Ainterpretação do direito

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    Observatrio da Jurisdio ConstitucionalISSN 1982-4564

    Ano 4, 2010/2011

    A INTERPRETAO DO DIREITO E O DILEMA ACERCA DE COMOEVITAR JURISTOCRACIAS:

    A IMPORTNCIA DE PETER HBERLE PARA A SUPERAO DOSATRIBUTOS (EIGENSCHAFTEN) SOLIPSISTAS DO DIREITO

    Lenio Luiz Streck*

    1. Guisa de Introduo Peter Hberle, a interpretao da Constituio e algu-mas implicaes para a teoria da validade do direito.

    Este texto possui uma finalidade especfica: discutir o problema da validade do

    direito num contexto em que vem tona as chamadas teorias ps-positivistas. Possui

    como tese central a ideia de que as teorias do direito contemporneas superaram a dis-

    cusso sobre a validade do direito no modo como era colocada pelo positivismo jurdi-

    co-normativista.

    Deixando mais claro: como cedio, no contexto do normativismo kelseniano

    os critrios para aferio da validade do direito eram dados apenas por uma conforma-

    o formal da norma inferior com a norma superior. Isso no mbito da cincia do direi-

    to, claro. J o contedo deste processo, vale dizer, a interpretao efetuada pelos r-

    gos jurdicos, passava ao longe das preocupaes kelsenianas. Para tanto, basta lembrar

    que, no captulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen relega os problemas da in-

    terpretao do direito para o mbito da vontade, admitindo, inclusive, sua incontrolabili-

    dade, quando afirma o conceito de "moldura (ou quadro) normativa(o)". Ou seja, Kelsen

    era um pessimista em relao atividade aplicativa do direito (deciso judicial).

    Como venho explicitando de h muito, minha tese vai em direo contrria, isto

    , vai no sentido de afirmar que a aferio da validade do direito passa obrigatoria-

    mente - pelo enfrentamento desse contedo interpretativo, do controle dessa vontade do

    sujeito solipsista, que havia sido deixado de lado pelo normativismo kelseniano. Vale

    dizer: o direito s pode ser considerado vlido se os contedos afirmados pela jurisdio

    forem legtimos do ponto de vista democrtico. Nesse sentido, possvel afirmar que o

    * Professor titular da Unisinos-RS; Doutor em Direito pela UFSC; Ps-Doutor em Direito Constitucio-nal pela Universidade de Lisboa; Professor Visitante da Unesa, Roma TER, FDUC (Coimbra) e Uni-versidad Javeriana (Colmbia); pesquisador da Universidad de Deusto-Espanha; Presidente de Honrado IHJ- Instituto de Hermenutica Jurdica.

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    normativismo kelseniano foi uma espcie de maldio lanada sobre o universo

    jurdico, especialmente pela confuso que causou: a expressiva maioria dos juristas viu

    no captulo oitavo da TPD um espao crtico, porque Kelsen disse que a interpretaodos juzes era um ato de vontade...! O que acontece que, em verdade, essa tese se

    constituiu em um verdadeiro ovo da serpente do decisionismo (e suas variaes

    ativistas). No compreendeu a comunidade jurdica que a preocupao do positivismo

    normativista kelseniano era com a cincia do direito e no com a aplicao do direito. A

    primeira se dava no nvel da meta-linguagem; a segunda no nvel da linguagem-objeto.

    Esqueceram-se da complexidade da obra kelseniana, cuja raiz, como se sabe, est no

    neopositivismo lgico (crculo de Viena).Em outras palavras, nesta quadra da histria, no pode ser considerado vlido

    um direito que no seja legitimado pelo selo indelvel da democracia. Na altura atual de

    minhas pesquisas, penso que o espao adequado para estas discusses encontra-se deli-

    neado nas questes que incidem no momento da deciso judicial. Por isso, meu trabalho

    atual procura atuar no sentido de se estabelecer uma teoria da deciso jurdica. Ou seja,

    a intersubjetividade no tem espao apenas no momento do estabelecimento dos senti-

    dos (analticos) do direito, mas, sim e fundamentalmente, no momento aplicativo, pelasimples razo de que interpretar aplicar (applicatio), como sempre disse Hans-Georg

    Gadamer.

    Todavia, essa convico de que os problemas da validade-legitimidade do direito

    passam pelo enfrentamento dessa teoria da deciso, resultado de um longo caminho.

    Muito mais do que um ponto de partida, ela representa um ponto de chegada de um pro-

    cesso de pesquisa que j se estende para mais de 12 anos, desde a publicao da primei-

    ra edio de Hermenutica Jurdica e(m) Crise (hoje j em sua dcima edio). Com

    efeito e isto est ainda mais delineado em meu Verdade e Consenso (3. e 4. edies),

    minhas pesquisas esto profundamente inseridas naquela que apontada por muitos

    como a principal questo da teoria do direito atual: o problema da interpretao.1

    1 Apenas a ttulo exemplificativo, possvel citar Ronald Dworkin, que anuncia que o prprio Direito um conceito interpretativo (Cf. DWORKIN, Ronald. Uma Questo de Princpio. So Paulo: Mar-tins Fontes, 2004, em especial a segunda parte). De maneira similar, e ao mesmo tempo denunciandoos limites das teorias positivistas, Friedrich Mller vai dizer que o pospositivismo no se refere a umantipositivismo qualquer, mas uma postura terica que, sabedora do problema no enfrentado pelo po-sitivismo qual seja: a questo interpretativa concreta, espao da chamada discricionariedade ju-dicial procura apresentar perspectivas tericas e prticas que ofeream solues para o problemada concretizao do direito, e no para problemas abstrato-sistemticos apenas. Alis, registre-se queo termo ps-positivismo foi utilizado de uma maneira expressa e com pretenses concretas por

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    Essa pujana da questo interpretativa no campo jurdico deve-se, em grande

    parte, quilo que Jorge Miranda chamou de Revoluo Copernicana do Direito Pbli-

    co, ou seja, o novo lugar ocupado pelas Constituies do Ps-guerra e o igualmentenovo papel exercido pelos Tribunais Constitucionais, mormente no campo da Europa

    Continental.

    Nesse sentido, importante lembrar que nesse contexto de afirmao das

    Constituies e do papel da jurisdio constitucional, que tericos dos mais variados

    campos das cincias sociais principalmente dos setores ligados sociologia, cincia

    poltica e ao direito comearam a tratar de fenmenos como ajudicializao da polti-

    ca e o ativismo judicial. Ambos os temas passam pelo enfrentamento do problema dainterpretao do direito e do tipo de argumento que pode, legitimamente, compor uma

    deciso judicial.

    Em outras palavras: quais so as condies de possibilidade do argumento jurdi-

    co-decisrio? Sob que circunstncias possvel afirmar que o tribunal, no momento de

    interpretao da constituio, no est se substituindo ao legislador e proferindo argu-

    mentos de poltica ou de moral? Neste ponto importante mencionar estudos como The

    global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics (Chester Neal Tate eTorbjrn Vallinder)2On law, politics & judicialization (Martin Shapiro, Martin e Alec

    Stone Sweet)3, Towards juristocracy. The origins and consequences of the new consti-

    tutionalism (Ran Hirschl)4. Em outra perspectiva, mas apontando tambm para a incisi-

    vidade do poder judicirio na conduo da vida poltica, tem-se o artigo Tomada de De-

    cises em uma democracia: a Suprema Corte como uma entidade formuladora de pol-

    ticas nacionais (Robert A. Dahl).5

    Esse o grande dilema contemporneo. Superadas as formas de positivismo exe-

    gtico-racionalista (formas exegticas), os juristas ainda no conseguiram construir as

    condies para o controle das posturas voluntaristas (que, registre-se, por apostarem na

    Mller j na primeira edio de seu Juristische Methodikem 1971 (Cf. MLLER, Friedrich.O novoParadigma do Direito. Introduo teoria e metdica estruturante do direito. So Paulo: Revista dosTribunais, 2008, p. 11).

    2 In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press,1995.

    3 In: New York: Oxford University Press, 2002.4 In: Cambridge: Harvard University Press, 2007; tambm, do mesmo autor, O novo constitucionalis-

    mo e a judicializao da poltica pura no mundo. In Revista de Direito Administrativo, n. 251,maio/agosto de 2009, pp. 139-175.

    5 In.Revista de Direito Administrativo, n. 252, setembro/dezembro de 2009, pp. 25-43.

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    discricionariedade dos juzes, no deixam de ser tambm positivistas). Se antes o

    intrprete estava assujeitado a uma estrutura pr-estabelecida, j a partir do sculo XX o

    dilema passou a ser: como estabelecer controles interpretao do direito e evitar queos juzes se assenhorem da legislao democraticamente construda?

    Com efeito, o elemento interpretativo presente no direito, portanto, est no sub-

    terrneo de uma teoria da deciso judicial, possibilitando-a. No enfrentamento dessa

    questo interpretativa, impossvel olvidar as contribuies do nosso homenageado.

    Com efeito, a obra de Peter Hberle ocupa lugar de destaque nas discusses que envol-

    vem a afirmao da fora normativa da Constituio e o papel da jurisdio constitucio-

    nal para a consecuo desse desiderato. Isso porque Hberle foi um dos primeiros cons-titucionalistas que se preocupou em equacionar o problema do monoplio judicial na in-

    terpretao da Constituio (Jurisdio Constitucional), buscando promover meios de

    participao da sociedade civil no processo de interpretao da Constituio.

