afroasia38_pp359_369_malighetti

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    1/11

    UMA ETNOGRAFIA NO QUILOMBO DE FUNeHAL

    MALIGHETTI, Roberto, 0 Qui/ombo de Frechal - Identidade e tra-balho de campo em uma comunidade brasileira de remanescente deescravos, Edicoes do Senado Federal, v. 81, Brasilia, Senado Federal,2007,271 p.

    '''Ontem eu estava esquiando'. Pen-sei muitas vezes em iniciar este traba-lho com uma frase de efeito assim"(p. 19). Nurn tom intimista de quemja se encontra plenamente integrado Iicultura de origem, Roberto Malighetti,antropologo italiano, convida os lei-tores a conhecer a sua aventura etno-grafica descrita no livro 0 Quilombode Frechal- Identidade e trabalho decampo em uma comunidade brasilei-ra de remanescentes de escravos.o projeto do autor e 0de refazer lem-brancas e sistematizar dados da ex-periencia etnografica realizada mui-to distante do ambiente no qual seformou culturalmente. Falar sobre aexperiencia da pesquisa de campo,alem de ser 0 desdobramento neces-sario para a construcao do metodo eda teoria antropologica, e urna opor-tunidade tambem de se colo c ar nomundo sem as mascaras e os contro-les que 0 cotidiano da nossa culturainvariavelmente nos impoe, e urnexercicio reflexivo.

    Afro-Asia, 38 (2008), 359-369

    A etnografia nao seria urn instrumen-to artificial, inclusive pelo hiato tem-poral que separa a experiencia vividada operacao que resulta na constru-~ao textual? Certamente essa indaga-~ao do autor somente se toma impor-tante para 0pesquisador nurna expe-riencia que 0acompanhara para 0res-to da vida.No caso presente, a intencao deMalighetti e a de descrever sua expe-riencia etnografica para fazer teoriaantropologica, Uma teoria tecida tan-to pelas contribuicoes dos sujeitos nocampo, os quilombolas de Frechal,como tambem pela intensa subjetivi-dade da experiencia vivida pelo in-vestigador; urn e outro constituiraomateria e elemento da reflexao antro-pologica,o conhecimento antropologico, con-forme sua argumentacao, nao prescin-de da complexidade que envolve asdiferentes temporalidades e proble-maticas de sua construcao: a imersaono campo, os encontros e desencon-

    359

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    2/11

    tros da pesquisa e 0 tempo de escre-ver, esta, ja sob 0 impulso e a forcados sfmbolos que conformam a nos-sa influencia cultural.Qual a verdade da escrita etnografi-ca? E possivel traduzir a imbricadaexperiencia da nossa convivenciacom 0mundo dos nossos sujeitos depesquisa? 0 autor indica 0seu cami-nho: "Em certo sentido, as etnografiassao docurnentos que apresentam per-guntas e se colocam a margem entredois mundos ou sistemas de signifi-cado: 0mundo do etnografo e de seuseventuais leitores, e 0 mundo dosmembros da cultura" (p. 20).Roberto Malighetti concebe a etno-grafia como "urn texto composite ...".Seria esse juizo a maneira de os an-tropologos reconhecerem que, noprocesso de construcao do conheci-mento, estao acompanhados de mul-tiplos sujeitos e acontecimentos queinfluenciam decisivamente nas esco-lhas teoricas, no estilo textual e noconteudo mesmo do que escrevem?Sendo assim, e coerente a opcao quefaz 0 autor da hermeneutic a comometodo, Diferente da pratica antro-pologica tradicional, que recusa dia-logar e muito menos compartilhar aautoridade textual com os seus infor-mantes, alegando que tal projeto re-sultaria "nurna romantica pretensaode igualdade ou nurna dificil orques-tracao polifOnica" (p. 26). Comocorolario inevitavel desse modo deconstruir fenomenos sociais, tal an-

    360

    tropologia e compelida a reconhecerque 0"etnocentrismo representa urnacondicao ineliminavel e constitutivado saber antropologico" (p. 26).Alterando 0 modo de conceber econstruir 0 projeto etnografico paraincluir os sujeitos na cena textual,presenca necessaria e indispensavel,segundo 0autor, nao significa elimi-nar repentinamente a autoridade et-nografica, Para Malighetti, isso naoe possivel, "Por mais que procuresubstituir 0monologo pelo dialogo,seu discurso [0 do etnografo] perma-nece sempre assimetrico" (p. 27).Para Malighetti, entretanto, existemopcoes metodologicas renovadorasque nao desfiguram 0empreendimen-to cientifico da antropologia. Ao in-yes do modelo monologico e mono-fonico, ele sugere como possibilida-de incorporar os interpretes da cultu-ra estudada mediante a construcao deuma textualidade polifonica resultan-te da "negociacao em campo, entreantropologo e seus informantes" (p.30).Porem, seria ilusorio imaginar, assi-nala 0 autor, que esse pacto entreetnografos e sujeitos da pesquisa sejaurna garantia da inexistencia de ten-soes e estranhamentos no transcorrerda pesquisa, e nem tampouco impecaa ocorrencia de conflitos entre os re-ferentes ideologicos e cosmologicosdos pesquisadores e de seus inforrnan-tes. Na experiencia de Malighetti emFrechal, ele descreve, por exemplo,

