15
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – PPGCS FCHD27 – TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA FCHF29 – TÓPICOS DE TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA PROF: MARIA SALETE SOUZA DE AMORIM SEMESTRE 2014.1 PARA UMA GENEALOGIA DEMOCRÁTICA A DEMOCRACIA COMO FARSA Thiago de Araujo Pinho SALVADOR, 2014

A_DEMOCRACIA_COMO_FARSA.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS - FFCH

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS PPGCS

    FCHD27 TEORIA POLTICA CONTEMPORNEA

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    FCHF29 TPICOS DE TEORIA POLTICA CONTEMPORNEA

    PROF: MARIA SALETE SOUZA DE AMORIM

    SEMESTRE 2014.1

    PARA UMA GENEALOGIA DEMOCRTICA

    A DEMOCRACIA COMO FARSA

    Thiago de Araujo Pinho

    SALVADOR, 2014

  • 2

    RESUMO

  • 3

    Ns esperamos por uma cultura na qual questes sobre a

    objetividade dos valores ou a racionalidade da cincia

    paream igualmente ininteligveis (RORTY, 1995, p. 60)

  • 4

    INTRODUO

    O objetivo desse trabalho problematizar a noo de democracia liberal enquanto

    critrio de definio das fronteiras de uma razovel esfera publica, colocando em dvida

    sua eficcia no apenas enquanto conceito, mas principalmente enquanto pacote

    civilizatrio, cujo contedo, quase sempre etreo, h muito tempo no mais posto em

    questo, sendo exportado, irrefletidamente, para todos os lugares atrasados do globo,

    como se nisso houvesse algo de privilgio ou nobreza. As condies sociais dos valores

    que supe uma democracia no podem ser negligenciadas em nome de alguma

    expectativa pr-formada por um punhado de meios de divulgao. Seja na mdia ou

    mesmo na academia com sua legitimidade autoritria, o pensamento radical- e sua

    consequente maturidade- parece se distanciar do horizonte, abrindo espao para a

    convenincia das praticas e a imprudncia da critica. Rastrear os interesses e os corpos

    em jogo, esse o grande desafio de um cientista social. E a democracia, apesar de suas

    primaveras ou outonos, no estaria de fora de uma avaliao profunda, como se nela

    existisse algo de indiscutvel e no, como de se esperar, um conjunto de praticas e

    discursos interessados. Como qualquer criao humana ela deixa rastros e so essas

    pistas que podem nos levar seja para lugares agradveis que reforcem nossas convices

    ou, ao contrario, a espaos constrangedores em que tudo de obvio transforma-se em

    arbitrrio, desmanchando aquilo de slido aos nossos olhos. uma verdadeira aposta

    quando se toma os conceitos em seu processo; no h garantias do que pode ser

    encontrado no final de uma investigao.

    Seguindo uma tradio de pensamento que passa por nomes como Nietzsche,

    Bourdieu e Foucault, a democracia, como qualquer outro artefato humano, ser tida

    como mais uma construo interessada; como um conjunto de discursos e prticas

    coerentes e extremamente sedutores, em especial para aquele que nega ou evita o

    confronto com sua genealogia constrangedora. E se a democracia for uma farsa muito

    bem articulada, criada para ocultar um processo de corroso profunda de nossas

    instituies? essa pergunta provocadora que deve orientar todo o artigo. Mas no

    vamos nos apressar nas concluses. Primeiro gostaria de fazer uma discusso rpida

    sobre a modernidade e o que ela representou para a histria do pensamento e da prpria

    configurao dos campos sociais, em especial o politico. No desenrolar da exposio

    vou revelando minha hiptese acerca de uma possvel genealogia do universo

    democrtico (liberal). Por fim gostaria de destacar aqueles que fizeram a sua defesa,

  • 5

    mas principalmente dar nfase ao outro lado da histria, queles autores que apresentam

    uma interpretao diferente daquilo que muitos consideram como bvio a respeito desse

    tema.