    A tese lanada por Hberle em seu Die offene Gesellschaft der Verfassungsin-

    terpreten (A Sociedade Aberta dos Intrpretes da Constituio) possui uma indiscutvel

    relevncia democrtica na medida em que procura estabelecer meios de conteno do

    trabalho interpretativo realizado pelo Tribunal Constitucional atravs da diluio da ati-vidade interpretativa em todo o tecido social. Nas palavras do prprio autor:

    "A interpretao constitucional , em realidade, mais um elemento da socie-dade aberta. Todas as potncias pblicas, participantes materiais do processosocial, esto nela envolvidas, sendo ela, a um s tempo, elemento resultanteda sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa socieda-de. (...) Os critrios de interpretao constitucional ho de ser tanto maisabertos quanto mais pluralista for a sociedade."6

    Minha defesa de uma teoria da deciso judicial, embora por outras vias tericas,

    compartilha com Hberle esse elemento de preocupao com a construo e manuten-o de uma sociedade democrtica. Tambm compartilho com o mestre alemo a defesa

    intransigente dos direitos fundamentais a partir da superao dos velhos modelos teri-

    cos usados para fundament-los. Como vaticina Hberle: os direitos fundamentais so o

    elemento nuclear de um ordenamento jurdico e fator hbil para medir os indicadores

    de legitimidade de um determinado governo (na medida de sua efetivao). Por isso,

    tais direitos gozam de uma dupla dimenso: individual e institucional; representam, ao

    6 Cf. HBERLE, Peter.Hermenutica Constitucional a Sociedade Aberta dos Intrpretes da Consti-tuio: Contribuio para a interpretao pluralista e Procedimental da Constituio .Traduo deGilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris editor, 1997, p. 13.

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    mesmo tempo, a realizao de direitos subjetivos e objetivos, rompendo, assim, com o

    dualismo liberal de confrontar indivduo/homem com o Estado ou com o maniquesmo

    liberal que submetia a liberdade autoridade7.Por todos esses motivos, tanto a tese defendida neste artigo quanto aquela que

    emerge da obra de Hberle, apontam para uma mudana de rota na teoria jurdica. Cos-

    tumo afirmar que essa mudana de rota acarretou uma alterao paradigmtica que ain-

    da no foi suficientemente explorada e compreendida pelos juristas. Um destes pontos

    que permanecem, ainda, elaborados de forma insuficiente , exatamente, o problema da

    validade e seu (novo) papel nesses tempos de radicalidade da interpretao e da deciso

    judicial. nesse ponto, talvez, que minha tese se distancie da de Hberle: minha apostapara a soluo dos dilemas contemporneos que assombram o Estado Constitucional e a

    efetividade dos direitos fundamentais passa por uma anlise hermenutica, notadamente

    daquela desenvolvida no contexto do sculo XX, que se apresenta como Filosofia Her-

    menutica (Heidegger) e como Hermenutica Filosfica (Gadamer). No que se segue,

    procurarei esclarecer esse ponto, com especial nfase discusso sobre a validade do

    direito.

    2. O problema da validade do discurso jurdico

    A hermenutica filosfica (e por isso, para homenagear Hberle, falaria de uma

    Sociedade aberta dos hermeneutas e, ao mesmo tempo, delinear as diferenas com o

    mestre alemo) tem sido impropriamente criticada no campo do direito pelo fato de

    que, embora ela tenha oferecido o modo mais preciso de descrio do processo com-

    preensivo, por outro lado ela no teria possibilitado a formao (normativa) de uma teo-

    ria da validade da compreenso assim obtida. Esse um problema central que precisa

    ser enfrentado com muito cuidado. Trata-se de discutir as condies para a existncia de

    uma teoria da deciso, o que implica discutir o problema da validade daquilo que se

    compreende e explicita na resposta. Afinal, interpretar explicitar o compreendido,

    segundo Gadamer.

    7 Cf. HBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional. Per: Fondo Editorial,1997.

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    Validade foi, sem dvida nenhuma, a expresso de ordem das teorias do direito

    surgidas na primeira metade do sculo XX. Atravs deste termo queria-se apontar para

    as possibilidades de determinao da verdade de uma proposio produzida no mbitodo direito. Ou seja, no contexto das teorias do direito que emergiram nesta poca a preo-

    cupao estava em determinar as condies de possibilidade para a formao de uma ci-

    ncia jurdica. Assim, penso que, para se pensar em uma cincia jurdica, primeiro

    preciso estar de posse de um contexto de significados que nos permitam dizer a conexo

    interna que existe entre verdade e validade.

    Para o positivismo de matriz kelseniana o vnculo entre verdade e validade dava-

    se da seguinte maneira: a validade atributo das normas jurdicas, enquanto prescriesobjetivas da conduta; ao passo que a verdade uma qualidade prpria das proposies

    jurdicas que, na sistemtica da Teoria Pura do Direito, descrevem a partir de um dis-

    curso lgico as normas jurdicas. Ou seja, novamente estamos diante da principal ope-

    rao epistemolgica operada por Kelsen que a ciso entre Direito e Cincia Jurdica.

    O Direito um conjunto sistemtico de normas jurdicas validas; enquanto a Cincia Ju-

    rdica um sistema de proposies verdadeiras8. Disso decorre o bvio: normas jurdi-

    cas ou so vlidas ou invlidas;proposies jurdicas so verdadeiras oufalsas.A aferio da validade feita a partir da estrutura supra-infra-ordenada (lembro

    aqui da metfora da pirmide, embora Kelsen nunca tenha se referido desta forma ao or-

    denamento jurdico) que d suporte para o escalonamento das normas jurdicas. Desse

    modo, uma norma jurdica s ser vlida se puder ser subsumida a outra de nvel su-

    perior que lhe oferea um fundamento de validade. Assim, a sentena do juiz valida

    quando pode ser subsumida a uma lei em sentido lato e a lei vlida porque pode

    ser subsumida Constituio. J a validade da Constituio advm da chamada norma

    hipottica fundamentalque, por sua vez, deve ter sua validade pressuposta. Isto porque,

    se continuasse a regredir em uma cadeia normativa autorizativa da validade da norma

    aplicanda, a Teoria Pura nunca conseguiria chegar a um fundamento definitivo, pois

    sempre haveria a possibilidade da construo de outro fundamento e isso repetido ao in-

    finito. Assim, Kelsen oferece a tautologia como forma de rompimento com esta cadeia

    8 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de Joo Baptista Machado. So Paulo: Mar-tins Fontes, 1985, pp. 78 e segs.

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    de fundamentao: a norma fundamental hipottica porque , por isso se diz que sua

    validade pressuposta9.

    Ocorre que a relao de validade que autoriza a aplicao da norma, funda-mentando-a no comporta uma anlise lgica na qual a pergunta seria por sua verdade

    ou falsidade. Como afirma Kelsen: as normas jurdicas como prescries, isto , en-

    quanto comandos, permisses, atribuies de competncia, no podem ser verdadeiras

    nem falsas10 (porque elas so vlidas ou invalidas acrescento). Desse modo, o jusfil-

    sofo austraco indaga: como que princpios lgicos como a da no-contradio e as re-

    gras de concludncia do raciocnio, podem ser aplicados relao entre normas? A res-

    posta de Kelsen a seguinte: os princpios lgicos podem ser, se no direta, indireta-mente aplicados s normas jurdicas, na medida em que podem ser aplicados s proposi-

    es jurdicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser verdadeiras ou

    falsas.11 dessa maneira que Kelsen liga verdade e validade, pois, no momento em que

    as proposies que descrevem as normas jurdicas se mostrarem contraditrias, tambm

    as normas descritas o sero e a determinao de qual proposio a verdadeira, por con-

    seqncia, determinar qual norma ser igualmente vlida.

    J no chamado positivismo moderado de Herbert Hart algumas diferenas sonotadas. No que tange ao predomnio da determinao da validade com critrio absoluto

    para determinao de fundamento do direito, no h grandes dessemelhanas. Porm,

    na forma como Hart formula o fundamento do ordenamento jurdico que as divergncias

    entre o seu modelo terico e aquele fornecido por Kelsen aparecem com maior evidn-

    cia. Com efeito, vimos que Kelsen resolve o problema do regresso ao infinito de seu

    procedimento dedutivista para determinao da validade com uma tautolgica norma hi-

    pottica fundamental. Ou seja, ele se mantm no nvel puramente abstrato da cadeia de

    validade de seu sistema e resolve o problema do fundamento neste mesmo nvel, a partir

    de uma operao lgica.

    J Hart usar outro expediente para resolver o problema do fundamento. Na sua

    descrio do ordenamento jurdico, identificar a existncia de dois tipos distintos de

    regras (normas): as primrias e as secundrias. As chamadas regras primrias so aque-

    9 Para uma crtica pormenorizada ao problema do fundamento e a Grundnorm kelseniana, consultarSTRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense,2004.

    10 Cf. KELSEN, OP.CIT., p. 82.11 Idem, Ibidem.

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    las que determinam direitos e obrigaes para uma determinada comunidade poltica.

    Tais regras seriam aquelas que estabelecem o direito de propriedade, de liberdade etc. J

    as regras secundrias so aquelas que autorizam a criao de regras primrias. Nestecaso, uma regra que estipule como devero ser feitos os testamentos, um exemplo de

    uma regra secundria e todas as regras que criem rgos, estabeleam competncias ou

    fixem determinados contedos que devero ser regulados concretamente pelas autorida-

    des jurdicas tambm so consideradas regras secundrias. Portanto, o que determina a

    validade do direito em Hart a compatibilizao dedutivista, evidentemente das re-

    gras que determinam obrigaes (primrias) com as regras secundrias12.

    Hart afirma ainda que, em sociedades menos complexas sendo que por socie-dades menos complexas devem ser entendidas todas aquelas que antecedem a moderni-

    dade , no existiam regras secundrias desenvolvidas com a sofisticao que encontra-

    mos em nosso contexto atual. Neste caso, estas sociedades primitivas baseavam suas re-

    gras de obrigao apenas em critrios de aceitao. Como afirma Dworkin, uma prti-

    ca contm a aceitao (grifei) de uma regra somente quando os que seguem essa prtica

    reconhecem a regra como sendo obrigatria e como uma razo para criticar o comporta-

    mento daqueles que no a obedecem13

    . Nos modernos sistemas jurdicos, toda funda-mentao do direito depende da articulao do conceito de validade. No entanto, h

    uma nica regra que Dworkin chama de regra secundria fundamental que rompe

    com a necessidade de demonstrao da validade e se baseia em critrios de aceitao

    para determinao de seu fundamento: trata-se da chamada regra de reconhecimento.

    Em sntese: a regra de reconhecimento est para Hart assim como a norma hipottica

    fundamental est para Kelsen: em ambos os casos funcionam como resposta para o pro-

    blema do fundamento ltimo do sistema jurdico. Todavia, a regra de reconhecimento

    tem um carter mais sociolgico do que a norma hipottica fundamental kelseniana.