    Afro.As ia , 38 (2008), 359369

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    3/11

    em tom d e d esa po ntame nto , 0 tama-nho do im pacto ao co nstatar nao te ro q ui lomb o u rn a c o nfig ura ca o c o rre s -pondente a das suas le ituras so bre ahistor iograf ia brasi le ira .D e du zi q ue e ssa s le itu ra s, p ossiv el-m ente ce ntradas na e xpe rie ncia dePa lma re s , p odem t e r l e vado Ma li gh e tt ia acre ditar que as fo rm aco e s so ciaisn egr as r ur ai s c ont empo r an e as pud e s-sem se r u rn a c on tin uid ade lin ea r d ase xp e rie n cia s q uilomb o la s d o p e rio d oe s cr av is ta b ra si le i ro . I ss o ex pl ic ar iao se u e sp an to e a su a fru stra ca o q ua n-do c onh ec e 0 q uilom bo d e F re ch al:"0 que m ais me surpre e ndia nissotudo e ra que as fo rm as culturais fre -c ha lia na s n ao c o rr es po n di am aqu iloqu e e u e spe ra va de u rn a c om un id adede o rig em a fric an a" (p. 63). 0 queesperava 0 a uto r e nc on tra r? G ru po so u " trib o s" d e d e sc e nd e nt es a fric an o sque m antive sse m intacto s o s co stu-m e s c ultu ra is d o s s eu s a nc e str ais ?Essa hipo te se de urn continuum dac ul tu ra a fric an a e n tr e o s s e us d e sc e n-d en te s n a d ia sp o ra e impr ovave l , E s-tudo s re ce nte s te rn de mo nstrado , aocon tr ar io , qu e , ja no p erio do da e sc ra -v id ao , o s q ui lombo l as tinham re laceess o cia is i nte n sa s c om ou tro s g ru po s e t-n ic o s fo rmado re s d a s o ci ed ad e n ac io -n al. N e ss as re la co e s i nc lu ir am t ro c asqu e c ertame nte fo ram fu nd am e nta ispara a co m pre ensao do s co digo s cul-tu ra is d e u ns e o utro s. C o ntribu iramtamb em p ara q ue o s a fric an os v aria s-se m as e strate gias de lutas e co m pre -

    Afro.As ia , 38 (2008), 359369

    e n de s sem , p e la ex pe r ie n ci a a cu rn ul a-d a, a n e ce ss id ad e d a n e go c ia ca o , o n dec o ub e ss e, e a a da pt ac ao a o s mu lt ip le sc o nt ex to s d o s is tem a e s cra vis ta . 0 a n-tropologo A lfre do W a gne r d e A lm e i-da te rn cham ado a ate nyao para a va-rie dade de e xpe rie ncias e fo rm as deacesso a te rra d as po pu la co e s n eg ra sru ra is d ura nte a e sc ra vid ao . O b se rv atam bem que a varie dade de classifi-c ac o es d o s t erri to rie s d e ss as p o pu la -yo e s, ide ntific ada s n as re ce nte s p es-qu isa s e tn og ra fic as c om o terras depretos, terras de santa, terra de ma-drinha, quilombos, mocambos, entreo utro s, po de se r urn indicado r dasrm il ti pl as e s tr at e gi as emp reg ad as p e -las po pulaco es ne gras rurais paraa ce ssa r a s te rra s n o p erio do c olo nia l,o que o briga o s pe squisado re s a co n-siderarem 0 a quilom bame nto c om ou rn fe n ome n o c omple x o .N ao ha diividas de que o s le gado s da"o rigem a fric an a" m e nc io na do s p orMa lig he tti in fl ue nc ia ram e e nr iq ue -c eram ig ua lm e nte a c ultu ra d os c olo -nizado re s po rtugue se s e do s po vo sindigenas. Do mesmo modo comonao de ve te r sido urn o bstaculo parao s a fric an os e se us d esc en de nte s a co -lh e rem a s c o nt rib uic o e s d e st es p o vo s .E ssas tro cas, co ntudo , nao e lim ina-ram o s re fe re nte s culturais de cadap ov o e tamp ou co a uto riz am te rg iv er-s ar s obr e 0 c ara te r v io le nto d o s iste -m a e scravista, e m uito m eno s ne garqu e a s re la co e s so cia is a ssim e tric ase ntre ne gro s e branco s no passado

