cultural, predefinir sempre,lucldamente, os angulos de estudo pelos quais se estatrabalhando, ja que eles sao multiplos e diferenciados.

    Se, P?r exemplo, se pensa 0 nacional em contrapontoc~m 0 umversal, 0 caminho e urn: se, porem, em oposi-cao ao estrangeiro, a estrada e outra. 0 universalismoburgues ou proletario, tanto pode completar como des~flgurar qualquer sociedade. Que 0 diga Gramsci, sempreenergtcamenn- preocupado em combater 0 falso cosmo-politismo, sern vmculos com 0 povo e, por isso mesmodesnacionalizado e desnacionalizante tambem. '

    Mas simplesmente reduzir 0 nacional ao diferenteou ao oposto do alienigena poderia enredar-nos nasmalhas perigosas de urn patriotismo xen6fobo, vesga-mente local, que, a pretexto de ex altar e preservar as39

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    22/73

    Um pouco de jilosojia da cultura brasileira

    caracteristicas de urn povo, acaba gerando a manipula-c;ao ufanista e esteril de cidadaos encerrados em seusproprius muros.

    No debate cultural contemponlneo, outra dualidadeprecisa ser considerada, a saber, 0 nacional em face domultinacional e/ou transnacional. I t imprescindivel iden-tificar e explicitar a nacionalidade incluindo a realidadeeconomica, alem dos valores espirituais passados e pre-sentes. Nacional sera, entao, 0 que existe ou se produzdentro de determinado quadro economico. Mas a dina-mica do capitalismo, impondo sempre novos mercados,novos produtores e novos consumidores, extrapola asfronteiras regionais, criando uma area economico-cultu-ral globalizada, terrivelmente amplificada pela telematicae por todos os meios de comuntcacao de massa.

    Alem disso, curnpre lembrar 0 binomio "nacional--tradicional", outro filao rico de reflexoes para quem am-biciona pesquisar a fisionomia de uma nacao. Nao haduvida: impossivel definir urn povo sem conhecer suastradicoes. Se nossos colonizadores nos espoliaram por se-culos, foi precisamente porque, em vez de respeitar nos-sas tradicoes, nos impingiram outras, de par com as es-truturas politicas e economicas trazidas da Europa, de talsorte que, hoje, certos dados culturais, como a religio-sidade popular ou 0 carnaval, por tradicionais que sejam,estao Ionge de constituir, por si sos, marcas exclusivas do"carater nacional brasileiro". Nurn paralelo bern palpavel,poderiamos ate mencionar realidades culturais nacionaissem tradicao, como a informatica, e realidades outras quenao sao nacionais, mas contam com excelente peso detradicao entre nos, como 0 cristianismo, por exemplo.40

    Nacionalidade e cultura

    Resta acenar, por fim, ao inveterado vicio mental deassociar, mecanicamente, nacionalidade com aparenciasetnicas ou com rotulos politicos. Confusao lamentavel,porque alguem pode parecer japones e ser brasileiro.Ser basco ou catalao nao e 0 mesmo que ser espanhol.Dentro da antiga URSScoexistiam quinze republicas, comnacionalidades que nao se confundiam sem mais.o QUE SERIA NACIONALIDADE?

    Em termos simples e introdutorios, nacionalidade eaquilo pelo qual urn povo afirma sua identidade ou suaipseidade - ou seja, 0 que ele e em si mesmo - e suasdiferencas, isto e , a consciencia de constituir uma parce-la especial dentro da coletividade mundial.

    Ora, a identificacao de urn grupo hurnano acontecesempre em vista de urn espaco fisico de origem e de certaheranca historico-cultural. 0 primeiro aspecto e automaticoe definitivo; 0 segundo, diferenciavel e dinamico. Assim,por exemplo, urn indio da Amazonia e urn operario daGrande Sao Paulo nasceram ambos em chao brasileiro ,mas 0 clima cultural de cada urn difere sobremaneira.

    Por conseguinte, nacionalidade nao e meramenteaquilo que a cedula de identidade ou 0 passaporte indi-cam: simples Iigacao juridica, que se pode ate perder,conforme 0 proprio direito constitucional preve.

    Nao se define tambem como qualidade fisica oupsiquica, recebida naturalmente, como 0 sexo. Nem eurna estrutura que paira por ai, na sociedade, e que seimpoe, como 0 nome, a cada recem-nascido dentro dela ,

    41

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    23/73

    Urnpouco def ilosofia da cultura brasi leira

    mesmo porque ha 0 caso de brasileiros natos nascidosfora daqui.

    Num segundo momento, para a compreensao do queseja positivamente nacionalidade, sera necessario designa--la como processo social permanente e conflitivo, com 0qual se edifica e se aprofunda a identidade de urn povo.

    Estabelecendo a nacionalidade como processo per-manente e conflitivo, queremos encarecer que ela naoexiste pronta e acabada. E urn fazer-se que se realizapor meio de contradicoes historicas, inevitaveis e fecun-das, como se viu aqui no Brasil, desde nossos tempos decolonia. E luta e, ao mesmo tempo, pacto. E continuida-de e ruptura. Supoe 0 velho e incorpora 0 novo. Com-poe-se do mesmo e do outro. Envolve conflitos de inte-resses, como tambem bases comuns para 0 entendimen-to grupal. Trata-se de uma relacao social construida e aconstruir-se sempre, em contexto de poder e domina-C;;iio,em que 0 ideal da unidade na diversidade ou aproposta da heterogeneidade na harmonia nao raro bei-ram, perigosamente, a mistificacao.

    Importa descartar, energicamente, qualquer ideiaou ideologia de nacionalidade que se preste a justificare a perpetuar a "ordem estabelecida", sob pretexto deunidade civica e de fidelidade patriotica. Lembre-se, aproposito, 0 detestavel "Brasil: ame-o ou deixe-o" da nos-sa ditadura militar ...

    Nao sem motivo, 0 dominador de plantae adora 0status quo, privilegiando a "memoria nacional", assimcomo 0 colonizador sempre se empenhou por passar paraa colonia a cultura da metropole. Ahistoria ensina: todo42

    Nacional idade e cultura

    colonialismo, ontem e hoje, cria alienacao cultural, tan-to quanto a garra pela cultura patria inspira lutas anti-imperialistas.

    ENRAIZAMENTO

    Encontramos 0 iingulo obrigatono para se enfocara nacionalidade naquilo que Simone Weil chama deenraizamentn', Todo ser humano tern raizes em umacoletividade. Pais e raiz, mais do que rimas, formam urnpar indissocilivel. Pais e 0 chao em que se cresce, apaisagem que nos cerca, a sociedade que nos gerou enos envolve uterinamente. Nessa sociedade nao apenasse guardam tesouros do passado, como se vivem tam-bern as indagaeoss e os pressentimentos do futuro.

    Ninguem pode desconsiderar a forca telUrica de ele-mentos existenciais como a terra, a casa, a alimentacao,a mtisica, a danca, as crencas, 0 vinculo entre parentes,amigos e vizinhos, as lembrancas dos idosos com suasexperiencias e "causos", as festas tradicionais do lugar,a lingua viva, as lutas travadas, os lacos de solidariedadedesenvolvidos na infancia ... Tudo isso da sentido a vidae marca a gente.

    Esse enraizamento, por mais embebido que estejano ontem e por mais apoiado que se mostre no agora,longe de constituir fator reacionario, tern sido, historica-mente, urn dos impulsos mais vigorosos para dinamizar

    1.A condicdo operdria e outros estudos sobre a opressi io Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1979. '

    43

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    24/73

    Urn pouco defilosofia da cultura brasileira

    as virtualidades de urn povo. Ja se observou, por exem-plo, que a Bevolucao Bussa nao se faria se Lenin naoapelasse para 0 sonho multissecular dos espoliados doseu pais: "A terra para os camponeses".

