Alain Ehrenberg__vincent Descombes__o Cérebro «Social» -- Quimera Epistemológica e Verdade Sociológica

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    O crebro social

    Quimera epistemolgica e verdade sociolgica

    Alain Ehrenberg*

    Como nosso crebro decide que um algum nosso amigo, nosso cnjuge,nosso filho, ou um estranho?

    Alain Berthoz, la Dcision, 2003

    s vezes temos a impresso de que a psicologia (universitria), emcomparao a outras prticas que ns chamamos de cincias, nos diz menosdo que j sabemos. Como se o que a diferenciasse da fsica, ou mesmo daeconomia, por exemplo, no fosse a falta de preciso ou de capacidade depredio, mas o fato de no saber o usar o que jsabemos sobre os sujeitos

    que ela trata.Stanley Cavell, les Voix de la raison. Wittgenstein, le scepticisme, lamoralit et la tragdie, 1979

    Duas razes conduzem o socilogo a se interessar pelas neurocincias. Em primeiro lugar,as neurocincias, as cincias cognitivas e, de modo mais geral, o naturalismo conhecem hoje umadifuso social indita: as relaes corpo-esprito-sociedade saram das discusses entre especialistaspara se tornarem um assunto de preocupao comum por intermdio do sofrimento psquico e dasade mental. Em seguida, a subjetividade, as emoes e os sentimentos morais so uma questotransversal biologia, filosofia e sociologia e so um tema estratgico: encontraremos neles osegredo da sociabilidade humana1.

    As concepes naturalistas comearam a impregnar a sociedade, e no somente apsiquiatria, a partir dos anos 1980, nos Estados Unidos, e dos anos 1990, na Frana. Asneurocincias contriburam para mudar o estatuto do crebro no sentido de que este no maisconsiderado somente na sua dimenso mdica, mas tambm adquiriu um valor social que noexistia h pouco tempo atrs na vida cotidiana, na vida poltica e nas referncias culturais desdeento, os jornais franceses dedicam um nmero especial anual s neurocincias 2, como o fazem hmuito tempo com a psicanlise. Assim, o crebro no mais somente estudado tendo em vista aspatologias mentais e neurolgicas.

    Falamos de crebro social para evocar a idia de que os comportamentos sociais seexplicam essencialmente pelo funcionamento cerebral. O crebro aparece ento como o substratobiolgico que condiciona a sociabilidade e a psicologia humanas.

    Entre o homem biolgico e o homem social, no mais saberamos bem onde estamosatualmente. Este artigo tem por objetivo mostrar que sabemos um pouco mais do que acreditamossaber.

    A noo de crebro social3 nos possibilita utilizar uma proposio de Marcel Mauss:

    * Agradeo a Pierre-Henri Castel e a Marc-Olivier Padis por sua leitura critica.1 The economist (23 de dezembro de 2006) intitulou (ironicamente?) sua Survey on the brain: Who do youthink you are?. 2 Sciences humaines consagra, na sua edio de maio de 2006, um dossi questo: As emoes do sentido vida? A introduo da revista Critique, em fevereiro de 2007, sobre as emoes em histria, sublinha o quanto este

    tema deve s neurocincias e psicologia cognitiva.3 Crebro social, cognio social, neurocincias cognitivas, neurocincias sociais, estas etiquetas designam ames ma coisa: a pretenso de justificar o social a partir do crebro.

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    [...] a totalidade biolgica que reencontra a sociolgica. O que ela observa em todo lugar esempre no o homem dividido em compartimentos psicolgicos ou mesmo emcompartimentos sociolgicos, o homem inteiro 4.

    Substitua compartimentos por fatores (psicolgico, biolgico, sociolgico) e esta frase ganhaum tom muito contemporneo. Em qu a sociologia reencontra o homem total? E o que quer dizer

    homem total? A expresso no deve ser compreendida como um humanismo ou como um convi tea no reduzir o homem a uma mercadoria, mas como uma atitude.O interesse manifestado pelos neurocientistas sobre o social obrigou os socilogos a

    clarificar o corao de sua profisso: qual este nvel da realidade humana que a sociologiadescobriu, nvel cuja ausncia tornaria esta realidade incompreensvel? Procurar responder a estaquesto a exigncia mnima para discusses razoveis entre neurobiologia e sociologia e para sairda confuso na qual nos jogam as guerras do sujeito 5.