    O ARBITRARIO TORNA-SE NECESSARIO

    A modernidade, no tanto como um instante no tempo, mas como uma referencia

    de ruptura ideal, marca uma transio importante na historia do ocidente, invadindo a

    vida de um modo nunca antes visto. A velocidade e a incerteza que a acompanha tornam

    os campos sociais, em especial o poltico, oscilantes e instveis. O Estado, embora

    ncleo de controle slido, convive simultaneamente com uma dinmica nova de lidar

    com as idias e com os discursos. O desencantamento das esferas (WEBER, 1982, p.

    165) comea a abalar os alicerces de um perodo em que Deus a unidade indiscutvel

    do entendimento e da virtude1 (CASSIRER, 1994, p. 376). Quando as justificavas

    perdem suas validades e entram no terreno turbulento da linguagem e do poder, nenhum

    individuo porta, por si mesmo, os meios necessrios de sustentao de seus argumentos.

    Eles no brotam de alguma intimidade transcendental ou de uma alguma certeza

    transcendente, mas demandam um esforo imenso por parte dos atores afim de que suas

    proposies se mantenham de p no dia seguinte.

    Como resultado inesperado desse desencanto, o espao publico- a esfera de

    debate a respeito do interesse comum- deixa transparecer as consequencias desse

    processo, quando um conjunto novo de atores, antes sufocados pelo peso das

    metanarrativas, agora podem conquistar seus territrios e reivindicar alguma voz.A

    impotncia das instituies e dos discursos, carentes da assistncia divina e natural, e

    no algum tipo de virtude revelada, que acaba por explicar o convvio de tantas

    opinies divergentes e tantas expectativas excludentes. No que nos encontramos mais

    evoludos, capazes mais hoje do que antes de repensar nossos valores e desmistificar

    nossas opinies. O que mudou foi a conjuntura, como dizem alguns e no nossa relao

    1 Habermas vai se referir a um processo irresistvel de secularizao numa poca ps metafsica

    (HABERMAS, 1999, p. 213), Bauman a uma ambivalncia constituinte a um mundo liquido

    (BAUMAN,1999,p. 178-179) e Lyotard, ao fim das metanarrativas numa ps modernidade

    (LYOTARD, 1979, p. xvi). Por caminhos diferentes esses autores acusam um fenmeno novo e

    inesperado, um tipo radical de mudana que se estende a todos os lugares.

  • 6

    com a linguagem que, ao menos aparentemente, permanece intacta, com todo aquele

    principio de identidade temido por Adorno e Deleuze. Principio que, ao se fechar em si

    mesmo com suas prprias intenes, cria uma couraa de justificativas e manobras

    retricas impenetrveis, incapaz de permitir ao Outro sequer uma mnima

    horizontalidade amistosa. Nesse sentido que a hipocrisia regra, visto que mantemos

    aquela forma de discurso perigosa e superficial, segundo Hannah Arendt; aquele

    discurso que no reconhece o prprio rastro social que deixa atrs de si, mas prefere o

    conforto de certezas que ao menos para a expectativa de Popper e Rorty, no fariam

    mais sentido nos tempos de hoje- tempos esclarecidos e compostos por uma nova

    maturidade poltica.

    O dissenso e a pluralidade de opinies, ora vistos como resultados da perda do

    prestigio dos discursos, agora condenados convivncia comum no limbo do

    pragmatismo, torna-se misteriosamente um valor a ser defendido (BOBBIO, 1997); um

    [...] resultado inevitvel, a longo prazo, do exerccio das faculdades da razo humana

    em instituies bsicas (RAWLS, 2000. p. 45). O arbitrrio torna-se necessrio, e uma

    trajetria oscilante e imprevisvel converte-se numa flecha ascendente rumo a valores

    mais nobres (DEWEY, 1980). Aquilo que nada mais do que a incapacidade de se

    impor na arena publica por falta de oportunidade simblica, digamos assim, transforma-

    se, de uma maneira extremamente criativa, numa virtude que todos buscam alcanar e

    uma referencia necessria para qualquer tomada de posio que viermos a ter. Nietzsche

    diria que

    A fraqueza mentirosamente mudada em mrito, no h dvida [...] e a

    impotncia que no acerta contas mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa,

    em 'humildade'; a submisso queles que se odeia em 'obedincia'