    Como afirma Hart: sua existncia (da regra de reconhecimento acrescentei) uma

    questo de facto14.

    Mas o que h de errado com os projetos positivistas de cincia jurdica? Com

    Heidegger, podemos dizer que esse conceito corrente de cincia (como um universo te-

    12 Cf. HART, Herbert. O Conceito de Direito. Traduo de A. Ribeiro Mendes. 3 ed. Lisboa: CalousteGulbenkian, 1996, pp. 89 e segs.

    13 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Srio . Traduo de Nelson Boeira. So Paulo: Mar-tins Fontes, 2002, p. 32.

    14 Cf. HART, op., cit., p. 121.

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    rico de proposies vlidas-verdadeiras) esconde um modo mais originrio do fenme-

    no da verdade. Isso porque a verdade deve ser percebida j em meio lida com o mundo

    prtico e no reduzida ao universo teortico das cincias. Afinal, a prpria verdade te-rica das cincias produto da interpretao projetada pela compreenso.

    Portanto, h algo anterior verdade da cincia que, de certa forma, lhe condi-

    o de possibilidade. No caso do direito, o equivoco dos projetos positivistas est no

    prprio recorte na totalidade do ente que tais teorias efetuam para caracterizar o estudo

    do fenmeno jurdico. Dito de outro modo, o modelo excessivamente terico de aborda-

    gem gera uma espcie de asfixia da realidade, do mundo prtico. Ou seja, o contexto

    prtico das relaes humanas concretas, de onde brota o direito, no aparece no campode anlise das teorias positivistas. Isso gera problema de diversos matizes. O fato de ne -

    nhuma das duas teorias conseguir resolver o problema da eficcia do sistema pode ser

    elencado com um destes problemas.

    Para mim, entretanto, o principal problema aparece quando se procura determi-

    narcomo ocorre e dentro de quais limites deve ocorrer a deciso judicial. Ambas as

    teorias apostam na vontade do intrprete (na verdade, na velha Wille zur Machtnietz-

    cheana) para resolver o problema gerando a discricionariedade judicial (que, no maisdas vezes, acaba em arbitrariedade). Ora, evidente que tais teorias sofrem de um letal

    dficit democrtico. Pergunto: como justificar, legitimamente, uma deciso tomada pelo

    poder judicirio? Isso tais teorias no respondem. E nem poderiam responder, uma vez

    que essa dimenso dos acontecimentos fica fora de seu campo de anlises.

    Dizendo de outro modo e venho insistindo nesse ponto essa problemtica da

    validade da explicitao da compreenso (portanto, da validade da interpretao) deve

    ser analisada a partir da destruio do mtodo que proporcionada por Gadamer. Com

    efeito, no h nisso um dficit de metodologia ou de racionalidade. Essa ruptura no

    significou um ingresso na irracionalidade ou no relativismo filosfico. Muito pelo con-

    trrio. Assim como a integridade em Dworkin, a hermenutica est fundada na autori-

    dade da tradio, que pode ser autntica e inautntica, alm da importncia do texto

    (que, em Gadamer, um evento, como j demonstrei em Verdade e Consenso15).

    15 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, Hermenutica e Teorias Discursivasda Possibilidade necessidade de respostas corretas em Direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen juris,2009.

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    Para ser mais especfico e evitar mal entendidos: Gadamer deixa claro que a au-

    sncia do mtodo no significa que se possa atribuir sentidos arbitrrios aos textos. Na

    medida em que a interpretao sempre se d em um caso concreto, fica ntida a impossi-bilidade de ciso entre quaestio facti e quaestio jris. A hermenutica no trata apenas

    da faticidade; ela no apenas explica como se d o sentido ou as condies pelas quais

    compreendemos. Na verdade, por ela estar calcada na circularidade hermenutica (her-

    meneutische Zirkel), fato e direito se conjuminam em uma sntese, que somente ocorre

    concretamente, na applicatio (lembremos sempre que no se cinde conhecimento, inter-

    pretao e aplicao). Se interpretar explicitar o que compreendemos, a pergunta que

    se faz : essa explicitao seria o locus da validade? Se verdadeira essa assertiva ecreio que no ento estaramos diante de outro problema: o que fazer com a quaestio

    facti?

    3. H uma teoria da validade na hermenutica?

    Ao contrrio do que apregoa, tenho que a hermenutica filosfica, assim como a

    teoria integrativa dworkiniana, tratam adequadamente de uma teoria da deciso. A dife-rena que ambas no admitem aquilo que est no cerne da expressiva maioria das teo-

    rias jurdicas contemporneas: a discricionariedade dos juzes. Se a hermenutica e a

    teoria integrativa no se preocupassem com a deciso, estas seriam relativistas, admitin-

    do vrias respostas para cada problema jurdico. No h dvida de que uma teoria jur-

    dica democrtica deve se preocupar com a validade normativo-jurdica do concreto ju-

    zo decisrio. O que no se pode concordar que, para alcanar esse juzo decisrio

    so possveis juzos discricionrios, o que refora(ria) novamente o solipsismo inter-

    pretativo.

    Numa palavra: a questo da validade reside na circunstncia de que no pode-

    mos simplesmente confundir essa validade com uma espcie de imposio ontolgica

    (no sentido clssico) nas questes com que se ocupam determinados campos do conhe-

    cimento cientifico. Tambm no podemos mais pensar a validade como uma cadeia cau-

    sal sucessiva que tornaria verdadeiro um determinado conjunto de proposies jurdicas.

    A validade o resultado de determinados processos de argumentao em que se con-

    frontam razes e se reconhece a autoridade de um argumento.

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    E que fique bem claro que o reconhecimento da autoridade de um argumento

    no est ligado a uma imposio arbitrria. Pelo contrrio, a hermenutica incompat-

    vel com qualquer tipo de arbitrariedade. Como afirma Gadamer ao proceder a reabili-tao da autoridade da tradio:

    o reconhecimento da autoridade est sempre ligado idia de que o que aautoridade diz no uma arbitrariedade irracional, mas algo que pode serinspecionado principalmente. nisso que consiste a essncia da autoridadeque exige o educador, o superior, o especialista.16

    Em conseqncia, devemos primeiro compreender o problema da validade como

    uma questo que pode ser amplamente desenvolvida pela cincia e pela lgica. Mas no

    h duvida de que aqui tambm reaparece um certo tipo de pressuposto que est sempre

    presente para produzir o campo comum de interao prprio para troca de argumentos.

    Mas a questo aqui no se encerra. Vejamos: tambm poderamos discutir o pro-

    blema da validade em outro nvel. Sob esse aspecto, a validade foi durante o neokantis-

    mo muitas vezes apresentada como o sentido que sustenta qualquer teoria dos enuncia-

    dos. desse conceito de validade que Heidegger extrai a necessidade de se fazer uma

    distino entre a validade na cincia e a validade na filosofia, questo que ele, sob cer-

    tos aspectos, utilizou para se inspirar na lenta determinao do que significa a diferena

    ontolgica, na medida em que a validade que se coloca no nvel dos entes a validade

    para a qual ns temos instrumentos de argumentao/discusso, enquanto a outra valida-

    de termina j sempre operando nesses tipos de argumentao, que o sentido. E esse

    sentido dos neokantianos passou em Heidegger precipuamente no conceito de ser. Por

    isso, para alguns autores, a diferena ontolgica nasceu de uma leitura que Heidegger

    fez de certas discusses neokantianas.17

    preciso entender que a hermenutica (filosfica) e Dworkin segue essa mes-

    ma reflexo (re)valoriza a dimenso prtica da retrica oferecendo a possibilidade de

    instaurao de um ambiente no qual os problemas da realidade so resolvidos concre-

    tamente, no interior desta mesma realidade, e no numa instncia superior, de cunho

    16 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos Fundamentais de Uma Hermenutica Filo-sfica. Traduo de Flvio Paulo Meurer. 3 ed. Petrpolis: Vozes, 1999, p. 420.

    17 Tambm Stein aponta para este fato indicado no texto: a diferena ontolgica, cuja envergadura sedesdobrou muito com o labor do filsofo, lhe foi ao menos possibilitada pelas anlises de Emil Lask.O pensamento de Heidegger que se quer nos antpodas do problema gnosiolgico, contudo, lhe devealgo de essencial. Cf. Stein, Ernildo. Uma Breve Introduo Filosofia. 2 ed. Iju: Uniju, 2005, p.83.

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    ideal que, posteriormente, passa a ser aplicada por mimetismo realidade. Note-se, por

    exemplo, que as crticas de que existe um excesso de abstrao na teoria de Dworkin

    apresentam um equvoco de base: a orientao filosfica de Dworkin vai em direo auma anlise pragmtica da realidade. Tal acusao poderia ser feita s teorias argumen-

    tativas e epistemo-procedurais, mas jamais Dworkin ou hermenutica filosfica.

    Em defesa de Dworkin circunstncia que pode ser estendida hermenutica fi-

    losfica preciso lembrar que, enquanto um procedimentalista como Habermas deso-

    nera os juzes da elaborao dos discursos de fundamentao (Begrndugnsdiskurs)

    porque desacredita na possibilidade de os juzes poderem se livrar da razo prtica (ei-

    vada de solipsismo, como ele afirma j no incio de seu Faktizitt und Geltung) ele(Dworkin) ataca esse problema a partir da responsabilidade poltica de cada juiz/intr-

    prete/aplicador, obrigando-o (has a duty to) a obedecer a integridade do direito, evitan-

    do que as decises se baseiem em raciocnios ad hoc (teleolgicos, morais ou de

    poltica).

    Insista-se: quando Dworkin diz que o juiz deve decidir lanando mo de argu-

    mentos de princpio e no de polticas, no porque esses princpios sejam ou estejam

    elaborados previamente, disposio da comunidade jurdica como enunciados asser-tricos ou categorias (significantes primordiais-fundantes). Na verdade, quando sustenta

    essa necessidade, apenas aponta para os limites que devem haver no ato de aplicao ju-

    dicial (por isso, ao direito no importa as convices pessoais/morais do juiz acerca da

    poltica, sociedade, esportes, etc; ele deve decidir por princpios). preciso compreen-

    der que essa blindagem contra discricionarismos uma defesa candente da democra-

    cia, uma vez que Dworkin est firmemente convencido e acertadamente que no tem

    sentido, em um Estado Democrtico, que os juzes tenham discricionariedade para deci-

    dir os casos difceis.