    361

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    4/11

    fo ram e nse jad ora s da s hie ra rquiasra cia is e x is te nte s n a s o cie d ad e a tu al,q ue su ste nta 0 m ode lo de racism ov ig e nte n o B ra sil.P o rta nto , a p erman e nc ia d o q uilombode F re chal no inte rio r do M aranhao ,assim como as co munidade s de C an-do mble s no s ce ntro s urbano s de SaoLuis o u de Salvado r, po de m muitob ern se r e xp lic ad as p el a e xtra o rd in a-r ia s ab edo r ia d e ss e s g ru po s d e d e sc en-de nte s de africano s de criar, varianadaptar e reconstruir, quand o n e ce s -s ar io , a s s ua s e s tr at e gi as d ur an te 0vi -o le nto pe rio do e scra vista; re curso se nge nh oso s m an tido s em g ran de pa r-te na so cie dade brasile ira m ode rna.Nem 0 quilo mbo de F re chal, no M a-r an hao , n em 0T e rre iro d a Cas a B ra n-ca, em Salvado r, co m certe za te rn ame sma conf o rmacao cul tu ra l d e q uan-d o fo ram fu nd ad o s p elo s a fric an o s n ose culo X IX , m as isso nao e 0 funda-m e ntal. 0 im po rtan te e que o s le ga-do s do s an te pa ssa do s a fric an os - o ri-e n tado s p e la f il o so f ia d e resist ir/nego-dar; preservar/reconstruir - foramcapaze s de m ante r, e m ple no se culoXXI , e s sas duas expe ri enc ias cu ltur ai sn eg ra s d ia sp 6ri ca s n a so c ie da de b ra -sile ira c om o urn fa to so cialle gitim o einso f ismave l , Essa e uma d as m arc asd a s ab edo r ia a fr ic an a, c re io .D ife re ntem ente da c onc ep ca o iso la -cio nista, h a p ro va s, in clusiv e n a do -cume ntacao escrita, de que o s qui-lo mbo las no pe rio do e scravista de -se nvo lve ram re de s de re laco es so ci-

    362

    ais e stav eis, M uito s q uilom bo s pro -duziam e ve ndiam farinha, le gum ese o utro s pro du to s ag rico la s em fe ira slivre s e para co me rciante s co nhe ci-d o s. E ram fre qiie nt es tamb em o s c o n-ta to s c om in div idu os e scra viz ado sq ue v iv iam n as fa ze nd as ; a ss im c omonao e ra inco murn que ho mens bus-ca ssem ca sam e nto s com mulh ere s del o ca li dade s p rox imas ao s q ui lombo s.Fo i 0 q ue F lav io G ome s classific ouad eq ua dame nte d e campos negroslpara se re fe rir a urn co njunto de re la-yo e s so cia is d os n eg ro s po rta do re s dediferentes status s oc ia is e in te re ss esn a s o ci e dade e s cr av is ta .P o rta nto , e ss a id eia d e p re se rv ac ao d e" tra ce s a fric an o s o rig in ais ", q ue su b-te nde urn supo sto iso lam ento , nao eurn bo rn cam inho para se e nte nde r am ultip lic id ad e d e pro ce sso s e m o vi-m ento s que m arcaram a pre se nca do safricano s e se us de sce nde nte s na so -cie da de co lo nia l e pe s-c olo nial. D u-rante a e scravidao , o s ne gro s pro ta-g o niz aram ayo e s in di vid ua is v io le n-t as , i ns ur re i co e s , l ev an te s e aqu il om-bam ento s, m as tam bem e xpe rim en-taram pe rio do s pacifico s de co nvi-ve ncia, ne go ciaco es e aco rdo s. Aolo ngo de sse p ro ce sso , fo ram c ap az esde pre se rv ar sua s cu ltu ras e tambemin co rp o ra r c o ntrib ui co e s e e xp erie n-cia s d e o utro s grup os e tn ico s,

    1 F la vio d o s S an to s G om es, Historia de Qui-lombolas - Mocambos e Comunidades deSenzalas no Rio de Janeiro: seculoXIX, Riod e J an ei ro , A rq uiv o N ac io n al , 1 99 5.