    (NIETZSCHE, 1874, p. 17)

    De maneira hipcrita os atores continuam a defender suas monodas de valores e de

    interpretaes (DEWEY, 1980), utilizando o discurso liberal para ingressar numa esfera

    publica decadente. Quem seria o sujeito irnico de Rorty ou o agente poltico de O

    Donnel? Quem estaria disposto a comprometer suas prprias convices em nome da

    horizontalidade e do reconhecimento alheio? Se a resposta ningum, logo os valores

    democrticos so surdos, embora seja forado a reconhecer que apesar de sua

    inconsistncia eles tm um efeito gigantesco nos corpos de centenas de milhes de

    pessoas em torno do globo. Aqueles que por sua vez ainda no experimentaram um

    pouco das luzes do progresso institucional, esperam por alguma ocorrncia redentora.

  • 7

    Quem sabe no sejam agraciados e os tempos frios de um regime autoritrio no se

    abrem para uma primavera qualquer?

    Por que no obvio que a liberdade de expresso e a igualdade de participao

    sejam virtudes a serem cultivadas? Pois bem, justamente esse obvio que se torna

    um problema, causando um desconforto evidente a toda boa genealogia. Existe algo

    muito errado, se possvel valorar tudo isso, nessa obviedade e nessa certeza a respeito

    de valores que se vistos mais de perto, so to questionveis e vagos. Diante de sua

    natureza oca, aonde buscar suas consistncias seno em um conjunto de estratgias

    interessadas e em um trabalho cotidiano para manter firme aquilo que por si mesmo

    no . Em outras palavras, se a liberdade e a igualdade so conceitos indefinidos,

    questionveis e flutuantes a quem convm suas consistncias e suas obviedades? A

    quem convm a existncia de uma massa homognea de sujeitos defensores de um ideal

    comum, ou a existncia, por outro lado, de uma individualidade autnoma e livre? Essas

    questes nos levam ao centro da genealogia, cujo interesse no est na validade dos

    argumentos, mas em suas eficcias enquanto instrumentos prticos de definio de

    categorias e valores.

    DEMOCRACIA, LIBERALISMO E HIPOCRISIA

    A democracia como procedimento e sua forma instrumental de lidar com

    decises, ao menos agora, no nos interessa. Salvo raras excees no meio acadmico, a

    cultura de um modo geral no governada por essa vertente, muito menos a tangencia

    de alguma maneira. Quando pensamos em democracia algo de civilizatrio desponta do

    conceito, gerando uma seta evolutiva em que valores como igualdade e liberdade so

    tomados como referncias finais e quase necessrias dos rumos que a vida humana

    deveria estabelecer para si. A carcaa oca e pragmtica proposta por autores como

    Bobbio (1997), Aron (1985) e Schumpeter (1961) contrasta com a substancialidade do

    apetite da opinio publica e de toda uma cincia poltica norte americana que dispensa a

    prudncia de uma investigao genealgica em troca de analises comparativas, cujos

    critrios de avaliao se enrijeceram e se sedimentaram com o tempo, criando razes que

    desembocam em uma valorizao absoluta e imprudente dos frutos da democracia.

    O empenho crtico da cincia poltica norte americana parece ter se resumido com

    o tempo a apenas algumas consideraes metodolgicas a respeito da aplicabilidade de

    alguns critrios. A crtica dos critrios eles mesmos parece ter ficado em um passado

  • 8

    distante, perdida nas teorias empoeiradas de um Rousseau ou de um Mill. No h

    margem para suspeita diante de referencias como qualidade da democracia e muito

    menos alguma especulao sobre sua natureza problemtica. Quando revisadas expem

    apenas algumas falhas tcnicas que imediatamente devem ser corrigidas atravs de

    novas formulas mais refinadas. Para alm de discusses formais como essa, o que essas

    referncias supem? O que tomam por obvio e necessrio?