    Alias, no Brasil, 0 desrespeito as raizes popularesvern causando, ha seculos, tragic?s estragos sociais.Ontem, foi 0 negro, arrancado da Africa e escravizadopor aqui. Hoje, e 0 homem e a mulher do campo,desconsiderados como gente, trabalhando em geral umaterra que nao e deles nem para eles; depois violenta-mente desarraigados dos seus proprios valores, para sereduzirem, na migraeao sem rumo, a andantes sem ter-ra, desempregados, boias-frias, biscateiros, favelados,maloqueiros. Podem ate conseguir trabalho na cidade,mas coagidos a fragmentacao interior, pelas exigenciastecnologicas e pragmaticas do mundo urbano, atraves-saran 0 resto da vida de rafzes partidas, proletarizados,coalhando de miseria e tristeza a periferia da cidadegrande e madrasta",

    Insistir na forca cultural do enraizamento, porem,nao nos deve levar ao exagero de valorizar as rafzes porelas mesmas, esquecendo a totalidade da arvore. Esti-mar e preservar nossas raizes, simi nunca, porem, fos-siliza-las. Incidir nisso seria armar 0 jogo da burguesiaque procura, via de regra, solapar ou mistificar os valo-res tradicionais da sociedade. Os poderosos gostariam

    2. Para uma confirmacao histortco-religlosa, cf. a Bfblia Sagrada,especialmente Gn 1,1-31 e Am 9,11-15. Merece peculiar atencao Sl83,4, em que se poe na boca de inimigos de Israel esta ameaca: "Vindee desarraiguemo-los, para que nao sejam nacao ..." e S1143,12: "Desar-raiga os meus inimigos".44

    Nacionalidade e cultura

    ate de apagar os referenciais dos vencidos. 0 povo, aocontrario, preza e muito nao so seus padroes de proce-dimento, como tam bern as propostas e os votos dos queja se foram. Assim, por exemplo, tern forca de lei, entrenos, "a ultima vontade do falecido". E nem sempre issoacontece por mero conformismo. Pode bern ser sinalexpressivo de uma respeitavel resistencia popular, anco-rada num pass ado autentico, porque questionante.

    Parece-nos, portanto, extremamente valido encare-cer 0 enraizamento cultural como uma das marcas indi-cadoras da nacionalidade. Se 0 meio social e as condi-c;:oesespecificas em que as pessoas vivem estao intima-mente relacionados com 0modo como elas percebem asi mesmas, e natural que melhor se identifica uma cul-tura quando melhor se conhecem suas raizes.

    Por sua vez, a nacionalidade so se configura dentrodo dilema e do desafio que tradicao e novidade suscitampara todo e qualquer agrupamento social. Nossa historiacomprova-o: seculos atras, enquanto 0 Iluminismo repu-diava a tradicao em nome do progresso, 0 Romantismo,logo depois, a cultuava apaixonadamente, como se viuem nosso surto indianista de prosa e verso, bern comono movimento de descoberta e valorizacao do folclorenacional.

    o fato e que os dois polos demarcam a nacionalida-de: tanto os principios enraizadores integram a culturade urn povo - seria antinatural, hoje, mais do que emqualquer epoca passada, uma sociedade estagnada notempo e no espaco, repelindo as forcas provocadoras deintercambio ou mesmo de transgressao cultural-, como

    45

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    25/73

    Um pouco def iiosofia da cultura brasileira

    os movimentos migrat6rios nacionais e internacionais,as artes, a automacao, a globalizacao, 0 turismo, a moda,os meios de comunicacao, as novas tecnologias, 0 im-pulso missionario das religioes etc.

    No contexto dessa discussao sobre 0 necessario equi-librio entre elementos end6genos e ex6genos, deve-serealcar, distinguir e assimilar bern tres conceitos-chaveda antropologia cultural contemporanea, que sao a en-culturacao, a aculturacao e a inculturacao.

    A enculturacao seria 0 processo continuo pelo qualuma pessoa e introduzida na cultura do seu pr6priomundo, nos diversos estagios de sua vida, tal como aeon-tece no fenomeno paralelo da socializacao.

    Aculturacao e realidade consabida. Significa a di-namica de transformacoes - em geral, nada pacifica! -sofrida por alguem ou por urn grupo, pelo contato esta-vel com outras culturas. Exemplos hist6ricos desse pro-cesso multiplicam-se, particularmente, na America Lati-na e na Africa.

    Finalmente, inculturacao vern a ser a assimilacaoorganica de influxos externos, operacionalizada por meiodo equipamento cultural especifico do pr6prio receptor.Pode-se esclarecer essa dinamica com 0 mecanismo se-melhante da traducao lingiiistica, 0 qual, longe de desme-recer a lingua materna, possibilita-lhe 0desentranhamen-to de novas potencialidades, comprovando, assim, que 0nacional s6 tern a ganhar, quando, sem se renegar, seabre ao estrangeiro.

    i

    II 46

    Nacionalidade e cul tura

    CONCLusAoLigando a realidade patria as consideracoes ante-riores, percebemos claramente que, dos tempos pre-ca-bralinos ate hoje, nossa nacionalidade, fruto de viven-

    cias conflituosas e de processos soctoeconomicos os maisvariados, tornou-se urn mosaico cultural. As culturas in-digenas nao sao a cultura do Brasil-Colonia, como estanao e de todo identica a do Imperio ou a da Republica.

    Apesar da espoliacao sofrida e das sucessivas re-pressoes, nao detivemos a motivacao nativista nem dei-xamos de incorporar expressivas contribuicoes de fora.Depois de todo 0 legado precioso do negro africano,recebemos, a partir do seculo XIX, as influencias de mui-tas correntes migrat6rias, como as dos italianos, dosalemaes, dos japoneses, dos poloneses etc. De resto, pais--continente, bern sabemos quantas distintas manifesta-coes culturais vicejam em nossas regioes.

    Por tudo isso, pondera com acerto Darci Blbeiro",s6 se pode falar de cultura brasileira na acepcao de urnaentidade complex a e fluida, que nao corresponde a urnaforma dada, senao a uma tendencia em busca de umaautenticidade jamais lograda plenamente.

    Conforme arguta observacao de Renato Ortiz", averda deira questao nao e simplesmente definir culturabrasileira. Pouco vale tentar descobrir e explicar quaisas caracteristicas de nossa nacionalidade. 0 primordial

    3. Op. clt., p. 146.4. Cultura brasileira e identidade nacional, Sao Paulo, Brasiliense,1985, p . 139.

    47

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    26/73

    e saber quem faz ou cria, hoje, essa identidade nacionale a quem interessa conceitua-la.E identificando os produtores culturais todos e naosomente os consumidores, que se estara esbocando 0 per-

    fil de nossa cultura. Deter-se em niveis academicos ouesperar apenas deles as luzes reveladoras de nosso egonacional equivale a retratar 0 pais pelo vies respeitavel,mas parcial da intelectualidade. Foto evidentemente des-focada. E 0 risco desse desvio de foque parece grave. Apropria citacao acima de Darci Ribeiro pode favorece-lo,sugerindo certa ontologizacao cultural. Na verdade, a cul-tura brasileira so pode mesmo ser percebida como "ten-dencia" balizada no seculo XX, cern anos apos a inde-pendencia politica, por fenomenos revolucionarios, co-mo 0Movimento Modernista, a Bevolucao de 30 e a gene-se das Universidades, tudo dentro de urn contexto politi-co e economico em que 0 Estado burgues ora procurarelativizar as manifestacoes culturais como dados politi-camente neutros, ora sabe enquadra-los ardilosamentenuma pauta pre-capturada pelo seu aparelho ideologico.

    I

    !, I,

    48

    5COMO E STUDAR CULTURA BRASIL EIR A?