    Afro.kia, 38 (2008), 359369

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    5/11

    A hipotese de isolamento de gruposnegros como 0de Frechal, por conse-guinte, e urn equivoco sobejamenterefutado nas acaloradas discussoessobre 0assunto na decada de noventado seculo passado, a partir das contri-buicoes dos historiadores, sociologose antropologos e pelos intelectuais dosmovimentos negros urbanos e rurais.'Da mesma forma, a ideia de que 0modelo de Palmares devesse ser to-rnado com uma especie parametrogeral para a explicacao de todas as di-ferentes experiencias de aquilomba-mento no periodo colonial brasileiro,portanto, nao se sustenta.Convencido, na pratica, de que a rea-lidade do quilombo de Frechal era di-ferente daquela possivelmente cons-truida com base em suas leituras dahistoriografia brasileira sobre os qui-lombos, Malighetti passa a relativi-zar as estrategias metodologicas pre-viamente escolhidas e decide convi-ver com as angustias de se adaptarno campo aos quilombolas reais de

    2 Ver importantes contribuicoes neste sen-tido em Joao Jose Reis e Flavio dos San-tos Gomes (orgs.), Liberdade por umfio:historia dos quilombos no Brasil (SaoPau-lo, Companhia das Letras, 1996); Mariade Lourdes Bandeira, Territorio negro emespaco branco, Sao Paulo, Brasiliense,1988; Neuza M. Mendes Gusmao, Terrade preto, terra de mulheres - terra, mu-[heres e raca num bairro rural negro,Brasilia, Fundacao Palmares, 1995; IlkaBoaventura Leite (org.),Negros no Sui doBrasil - invisibilidade e territorialidade,(Florianopolis, Letras Contemporaneas,1996).

    Afro.kia, 38 (2008), 359369

    Frechal e nao aqueles idealizados noslivros. Entretanto, novos problemassurgem no curso da pesquisa, a exem-plo de "encontrar quem tivesse pos-sibilidade e disponibilidade para fa-lar e perder tempo comigo" (p. 57).No percurso da narrativa deMalighetti, 0leitor e induzido de for-ma obliqua a acompanhar passo apasso a sua densa e dilacerante escri-ta sobre a experiencia em campo, re-duzindo dessa forma a dimensao queo autor atribui a teorizacao do com-plexo processo de construcao da iden-tidade dos quilombolas de Frechal.Com essa enfase na experiencia dapesquisa de campo, necessaria peloimp acto psicologico provocado noautor, ele e compelido a usar dacatarse para abrandar as duvidas teo-ricas. Em urn trecho do livro, porexemplo, ele parodia uma famosametafora de Lenin contra os marxis-tas russos de extrema esquerda, aoreconhecer que a "frustrante procurapor traces ou eventos excepcionais,deveria atribuir-se a urna especie de'doenca infantil do antropologismo'(...)" (p. 66).Desse modo enviesado, ele consegueaos poucos compatibilizar 0 seu es-tado de animo com a realidade docampo, num verdadeiro exerciciopsicanalitico de auto-analise.Tendo sido estabelecidas essas pre-missas, 0autor redefine 0conceito dequilombo e passa a considera-Iocomo urn instrumento politico orga-

    363

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    6/11

    nizativo , ao m o do de B arth. N o cam -p o m e to do lo gic o, filia -se a o p ro je toe pi stem o lo g ic o c e nt ra do n o c ompro -m isso de dialo gar co m o s se us suje i-to s no cam po . E ssa o pcao de ve ria se rin te n sa e fa cil ita do ra d o t ra ns bo rd a-m ento que e nvo lvia a "o pacidade , o sma l- en te n did o s, a s g afe s, a s d ifi cu l-dade s, as intuicce s, as situaco es ded uv id as , a s a stu cia s, a s e st ra te g ia s, aam iz ad e , o s c o nfli to s , a s te n so e s" (p.90). N e ste se ntido , 0 auto r ino va apro po sta da e tno grafia dialo gica aore co nhe ce r que e la po ssa se rc on flitu os a; e nq ua nto a su a su bje ti-vidade de pe squisado r, ao inve s dep re ju di ca r a s tro c as s emant ic as e c ul -tu ra is, " de via se r 0 e lem en to c ha vedo m e to do ( ...)" (p. 91).A p re s enca d e st ac ad a d o inv e st ig ad o rn o c en ario d a p esq uisa p erm ite 0 di -alo go co m o s suje ito s e , ao me smote mpo , e stim ula a sua de claracao deempatia a c au sa p o lit ic a d o s q ui lom -bo las que disputavam co m 0 fazen-de iro To mas de M elo Cruz 0 domi-n io d o te rrito rio d a fa ze nd a F re ch al.Em bo ra ta l a pro xim ac ao n ao e qu ac i-o ne a pe rce pcao inco nsiste nte do au-to r quanto ao carate r quilo m bo la daspo pulaco e s ne gras rurais, co m o a deF re chal. P or e sse m o tivo , as suas du-vidas e ince rte zas e m erge m em m ui-to s m om en to s d a e xp erie nc ia d e c am -p o: " Fiq ue i b asta nte d esilud id o p eloc ara te r g ene ric o e v ago d a d ocume n-ta ya o p ro c e ss ua l, imp re ss io n an do -m e, ne le , a falta de re fe re ncias e spe -