    Na verdade, isso assim filosoficamente porque Dworkin compreendeu de-

    vidamente o problema do esquema sujeito-objeto, questo que, entretanto, no est de-

    vidamente esclarecida e compreendida pela teoria do direito. Exatamente por superar o

    esquema sujeito-objeto que Dworkin no transforma o seu juiz Hrcules em um

    juiz solipsista e tampouco em algum preocupado apenas em elaborar discursos prvios,

    despreocupados com a aplicao (deciso). Hrcules uma metfora, demonstrando as

    possibilidades de se controlar o sujeito da relao de objeto, isto , com Hrcules

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    Dworkin quer demonstrar que no necessrio, para superar o sujeito solipsista

    (Sebstschtiger) da modernidade, substitu-lo por um sistema ou por uma estrutura

    (v.g., como fazem Luhmann e Habermas). Insista-se: a teoria dworkiniana, assim comoa hermenutica, por serem teorias preocupadas fundamentalmente com a applicatio, no

    desoneram o aplicador (juiz) dos Begrndungsdiskurs (discursos de fundamentao). E

    isso faz a diferena.

    4. As crticas hermenutica e o problema da m compreenso do sentido de pr-compreenso (Vorverstndnis)

    Destarte, a discusso que proponho, tanto em Verdade e Consenso como emHermenutica Jurdica E(m) Crise, inexoravelmente atravessada pelas condies de

    possibilidade da preservao da democracia a partir dos parmetros do Estado Demo-

    crtico de Direito. O que sempre pretendi dizer que no teria sentido que, nesta quadra

    da histria, depois da superao dos autoritarismos/totalitarismos surgidos no sculo

    XX e no momento em que alcanamos esse (elevado) patamar de discusso democrtica

    do direito, vissemos a depender da discricionariedade dos juzes na discusso dos as-

    sim denominados casos difceis ou em face das (inexorveis) incertezas da linguagem.Ora, pensar assim seria substituir a democracia pela vontade do poder (entendido

    como o ltimo princpio epocal da modernidade) dos juzes ou de uma doutrina que, se-

    guida pelos juzes, substitusse a produo democrtica do direito. Essa produo demo-

    crtica do direito plus normativo/qualitativo que caracteriza o Estado Democrtico de

    Direito um salto para alm do paradigma subjetivista.

    nesse sentido que, ao ser anti-relativista, a hermenutica funciona como uma

    blindagem contra interpretaes arbitrrias e discricionariedades e/ou decisionismos por

    parte dos juzes. Veja-se: alguns crticos da hermenutica acusam-na de ser irracionalis-

    ta. A essa crtica respondo que, antes de tudo, a hermenutica filosfica no pode ser

    regionalizada, como, por exemplo, hermenutica constitucional ou hermenutica a

    ser feita em pases com mltiplas vises de mundo disputando espao (sic). Herme-

    nutica filosofia; consequentemente, no h modos diferentes de interpretar, por

    exemplo, o direito penal, o direito civil, o direito constitucional, o cotidiano, a mdia,

    etc. Esse o carter de universalizao da hermenutica e no de regionalizao (se as-

    sim se quiser dizer).

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    No mais, ratifico, aqui, que minhas crticas ao decisionismo, ao discricionaris-

    mo, etc., no esto assentadas apenas nisso (a pr-compreenso como limite). Essa

    uma das teses (concluses) que venho defendendo. Minha cruzada contra discricionarie-dades e decisionismos se assenta no fato de existirem dois vetores de racionalidade

    (apofntico e hermenutico), circunstncia que os crticos da hermenutica no enten-

    dem (veja-se, j aqui, a distino entre compreender e entender, este de nvel lgico-ar-

    gumentativo e aquele de nvel hermenutico-estruturante).

    Isso se deve ao fato de que tais crticas advm do mbito da teoria da argumenta-

    o, que (ainda) aposta em descries e prescries, subsunes e dedues, enfim,

    dos domnios do (metafsico) esquema sujeito-objeto. Mas, registre-se, crticas desse

    vis j haviam sido feitas hermenutica filosfica de h muito, epitetando-a de relati-

    vista, ataque que Gadamer respondeu com veemncia, conforme se pode ver em Wahr-

    heit und Methode e nas minhas obras.

    Em definitivo: o fato de a hermenutica (filosfica) rechaar o mtodo no im-

    plica ausncia (ou carncia) de racionalidade. At porque o mtodo que destrudo pela

    hermenutica filosfica o mtodo acabado e definitivo que o subjetivismo epistemol-

    gico da modernidade construiu. Permito-me dizer isto de modo mais agudo: exatamente

    porque o mtodo (no sentido moderno da palavra) morreu que, agora, exige-se maior

    cuidado no controle da interpretao (ateno: compreender e interpretar so coisas

    diferentes).

    Frise-se: o mtodo morreu porque morreu a subjetividade que sustentava a filo-

    sofia da conscincia (locus do sujeito solipsista - Selbstschtiger). Ora, o mtodo so-

    obra diante da superao do esquema sujeito-objeto. Mtodo no sinnimo de racio-

    nalidade. Longe disso! E nem necessrio lembrar que a obra Verdade e Mtodo pode

    (ou deve) ser lida como Verdade contra o Mtodo, o que significa admitir a possibilida-

    de de verdades conteudsticas (no apoddicas, claro). O que os crticos da hermenu-

    tica no entendem que a hermenutica atua em um nvel de racionalidade que estru-

    turante, transcendental no clssico (Stein); j as teorias da argumentao - mormente a

    de Robert Alexy - atuam a partir de um vetor de racionalidade de segundo nvel, fican-

    do, portanto, no plano lgico e no filosfico ( a contraposio entre o como apofnti-

    co [wie] e o como hermenutico [als]). E, no esqueamos,filosofia no lgica.

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    Eis a distncia entre a hermenutica e teorias procedurais como a teoria da argu-

    mentao jurdica. A diferena fundamental talvez esteja no fato de que a hermenutica

    atua no mbito da intersubjetividade (S-S), enquanto as teorias procedurais (como a teo-ria da argumentao jurdica) no superaram o esquema sujeito-objeto (S-O).

    evidente e at compreensvel que qualquer teoria que esteja refm do es-

    quema sujeito-objeto acreditar em metodologias que introduzam discursos adjudicado-

    res no direito (Alexy um tpico caso). Isso explica tambm por que a ponderao re-

    pristina a velha discricionariedade positivista. Isso explica tambm porque Alexy e seus

    seguidores falo especialmente dos seus seguidores no Brasil no abrem mo da

    discricionariedade.

    Com efeito, a teoria da argumentao no conseguiu fugir do velho problema en-

    gendrado pelo subjetivismo: a discricionariedade, circunstncia que reconhecida pelo

    prprio Alexy:

    Os direitos fundamentais no so um objeto passvel de ser dividido de umaforma to refinada que inclua impasses estruturais ou seja, impasses reaisno sopesamento , de forma a torn-los praticamente sem importncia. Nestecaso, ento, existe uma discricionariedade para sopesar, uma discricionarie-

    dade tanto do legislativo quanto do judicirio.18

    Esse o ponto que liga a teoria alexyana e consequentemente, de seus seguido-

    res ao protagonismo judicial, isto , o sub-jectum da interpretao termina sendo o

    juiz e suas escolhas. tambm nesse sentido que concordo com Arthur Kaufmann, ao

    negar qualquer interligao entre hermenutica e teoria da argumentao jurdica:

    "A teoria da argumentao provm, essencialmente, da analtica. Esta prove-nincia pode vislumbrar-se ainda hoje em quase todos os tericos da argu-mentao. No nos possvel, nem necessrio, referir todas as correntes dateoria da argumentao, at porque, como nota Ulfrid Neumann, nem sequerexiste a teoria da argumentao jurdica. Assim, j questionvel que sepossam considerar a tpica e a retrica como formas especiais da teoria daargumentao."

    Agregue-se, ademais, diz Kaufmann, que a teoria da argumentao no acom-

    panha a hermenutica na abolio do esquema sujeito-objeto, prevalecendo-se da

    objetividade.19

    18 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio A. Silva. So Paulo,Malheiros, 2008, p.611.

    19 Ver, para tanto, KAUFMANN, Arthur. Introduo filosofia do Direito e Teoria do Direito Con-temporneas. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 154 e segs.

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    Interessante notar que tanto a hermenutica filosfica como a teoria dworkinia-

    na, cada uma a seu modo, admitem respostas corretas (interpretaes corretas). E por

    que acreditariam nisso, se so irracionais (sic)? Por certo que isso deixa claro que aidia de racionalidade que guia os crticos da hermenutica filosfica aquela proveni-

    ente do mtodo da modernidade, isto , para eles, s pode ser epitetado de racional

    uma teoria que oferea um mtodo ou um procedimento para sua realizao. Mas, ser

    que todas as transformaes da filosofia desencadeadas no decorrer do sculo XX per-

    mitem ainda afirmar um tal conceito de racionalidade?

    Em Dworkin a integridade e a coerncia so o modo de amarrar o intrprete,

    evitando discricionariedades, arbitrariedades e decisionismos (e nem necessrio en-frentar, aqui, as indevidas e injustas crticas feitas metafrica figura do juiz Hrcules,

    acusado de solipsismo), h algo mais digno do signo da racionalidade que isso? Onde

    estaria o relativismo hermenutico? Por certo, se olharmos com cuidado, veremos que

    relativistas so as teses procedurais-argumentativas, que sustentam uma margem de dis-

    cricionariedade daquele que manipula o procedimento, como ocorre com as diversas

    teorias da argumentao. J na hermenutica filosfica (gadameriana) a no ciso entre

    interpretao e aplicao (pensemos nas trs subtilitates) e a autoridade da tradio soos componentes que blindam a interpretao contra irracionalismos e relativismos.

    Por isso que se chama de hermenutica da faticidade.