    Aclarados os conceitos-chave, podemos agora en-trar na questao pratica: Como estudar nossa cultura?Que fontes, conteudos e caminhos hao de ser buscados?

    Por criterio didatico, cremos necessario apontar tan-to os escolhos desse percurso como 0 metodo que nosparece mais seguro para percorre-lo,

    A TENTA

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    27/73

    extensao, boato posto a circular para apreender tenden-cias da opiniiio publica.o termo "ensaio" insinua a modestia de quem en-vida esforcos para alcancar 0 real, quando apresentaideias proprias acerca de algum tema, sem esconder,to davia, a sutil expectativa de que elas venham a seracolhidas e facarn, quica, escola.

    De inicio, ensaio era dissertacao sem maior pro-fundidade e meio desarrurnada de experiencias presu-mivelmente sedimentadas, em tom quase de conversa.Hoje, ganhou sentido oposto: surge como estudo meto-dico, especializado, com propostas e conclusoes consi-deraveis (ao menos na opiniao do autor).

    Todo ensaio visa expor urna opiniiio pessoal sobreurn assunto de comprovado interesse. Do ensaista espe-ram-se, pois, erudicao e acuidade critica, total dominio dotema, poder de interpretacao e de sintese, caminho abertopara observacoes originais e conclusoes imp ortante s.

    Hoje, proliferam ensaistas em todos os campos dosaber, mais especialmente nas artes, nas ciencias hurna-nas e na filosofia.

    Exemplo maior ofereceu-o Montaigne, com seusEssais, publicados em 1580. Na esteira dele, muitos filo-sofos lancaram mao desse genero, como Francis Bacon(Ensaios, 1597), Locke (Ensaio sobre 0 entendimentohumano, 1690), Leibniz (Novos ensaios sobre 0 entendi-mento humano, 1704) etc. De alta relevancia tambem 0Ensaiador de Galileu, escrito em defesa do sistema co-pemicano. No seculo XX, vale lembrar a obra de Berg-son, 0 riso: ensaio sobre 0 significado do comico, se-50

    guidamente reeditada, e, de Bertrand Russel, os polemi-cos Ensaios ceticos e Ensaios impopulares.No Brasil, a partir dos fins do seculo XIX, muitosensaistas se dedicaram a definir nossa realidade cultu-ral, como Capistrano de Abreu, Silvio Romero, TobiasBarreto, Artur Ramos, Guerreiro Ramos, Mario de An-

    drade, Paulo Prado, Fernando Azevedo, Viana Moog,Roquete Pinto, Cruz Costa, Tristiio de Athayde, SergioBuarque de Holanda, Gilberto Freyre e muitos outros.o problema do ensaio - que nao pode ser sistema-tico e rigoroso como urn tratado cientifico - reside nafacilidade com que se resvala, sem cerirnonlas, da ten-tativa de explicar algo para a tentacao de esclarecer e,as vezes, justificar tudo, com retorica muito proxima dasofistica.No entanto, a despeito desse carater relativamentefragil do ensaio, impressiona verificar como 0 ensaismofascina e empolga certos "explicadores" do pais, teoricospatricios dedicados a interpretar 0 Brasil, cada qual a

    seu modo, pela antropologia, pela historia, pela econo-mia, pela sociologia e assim por diante. Em suas obras,intuicoes agudas se casam, de forma decepcionante, comjuizos subjetivistas e inconsistentes. Confirma-se dessaforma, e justamente no terreno do ensaio, 0 que Mon-taigne escrevera autorizadamente: "Todos estamos su-jeitos a proferir tolices; 0 mal esta em as pronunciarcom pretensao'".

    Muito a proposito a observacao de Roland Corbisier:"E significativo que ensaios como Baizes do Brasil, de1. Essais III, 1.

    51

    Um pouco defilosofia da cultura brasileira Como estudar cultura brasileira?

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    28/73

    Sergio Buarque de Holanda, Brasil errado, de Martins deAlmeida e Interpretacdo do Brasil, de Gilberto Freyre,apreciacoes panorarnicas de nossa formacao e do supos-to carater do povo brasileiro, e significativo que taisensaios nao incluam uma so estatistica, urn so dado nu-merico. Se das obras passassemos ao exame da posicaopolitica de seus autores, veriamos serem todos conserva-dores, sem compromisso com qualquer especie de mu-danca ou refonna de estruturas economicas e sociais dopais. Indiferentes a transformacao do real, podiam de-sinteressar-se da objetividade, entregando-se, sem ris-cos, aos devaneios da imaginacao'" e

    Justifica-se, por isso, a reacao vigorosa de pesqui-sadores de peso, como Antonio Candido e Florestan Fer-nandes, contra a retorica apaixonada, declamatoria,quando nao patrioteira, do ensaismo tupiniquim. Propu-seram-se eles, como orientacao fundamental e perma-nente, focalizar a cultura brasileira com espirito criticoradical e com terminologia cientifica. Fugiram ao gene-rico e ao vistoso, para investigar exaustivamente temase conceitos basicos na area, como colonialismo, depen-dencia, escravismo, capitalismo, racismo, subdesenvol-vimento, nacionalismo e classes sociais, sem esquecer 0complexo mas necessario papel do intelectual, dentro dasociedade nacional'.

    Concluindo: 0 ensaismo nao e privativo da nossaintelectualidade, nem constitui, por si so, genero litera-rio a se deixar de lado. Pelo contrario, vale muito como

    I.

    2. Revista da Cioilizaciio Brasileira, maio 1966, p. 353.3. Car los Guilherme Mota, /deologia da cultura brasileira, 4. ed. ,Sao Paulo, Atica, 1985, p. 13.52

    esforco de aproximacao da nossa brasilidade cultural,desde que exercido com objetividade critica e elaboradosem lances dogmatizantes. Impoe-se ate como caminho,mas nao como ponto de chegada. Uma coisa e teorizarsobre 0 Brasil; outra, bern outra, querer captar-lhe aespecificidade cultural, por meio do exercicio mais oumenos ludico da propria inteligencia e erudicao. Docontrario, ficaremos ainda por muito tempo entretidos eembevecidos com retratos-miragens de urn pais que soexiste na pena de beletristas. Por estes, a cultura brasi-leira estaria muito bern desenhada, com invejavel rique-za de adjetivos impressionistas, como cultura de urn povopredestinado a combinar 0 moderno com 0 tradicional,sempre infenso a radicalismos, povo sem par, "essen-cialmente plastico e flexfvel'",

    METODOLOGIA PROPOSTAUrn primeiro metodo para estudar cultura brasilei-ra seria a leitura atenta dos sucessivos ensaios que, desde

    o seculo XIX, para nao falar dos textos dos conquistado-res, dos missionarios e dos viajantes, vern sendo com-postos sobre 0 assunto, alguns deles autenticos classicosnacionais, como Casa Grande & - Senzala, de GilbertoFreyre (1933), Eoolucdo politica do Brasil, de Caio PradoJunior (1933), Raizes do Brasil, de Sergio Buarque deHolanda (1937), A cultura brasileira, de Fernando Aze-vedo (1945) e Formacao econiimica do Brasil, de CelsoFurtado (1958). Seria caminho excelente, nao fossem osperigos do ensaismo ja assinalados por nos.

    4. Gilberto Freyre, Ciencia e tr6pico, Recife, jan.-jun. 1985, p. 13.53

    Um pouco defilosofia da cultura brasileira Como estudar cultura brasileira?

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    29/73

    De qualquer forma, e obrigatorio compulsar essesestudos, no minimo para embasar, honestamente, asressalvas que porventura se lhes facarn.