    Afirmar que essa superficialidade no trato de algumas categorias sinal de algum

    deslize cognitivo ou moral, esquecer a contribuio de Adorno e Bourdieu quando o

    assunto negar a inocncia de metodologias e tcnicas, enxergando-as justamente como

    estratgias interessadas que so muito mais ideolgicas2 do que aparentam a primeira

    vista (ADORNO, 2007; BOURDIEU, 2007). Isso quer dizer que considerar os

    problemas da analise comparativa apenas no seu sentido metodolgico (LIJHARDT,

    1971) esquecer do quanto os atores podem se servir de algumas tcnicas que acabam

    se mostrando convenientes para tornar obvias e necessrias certos temas e certos

    conceitos que, a rigor, so pura arbitrariedade- por isso que devem ter seus alicerces

    mais do que questionados, justamente em funo da certeza que enunciam. Lijhardt vai

    afirmar que the term comparative politics indicates the how but does not

    specify the what of the analysis. (LIJHARDT, 1971, p. 682). Essa explicao

    esclarecedora dos reais interesses da cincia politica norte americana, uma vez que o

    how e o what so levados em conta, mas em nenhum momento sente-se a falta do

    why. Claro que o questionamento a respeito do por que da existncia de certos

    critrios no remete a especulaes sobre a natureza do ser ou a inteligibilidade do

    nmeno, mas a fatores concretos que envolvem jogos de interesses de atores

    empiricamente situados que articulam estratgias para conquistar aquilo que pretendem.

    O que um simples mtodo esconderia? Talvez um projeto civilizacional decadente em

    que apenas algumas comparaes e alguns jogos de palavra se mantm, ao passo que se

    cria a iluso de que por trs de falhas e deslizes histricos existem verdadeiras virtudes

    a serem cultivadas; um erro. De certa maneira no deixa de ser digna de aplauso tanta

    criatividade diante dos rumos aleatrios e imprevisveis que um punhado de instituies

    acabou trilhando ao longo dos sculos. Ver a misria como gloria uma das

    2 Se que existe alguma coisa que no receberia o rotulo de ideolgico, comprometendo, por definio, a

    prpria existncia desse conceito que supe sempre algo puro por trs das lutas interessadas pelo poder.

  • 9

    caractersticas mais fantsticas do ser humano, em termos gerais, e tambm seu

    principal instrumento de sobrevivncia no dia a dia, em termos concretos.

    Do ponto de vista acadmico, por outro lado, desonesto no expor as razes

    daquilo que se enuncia, propondo no lugar de uma sintaxe interessada, tcnicas

    inocentes e apenas instrumentos sem vontade3. A crtica se sedimenta justamente onde

    deveria se proliferar. O atrofiamento, porem, mais intencional do que aparenta, j que

    responde a demandas cuja genealogia os atores dispensam; tornam-se autnomas. Ao

    discutir a eficcia de critrios, perdemos de vista o exame aprofundado de suas origens.

    Tomamos como bvios e necessrios conceitos como liberdade e igualdade,

    convertendo-os facilmente em referencias comparativas transculturais, acreditando dizer

    algo a respeito do estado pblico e civilizacional de alguns pases.

    A SUSPEITA DEMOCRATICA

    A respeito da tradio chapa branca da democracia, aquela que os liberais

    adoram, no necessrio maiores apresentaes, uma vez que basta abordar

    aleatoriamente qualquer estudante de cincias sociais e ele, de imediato, saber

    reproduzir muito bem o catecismo. Vou reservar minhas energias agora para apresentar

    o lado escuro e pouco comentado da discusso e embora as concluses centrais desse

    artigo no se resumam a ele, tenho dessa vertente as principais referencias de analise

    para aquilo que aqui chamei de genealogia democrtica.