    E por isso tambm que se pode dizer que os princpios no proporcionam abertu-

    ra na interpretao, com o que at positivistas como Ferrajoli concordam. O ovo da ser-

    pente do irracionalismo, da discricionariedade e do decisionismo est em Kelsen e Hart,

    cada um ao seu modo. E para quem at hoje acredita que a interpretao um ato de

    vontade, basta que se acrescente a esse ato de vontade a expresso de poder e esta-

    remos de volta ao ltimo princpio epocal da modernidade: a Wille zur Macht, a vontade

    do poder de Nietsche, que sustenta as diversas formas de pragmatismo no direito, alm

    de concepes realistas como as dos Critical Legal Studies.

    Ainda uma questo relevante: como as teorias da argumentao esto fortemente

    atreladas tradio da filosofia analtica, h uma espcie de tendncia em colocar o

    enunciado como ponto de partida para o problema da linguagem e, conseqentemente,

    para a resoluo dos problemas (lgicos) que povoam o universo jurdico. Ressalte-se

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    que esta tendncia est sedimentada no senso comum terico que atravessa o direito

    brasileiro desde h muito tempo.

    Com efeito, j na primeira edio de Hermenutica Jurdica (e)m Crise, de-monstro, de modo contundente, o fato de a dogmtica jurdica ainda buscar capturar, na

    interpretao da lei, a essncia das palavras. Ou seja, para grande parcela do pensamen-

    to jurdico ptrio o problema da interpretao da lei estaria resolvido se fosse possvel

    construir um grande dicionrio onde estivesse contida toda a essncia significativa

    transmitida pelas palavras. No deixa de ser sintomtico que o livro esteja hoje em sua

    dcima edio e a crtica permanea terrivelmente atual. E tambm a teoria da argumen-

    tao praticada no Brasil permanece no interior daqueles que entendem que o problemada compreenso e da justeza dos enunciados comea com as palavras e a essncia que

    delas brotam.

    Nesse ponto no demais registrar que foi Heidegger quem mostrou que, em fi-

    losofia, equivocado pensar nas palavras como fonte de essncias de significado. Em

    outras palavras, Heidegger criticava abertamente a existncia de uma filosofia da lin-

    guagem porque esta desconsiderava o lugar mais originrio de onde a questo da lin-

    guagem exsurge. Nessa medida, depois de demonstrar como o enunciado um mododerivado da interpretao (que por sua vez foi possibilitada por uma [pr] compreenso

    existencial), aparece a seguinte afirmao no pargrafo 34 de Ser e Tempo: das signifi-

    caes brotam palavras; estas, porm, no so coisas dotadas de significados. Note-se:

    no nas palavras que devemos buscar os significados do mundo (ou do direito, para

    ser mais especfico), mas para significar (o direito) que necessitamos de palavras.

    para isso que as palavras servem: para dar significado s coisas! Para haver compreen-

    so, basta que a articulao do significado dado s coisas (ou ao Direito) esteja provido

    de sentido. Isto significa dizer: o Dasein, em seu modo prtico de ser-no-mundo, desde

    sempre j se move compreensivamente em um todo de significados que em Ser e

    Tempo recebe o nome de significncia e desta relao ftica de compreenso afeti-

    vamente disposta que brotam as significaes das palavras. Dito de outro modo: articu-

    lamos as palavras que temos disponveis projetando sentidos a partir deste todo de signi-

    ficados. Ou seja, o discurso que o modo de manifestao da linguagem articula-

    do sempre imerso nesta dimenso de (pr)compreensibilidade da significncia.

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    Esse o significado da pr-compreenso. Ela no uma criao da hermenutica

    filosfica de Gadamer. Ao contrrio, o prprio Gadamer admite em Verdade e Mtodo

    que a pr-compreenso tese fundamental para construo de sua filosofia uma des-coberta heideggeriana. E em Heidegger que est o mais eficaz remdio contra o rela-

    tivismo. Afinal, Ser e Tempo um livro antirelativista. Numa poca de pessimismos

    (social, econmico e filosfico), em que no faltavam teses que interpretavam o mundo

    no sentido do juzo final e do recomeo radical lembro aqui de A Queda do Ocidente

    de Oswald Spengler , Ser e Tempo postula a verdade como dimenso em que o ser-a

    (Dasein) desde sempre se movimenta. Nessa medida, a questo da significncia, da es-

    trutura prvia do enunciado e da constituio existencial (prvia) da compreenso so asquestes nucleares para a correta introduo ao problema da pr-compreenso e sua re-

    lao com a verdade.

    Que fique bem claro: no se pode confundir pr-compreenso com viso de

    mundo, preconceitos ou qualquer outro termo que revele uma abertura para o relativis-

    mo. A pr-compreenso demonstra exatamente que no h espao para este tipo de rela-

    tivizao subjetivista que acabaria, no fundo, caindo nas armadilhas de um ceticismo

    filosfico.De todo modo, o que transparece das crticas hermenutica exatamente a

    confuso entre pr-compreenso e preconceitos. Ora, como j demonstrado, a pr--

    compreenso do nvel do a priori, antecipador de sentido. A pr-compreenso uma

    espcie de totalidade que no pode ser fatiada (como se existisse uma pr-compreenso

    religiosa e outra leiga/laica). No nos perguntamos por que compreendemos, pela sim-

    ples razo de que j compreendemos lembrando aquilo que ensina Heidegger: em todo

    Discurso, enquanto um existencial do ser-a, j h uma compreensibilidade sendo

    articulada.

    por isso que Gadamer diz que o mtodo chega tarde. A pr-compreenso no

    significa uma estrutura de carter histrico e cultural que carateriza uma posio que se

    prende a um contedo determinado que possa ser apresentado como vlido contra outro

    contedo. O que est em questo aqui o problema do preconceito, que pode aparecer

    na ideologia, na viso de mundo e nos conflitos de carter histrico.20 Da a lio de

    20 Para evitar esse tipo de mal-entendido, nada melhor do que lembrar o prprio GADAMER ( Verdadee Mtodo. Traos Fundamentais de Uma Hermenutica Filosfica., op.cit.), para quem os preconcei-tos e opinies prvias (e fica claro que disso que Sarmento est falando e no da Vorvertndnis) queocupam a conscincia do intrprete no se encontram sua livre disposio. Por isso o intrprete no

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    Heidegger (do qual frise-se uma vez mais se originou a hermenutica filosfica de

    Gadamer) acerca da estrutura da compreenso: embora possa ser tolerado, o crculo her-

    menutico no deve ser rebaixado/degradado a crculo vicioso. Ele esconde uma possi-bilidade positiva do conhecimento mais originrio, que, evidentemente, somente ser

    compreendida de modo adequado quando ficar claro que a tarefa primordial, constante e

    definitiva da interpretao continua sendo no permitir que a posio prvia (Vorhabe),

    a viso prvia (Vorsicht) e a concepo prvia (Vorbegriff) lhe sejam impostas por in-

    tuies ou noes populares (do senso comum).21

    5. Ainda o mesmo problema, agora sob outra perspectiva.

    O tema , pois, recorrente, valendo lembrar que essa crtica falta/ausncia de

    racionalidade feita no Brasil, por exemplo, por Inocncio Mrtires Coelho, que, entre-

    tanto, confunde a hermenutica filosfica com o mtodo hermenutico-concretizador

    (faz uma crtica a este, mas atinge quela e por isso merece ser discutida). Elejo a obra22 do Professor da UNB e do IDP pela sua amplitude e representatividade, uma vez que

    muitas das questes aqui debatidas abarcam crticas semelhantes que outros autores fa-

    zem hermenutica no Brasil. Com efeito, Mrtires Coelho inicia dizendo que essemtodo hermenutico-concretizador pouco diferente do mtodo tpico-problemtico

    (o que, por si, j constitui um problema, embora sem maior relevncia para os objetivos

    da presente anotao). Mais ainda, assinala que os adeptos do mtodo hermenutico-

    concretizador

    procuram ancorar a interpretao no prprio texto constitucional - como li-mite da concretizao -, mas sem perder de vista a realidade que intenta re-gular e que, afinal, lhe esclarece o sentido; noutras palavras, trata-se de uma

    est em condies de distinguir por si mesmo e de antemo os preconceitos produtivos, que tornampossvel a compreenso, daqueles outros (aqui est o ponto fulcral da confuso entre pr-compreensoe preconceitos) que a obstaculizam e que levam a equvocos.

    21 Como bem assinala GADAMER (Verdade e Mtodo. Traos Fundamentais de Uma HermenuticaFilosfica., op.cit,), o que Heidegger diz aqui no em primeiro lugar uma exigncia prxis da com-preenso, mas descreve a forma de realizao da prpria interpretao compreensiva. A reflexo her-menutica de Heidegger tem o seu ponto alto no no fato de demonstrar que aqui prejaz um crculo,mas que este crculo tem um sentido ontolgico positivo. A descrio como tal ser evidente paraqualquer intrprete que saiba o que faz. Toda interpretao correta tem que proteger-se da arbitrarie-dade de intuies repentinas, enfim, dos preconceitos e voltar seu olhar para as coisas elas mesmas(veja-se que textos sempre tratam de coisas, sendo que, por isso, texto sempre um evento). Por isso,diz Gadamer, a compreenso somente alcana sua verdadeira possibilidade quando as opinies prviascom as quais inicia no forem arbitrrias.

    22 Dois livros so objetos da presente crtica:Interpretao Constitucional (Porto Alegre: Fabris, 1992 eSo Paulo, Saraiva, 2007); Da Hermenutica Filosfica Hermenutica Jurdica (So Paulo, Saraiva,2010); Interpretao Constitucional (So Paulo, Saraiva, 2007).

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    postura que encontra apoio, dentre outras, nas seguintes descobertas herme-nuticas de Gadamer: interpretar sempre foi, tambm, aplicar; aplicar o di-reito significa pensar, conjuntamente, o caso e a lei, de tal maneira que o di-

    reito propriamente dito se concretize; e, afinal, o sentido de algo geral, deuma norma, por exemplo, s pode ser justificado e determinado, realmentena concretizao e atravs dela.