    Outro rnetodo seria 0 cronologtco. Por meio de urninventario, levantado no espaco e no tempo, da maiorsoma possivel de manifestacoes culturais brasileiras,procurar-se-ia situar, periodo por periodo, da melhor ma-neira possivel, quem, 0 que, quando, onde, como, 0universo da nossa cultura, enfim.

    Mas esse amontoar de nomes e dados, sem umavisao interpretativa organizada, de pouco adiantaria. Dei-xaria na sombra a pergunta crucial: Que e cultura bra-sileira? Seria tudo aquilo que se fez, neste pais, a partirde quando? Desde 1500 ou considerando ja as sociedadesindigenas pre-cabralinas? E se 0 marco inicial for a in-dependencia politica (1822), ficaria esquecida a brasili-dade do barroco mineiro e os vultos exponenciais domestico Aleijadinho e do baiano Gregorio de Matos? Poroutro lado, sera que todas as producoes culturais con-temporaneas se justificam como plenamente nacionais,pelo simples motivo de ganharem corpo e proiecao aquientre nos?

    A falsa isencao Ideologica dessa opcao historicistatrai-se a si mesma. Nao passa de respeito supersticiosoe reacionario por uma ordem estabelecida e arquivadacomo intocavel.

    Urn terceiro caminho, sugestivo e fascinante, encon-trariamos - e aqui 0 "nos" vale realmente como impo-sitivo - estudando aspectos constitutivos da existenciaconcreta do homem e da mulher brasileiros, tais como54

    sua linguagem, suas crencas, sua alimentacao, sua rou-pa, seu lazer, sua mtisica, seu artesanato, sua casa, todoo seu fazer e agir cotidianos. Materializando essa busca,precisariamos captar e determinar 0 que caracterizaria,de fato, a habitacao do brasileiro, 0 que distingue suasescolas, suas igrejas, seus locais de trabalho, seus hos-pitais, suas areas de lazer e ate mesmo - por que nao?- seus cemiterios.

    o problema sera sempre a profusao incalculavel denossas peculiaridades regionais e, mais que isso, a per-rneacao irreprimivel das influencias dos grandes centros,via comunicacao de massa, por todo 0 territorio nacional.

    E quem garante que no final nao se venha a recair,mais uma vez, no ensaismo retorico ou no mero morfo-logismo do pitoresco?

    Suspeitamos que a metodologia mais apta ao estu-do da cultura brasileira consista num enfoque critico--analitico, ou seja, na reflexao e na pesquisa construidasa partir do conhecimento das condicoes reais, economi-cas e politicas da nossa sociedade, sociedade hoje de-pendente, marginal e periferica, como ontem foi empal-mada e colonizada pelo mercantilismo europeu, que nosexplorou e desfigurou, por meio dos latifundios, da ex-portacao monocultora, do bravo escravo do indio e donegro, desapropriados e dizimados.

    Ha de se estudar cultura brasileira observando eouvindo nosso povo, na sociedade de classes em que seencontra, hoje, tal qual ele e: marcado por enormes di-ferencas regionais, perdido no desamparo do campo ouno submundo das concentracoes urbanas, tangido por

    55

    Um pouco de filosofia da cultura brasileira Como estudar cultura brasileira?

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    30/73

    migracoes internas, vitima de gritantes desniveis socioe-concmicos e, na sua imensa maioria, excluido e vilipen-diado na sua cidadania.Para nao nos prendermos em categorias mais oumenos abstratas e genericas, a expressao "quem e 0 povobrasileiro e 0 que faz" deve ser rastreada em dois niveis

    de conhecimento: 0 nivel intelectual, fiel ao povo, isto e,nao encastelado na erudicao pedante nem reduzido aporta-voz do poder, e 0 nivel do proprio saber populargenuino e sem Iimitacoes.

    Nao nos interessa 0 jeito senhorial e aristocraticode estudar cultura brasileira, denunciado por CarlosGuilherme Mota", mas a forma participativa, igualitaria,dinamica, questionadora, que se realimenta incessante-mente no amago das condicoes de vida do cidadao co-mum, visando conjugar 0 tratamento teorico da realida-de com 0 esforco de atendimento e consolidacao dasdemandas populares.

    Salientemos tambem que, em toda e qualquer dis-cussao sobre cultura brasileira, importa deixar claro queela nao e artefato pronto de exposicao, arquivo, bibliote-ca ou museu, nem muito menos reino particular de espe-cialistas. 0 que 0 intelectual - 0 especialista, se se qui-ser - pode proporcionar e 0 seu labor de pesquisa e atemesmo de interpretacao, mas condicionado ao crivo deuma analise objetiva, de foco multidisciplinar, livre dodeterminismo etnico (0 simplismo de explicar e justificartudo pela nossa origem tri-racial), geografico (a absolu-tizacao do meio tropical) ou ideologico (a insistencia in-

    5. Op. cit., p. 126.56

    genua ou de ma-fe no celebrar 0 Pais como 0 paraiso daconciliacao e da unidade, a despeito do porte continentale das profundas e explosivas diferencas internas).

    Nessa direcao, a obra do filosofo italiano Grarnsci"pode oferecer pertinentes sugestoes de trabalho, a fimde que a criacao e a identificacao da cultura nacionalnao se restrinjam it pura preocupacao conceitual e seliguem intimamente a todo 0 processo de aflrmacao denossa identidade e autodeterminacao.

    Propoe ele que intelectuais e classes populares seunam num mesmo bloco sociocultural, desde que os inte-lectuais sejam gerados no seio da propria massa, na mes-rna medida em que esta vai crescendo em conscienciacritico-reflexiva, em mobilizacao social e em organizacaopolitica. Desse modo, descarta-se 0 tipo tradicional dointelectual pretensamente neutro e autonomo, mas, de fato,ideologicamente atado aos interesses da alta burguesia.

    Esse "intelectual organico" sera capaz, assim, desuperar a visao estreita e estatica de cultura brasileiracomo simples conjunto de atitudes, conhecimentos, tradi-90es e criacoes da nossa gente. Procurara, antes, captar,na sua a9ao mediadora, 0 especifico da terra, conhecendoe sentindo 0 pais, seu povo, seu chao, sua historia, suaeconomia etc., por meio de uma ligacao interativa com asclasses rurais e urbanas, inter-relacionando teoria - vi-sao coerente do mundo - e pratica, sobretudo, politi ca.

    Dai a posicao estrategica da escola - de todos osgraus - como instituicao-chave e ate mesmo aparelho6. as intelectuais e a organizaciio da cultura, Rio de Janeiro,Civilizacao Brasileira, 1968.

    57

    Urn pouco de filosofia da cultura brasileira

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    31/73

    ideologico predominante no processo cultural brasileiro,por ser ela que, em geral, recruta, seleciona, prepara ecredencia os futuros explicadores do Brasil.

    A MITOLOGIA DA BRASILIDADEParece-nos necessaria uma advertencia final aos quepretendem estudar e compreender a cultura brasileira:

    cuidado com a mitologia da brasilidade!Estamos nos referindo a certas representacoes muito

    presentes nos meios de comunicacao e na propria lite-ratura, carregadas de ideologia, mais ou menos simplis-tas, mais ou menos pitorescas, tao repetidas e decanta-das que passam, as vezes, por verdades chanceladas eindiscutiveis.

    Seria urn empobrecimento cultural lamentavel fi-carmos presos sempre a interpretacao estereotipada danossa cultura, tent ando captar toda a complex a e hete-rogenea realidade do nosso pais, por meio do lugar-co-mum simplorio e reducionista, como: Brasil = pais docarnaval, do samba, do futebol, do jeitinho, da novela,do futuro, paraiso tropical, terra da cordialidade, da de-mocracia racial, da conciliacao, da improvisacao, damacaqueacao ...