    Em sua verso igualitria, Nietzsche responderia que a democracia uma

    ferramenta dos ressentidos; um instrumento adequado aos incapazes, queles

    impossibilitados de imprimir no mundo suas marcas pessoais. Constrangidos diante da

    ousadia de alguns poucos, criam a igualdade- e todo um aparato jurdico e moral em

    torno dela- como um elemento justificador, no fundo, de suas franquezas diante da vida,

    preferindo o nivelamento absoluto mnima chance de uma investida ousada e

    empreendedora. A doutrina da igualdade!, dir Nietzsche em seu crepsculo dos

    dolos, no h veneno mais venenoso, pois parece pregado pela prpria justia, quando

    a runa de toda justia. (NIETZSCHE, 2001, p. 92).

    3 O Donnel, contudo, defende tambm uma analise terica misturada com sua inteno comparativa

    (O DONNEL, 2013, p. 15), embora seja possivel questionar at que ponto uma analise genealgica foi

    feita nesse aparente exame critico que se prope

  • 10

    Foucault responderia que a liberdade apenas mais um dentre vrios outros critrios

    de controle, como bem analisou em vigiar e punir, ao criticar a viso humanista

    daqueles que no sculo XVIII enxergavam a abolio dos suplcios e a valorizao do

    individuo como algum sinal de progresso. Diz Foucault (1975, p. 18)

    O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos ltimos sculos um

    fenmeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto,

    durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenmeno quantitativo:

    menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e humanidade. Na

    verdade, tais modificaes se fazem concomitantes ao deslocamento do

    objeto da ao punitiva. Reduo de intensidade? Talvez. Mudana de

    objetivo, certamente.

    Sendo a liberdade uma criao humana e no um produto de alguma providencia

    divina, no nenhum espanto que seja mais um dentre outros modos de avaliar e

    orientar a conduta, por mais incerto e indefinido que esse conceito parea. Ao ser

    introduzido na economia da vida, todas as outras peas do quebra cabea social so

    alteradas na medida em que novos discursos so produzidos. Da pedagogia ao direito,

    tudo passa agora a ser regido por um novo critrio, antes inexistente. Isso implica que os

    atores tenham s suas frentes metas jamais vistas e questes jamais postas. Suas

    interpretaes passam a girar em torno de novos esquemas de conduta; esquemas to

    questionveis e problemticos como qualquer outro. Se a ditadura sentida como

    constrangimento e o liberalismo como emancipao, segundo Foucault, isso no se d

    pela natureza de ambos, que, como sabemos, so meras palavras bem agenciadas, mas

    em funo da convenincia que os atores veriam em um discurso e no no outro. Como

    a ditadura e seus valores no satisfazem a ningum, muito menos o altrusmo

    sociolgico, suas linhas de fora so reveladas imediatamente e todo o seu arbitrrio

    e continua sendo exposto em revistas e depoimentos. A liberdade e a igualdade por

    outro lado, na medida em que servem aos interesses e as identidades dos atores, se

    mantm slidas, vistas agora como um resultado obvio de alguma emancipao

    necessria. Foucault vai chamar esse poder escamoteado de positivo

    (FOUCAULT,1999,p. 90), em contraposio a presena escrachada e desengonada do

    poder negativo e autoritrio- aquele que os cientistas sociais conhecem muito bem.

    Nesse sentido, democracias e ditaduras no parecem to distantes quanto se supe por

    a.

    Adorno, da sua maneira, tambm acabou criticando a noo de liberdade como

    valor auto evidente, propondo um tipo alternativo de analise. Enxergou a sua presena

  • 11

    como apenas uma nova forma de controle e uma farsa por trs daquilo que

    supostamente escolhemos (ADORNO, 2000). Dentro do principio de identidade, dir

    ele, as escolhas na verdade no existem e o pensamento circular se rende diante da

    unidade autoritria daquilo que somos e dizemos. A indstria cultural, logo, apenas

    uma estrutura dentre outras que reproduzem um jeito autoritrio de ser, em que os

    prprios atores, longe de serem peas manobrveis de algum jogo, fazem questo de

    reproduzir na medida em que se satisfazem e ao mesmo tempo conseguem manter suas

    fronteiras simblicas intactas.