    364

    cificas ao quilo m bo de F re chal" (p.130). E inte re ssa nte a ssin ala r q ue ,ant e s d e ss a ob se r va ca o , 0auto r ja sehavia dado co nta de que 0 concei tode quilo m bo que e stava e m co nstru-yao no de co rre r do co nflito pe la po s-se da te rra e m Fre chal "partia, po is,d as s itu ac o e s s o cia is c o nt emp o ra ne -as . Carac te r izava-s e , sob re tudo , comoin str um e n to p o liti co o rg an iz ati vo ,c uj a fi na lid ad e p re c ip ua e ra g ara nti ra pro prie dade da te rra" (p. 121).P e la n at ur ez a p re c aria d as o c up ac o e sd as t erra s p el as p o pu la co e s n e gra s n om e io ru ra l, a nte s e d epo is d a a bo lic aoda escravatura, 0u so d a d is simul acaofo i um a das estrategias empregadas.A ss um ir a id e nt id ad e d e " qu ilomb o ",num a so cie dade e m que e ssa co ndi-y ao e r a i le g al e p e ri go s a, p re s su punh adesaf ia r abe rtamen te 0 s is tema e s cr a-v ista, c om o a co nte ce u c om o s bra vo squi lombo la s d e Palmar e s, e , p o rt an to ,enfrentar adve r sa ri e s f o r temen te a rma-do s. N ao de ve te r sido e sta a o pyao deluta de Fre chal, co mo nao 0 fo i emmu it as " comun id ad e s r eman e sc ent e sd e q uil omb o s" , p e sq uis ad as re c en te -mente . To davia, a co nquista dat it ul ac ao d o s eu t e rr it o ri o n a a tu al id a-de c on fm na te r sid o ig ua lm e nte v ito -rio sa a e sco lh a d esse c am inh o p ac ifi-co e dissim ulado , e mpre gado pe lo sq ui lombo la s d e F re cha l.E im po rtante o bse rvar tam bem que ad o cumen ta ca o p ro c e ss ua l a na lis ad ap or M alig he tti p ara e nte nd er 0 pro-ce sso da fo rm acao da ide ntidade de

    Afro-Asia, 38 (2008), 359-369

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    7/11

    Frechal, outro motivo de desaponta-mento do autor, nem sempre deve servista como urna referencia confiavelpara se desvendar a complexa teiaformadora da identidade dos quilom-bos contemporaneos, Primeiro, por-que os operadores do direito traba-lham com categorias juridicas nemsempre inclinadas a legitimar as tra-jetorias dessas populacoes. Alem dis-so, sao conhecidas as asuicias empre-gadas pelos fazendeiros brasileiros,inclusive manipulando docurnentos efatos, para ficar em situacao vantajo-sa nos processos juridicos e, dessemodo, legalizarem os seus pleitosperante ajustica, No caso de Frechal,o fazendeiro contratou espertamenteurn historiador da USP e urn advoga-do de familia tradicional de juristasde Sao Paulo. A intencao evidente eraa de tentar sufocar 0judiciario mara-nhense com a forca simbolica da "in-questionavel autoridade" de figurasrenomadas. Para 0 advogado contra-tado, Adilson Abreu Dallari, certa-mente lastreado no parecer do histo-riador Carlos de Almeida Prado Ba-celar, da Universidade de Sao Paulo,a reivindicacao dos quilombolas naopoderia ser enquadrada nos preceitosdo Art. 68, porque "0 quilombo eraurn fenomeno bastante delimitado,caracterizado por urn estado de fugae transgressao Iiordem escravista, quenao aconteceu em Frechal" (p. 145).Ve-se que nessa argumentacao e ex-plicita a obrigatoriedade de que os