    Se todo mito tern urn micleo de verdade, a inteli-gencia nacional, por sua vez, merece todo respeito, naose podendo aceitar a repeticao ad nauseam, sem nenhu-rna analise cntica, dessa mitologia, segundo a qual ateDeus e brasileiro!58

    SEGUNDA PARTE

    A C UL TU RA B RA SILE IR AC OMO P RO BLE MA P OLiT IC O

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    32/73

    P ara bern conhecer a realidade cultural brasileira, epreciso estuda-la tambem sob 0 aspecto politico.Primeiro, porque cultura e questao politica e, emsegundo lugar, por exigencia especial do nosso contextohistorico de pais colonizado e subdesenvolvido.

    Cultura e problema politico, porque nao aconteceno vazio, magicamente. Toda producao cultural nasce,desenvolve-se e repercute no ambito do social e do eco-nomico. Uma casa que se levante, urna plantacao que seplaneje, urn poema que se componha ou urna experien-cia cientifica que se processe, tudo supoe 0 humus poli-valente da sociedade, tudo requer recursos variados, ma-terial de trabalho, organlzacao de services, troca de bense outros expedientes complexos, maxime em nossa socie-dade capitalista, estruturada em classes antagonicas.

    Por essa sociedade corre triunfal a expressao "sa-ber e poder". Se, em principio, esse lema baconiano con-tinua mais valido que nunca, no concreto do cenariopatrio ele nada mais faz do que sintetizar e escamotearuma situacao de injustice e de opressao. Entre nos, sa-ber significa ostentar diploma, apadrinhamento politico,

    61

    A cultura brasileira como problema politico

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    33/73

    dep6sito bancario e muita labia: "Quem sabe sabe!", ou,ainda: "Quem sabe sobe!"Dessa forma, quem nao pas sou por faculdade ounao se liga a esquemas de carreirismo marginaliza-se,

    nao tern poder. Desmentindo a proposta inatacavel -"Escola para todos" -, 0 que existe, em verdade, e 0saber reservado a pequena e a grande burguesias, defaca e queijo na mao, segundo a expressiva linguagempopular. Por ai se da a privatizacao do saber, em sime-trica correspondencia a concentracao do poder. Quem ecapaz de manipular conhecimento sera capaz tambemde disputar ou garantir determinada fatia de poder.

    Completamos ja cern anos de Republica formalmen-te democratica, mas as condicoes de vida da imensa maio-ria do povo brasileiro nao permitem se sinta ele partici-pando ativamente do poder. Seu ser cultural tern muitopoucas oportunidades de manifestacao e crescimento. Apr6pria ordenacao educacional, juridica e economica doPais nao faz mais do que ocultar uma politica cultural decurto folego e indisfarcavel mistificacao ideol6gica.

    Tentaremos elucidar isso mediante quatro instan-cias, didaticamente separadas aq'lti,mas, de fato, indis-soluvelmente unidas no cotidiano nacional: cultura e po-der, cultura e subdesenvolvimento, cultura e democra-cia e cultura e politica cultural.

    62

    I

    1CULTURA E PODER

    Palavra presente no dia-a-dia de todos n6s, podersignifica ou inclui sempre algum tipo de prevalenciade alguem, ou seja, a capacidade de obrigaruma pes-soa a fazer ou nao fazer algo, resolvendo e/ou decidin-do por ela.

    o poder nao deixa ninguem indiferente. Peranteele sempre se assume alguma posicao. Muitos vivempara abocanha-lo: outros, para combate-lo. Mas a maio-ria convive, simplesmente, com ele, no reconhecimentoou na resignacao, ou, 0 mais das vezes, na inconscienciae na passividade. Na pratica, 0 mais comum talvez sejamesclar as diferentes atitudes, ao sabor da situacao, jaque vivemos todos dentro de urn Estado constituido paracriar leis e cobrar impostos.

    Estrutura organizada do poder, 0 Estado, ontem, seconcretizava no fara6, no papa, no rei. Hoje, ele se ab-solutiza e se transform a em formas variadas, gigantes-cas ou sutis, internas ou externas, como 0 Planalto, 0FMI, 0 Pentagono, 0 Vaticano, os meios de comunicacaosocial, a burocracia, 0 capital, 0 mercado ... onipresentese onipotentes. Vai longe 0 tempo em que 0 Tao-te-ching,

    63

    A cultura brasileira como problema politico Cultura e poder

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    34/73

    livro-base do taoismo, sentenciava: "0 melhor dos go-vernos e aquele do qual apenas se sabe que existe!"

    Em nossos dias, poder nao e tanto dominacao quantocontrole. Aparentemente, mais manipula do que repri-me. Hoje, "0 poder estatal nao pode ser definido comouma maquina monstruosa que, unicamente, esmigalhaos individuos: acima de tudo, e uma maquina que pro-duz os indioiduos e, dando-lhes 'bons habitos', instituiou tende cada vez mais a instituir 0 social".' As propriasautocracias mais inteligentes, em vez de perseguir oscontestatarios, fazem de tudo para transforma-los emfuncionarios felizes, mostrando-se sempre muito habeisem simular democracia. Mesmo quando se poem a re-primir, esforcam-se por aparentar 0 contrario.

    Queiramos ou nao, vivemos todos debaixo do poderprojetado em normas, leis, estatutos, mandamentos, sa-bendo que, desobedecendo, sobreviriio multas, penali-dades, castigos, reprovacao, censura, repressiio.

    Onde houver poder havera hierarquia, literalmentesacralizaeao - para 0 inferior - do poder superior eisso em qualquer segmento do corpo social. Mantendo--os ou questionando-os, ai estao 0 patrio poder, 0 podereconomlco, 0 poder da Igreja, 0 poder da tecnica, 0 po-der da midia ... Ironica e ate contraditoriamente, pode-riamos lembrar 0 parco poder aquisitivo do povo brasi-leiro, sem falar, com Caetano Veloso, dos "podres pode-res: morrer e matar de fome, de raiva e de sede ... ".

    1. Gerard Lebrun, 0 qu e Ii poder; Sao Paulo, Brasiliense, 1981, p.86.64

    Todos criticamos 0 poder, no entanto poucos recu-sam as benesses do Estado. Todos queremos dele - ecom pleno direito - escola gratuita, seguranca, sanea-mento basico e muita coisa mais. Poucos, porem, conse-guem fechar os ouvidos ao seu canto de sereia, quandopromete cargos sem encargos, seja nas estatais, seja nasmen ores carnaras legislativas.

    Essas observacoes cabem, particularmente, na ana-lise da problernatica cultural. Se, para certos intelectuais,o Estado tern cara de inimigo maximo, outros ha que 0veneram e cortejam como mecenas salvador, quando naosuspiram por ele, como pelo messias prometido.

    Sera que cultura e poder se excluem, sem rernedio?Nao necessariamente. Certo que 0 interesse dos donos dopoder objetiva sempre algum tipo de ar;iiocultural. Recor-de-se 0 caso das nacoes europeias, na escalada expansio-nista de seu poderio economico. Desde 0 inicio do colo-nialismo moderno, procuraram elas conhecer ospovos con-quistados, suas crencas, costumes e praticas sociais, paradomina-los de modo mais eficaz e duradouro. 0 mesmo,alias, se podera ver hoje, analisando nossas telenovelas: asrelacoes de poder reproduzem-se ai, de forma bern clara,consoante os interesses dos grupos hegemonicos do pais.

    Com isso tudo, nao se elimina a possibilidade de 0poder mirar 0 espaco cultural, sem ambicao de dominio.A condicao seria que 0 poder se vinculasse aos anseiosjustos da sociedade, dentro de uma organizacao politicaem que, em vez de deificar 0 Estado, se projete cada vezmais a palavra criadora dos grupos sociais. E disso cui-daremos a frente, ao tratarmos de politica cultural.