    Na seqncia pressupondo como fato consumado a origem comum do mto-

    do hermenutico-concretizador e da hermenutica filosfica Mrtires Coelho investe

    contra a categoria da pr-compreenso, verbis:

    Considerando, entretanto, que toda pr-compreenso, em certa medida, pos-sui algo de irracional, pode-se dizer que, apesar dos seus esforos, os quepropugnam por esse mtodo (sic), assim como os defensores do processo t-

    pico-problemtico, ficam a dever aos seus crticos algum critrio de verdadeque lhes avalize as interpretaes, de nada valendo, para quitar essa dvida,apelarem para uma imprecisa e mal definida verdade hermenutica, que podeser muito atraente como idia, mas pouco nos diz sobre os alicerces dessaconstruo".23

    Coloquemos, ento, as discordncias com o estimado e erudito Professor brasili-

    ense: em primeiro lugar, o mtodo hermenutico-concretizador trazido por Canotilho a

    partir de duas fontes: Hesse e Mller, no fazendo nenhuma referncia a Gadamer. De

    fato, h em Mller (que associado ao mtodo estruturante) uma base gadameriana. Aquesto, no entanto, no a influncia de Gadamer em Mller ou Hesse, mas o modo

    como Gadamer lido pelos juristas. Mller, por exemplo, usa Gadamer para justificar a

    relao da interpretao com a aplicao e, ao mesmo tempo, procura oferecer uma es-

    trutura metodolgica para controlar a interpretao. No podemos esquecer da relao

    do pensamento de Gadamer com os mtodos constitutivos da compreenso! Em Gada-

    mer, no possvel associar mtodos e a antecipao da compreenso na circularidade

    hermenutica. Isso de modo algum! Na seqncia, Mrtires Coelho confunde pr--

    compreenso com preconceitos (problemtica que tambm aparece em autores como

    Daniel Sarmento24), ou seja, utilizapr-compreenso como se fosse preconceito, ideolo-

    gia, subjetividades ou viso de mundo. Realiza, portanto, um processo de fatiamento

    da pr-compreenso.

    23 Cf. MARTIRES COELHO, op.cit.,Interpretao Constitucional, op.cit.,p.103-104.24 Cf. SARMENTO, Daniel. Interpretao Constitucional, Pr-Compreenso e Capacidades Institucionais

    do Intrprete. In: Vinte Anos da Constituio Federal de 1988 . Claudio Pereira de Souza Neto, DanielSarmento e Gustavo Binembojn (Org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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    Insisto: a pr-compreenso uma espcie de todo que sempre nos antecipa quan-

    do nos relacionamos com os entes no mundo. Em hiptese alguma isso representa uma

    idia, mas pelo contrrio isso possibilitado por um ver fenomenolgico que acessou omundo prtico em suas estruturas mais originrias. Isso implica a seguinte pergunta: por

    que a pr-compreenso de que fala Gadamer que, insista-se, estruturante, que anteci-

    pa o sentido (novamente a razo hermenutica de que fala Ernst Schndelbach) seria

    irracional? Por que a hermenutica no oferece nenhum critrio garantidor da verda-

    de? Novamente, o que est em jogo uma idia de que o racional s alcanado quan-

    do se tem um mtodo disponvel para assegurar a organizao e o processamento do

    processo de conhecimento do direito.

    Mas, observemos: o ataque de Mrtires Coelho no diretamente herme-

    nutica filosfica. Mas tudo indica que a confuso entre hermenutica e mtodo concre-

    tizadoracabou por propiciar uma cobrana de racionalidade da hermenutica , uma

    vez que o professor brasiliense diz de nada valer, para quitar essa dvida, apelarem para

    uma imprecisa e mal definida verdade hermenutica. Aqui transparece, nitidamente,

    que o lugar da crtica de Mrtires Coelho no o ontological turn e, sim, o da filosofia

    da conscincia (Philosophie des Bewusstseins), enfim, do lugar da fala do mtodo tradi-cional da modernidade. Gadamer, como tenho insistido, faz uma ruptura com o mtodo

    a partir da superao do esquema sujeito-objeto (Subjekt-Objeckt-Schema), confrontan-

    do-se, abertamente, com o sujeito solipsista (Selbstschtiger) da modernidade. Mas,

    confundir essa ruptura com o mtodo com a instaurao de uma irracionalidade (ou um

    livre atribuir de sentidos) confundir, tambm neste ponto, os nveis em que se do a

    compreenso e a explicitao dessa compreenso.

    Ora, Mrtires Coelho cobra da hermenutica uma razo instrumental que a her-

    menutica afastou justamente em face do esquema sujeito-objeto. Mas preciso com-

    preender que, no lugar disso, Gadamer coloca a autoridade da tradio, a aferio da

    verdade hermenutica a partir dos pr-juzos legtimos e ilegtimos, circunstncia que

    refora a relao da hermenutica para com o direito, mormente pelo locus privilegia-

    do representado pela Constituio. No esqueamos novamente da applicatio gada-

    meriana e sua incindibilidade para com a interpretao. Essa circunstncia favorece em

    Dworkin a utilizao da integridade e da coerncia como modos de controlar/amarrar ointrprete, evitando discricionariedades e arbitrariedades, problemtica que perpassa

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    toda a presente obra. E, no esqueamos, numa palavra, o que Gadamer dizia acerca da

    acusao de irracionalidade e/ou de relativismo hermenutica: o relativismo no deve

    ser combatido; deve ser destrudo. Parece claro isso: o irracionalismo , paradoxalmen-te, produto da racionalidade instrumental da modernidade!

    Por fim, importa referir que essas crticas embora relevantes e feitas de forma

    sofisticada por autores do porte do professor Martires Coelho tornam-se problemticas

    porque se originam de um territrio ocupado pelo proceduralismo das teorias argumen-

    tativas. Ainda, numa palavra: com Habermas e Luhmann podemos, ao menos, discutir

    uma alternativa para o pensamento ps-metafsico (Habermas) e, at mesmo, as possibi-

    lidades de qualquer uma dessas alternativas (Luhmann). Lembremos que Habermas

    anti-relativista, anti-discricionarista, assim como Dworkin. Com certeza, Luhmann no

    compactua com irracionalidades (pode-se dizer que, nele, as contingncias so evitadas

    pelas estruturas). O que no possvel avaliar o pensamento hermenutico--

    gadameriano-dworkiniano pela lente da filosofia da conscincia (portanto, pela metafsi-

    ca moderna).

    Por tudo isso e permito-me insistir nesse ponto discutir as condies de pos-

    sibilidade da deciso jurdica , antes de tudo, uma questo de democracia. Por isso, de-

    veria ser despiciendo acentuar ou lembrar que a crtica discricionariedade judicial

    no uma proibio de interpretar. Ora, interpretar dar sentido (Sinngebung).

    fundir horizontes. E direito um sistema de regras e princpios, comandado por uma

    Constituio. Assim, afirmar que as palavras da lei (lato sensu) contm vaguezas e am-

    bigidades e que os princpios podem ser e na maior parte das vezes so mais aber-

    tos em termos de possibilidades de significado, no constitui novidade.

    O que deve ser entendido que a realizao/concretizao desses textos (isto , a

    sua transformao em normas) no depende de uma subjetividade assujeitadora (esque-

    ma sujeito-objeto), como se os sentidos a serem atribudos fossem fruto da vontade do

    intrprete, dando assim razo a Kelsen, para quem a interpretao a ser feita pelos ju-

    zes um ato de vontade, tese, alis, ainda hoje seguida por um grupo de importantes ju-

    ristas brasileiros, como os Ministros do STF Marco Aurlio e Luis Fux.

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    preciso insistir: a hermenutica por mim trabalhada antirrelativista e antidis-

    cricionria, o que significa dizer que o sentido no est disposio do intrprete (o

    que diferente de dizer que h uma exegese de estrita literalidade).

    Na verdade, o drama da discricionariedade que venho criticando de h muito

    que esta transforma os juzes em legisladores. E mais do que transformar os juzes em

    legisladores, o poder discricionrio propicia a criao do prprio objeto de conhe-

    cimento, tpica problemtica que remete a questo ao solipsismo caracterstico da filo-

    sofia da conscincia no seu mais exacerbado grau. Ou seja, concebe-se a razo humana

    como fonte iluminadora do significado de tudo o que pode ser enunciado sobre a

    realidade. Nesse paradigma, as coisas so reduzidas aos nossos conceitos e s nossas

    concepes de mundo, ficando dis-posio de um protagonista (no caso, o juiz, enfim,

    o Poder Judicirio). E isso acarreta conseqncias graves no Estado Democrtico de Di-

    reito.

    Eis a complexidade: historicamente, os juzes eram acusados de ser a boca da lei.

    Essa crtica decorria da ciso entre questo de fato e questo de direito, isto , a separa-

    o entre faticidade e validade (problemtica que atravessa os sculos). As diversas teo-

    rias crticas sempre aponta(ra)m para a necessidade de rompimento com esse imaginrio

    exegtico. Ocorre que, ao mesmo tempo, a crtica do direito, em sua grande maioria,

    sempre admitiu e cada vez admite mais um alto grau de discricionariedade nos casos

    difceis, nas incertezas designativas, enfim, na zona de penumbra das leis. Tudo isso

    tem conseqncias srias para o direito. Serssimas.

    6. guisa de concluso: para alm dos monoplios interpretativos.

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    Quando questiono os limites da interpretao (ou a ausncia deles) a ponto de

    alar a necessidade desse controle categoria de princpio basilar da hermenutica jur-

    dica - est obviamente implcita a rejeio da negligncia do positivismo legalistapara com o papel do juiz, assim como tambm a descoberta das diversas correntes

    realistas e pragmatistas que se coloca(ram) como anttese ao exegetismo das primeiras.

    Ou seja, a questo que est em jogo ultrapassa de longe essa antiga contraposi-

    o de posturas, mormente porque, no entremeio destas, surgiram vrias teses, as quais,

    sob pretexto da superao de um positivismo fundado no sistema de regras, construram

    um modelo interpretativo calcado em procedimentos, cuja funo (ra) descobrir os va-

    lores presentes (implcita ou explicitamente) no novo direito, agora eivado de princpi-

    os e com textura aberta.