    E se esse princpio de identidade for algo prprio da linguagem e no um

    momento transitrio qualquer, ento teremos problemas em reconhecer na democracia

    um espao efetivo de uma realizao libertria. Resta, talvez, um fundo hipcrita,

    embora conveniente para a atmosfera liberal, em que os atores alocam suas aes sem

    que os princpios que a circulam sejam algo mais do que formas vazias e indefinidas de

    lidar com o pensamento e a palavra. A diferena, o seu oposto, aquilo que poderia abrir

    espao para o reconhecimento do outro e uma legitima existncia de uma comunidade

    livre e igualitria, parece no existir efetivamente a no ser dentro de uma investida

    ousada de algum filosofo de tradio nietzschiana.

    PROLONGANDO A DIVERGENCIA

    Essas vises que, a rigor, so to criativas como a verso clssica de conceber o

    esprito democrtico, apenas trazem a tona um modo alternativo de lidar com a

    democracia; ela tida, no como uma referencia autnoma e inocente em que

    poderamos ancorar nossas expectativas, mas sim como uma moeda de troca

    conveniente, em que todos, com maior ou menor grau de astucia, sabem como usar.

    Minha interpretao, contudo, segue um rumo prprio, embora mantenha o tom de

    suspeita que os autores acima souberam muito bem desenvolver, tratando a democracia

    como mais um produto humano; e nada mais.

    O espao pblico um campo como qualquer outro. Contem demandas e

    expectativas que envolvem a todos no exato momento em que ingressam. Ao lanar a

    democracia no terreno pragmtico, aparando suas asas transcendentes, os discursos que

    ai circulam, alem dos valores que os do suporte, tornam-se ferramentas praticas e

    moedas adequadas para um ingresso eficaz no campo poltico. Isso no implica que os

    atores sejam hipcritas no sentido estrito do termo, j que a hipocrisia consciente

  • 12

    rara (DEWEY, 1980, p. 275). Muitas estratgias, que poderiam ser consideradas

    cnicas por alguns, tem como consequncia pretendida a iluso do prprio ator poltico,

    que passa, na medida de seu desconhecimento das regras do jogo (BOURDIEU,1994)4 e

    do foco genealgico de suas praticas, a seduzir a si mesmo quanto a coerncia e a

    certeza do que tem a dizer e fazer. Em outras palavras, ao negar a genealogia do campo,

    valores como igualdade e liberdade so tomados como autnomos, como instancias

    necessrias e referencias obrigatrias em qualquer deciso que surgir. O ator, claro, no

    nem de longe uma criatura passiva, mas ao contrario, est sempre alerta ao menor

    sinal de comprometimento de suas definies de situao, como diriam os

    fenomenlogos. Isso implica em cadeias de justificaes, denegaes, racionalizaes e

    outras sries de malabarismos retricos eficazes para reproduzir no tanto um campo

    com sua estrutura objetiva quanto uma zona confortvel onde os prprios sujeitos

    podem se orientar tranquilamente. Quando um conceito se torna to slido e enraizado

    como o de democracia (liberal), contendo ao seu redor muitas redes de relaes e tanta

    aposta simblica envolvida, comum de se esperar medidas de defesa contra a

    possvel corroso de suas fronteiras. Nesse caso estrutura e ao se tornam um, ambas

    se afetando mutuamente e ao mesmo tempo reproduzindo, por convenincia, suas reas

    de atuao e interesse

    CONCLUSO?

    Continuamos do mesmo modo que ramos h 2000 anos. Ainda somos

    apegados a certezas e fazemos de tudo para manter a coerncia das coisas sem sequer

    nos darmos conta disso, quase como um artista envergonhado diante de suas prprias

    criaes. Ainda mantemos nossa pretenso de verdade, diria Habermas (1999), aquele

    desejo por certezas que extrapolam minha linguagem e os arbitrrios de minha vontade.