    Afro-Asia, 38 (2008), 359-369

    quilombos no periodo colonial te-nham sido originados dos escravosque se tivessem evadidos de fazen-das. 0 aquilombamento, nao obede-cendo a essa suposta regra geral, naopoderia, no presente, ser amparadapela Constituicao brasileira.Evidentemente, essa argumentacao ecapciosa, porque 0 que se discute nopresente momento e 0reconhecimen-to de comunidades negras rurais, aexemplo de Frechal, que ocupam ter-ritorios que remontam ao periodo daescravidao, nao pagavam taxa de ar-rendamento e tinham pleno controlede suas posses centenarias, conformetern argumentado 0 antropologo Al-fredo Wagner de Almeida (p. 125).Portanto, somente por esses criterioselas se afigurariam aptas a serem en-quadradas como "remanescentes dequilombos", conforme preve a CartaConstitucional.Pelo tempo de ocupacao, os quilom-bolas poderiam recorrer tambem Iilegalizacao de suas terras atraves dodispositivo juridico do usucapiao,porem, pelas condicoes precarias esegregadas em que viviam nessesdominios territoriais, assim comopela violencia a que estavam expos-tos pelos novos senhores de terras noperiodo pos-abolicao, eles deixaramde requerer direitos utilizando dessemecanismo. Outra razao para que osquilombolas nao procurassem lega-lizar os seus dominios territoriais, eporque eles concebiam a terra ape-

    365

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    8/11

    nas pelo seu valor de uso, e nao comourn instrumento de valor mercantil,heranca e poder, como e visto pelosfazendeiros.Na tentativa de reconhecer a constru-yao da identidade quilombola de Fre-chal, ainda que hesitasse diante dosfracos referenciais culturais por eleidentificados na pesquisa de campo,Malighetti busca aportes nas explica-yoes de Florestan Fernandes e RogerBastide. Para estes autores, a "ideo-logia do 'abrasileiramento' e do'branqueamento' poderia, pois, serconsiderado responsavel por essa 'po-breza cultural" (p. 154). Essa expli-cacao, entretanto, sera logo a seguirabandonada. Diante do impasse dequal teoria poderia melhor enquadrar-se ao caso de Frechal, diz nao restaralternativa a nao ser assurnir "a tare-fa de desconstruir 0processo de cons-trucao da identidade de Frechal" (p.155). Essa grave decisao teorica epolitica nao poderia implicar, racio-naliza 0 autor, em "fazer 0 trabalhodos advogados" (p. 156) do fazendei-ro, inclusive porque nao interessava"correr 0 risco de alienar-me dosamigos de Frechal, pelos quais eumantinha claras simpatias" (p. 156).E nesse angustiante processo de com-preender como se configurou a iden-tidade de Frechal, que Malighetti en-contra na etnografia da historia 0mecanismo metodologico capaz dedar sentido a essa identidade. Opcaoque 0 deixa, ao que parece, psicolo-

    366

    gica e teoricamente aliviado: "ver aidentidade por dentro, analisando suadinamica constitutiva a partir dos ato-res sociais, do seu passado e das suasrepresentacoes" (p. 157).Porem, novas incertezas rondam 0percurso do autor no decorrer da pes-quisa. Uma delas pela dificuldade deaceitar que 0 quilombo de Frechalpudesse ser construido dentro do ter-ritorio reivindicada pelo fazendeiro,situacao que nao foi incomurn no pe-riodo colonial, de acordo com as maisrecentes pesquisas historicas, Mesmocom mais essa duvida, Malighettiparece reconhecer a legitimidade dacondicao quilombola de Frechal, tal-vez mais por condescendencia, con-forme assevera ao admitir "a ideia deque [Frechal] pudesse ser urnquilombo, independentemente daproximidade com a fazenda" (p. 186).Em outro trecho do livro, a sua fragilconviccao reaparece, quando eleconstata que a comunidade nao resis-tira com armas Ii invasao do fazen-deiro, fato que presurnivelmente con-frrmaria 0mito do inelutavel confron-to armado entre senhores e escravosfugidos no periodo colonial. Nao ten-do sido essa a trajetoria da resisten-cia dos quilombolas de Frechal, res-tou ao autor, a essa altura inteiramentesimpatico Ii causa da comunidade,lamentar como era dificil aceitar naoser 0quilombo portador de ''uma cul-tura de luta e resistencia contra a es-cravatura" (p. 186).