    J as posturas subjetivistas, especialmente, redundaram em um fortalecimento do

    protagonismo judicial, fragilizando sobremodo o papel da doutrina. Em terrae brasilis

    essa problemtica facilmente notada no impressionante crescimento de uma cultura ju-

    rdica cuja funo reproduzir as decises tribunalcias. o imprio dos enunciados as-

    sertricos que se sobrepe reflexo doutrinria. Assim, os reflexos de uma aposta no

    protagonismo judicial no demorariam a ser sentidos: a doutrina se contenta com

    migalhas significativas ou restos dos sentidos previamente produzidos pelos tribu-

    nais. Com isso, a velha jurisprudncia dos conceitos (Begriffjurisprudenz) ou um ar-

    remedo dela - acaba chegando ao direito contemporneo a partir do lugar que era o seu

    destinatrio: as decises judiciais, ou seja, so elas, agora, que produzem a conceituali-

    zao. Com uma agravante: o sacrifcio da faticidade; o esquecimento do mundo

    prtico.

    De todo modo, o ponto fulcral no est nem no exegetismo, nem no positivismo

    ftico (por todos, basta examinar as teses do realismo jurdico nas suas variadas pers-

    pectivas) e tampouco nas teorias que apostam na argumentao jurdica como um passo

    para alm da retrica e como um modo de corrigir as insuficincias do direito legisla-

    do. Na verdade, o problema, em qualquer das teses que procuram resolver a questo de

    como se interpreta e como se aplica, localiza-se no sujeito da modernidade, isto , no

    sujeito da subjetividade assujeitadora, objeto da ruptura ocorrida no campo da filo-

    sofia pelo giro lingustico-ontolgico e que no foi recepcionado pelo direito.

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    Isso significa poder afirmar que qualquer frmula hermenutico-interpretativa

    que continue a apostar no solipsismo estar fadada a depender de um sujeito individua-

    lista, como que a repristinar o nascedouro do positivismo atravs do nominalismo (pen-semos em Guilherme de Ockan, que, trezentos anos depois, inspirou Hobbes, efetiva-

    mente o primeiro positivista da modernidade). Est-se lidando, pois, com rupturas para-

    digmticas e princpios epocais que fundamentam o conhecimento em distintos perodos

    da histria (do eidos platnico ao ltimo princpio fundante da metafsica moderna: a

    vontade do poder, de Nietzsche).

    Em sntese e quero deixar isso bem claro para superar o positivismo preci-

    so superar tambm aquilo que o sustenta: o primado epistemolgico do sujeito (da sub-

    jetividade assujeitadora) e o solipsismo terico da filosofia da conscincia. No h

    como escapar disso. E penso que apenas com a superao dessas teorias que ainda apos-

    tam no esquema sujeito-objeto que poderemos sair dessa armadilha que o

    solipsismo.25

    Por tais razes, a hermenutica se apresenta nesse contexto como um espao no

    qual se pode pensar adequadamente uma teoria da deciso judicial, livre que est tanto

    das amarras desse sujeito onde reside a razo prtica como daquelas posturas que bus-

    cam substituir esse sujeito por estruturas ou sistemas. Nisso talvez resida a chave de

    toda a problemtica relativa ao enfrentamento do positivismo e de suas condies de

    possibilidade.

    tarefa contnua, pois, que se continue a mostrar como persistem equvocos nas

    construes epistmicas atuais e como tais equvocos se do em virtude do uso aleatrio

    das posies dos vrios autores que compe o chamado ps-positivismo. Com efeito,

    isso fica evidente no conceito de princpio. O carter normativo dos princpios que

    reivindicado no horizonte das teorias ps-positivistas no pode ser encarado como um

    libi para a discricionariedade, pois, desse modo, estaramos voltando para o grande

    problema no resolvido pelo positivismo.

    25 Vejamos a gravidade disso: os projetos dos Cdigos de Processo Civil e Penal que tramitam no Con-gresso Nacional apostam exatamente nesse tipo ideal-filosfico, ao estabelecerem o primado do li-vre convencimento na gesto da prova. Essa circunstncia bem demonstra a dificuldade para a supe-rao do velho paradigma da filosofia da conscincia. Para uma crtica desse jaez, ver STRECK, L.L.O novo Cdigo de Processo Penal e as ameaas do velho inquisitorialismo: nas so(m)bras da filoso-fia da conscincia. In:Processo Penal, Constituio e Crtica Estudos em homenagem ao Dr. Jacin-to Nelson de Miranda Coutinho. Gilson Bonato (Org). Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011.

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    Com isso quero dizer que a tese da abertura (semntica) dos princpios com

    que trabalha a teoria da argumentao (e outras teorias sem filiao a matrizes tericas

    definidas) incompatvel com o modelo ps-positivista de teoria do direito. Na verda-de, o positivismo sempre nutriu uma espcie de averso aos princpios. Na medida em

    que na discusso sobre os princpios sempre nos movemos no territrio precrio da ra-

    zo prtica, o positivismo de todos os matizes trata(va)-o sempre como uma espcie

    de reforo que possua no mximo uma funo de integrao sistemtica. Esse o signi-

    ficado da doutrina dos princpios ocultos de que fala Esser, ou seja, uma tentativa de sa-

    nar uma possvel incompletude sistemtica no todo do ordenamento jurdico.

    Nessa medida, preciso ressaltar que s pode ser chamada de ps-positivista

    uma teoria do direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo. Parece bvio re-

    forar isso. A superao do positivismo implica enfrentamento do problema da

    discricionariedade judicialou, tambm poderamos falar, no enfrentamento do solipsis-

    mo da razo prtica. Implica, tambm, assumir uma tese de descontinuidade com rela-

    o ao conceito de princpio. Ou seja, no ps-positivismo os princpios no podem mais

    serem tratados no sentido dos velhos princpios gerais do direito nem como clusulas de

    abertura.

    De efetivo, uma teoria ps-positivista necessita superar os trs elementos fun-

    dantes dos diversos positivismos jurdicos:

    Primeiro, porque o positivismo sempre se caracterizou pelas fontes sociais do

    direito, pela separao entre direito e moral e pela discricionariedade delegada ao juiz

    nos hard cases ou nas incertezas da linguagem em geral.

    Segundo, porque, como j demonstrado alhures, h uma correspondncia de tais

    caractersticas com os obstculos opostos pelo positivismo ao novo constitucionalismo

    (neoconstitucionalismo): a falta de uma nova teoria das fontes, a falta de uma nova teo-

    ria da norma e a ausncia de uma teoria da interpretao que d conta da superao do

    paradigma objetivista aritotlico-tomista e da filosofia da linguagem. H, assim, um

    modo de unificar esses caractersticas e os obstculos, uma vez que possvel vislumb-

    rar uma imbricao ou cruzamento entre eles.

    A partir disso, a elaborao de uma teoria ps-positivista tem que levar em contaos seguintes elementos:

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    I. H que se ter presente que o direito do Estado Democrtico de Direito supera a

    noo de fontes sociais, em face daquilo que podemos chamar de prospectividade,

    isto , o direito no vem a reboque dos fatos sociais e, sim, aponta para a reconstruoda sociedade. Isso facilmente detectvel nos textos constitucionais, como em terrae

    brasilis, onde a Constituio estabelece que o Brasil uma Repblica que visa a erradi-

    car a pobreza, etc, alm de uma gama de preceitos que estabelecem as possibilidades (e

    determinaes) do resgate das promessas incumpridas da modernidade.

    II. Essa problemtica tem relao direta com a construo de uma nova teoria

    das fontes, uma vez que a Constituio ser o locus da construo do direito dessa nova

    fase do Estado (Democrtico de Direito); consequentemente, no mais h que se falar

    em qualquer possibilidade de normas jurdicas que contrariem a Constituio e que pos-

    sam continuar vlidas; mais do que isso, muda a noo de parametricidade, na medida

    em que a Constituio pode ser aplicada sem a interpositio legislatoris, fonte de serdi-

    as teorias que relativizavam a validade/eficcia das normas.

    III. No pode restar dvida de que tanto a separao como a dependncia/vincu-

    lao entre direito e moral esto ultrapassadas, em face daquilo que se convencionou

    chamar de institucionalizao da moral no direito (esta uma fundamental contribuio

    de Habermas para o direito: a co-originariedade entre direito e moral), circunstncia que

    refora, sobremodo, a autonomia do direito. Isto porque a moral regula o comportamen-

    to interno das pessoas, s que esta regulao no tem fora jurdico-normativa. O que

    tem fora vinculativa, cogente, o direito, que recebe contedos morais (apenas) quan-

    do de sua elaborao legislativa26. Observemos: por isso que o Estado Democrtico de

    26 Aqui cabe um esclarecimento, para novamente evitar mal entendidos. A elaborao legislativa no es-

    gota nem de longe o problema do contedo do direito. Quando concordamos que as questes mo-rais, polticas, etc, faam parte da tarefa legislativa, isso no quer dizer que haja, de minha parte e,

    por certo, dos adeptos das posies substancialistas - uma viravolta na questo procedimentalismo-substancialismo. Se as posturas procedimentalistas pretendem esgotar essa discusso a partir da ga-rantia do processo democrtico de formao das leis, isso, no entanto, no esgota a discusso da con-creta normatividade, locus do sentido hermenutico do direito. De fato, mais do que apostar na formu-lao democrtica do direito, h que se fazer uma aposta paradigmtica, isto , acreditar na perpestiva

    ps-positivista do novo constitucionalismo e sua materialidade principiolgica. A virtude soberanano se d simplesmente na formulao legislativa e na vontade geral. Fundamentalmente, ela serencontrada na Constituio, que estabeleceu uma ruptura com a discricionariedade poltica que sem-

    pre sustentou o positivismo. E tudo isso est ancorado no contramajoritarismo, que vai alm do merocontrole da aferio da correo dos procedimentos democrticos utilizados na feitura das leis. Tam-

    bm na Constituio que encontraremos os mecanismos de controle da aferio substancial dos tex-tos legislados e da aplicao destes textos (nunca esqueamos: o substancialismo no abre mo do

    procedimentalismo). A igualdade, o devido processo legal, o sentido do republicanismo, a perspectivade Estado Social, a obrigao de concretizao dos direitos fundamentais-sociais, para citar apenas es-

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    Direito no admite discricionariedade (nem) para o legislador, porque ele est vinculado

    a Constituio (lembremos sempre a ruptura paradigmtica que representou o

    constitucionalismo compromissrio e social). O constituir da Constituio aobrigao suprema do direito. , pois, a virtude soberana (parafraseando Dworkin). A

    partir da feitura da lei, a deciso judicial passa a ser racionalizada na lei, que quer dizer,

    sob o comando da Constituio e no sob o comando das injunes pessoais-morais-

    polticas do juiz ou dos tribunais. Essa questo de suma importncia, na medida em

    que, ao no mais se admitir a tese da separao (e tampouco da vinculao), no mais se

    corre o risco de colocar a moral como corretiva do direito. E isso ter conseqncias

    enormes da discusso regra-princpio.