    6 5

    A cultura brasileira como problema politico

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    35/73

    Por ora, conviria refletir detidamente sobre certasquestoes concretas, que aqui deixamos, de proposito, semrespostas e sem tomar posicao, esperando suscitar 0espirito critico do leitor: Quem tern poder cultural noBrasil? Qual 0 poder da cultura no pais? Qual a validadeda existencia de certas elites "cultas" brasileiras, comoa Academia Brasileira de Letras?

    66

    2CULTURA E SUBDESENVOLVIMENTO

    Usado ainda ou substituido por "dependencia", 0termo "subdesenvolvimento", por si so, desperta em nos,brasileiros, a imagem clara e triste das nossas reaiscondicoes de vida: analfabetismo, alta mortalidade in-fantil, fome, sucateamento da saude, desemprego, faltade moradia e muitas outras situacoes deprimentes, in-compativeis com a dignidade do ser humano.

    Quem fala em subdesenvolvimento estabelece, ine-vitavelmente, comparacao entre niveis desiguais. Esta adenunciar 0 desconforto de quem jaz por baixo (sub).Seguem-se dai as perguntas necessarias: Por baixo dequem ou de que estamos nos? E por que essa desigual-dade de posicoes? Trata-se de fatalidade historica, ou deuma historia fatal de exploracao?

    Nosso subdesenvolvimento vern de profundas raf-zes histriricas, Nasceu com a colonizacao predatoria,quando toda a nossa riqueza natural- pau-brasil, acu-car, pedras e metais preciosos - e todo 0 lucro aquigerado pelo trabalho compulsorio, servil OU escravo,foram apropriados pela burguesia metropolitana, inte-

    67

    A cul tura brasi leira como problema pol it ico Cultura e subdesenooloimeruo

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    36/73

    ressada em ganhos comerciais imediatos e nao na obramais demorada e mais ampla do povoamento.Nascemos e crescemos em regime de expropriacaoe nesse regime patinamos ate hoje, dado que da econo-mia colonial fomos levados a economia capitalista ex-

    portadora do seculo XIX. Se a escravatura foi oficial-mente abolida com a implantacao do trabalho assalaria-do, aprofundou-se 0 grau de internacionalizacao e de-pendencia do nos so sistema produtivo, e as classes tra-balhadoras passaram a sofrer cad a vez mais a defasa-gem entre 0 salario recebido e as justas exigencias deuma vida digna. No fundo, 0 povo e sempre castigadopela espoliacao; e 0 pais, reduzido a paraiso dos poucosproprietaries dos meios de producao e inferno dos in-contaveis e quebrados proprietaries da forca de traba-lho, que de proprio so tern a prole (os proletarios).

    Nesse quadro sombrio, se cultura e subdesenvolvi-mento nao se repelem, como negar que interajam pre-cariamente?Cumpre lembrar aqui, mais uma vez, que nao se

    deve confundir cultura com verniz ornamental, nem comerudicao livresca ou mesmo escolarizacao refinada. Es-tamos sempre pensando em cultura como afirmacao docidadao brasileiro no trabalho, na familia, no lazer, napratica religiosa, na sociedade civil, na vivencia de urnoficio ou de uma arte.

    E se cultura e producao especifica do ser humanoem sua enoarnacao historica, somente no desenvolvi-mento e que ela florescera plenamente, gracas a capa-cidade tanto de multiplicar urn sem-mimero de obras,68

    como de acrescentar e questionar 0 sentido dessas obras,redefinindo-as ou rearticulando-as, segundo novos pa-droes e em funcao de novos projetos, num processosem fim.

    Como viabilizar essa tarefa, numa sociedade emque a maioria dos cidadaos legais nao e de cidadaosreais, porque tratados, na melhor das hipoteses, comogente da "periferia", quando nao simplesmente margi-nais ou excluidos?

    Vegetando num mundo infra-humano, sem horizon-tes outros que 0 da sobrevivencia animal, bombardeadospelo imaginario da cultura dominante, longe de a con-testar para supera-la, acabam enredados por seus maisatraentes apelos, como 0 "subir na vida", 0 "levar van-tagem", "veneer sem fazer forca", a "paz social", "som-bra e agua fresca", a admiracao enrustida pelo malan-dro esperto e a procura do manto protetor de liderancasmessianicas e paternais.

    Dai a anomalia da realidade nacional, em que 0economico hipertrofiado casou-se com a ideologia daseguranca, causando e sintomatizando nossa culturadominada.Num pais em que as estrategias politicas, economi-cas, cientificas e tecnologicas nao apenas sao ditadas

    por pressoes internacionais, mas tarnbem se conjugamno ideal discutivel de transforma-lo em potencia mun-dial, nao e por acaso que campeia a falsa ideia de cul-tura como simples elemento complementar e decorati-YO, coisa de rico para rico ou apanagto intransferivel daselites intelectuais.

    6 9

    A cul tura brasi leira como problema pol itico

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    37/73

    I:I"

    I1'I,

    Tudo comecaria a andar melhor no caso de urn Es-tado e de urn regime voltados, prioritariamente, para asnecessidades sociais da populacao, respeitada como pro-tagonista da definicao e norteamento do seu propriodestino. It por ai que se desencadearia nosso desenvol-vimento cultural autentico, perseguido por urn povo--sujeito, construtor da propria hist6ria. Se se democrati-zarem os meios de producao, para atender aos reclamosbasicos da sociedade brasileira, a luz dos principios deigualdade e participacao, resultara dai urn pais diferen-te, mobilizado, culturalmente muito mais criador e real-mente livre.

    Para aprofundamento do tern a deste capitulo, acre-ditamos util que 0 leitor tente prosseguir essa reflexao,procurando a resposta para as seguintes questoes: Quala relacao entre cultura e subdesenvolvimento? Haveracultura, e que especie de cultura, num pais dominado?Pode-se falar em subdesenvolvimento cultural no mun-do rico? Como operar 0 desenvolvimento cultural de urnpais subdesenvolvido?

    :3CULTURA E DEMOCRACIA

    o "Plano Nacional de Cultura", formulado nos tem-pos do marechal Castelo Branco, defmia 0 brasileiro como"democrata por formacao". Por essa idealizacao, preten-dia-se, e em grande parte se conseguiu, impor e reforcarurn conceito de cultura brasileira abstrato, desenvolvidonurn pais hipotetico, privado de tensoes de poder, semdivisao de classes, imune as injusticas sociais. Os brasilei-ros viveriam, assim, nesse sonho maravilhoso de urn espa-co-tempo isento de contradicoes, terra de cultura livre, de-mocratica e nao imposta, como nos regimes autocraticos.

    A partir dessa premissa falsa, consagrava-se umavisao cultural meramente de conservacao do passado(monumentos, edificios, docurnentos, mem6rias, raizes,herois e personalidades) e de mistificacao do presente(Brasil, 0 melhor pais do mundo!), mediante a ideologiasempre muito simpatica do dialogo, do encontro e dacomunhao social. Por tudo isso, viva, com muito samba,o maior carnaval do mundo, no pais tetracarnpeao dofutebol do planeta!

    Veiculava-se a imagem de urn Brasil culturalmentedemocratico, a ser preservado e defendido, quer das mas70 71

    A cultura brasileira como problema pol itico Cultura e democracia

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    38/73

    influencias alienigenas, quer dos movimentos end6genosde mudanca.Entretanto, as necessidades de sobrevivencia fisica,nao-satisfeitas para a maioria do povo, puseram em xequetoda essa empulhacao. Ficava cada vez mais evidenteque a falta de comida, de emprego, de moradia, de sa-

    neamento basico era sempre acompanhada da privacaodos bens culturais primaries, como educacao e lazer.Quem nao se alimenta nao estuda, nao le. Quem naotern como comprar roupa e sapato podera gas tar comteatro, cinema e livros?Por conseguinte, redemocratizado 0 pais, tornou-seurgente e patente dinamizar 0 debate, dentro e fora dosmeios untversiterios, sobre cultura e democracia. Nessesentido, entre muitas sugestoes e propostas, uma contri-

    buicao lucida e abrangente foi oferecida por artistas,intelectuais e produtores culturais em geral, ap6s suces-sivas reunioes em Sao Paulo, em 1985. Destacaremosaqui alguns t6picos mais pertinentes.