    As escolhas parecem ganhar uma autonomia quase metafsica, no se mostrando como

    realmente so. Dessa certeza argumentativa, como bem mostrou Hannah Arendt, surge

    o temor do totalitarismo (ARENDT, 1998 )- no como fenmeno histrico, o que seria

    fcil apontar, mas como um tipo de forma mais comum do que imaginamos. No quero

    dizer com isso que o problema estaria nas manobras retricas e na criatividade das

    4 Essa hiptese bourdiesiana acaba contradizendo a tese de Bobbio de uma defesa transparente e

    compartilhada das regras do jogo democrtico (BOBBIO, 1986), j que supe que sem a ignorncia

    dessas regras e uma srie de iluses em torno delas a democracia no seria to sedutora como . Claro que

    Bobbio, sendo um procedimentalista, circula por um universo diferente do proposto por Bourdieu e sua

    viso da esfera publica como um campo de disputas simblicas.

  • 13

    palavras; elas no trazem consigo nada de suspeito. Os recortes, as colagens e as

    correlaes feitas pelo ator social so necessrios no mundo da vida e indispensveis

    para sua prpria sobrevivncia. No h mal em que seja assim. A fraude comea

    apenas quando a presena e a operao da escolha so ocultadas, disfaradas, negadas

    (DEWEY, 1980, p. 22). Ao negar aos discursos um exame genealgico responsvel-

    evitando riscos, sem duvida -, as opinies tornam-se blindadas e impenetrveis. O

    autoritarismo seria um resultado direto dessa certeza que sempre acabamos por cultivar

    e que dificilmente estamos dispostos a rever, seja em uma democracia, monarquia ou

    ditadura. A estrutura de governo pouco interessa quando, a rigor, os atores se orientam

    sempre da mesma maneira- formalmente falando.

    O espao pblico, como bem temia Bobbio, tornou-se uma esfera em que circulam

    apenas palavras vazias e irrefletidas. Tornou-se o lugar do pensamento banal, de um

    pensamento raso e opaco; nem sequer a honestidade se mantm. Em nome da liberdade

    de pensamento permanece o autoritarismo dos discursos, com apenas a diferena de que

    as circunstancias mudaram e o clima no mais favorece a uma legitimidade gratuita-

    uma legitimidade dada por Deus, pela natureza ou pelo movimento lgico da histria.

    Depois de tanta desiluso poltica, o que nos resta so apenas os conflitos arbitrrios

    pelo poder e pelas definies daquilo que chamamos de belo, justo e verdadeiro. Fora os

    encontros casuais fornecidos pela linguagem e todo um jogo retrico e pratico que cada

    dia nos envolve, o prprio conceito de democracia e seus valores substanciais como

    igualdade e liberdade passam a ser rastreados at os limites de suas fontes genealgicas.

    No sendo tomados em si, mas sempre relacionalmente, a democracia se reduz a um

    espao de disputas de sujeitos interessados.

    Latour prope a diplomacia como uma alternativa a esse autismo das relaes

    polticas (LATOUR, 2013), o que por um lado uma atitude criativa e louvvel, mas

    por outro se torna ingnua ao no enxergar os limites do prprio argumento. Os custos,

    como na maioria das concluses latourianas, no se deixam transparecer, apresentando

    conceitos sempre atenuados e quase espontneos do ponto de vista pratico- isso o

    mesmo que acontecem com noes como rede, diferena, fluxo, experincia, etc. Nesse

    sentido, Latour estaria no mesmo rol de discusso que autores como Popper, Rorty e

    Aron. Os trs apresentam a pratica poltica como um exerccio simples e transparente, a

    no ser quando algum desviante entra em cena; algum sujeito incapaz de sair do vicio

    circular do pensamento, segundo Popper (1980) ou algum timido incapaz de enfrentar a