    Afro.As ia , 38 (2008), 359369

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    9/11

    Malighetti nao conseguia entendertambem por que, nas memorias dosmoradores de Frechal, permanecessetao viva a imagem de dona Mundoca,antiga proprietaria da fazenda, vistacomo uma pessoa boa e defensoraardorosa dos pretos de Frechal. Comocompatibilizar tal relacao amistosacom a existencia de urn quilombo?Ivo Fonseca Silva, jovem lider dacomunidade, contrapoe esta indaga-c,:aodo autor com uma outra igual-mente perturbadora: nao seria impro-vavel que na regiao de Guimaraes,onde se concentrou urna quantidadeenorme de engenho de acucar no pe-rio do escravista, nao tivesse pelomenos urn escravo que se rebelassepara se aquilombar? "Entao, comple-ta ele, se Frechal era urna fazenda notempo do colonialismo, sera que naoexistia negro fugido? Sera que todosos negros iam se sujeitar a escravi-dao (...), apanhar?" (p. 184). AlfredoWagner de Almeida, em urna entre-vista concedida ao autor, parece com-plementar a argumentacao de IvoFonseca ao teorizar que 0conceito dequilombo "expressa urn conjunto derelacoes, Ele nao e urna realidade so-cial congelada. Bntao 0 quilombo eonde estso produzindo e vivendo essarelacao, auto-definindo-se como tal"(p. 194).Malighetti parece ter ficado satisfei-to com as respostas que indicavam anecessidade de no presente 0concei-to tradicional de quilombo ser ressig-

    Afro-Asia, 38 (2008), 359-369

    nificado. Desse modo, e sob "essaperspectiva, eu tinha superado todaveleidade de 'desmascarar' as posi-c,:oesdos meus interlocutores parachegar a urna improvavel objetivida-de (...)" (p. 195). E arremata: "Ado-tei, pois, 0modo de interpretacao dosmeus informantes para ler 0 conjun-to dos seus discursos, consideradoscomo sinais cuja logica subjacentenao remetia a urn saber positivo, masa urnjogo de linguagem" (p. 195).o que interessa ao autor explorar napesquisa de campo, depois que esta-belecera urn novo arcabouco parateorizar sobre a construcao da identi-dade de Frechal, e 0momento histo-rico no qual essa identidade emergiu.E 0 inicio do conflito com 0 fazen-deiro, de acordo com todos os seusinterlocutores na comunidade, e 0marco desse processo. Esse entendi-mento nao indica, contudo, que osnegros de Frechal nao percebessemque eram tratados como diferentespela populacao do municipio de Gui-maraes, muito antes da ocorrencia doconflito. Como revela Inacio de Je-sus Ribeiro, morador de Frechal: an-tigamente "existia racismo. ( ... ) 0preto nao morava aqui e nao partici-pava de nada, de uma festa. Ele naovinha. 0 preto nao dancava aqui" (p.207). Essa percepcao de serem dis-criminados era generalizada, emboraa reacao tenha ocorrido somente de-pois que 0conflito reuniu condicoes,intemas e extemas, para que os mo-

    367

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    10/11

    ra do re s p erce be ss em a fo rc a da id en -t id ad e r e pr e sada . A po li ti ca c1 ie n te l is -ta d o s a ntig o s fa ze n de iro s , q ue n un cainco mo daram o s m orado re s, co modo na M undo ca, e m tro ca da gratidaoe d a s ub se rv ie n cia , te ri a re fle ti do fo r-tem en te n essa a com o da ca o d os m o ra -do re s d e F re cha l a c on dic ao d e p aria sn a s o ci e dade r e gi o na l. A expl ic ac ao d eInacio R ibe iro e a de que , ''na e po cado s no sso s pais, e le s viviam de urnafo rm a iso lada, e ho je , no s, de aco rdoco m 0 de se nvo lvim ento do te mpo ,t amb em da s o ci e dade , n o s p ro cu ramosmuda r aqu e le i so l amen to ant e ri o r" (p.209). O bse rve que 0 d ia gn o stic o d ode po e nte e p erfe ito , a o c om pre e nd erque a co nstrucao da ide ntidade quee le s p as sam a a do ta r d ep o is d o c o nfl i-to de co rre de urn pro ce sso que e nvo l-ve u a m udanca de m entalidade e det rans fo rmacao d a s o ci e dade .Ma li gh e tt i p ar e ce e s ta r c onv enc id o d eque a no cao de quilo mbo re fe ridap elo d isc urso a tu al d os m o ra do re s d ac om unid ad e, su po rte pa ra a c on stru -~ ao d e u rn a id e nti da de p o si ti va , e a lg odiv erso d o q ue fo ra e sta be le cido p elalit era tu ra h is to ric a tra di cio n al: m a is"do que sim ple s re fugio o u lugar defuga, [0 quilo mbo ] to rno u-se um afo rm a d e re sis te nc ia g era da p ela v io -le n cia d o r eg im e e s cr av is ta e ma rc ad ap o r u rn p ro f undo s ig ni fi cado d e t rans -gre ssao da o rde m e co nquista da li-berdade" (p. 223).o a uto r a ssin ala tamb em q ue a e xp e-rie nc ia d e c on stru ca o da id en tid ad e