    Encabeca 0 documento uma declaracao de ordemfundamental, a partir da concepcao de democracia comogoverno do povo, pelo povo e para 0 povo: "Esta e a horade modificar e de prom over a democratizacao do traba-lho e dos bens culturais; da sua producao e da sua frui-~ao. Queremos resgatar 0 povo brasileiro do abandono,descaso e desprezo a que e relegado na hist6ria brasilei-ra. Os bens culturais tern sua origem no trabalho do povoe devem, legitimamente, retornar ao povo brasileiro".

    Urn requisito essencial aparece: "Bevogacao ime-diata de todas as leis ilegitimas que impedem a livremanifestacao cultural".72

    .l

    Enumeram-se depois, com pormenores, algumaspistas de acao imprescindiveis:

    Identidade: "Todo cidadao brasileiro tern 0 direitoassegurado ao respeito da sua realidade cultural; assim,devem ser garantidas todas as manifestacoes heteroge-neas e multiculturais, sem excecao, em que se exprimea identidade cultural brasileira".Liberdade: "A todo cidadao brasileiro deve ser asse-gurado 0 direito de associacao, de livre expressao e deuso dos instrumentos, veiculos e mecanismos necessariosao processo de criacao, sob quaisquer de suas formas".

    Descentralizacao: "Deve ser assegurado a todos oscidadaos 0 direito de criar e gerir seus pr6prios espacosculturais, segundo seus interesses, expectativas e neces-sidades".

    Democratizacao: "Todo cidadao brasileiro deve terassegurado 0 dire i to ao conhecimento e ao acesso aosmeios de producao e de fruicao cultural".

    Participacao: "Atodo cidadao brasileiro deverao serassegurados 0 direito e a liberdade de participacao e deintervencao no processo cultural do pais".Integracao: "Deve ser assegurado a todo cidadaobrasileiro 0 direito ao respeito da sua realidade culturalcomo ponto de partida de sua educacao atraves da esco-lanzacao formal, bern como 0 direito ao aprendizado daarte em todos os niveis escolares e 0 reconhecimento da

    funcao social e educacional do artista na escola e nacomunidade'".1. Folha de S. Paulo, 15 jan. 1985, p . 31.

    73

    A cultura brasileira como problema pol it ico Cultura e democracia

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    39/73

    De tudo 0 que discorremos deduz-se que 0 binomiocultura-democracia ha de ser visualizado sempre dentrodo plano historico-social brasileiro, 0 mais concretopossivel. Producao, consumo e critica - tres fases inte-grantes do processo cultural- precis am ser desenvolvi-dos e analisados it luz dos nossos condicionamentos reais.Por esse pressuposto, calham aqui algumas observacoesde tres abalizados intelectuais patricios contemporaneos.

    Comecemos por Carlos Nelson Coutinho. A questaoque ora nos ocupa: "0 que fazer para uma efetiva demo-cratizacao da cultura brasileira?", ele avanca uma res-posta muito clara:

    "Antes de mais nada, ha uma batalha a travar den-tro do proprio plano da cultura. E a tarefa primordialdessa batalha ideologica ... e precisamente a de contri-buir para a supressao do elitismo cultural e para umatransformacao em sentido nacional-popular da cultura eda intelectualidade brasileiras. Estimulando as obras quese encaminhem no sentido do nacional-popular e reve-lando ao mesmo tempo 0 beco sem saida (ideologico eestetico) da visao do mundo elitista ou intimista, a criti-ca - se feita no quadro do respeito ao pluralismo e itdiversidade, que sao tracos ineliminaveis de toda cultu-ra autentica - podera contribuir para a expansao hege-monica de uma nova cultura brasileira efetivamentedemocratica, efetivamente nacional-popular ...

    Por outro lado, lutar por essa orientacao cultural.. .nao pode significar de nenhum modo a negacao do plu-ralismo. A luta pela hegemonia respeita 0 pluralismo edele se alimenta em dois niveis. Em primeiro lugar,74

    concebe a unidade do nacional-popular como uma uni-dade na diversidade, como uma unidade que retira suaforca e sua capacidade expansiva da mais ampla varie-dade de mamfestacoes individuais. E, em segundo, naoso reconhece a necessidade social e 0 direito it existen-cia de correntes nao nacional-populares (ou nao inteira-mente nacional-populares), mas tambem - mesmo noquadro de uma critica global de seus eventuais limitesartisticos e/ou ldeologicos - admite a possibilidade con-creta de que producoes culturais intimistas possam con-tribuir para 0 desenvolvimento de aspectos de uma arteou de uma concepcao do mundo efetivamente ligadas itvida nacional e popular ... " 2 .

    Outro especialista, Octavio Ianni, acrescenta a se-guinte proposta iluminadora:

    "A democracia somente se torn a efetiva se com-preende tambem as condicoes culturais. Os valores epadroes culturais, os modos de viver e pensar, as condi-~oes materiais e intelectuais de vida e trabalho tern muitoa ver com as condicoes de organizacao do poder politicoe economico, em todos os lugares. Na fabrica, fazenda,escritorlo, escola, igreja, casa, em todos os lugares, ascondicoes sociais, politicas e economicas de viver e tra-balhar compreendem inclusive, necessariamente, a cul-tura. A liberdade indispensavel it democracia politica etambem urn valor cultural. Funda-se na cultura ...

    As classes dominantes pouco ou nada se preocupamcom a conquista da democracia... It 0 povo que mais2. In Encontros com a ciuilizaciio brasileira, Rio de Janeiro, nov.1979, pp. 42-43.

    75

    A cultura brasileira como problema politico

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    40/73

    freqiientemente coloca aquestao da democracia para osdiferentes setores sociais e a sociedade como urn todo.Povo, aqui, significa trabalhadores, assalariados, isto e ,operarios, camponeses, empregados de empresas priva-das, funcionarios de orgaos publicos, estudantes, intelec-tuais; ou indios, caboclos, negros, mulatos e brancos dediferentes etnias. Os protestos, reivindicacoes, greves, mo-tins e revoltas, bern como associacoes, movimentos so-ciais e partidos politicos configuram a presenca e a per-manencia desse povo na luta pela democraeia'",

    E, para concluir, fique a densa recomendacao deFlorestan Fernandes: "Acredito que 0 dever maior don intelectual, em sua tentativa de ajustar-se criadoramente1'

    Ii it sociedade brasileira, objetiva-se na obrigacao perma-'li nente de contribuir, como puder, para estender e apro-Ii:1

    fundar 0 apego do homem medic ao estilo democraticode vida'".

    I,'i

    3. "Cultura e democracia", in Folha de S. Paulo, 23 dez. 1984, p.5. (Suplemento Folhetim)4 Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar,1968, p . 173.76

    4-POLiTICA CULTURAL

    Procuraremos, neste capitulo, responder, didatica-mente, a tres perguntas: 0 que e politica cultural? Comotern sido ela, no Brasil? Qual seria a melhor politicacultural para nos?Simplificando, pode-se dizer que politica cultural,

    em sentido estrito, e tudo aquilo que 0 Estado faz naarea da cultura; e, em sentido amplo, tudo quanto se faznessa area pelo pais afora.

    Fiquemos, porem, com 0 seguinte conceito: politicacultural e 0 conjunto das grandes linhas pelas quais 0Estado regula sua acao no campo da cultura.