    IV. Na seqncia e em complemento, tem-se que essa ciso entre direito e mo-

    ral coloca(va) a teoria da norma reboque de uma tese de continuidade entre os velhos

    princpios gerais e os (novos) princpios constitucionais. Sustentado no paradigma do

    Estado Democrtico Constitucional, o direito, para no ser solapado pela economia, pela

    poltica e pela moral (para ficar apenas nessas trs dimensespredatrias da autonomia

    do direito), adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem

    contra as prprias dimenses que o engendra(ra)m.

    V. Tudo isso significa assumir que os princpios constitucionais e a Constitui-

    o lato sensu (afinal, qualquer prospeco hermenutica que se faa seja a partir de

    Dworkin, Gadamer, Hberle ouHabermas s tem sentido no contexto do paradigma

    do Estado Democrtico de Direito) ao contrrio do que se possa pensar, no remete

    tes componentes paradigmticos, so obrigaes principiolgicas de raiz, que vinculam a applicatio. Eos componentes a serem utilizados na discusso da aplicao do direito somente podero exsurgir des-se paradigma constitucional. Legislao democraticamente produzida e vlida significa sentido

    filtrado principiologicamente. O combate que aqui se trava de cariz anti-discricionrio tem a ob-jetivo de preservar esse grau acentuado de autonomia que o direito adquiriu com a frmula dasConstituies compromissrias (e dirigentes). Portanto, no ser um posicionamento ad hoc, fruto deapreciaes advindas de uma moral individual ou convices polticas, etc (em sntese, argumentos de

    poltica), que valer mais do que esse produto democrtico, o qual e desnecessrio frisar isso dever sempre passar pelo controle paramtrico-constitucional. Como j referido: a hermenutica noabre mo do sujeito da relao, enfim, do sujeito que lida com objetos. O que ela supera o esquemasujeito-objeto, responsvel pelo sujeito solipsista que sustenta as posturas subjetivistas-axiologistas damaioria das teorias do direito mesmo no sculo XXI. Na hermenutica h um efetivo controle da inter-

    pretao a partir da tradio (da autoridade desta), da obrigao da integridade, da coerncia, da igual-dade, da isonomia, enfim, da incorporao dos princpios constitucionais que podemos chamar aqui devirtudes soberanas em homenagem Dworkin. Por isso, os discursos predadores do direito so re-chaados por essa blindagem hermenutica que protege o direito produzido democraticamente. E exatamente por isso que possvel sustentar respostas adequadas a Constituio, portanto, apostar emuma teoria da deciso e no apenas em uma teoria da legislao. Mltiplas respostas dizem respeito aorelativismo, e, estas, esto umbilicalmente relacionadas com o positivismo.

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    para uma limitao do direito (e de seu grau de autonomia), e, sim, para o fortalecimen-

    to de sua de autonomia.

    VI. Consequentemente, nos casos assim denominados de difceis, no mais

    possvel delegar para o juiz a sua resoluo. Ou simplesmente apostar no monoplio

    do Estado, para utilizar a denncia feita na tese da Sociedade Aberta dos Intrpretes

    de Hberle. Isto porque no podemos mais aceitar que, em pleno Estado Democrtico

    de Direito, ainda se postule que a luz para determinao do direito in concreto provenha

    do protagonista da sentena27. Isso significa que, para alm da ciso estrutural entre ca-

    sos simples e casos difceis, no pode haver deciso judicial que no sejafundamentada

    ejustificada em um todo coerente de princpios que repercutam a histria institucional

    do direito. Desse modo, tem-se por superada a discricionariedade a partir do dever fun-

    damental de resposta correta que recai sobre o juiz no contexto do paradigma do Estado

    Democrtico de Direito.

    VII. A interpretao , como diz Hberle, um elemento da sociedade aberta. Para

    ele, todas as potncias pblicas, participantes materiais do processo social, esto nela

    envolvidas, sendo ela, a um s tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um

    elemento formador ou constituinte dessa sociedade.28 Isso quer dizer que h um fio

    condutor que atravessa as diversas percepes acerca da interpretao-aplicao do di-

    reito no terreno denominado ps-positivista: o de que a interpretao uma prtica soci-

    27 Do mesmo modo, a idia de imparcialidade pura do juiz ou o uso de estratgias argumentativas paraisentar a responsabilidade do julgador no momento decisrio podem levar introduo de argumentosde poltica na deciso jurdica. Nesse sentido so precisas as afirmaes de Dworkin: A polticaconstitucional tem sido atrapalhada e corrompida pela idia falsa de que os juzes (se no fossem tosedentos de poder) poderiam usar estratgias de interpretao constitucional politicamente neutras. Os

    juzes que fazem eco a essa idia falsa procuram ocultar at de si prprios a inevitvel influncia desuas prprias convices, e o que resulta da uma suntuosa mendacidade. Os motives reais das de-cises ficam ocultos tanto de uma legtima inspeo pblica quanto de um utilssimo debate pblico.J a leitura moral prega uma coisa diferente. Ela explica porque a fidelidade Constituio e ao direi-to exige que os juzes faam juzos atuais de moralidade poltica e encoraja assim a franca demonstra-o das verdadeiras bases destes juzos, na esperana de que os juzes elaborem argumentos mais sin-ceros, fundados em princpios, que permitam ao pblico participar da discusso (Direito de Liberda-de. Leitura Moral da Constituio Americana. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 57).

    28 Por bvio, compreendo as propostas de Hberle para alm de qualquer perspectiva meramente proce-dimental (por exemplo, Hberle no pode ser confundido com Luhmann). Tambm no discuto se emHberle h um dficit de normatividade ou se a tese da sociedade aberta enfraqueceria a fora nor-mativa da Constituio. Penso que Hberle aponta para o contrrio: na medida em que supera - permi-to-me assim chamar - o monoplio solipsista dos intrpretes oficiais, abre a perspectiva da penetra-o no mbito jurdico-textual daquilo que se pode denominar de mundo prtico, da sangria docotidiano, enfim, da faticidade. Trata-se de uma autntica fuso de horizontes a ser feita a partir daapertura participava no processo hermenutico.

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    al; e que interpretar sempre aplicar, circunstncia que coloca, embora sob matizes te-

    ricos diversos, Gadamer e Hberle. Veja-se que, para Hberle,

    "Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive comeste contexto , indireta ou, at mesmo diretamente, intrprete dessa norma.O destinatrio da norma participante ativo, muito mais ativo do que sepode supor tradicionalmente, do processo hermenutico. Como no so ape-nas os intrpretes jurdicos da Constituio que vivem a norma, no detmeles o monoplio da interpretao da constituio."29

    VIII. Observe-se, pois, que (tambm) em Hberle est presente no somente a

    ruptura com o monoplio judicial-estatal da interpretao do direito, mas, sim, a rup-

    tura com o sujeito (individualista-solipsista) da modernidade.30 Hberle, com sua(s)

    tese(s), representa uma possibilidade de deixar para trs os velhos atributos do paradig-

    ma subsuntivo-dedutivo. Nesse sentido, ao apresentar a sociedade aberta de intrpre-

    tes, o mestre alemo prope para o direito aquilo que o personagem do livro de Robert

    Musil Der Mann ohne Eigenschaften - aponta como necessrio para um novo modo

    de compreender o mundo: deixar para trs os velhos atributos (entendidos no sentido

    de Eigenschaften).31 Embora Hberle no utilize uma abordagem que tenha na recons-

    truo dos paradigmas filosficos a sua questo central, penso que a sua obra trs

    lume a superao do esquema sujeito-objeto, isto porque, para ele, nem o Estado tem o

    monoplio e nem o intrprete (sujeito). Nada mais, nada menos do que a assuno do

    paradigma da intersubjetividade. E isso quer dizer: caminho para a democracia.

    Numa palavra final: do que foi dito, tem-se que o grande desafio da contempora-

    neidade a construo de mecanismos para no somente estabelecer as bases de como29 Cf. HBERLE, Hermenutica, op.cit.30 Para se ter uma ideia da importncia das teses de Hberle no Brasil e no mundo, veja-se o importante

    texto A influncia do pensamento do pensamento de Peter Hberle no STF, de Andre Rufino do

    VALE e Gilmar Ferreira MENDES, Consultor Jurdico, Abril de 2009, disponvel em http://www.-conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal.

    31 A referncia aos atributos (Eigenschaften) uma pardia grande obra de Robert Musil, DerMann ohne Eigenschafter. Com efeito, a personagem principal da obra de Musil representa o homemque, depois da crise do fundamento e da perda da arch que sustentava o mundo atravs da (teo)filo-sofia, precisa colocar, por si mesmo, o sentido desse mundo. Vale dizer: trata-se do homem que, tendo

    perdido (ou se libertado) as estruturas de fora que lhe conformavam sentido, precisa passar a realizaressa tarefa por si mesmo. No contexto do livro esse homem, habitante dos anos 20 do sculo XX, pre-cisa moldar sua individualidade em meio imposio do coletivo bem moda na poca num con-texto em que nenhuma qualidade podia ser a ele atribuda. A pardia contida no texto oportuna, umavez que Hberle, com sua Sociedade Aberta, procura, ao seu modo popperiano, libertar-se da archopressora oriunda das velhas qualidades/atributos e, ao mesmo tempo, afirmar uma individualidadeterica em meio ao coletivismo predominante no contexto da dogmtica jurdica atual. Claro que a va-lidade um atributo do direito; s que um atributo autntico (legtimo). Os atributos que devemser deixados para trs so aqueles que se pretendem monopolistas da interpretao do direito (e domundo).

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    se interpreta, mas, tambm e principalmente, construir as condies para desvendar os

    mistrios acerca de como se aplica (isto , como se decide). Essa tomada d