    368

    quilo mbo la de Fre chal se rvira co murna re fe re ncia para 0 movimentone gro e , a partir de la, m o strar "que 0qu ilom bo n ao se re fe ria a u rn c on te u-do prim ordial e intangive l, m as e raurn jo go de linguage m cuja fun~aoe sse nc ia l e ra a id en tific ac ao e a c la s-s ifi ca ca o d e i nd iv id uo s n o i nte rio r d eurn de te rm inado e spaco so cial e mcont in uo mov imen to " (p. 225).o pro ce sso de co nso lidacao de F re -c ha l, c omo q ui lomb o , c o ntin ua 0au -to r, influ en cio u a fo rm ula ca o d e umae stra te gia id en tita ria em q ue e stiv e-r am p re s ent e s " con st ru co e s , i nt e rp re -ta co e s do p assa do , 'In ve nc oe s da tra -dicao '" (p. 226). E ssa e xpe rie nciasu ge re q ue a co nstru ca o d a id en tid a-de po de se r pe ns ada co m o algo ''pro -ce ssual, de sco ntinuo , inve ntado econtratual" (p. 226). P or o utro lado ,tal abo rdage m ne ga se r a ide ntifica-~ ao e tn ic a u rn a c o ns tru ca o p rim o rd i-al, mas sim uma a~ao de suje ito sc on sc ie nte s q ue fa zem h is to ria h oje ,e nao ape nas pe la re co rdacao do quefo i 0passado.E ssa no va pe rce pcao , co nstruida node co rre r d o tra ba lh o de c am po , o bri-ga 0 auto r a se o rie ntar, te o rica em eto do lo gicam e nte , po r urna pe rs-p ec tiva n a qu al a n arra tiv a d os su je i-to s se ra 0 fo co d a in te rp re ta ca o. M u-danca que im plicara tam be m na re -visao do co nce ito de ide ntidade atee nta o c on sid era da c om o p ertin ente .N o discurso do s se us info rm ante s, aid e ntid ad e q uil omb o la e st av a re fe ri -

    Afro-Asia, 38 (2008), 359-369

  • 8/2/2019 afroasia38_pp359_369_malighetti

    11/11

    da a urn processo que incluia 0 con-fronto com 0fazendeiro, mediado pordiferentes sujeitos envolvidos na tra-rna. A reinterpretacao do passado,nesse cenario, passou a ser objeto dedisputa para se legitimarem as ver-dades que estavam em jogo, porquereinterpretar 0passado implicava emencontrar urn sentido para 0presen-te, que era objeto de disputa. Diz 0autor: "Subtraindo ao conceito aque-la imagem de imobilidade e estabili-dade, eu procurava conceber a cons-trucao da identidade como resultadoda dinamica negociais intemas e ex-temas ao grupo" (p. 240).Desse modo, 0 autor supera as hesi-tacoes sobre 0 processo de constru-yao da identidade das chamadas "co-munidades remanescentes de quilom-bos". Para Malighetti, 0dialogo comos seus interlocutores e a experienciavivida em campo indicaram a possi-bilidade de prop or nova visao deidentidade, e esta "surgia como 0pro-duto de urna negociacao, conduzida'sob 0 ponto de vista do antropolo-go', com as perspectivas que eu atri-bui a meus interlocutores" (p. 240).No subtitulo do livro de Malighetti,em que categoriza Frechal como urnacomunidade brasileira remanescen-te de escravos, define bern a hesita-yao que marcou toda a sua narrativa.

    Afro.As ia , 38 (2008), 359369

    Essa categorizacao subtrai da identi-dade de Frechal aquilo que possibili-tou inclusive a reorientacao teorica emetodologica do autor, ou seja, reco-nhecer que 0 conceito de quilombo,incorporado como vitrine identitaria,teve influencia direta no desfechoadministrativo que obrigou as terrasreivindicadas por Frechal a serem re-gulamentadas pelo Estado brasileiro.Malighetti reconhece esse aspecto doprocesso de formacao da identidadede Frechal, mesmo assim isso naoparece ser suficiente para que ele con-sidere que Frechal possa ter comoorigem homens e mulheres que senotabilizaram, no passado, justamen-te para fugir da condicao de "escra-vos".De todo modo, 0 texto de Malighettiterminou validando 0 processo queresultou no reconhecimento da comu-nidade como urn quilombo contem-poraneo, Visto por esse prisma, aidentidade quilombola de Frechal tan-to foi uma obra da resistencia e ne-gociacao dos sujeitos que participa-ram da luta para reivindicar direitospoliticos para comunidade, comoc on tem tamb em a in sc ric ao do antro-p61ogo que tomou visivel essa iden-tidade, mediante 0texto etnografleo,Esse e 0desfecho da densa narrativade Roberto Malighetti.

    Valdelio SilvaDepartamento de Educacao

    Campus I-UnebDoutorando no PosAfro - UFBA

    369