    Trata-se de questao muito problematica. Nao e facilconceber 0 governo propondo - ou impondo - diretrizesde uma acao humanizadora por essencia e, por isso mes-mo, antiestatizante. Como combinar criatividade culturalcom normas autopreservadoras das instituicoes estatais?

    Por sua vez, da para imaginar uma politica culturaldotada do mesmo rigor que se espera da politica econo-mica, com comando centralizado rigidamente, metas pre-definidas e resultados matematicamente controlaveis?

    77

    A cultura brasileira como problema politico Politica cultural

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    41/73

    Historicamente, porem, como ou qual tern sido anos sa politica cultural?

    NO BRASIL-COLONIAA primeira resposta, vinda bern de longe, e que a

    chegada dos colonizadores foi marcada pela politica dodesprezo, do desrespeito, da dizimacao da cultura nati-va, num processo de aculturacao predatoria, que ate hojenao se estancou por completo.

    Os trezentos e tantos anos do nosso regime colo-nial, por sua vez, constituem e fortalecem 0 que pode-riamos chamar de politica cultural da transplantacao.Da metropole vern 0 monopolto mercantil, a catequese,a estrutura de ensino, a sobrevalorizacao do trabalhointelectual e a pratica exclusiva do trabalho fisico peloindigena e pelo escravo africano. Dentro dessa orienta-~ao politica, que, de urn lado, destruia 0 nativo e, deoutro, impunha 0 importado, sobrou muito pouco para 0estimulo de uma cultura autoctone. A fechada politicacultural da epoca ~~corisegulu impedir algumas cria-~6es no campo das artes, como, por exemplo, na muslca,na danca, na literatura oral, na culinaria, por influenciado indio e do africano. Tais criacoes perduram ate hoje.

    Alem de controladora, a politica cultural no Brasil--Colonia foi tambem repressiva. Em 1675, Portugal re-cusava a equiparacao do colegio da Bahia ao de Evora.Mandava queimar e por por terra, em 1747, a primeiragrafica instalada aqui. Instrucao superior, so indo paraPortugal! E a imprensa era proibida.78

    A partir da segunda metade do seculo XVIII, come-ca a se esbocar 0 ideario da autonomia politica e cultu-ral brasileira, com 0 questionamento cada vez mais fortedas bases do sistema colonial monopolista e predador. Aclasse dominante desperta para a formacao dos seusquadros. Multiplicam-se os micleos propagadores dosideais liberais em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia ePernambuco. E a Corte continua proibindo, exilando,matando, ate que, fugindo as tropas de Napoleao, acabase transferindo para 0 Brasil.

    Aqui instalada, a Corte lusitana logo impulsionaalgumas atividades culturais, especificamente quantita-tivas como nota Nelson Werneck Sodre: "As atividadesligadas ao conhecimento do pais, particularmente pelolevant amen to das variedades de plantas e animais, e 0incentivo dado as expedicoes cientificas, logo adiante, eno mesmo rumo de acumulacao informativa; e as ativi-dades ligadas ao provimento de modelos europeus e aorecrutamento de discipulos, de que foram manlfestacaoconcreta a fundacao de escolas de arte e de museus e acontratacao de mestres estrangeiros"'. Mas, acrescentao mesmo autor, "0 que importa, realmente ( ... ) e a aber-tura que se delineia com a fundacao da imprensa, em1808, lancado 0 primeiro jornal, impressos os primeiroslivros, organizada a primeira biblioteca destinada aopublico, criados os primeiros cursos superiores, princi-palmente aqueles destinados a formacao de quadrosmilitares. Voltada para atendimento de exigencias ime-

    1. Sintese de hist6ria da cultura brasileira, 9. ed. , Rio de Janeiro,Civil izacdo Brasi leira, 1981, p. 33.79

    A cultura brasileira como problema pol it ico Politica cultural

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    42/73

    diatas e praticas, a reforma joanina rompia, assim, como sentido escolastico e literario da epoca colonial'".

    NO BRASIL-IMPERIOEssa abertura cultural relativa possibilitou melhor

    contato com a ideologia liberal que se implantava entaonas nacoes mais desenvolvidas, como a Inglaterra e aFranca, onde campeava soberano tambem 0 romantismoliterario. Com isso, a nossa independencia polftica naosignificou nenhuma ruptura com os padroes culturaiseuropeus. Prosseguia a cultura da imitacao, da alienacao,a cultura das elites para as elites, numa sociedade escra-vista, em que as vozes estritamente populares nao tinhamvez. Sintomaticamente, a propria palavra "cultura" apare-ce somente uma vez, em mencao timida e secundaria, ecomo inciso do Ultimo artigo da primeira Constituicaobrasileira, a Constituicao Politica do Imperio do Brazil(sic), jurada por D. Pedro I, em 25 de marco de 1824.

    No Primeiro Reinado, na Begencia e no SegundoReinado, desLacam-se, evidentemente, personalidades ex-ponenciais das classes dominantes e uma ou outra dapequena e incipiente classe media, na politica, na eco-nomia, no jornalismo, nas letras, nos tribunais. Sao pa-ladinos nas lutas pela instrucao primaria, entao em es-tado lastimavel; pela abolicao da escravatura; pela uni-dade nacional; pela industrializacao manufatureira. Masa distancia entre a cultura das minorias poderosas e acultura das classes populares aprofundava-se.

    2. Id., ibid., pp. 34-35.80

    NA PRIME IRA REPUBLICAAs crises polfticas e economicas que abalaram 0imperio na decada de 1880 e a pressao da pequena bur-

    guesia crescente prepararam a mudanca para 0 regimerepublicano, sempre sob a influencia estrangeira, agorado positivismo, na filosofia e nas ciencias, e do realismo,nas artes. Com 0 desenvolvimento do capitalismo entrenos, crescia a necessidade de incorporacao da pequenaburguesia ao mundo cultural, desde a simples alfabeti-zacao ate a pratica da pesquisa cientffica, num amploesforco de busca e definicao do espirito nacional, parasuperar de vez 0 passado colonialista. Mas chega a serdecepcionante verificar que nossa primeira Constituicaorepublicana, assinada por Rui Barbosa, Campos Sales,Saldanha Marinho, Ubaldino do Amaral, Assis Brasil etantos outros luminares nao tenha dedicado a culturaurn artigo sequer.

    Nao obstante lacuna tao grave, 0 fermento culturalnao deixou de agir na sociedade do tempo, como se podever no exemplo fulgurante de uma Chiquinha Gonzaga,que, rompendo todas as barreiras da epoca, compos oi-tenta e sete partituras de pecas teatrais e duas mil com-posicoes populares (choros, cancoes, polcas, modinhas),tendo, ao mesmo tempo, intensa participacao politica nacampanha abolicionista e na luta pela implantacao daRepublica.

    A verdade e que, sem 0 apoio governamental e atecontra ele, as primeiras decadas do seculo XX, alem derelevantes fatos politico-sociais (as primeiras grandesgreves, 0 movimento anarquista, 0 tenentismo, a Coluna

    81

    A cultura brasileira como problema poli tico Politica cultural

  • 5/10/2018 A_Cultura_ Brasileira_ o_ Que_ _Como_ se_ Faz_Ado_Vannuchi

    43/73

    Prestes, a fundacao do Partido Comunista Brasileiro, aBevolucao de 30...), gestarao tambem importantes rnani-festacoes culturais, como 0 Movimento Regionalista doRecife e a Semana de Arte Moderna de 1922, que mar-cam a decisao dos artistas patricios de se aproximarem,o mais possfvel, do povo, na linguagem e na tematica.

    Nesse clima de renovacao efervescente, cornelia aacontecer algo muito importante: a difusao da arte popu-lar. "Ja nao era mais simplesmente 0 folclore de autoresanonimos, mas 0 aparecimento (principalmente