  • 14

    responsabilidade de suas aes, como em Aron (1985). Proponho outra interpretao,

    uma que pe no prprio interior da linguagem os obstculos que ela poder ter. No

    seria, por isso, uma questo de carter ou um problema de limite congnitivo o fato dos

    atores no horizontalizarem aquilo que tem a dizer, porem algo mais profundo; algo

    que estaria na natureza de nosso comportamento social; um modo de ser no mundo que

    preza pelo principio de identidade e pela certeza objetiva de nossas convices. Em

    outras palavras, o custo de uma horizontalidade comunicativa5, aquilo que todo bom

    liberal defende, muito maior do que fazem crer. Segundo Vattimo, a nica chance de

    uma real diplomacia- e no um exerccio hipcrita de abertura ao outro- seria

    comprometer os prprios valores a fim de que o interlocutor aparea (VATTIMO,

    1989), o que, se pensado bem, quase nunca ocorre. As certezas continuam to arcaicas

    como antes, j que a forma da linguagem e sua relao com o social no mudou. As

    instituies democrticas e seus valores, tornam-se, portanto, artificiais e simples

    moedas de troca para que o autoritarismo dos discursos possam encontrar um acesso

    conveniente em um espao que, em principio, no mais admite exclusividade de

    pensamento, embora seus atores nunca tenham perdido o desejo absoluto de um

    fundamento inquestionvel e impositivo.

    E se a democracia for apenas uma racionalizao de uma decadncia inesperada

    dos valores e das instituies, visto que nosso autoritarismo se mantm intacto, como

    quis at agora mostrar, qual seria realmente a diferena entre uma ditadura e uma

    democracia? Como medir a qualidade da democracia, depois de uma investigao

    genealgica daquilo que ela tem como certo? Enxerg-la como humana e falvel- o que

    no implica em descarta-la-, essa foi a inteno desse artigo.

    5 Habermas chamaria de entendimento mtuo (HABERMAS, 1999, p. 113), supondo um contexto

    hipottico em que violncias e constrangimentos no so levados em conta.

  • 15

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ADORNO, Theodor. A indstria cultural: o iluminismo como mistificao de massas.

    In: LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da Cultura de Massa. So Paulo: Paz e Terra.

    2000

    ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Editora Companhia das letras. 1998

    ARON, Raymond. Estudos Polticos. Braslia: Universidade de Braslia. 1985

    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.1999

    BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de

    Janeiro: Paz e Terra. 1997

    BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educao. So Paulo: Vozes. 2007

    BOURDIEU, Pierre. Razes Prticas. Editora Papirus. 1994

    CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Editora da Unicamp. 1994

    DEWEY, John. Os pensadores. Editora abril. 1980

    FOUCAULT, Michael. Histria da sexualidade I: A vontade de saber. Editora Graal.

    1999

    FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. So Paulo: Vozes. 1975

    LIJHARDT, Arend. The American Political Science Review, Vol. 65, No. 3 (Sep.,

    1971), pp. 682-693

    HABERMAS, Jurgen. Verdade e justificao: Ensaios filosficos. Editora Loyola.

    1999

    LATOUR, Bruno. An inquiry into modes of existence: an anthropology of the

    moderns. Harvard University Press: Cambridge, Massachusetts London, England 2013

    NIETZSCHE, Friedrich. O crepsculo dos dolos: ou a filosofia a golpes de martelo.

    So Paulo: Hemus livraria. 2001

    NIETZSCHE, Friedrich. Para uma genealogia da moral. Editora Sabotagem. 1874

    O DONNEL, Guilhermo. Democracia, desenvolvimento humano e direitos humano.

    REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.7, n.1, p.15-114, jan.-abr. 2013

    RAWLS, John. O liberalismo poltico. So Paulo: tica. 2000

    RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Editora relume dumar. 1995

    SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro:

    Fundo de Cultura. 1961

    VATTIMO, Gianni. Sociedade Transparente . Editora relgio Dgua. 1989

    WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Editora LTC. 1946