    As concepes que eu vou analisar no so as neurocincias em geral, mas o programa forteou grandioso que pretende identificar conhecimento do crebro, conhecimento de si e conhecimentoda sociedade6. Ele deriva de um naturalismo reducionista que no uma abstrao, mas umaquesto prtica, portanto poltica: pensemos nas pareceres coletivos do INSERM sobre sade

    mental7

    , as quais participam da ancoragem deste naturalismo na vida social. Elas desencadearamnossas paixes nacionais: crise do sujeito, novas formas de dominao das classes populares,modelo anglo-saxo, etc. Alm disso, essas concepes tm o grande interesse de serem potentes,no somente nas cincias neurais, mas tambm nas cincias sociais 8. O programa grandioso umaspecto, e talvez o mais importante pe la sua legitimidade, deste retorno do Sujeito que caracterizariao individualismo contemporneo desde a virada dos anos 1980. Ele participa da crena de que oshomens tm,, de sada, um Si-mesmo (aqui, biolgico), ao qual se acrescenta uma relaointersubjetiva. Desaparece, ento, da anlise o mundo e tambm o fato natural de que o homemvive em comum, que a conveno faz parte da natureza humana 9. O paradoxo das neurocincias que, eliminando a questo dos valores, subjetivos demais, e detendo-se exclusivamente sobre osfatos, objetivos, elas reproduzem a iluso individualista a mais comum. Uma reflexo sobre o que

    diferencia (e une) um fato biolgico e um fato social ento uma necessidade prtica.

    Na primeira parte, me interessarei pelo laboratrio, pelo dispositivo e pelos mtodos deadministrao da prova tais como aparecem nos artigos cientficos das grandes revistaspsiquitricas, neuropsicolgicas e biolgicas internacionais. O exemplo escolhido a empatia, portrs razes: 1. as abordagens naturalistas a identificam sociabilidade humana; 2. ela se tornou umobjetivo de ao em psicopatologia, notadamente a partir do caso do autismo e das esquizofrenias, eo assunto se estende aos transtornos do comportamento como a hiperatividade co m dficit deateno: a disfuno da interao social um dos principais sintomas psiquitricos de hoje; 3. ela

    4 M. Mauss, Divisions et proportions des divisions de la sociologie (1927), Oeuvres, 3, p.213.5 Este artigo d prosseguimento s reflexes coletivas e pessoais reunidas nos dossis La sant mentale et ss

    professions,Esprit, maio 2004 e As guerras do sujeito,Esprit, novembre 2004.6 Em O sujeito cerebral (Esprit, novembro 2004), do qual o presente artigo a continuao, eu havia propostodistinguir um programa forte (ou grandioso) e um programa fraco (ou moderado)...7 P.-H. Castel, Psychanalyse et psychoterapies : que sait-on des professions sur lesquelles on veut lgiferer ?Esprit, mai 2004 ; A. Ehrenberg, Malaise dans lvaluation de la sant mentale , Esprit, mai 2006, e Epistemologie,sociologie, sant publique : tentative de clarificat ion ,Neuropsychiatriede lenfant et de ladolescent, no prelo.8 Ver A. Ehrenberg, Sciences sociales, sciences neurales : de la sociologie individualiste la sociologie delindividualisme ( de Mauss Wittgenstein et retour) , em M. Wievorka (sob a direo de), les Sciences socieles enmutation, Paris, Ed. Sciences humaines, 2007.9

    Ver Stanley Cavell, les Voix de la raison, Wittgentein, le scepticisme, la moralit et la tragdie (1979), trad.Fr. S. Laugier et N. Balso, Paris, Le Seuil, 1996, chap. 5, Le naturel et le conventionnel . A analise de Cavell,seguindo o exemplo de Wittgens tein, permite ultrapassar as ingenuidades do debate natureza/cultura.

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    o objeto de numerosos trabalhos sobre o que chamamos de teoria do esprito, que uma teoria dasrelaes entre estados mentais: ela designa o conjunto dos processos pelos quais cada um postula,no outro, a existncia de estados mentais internos10. Na segunda parte, proporei um argumento paramostrar que a naturalizao da subjetividade, se ela pretende fazer uma neurocincia social, que anica coisa que eu contesto aqui, pura e simplesmente uma teoria mgica da cincia. Na terceiraparte, indicarei em qu o naturalismo de hoje no somente um problema de verdade e de erro, no

    somente um problema de epistemologia. Ele tambm faz parte de uma atitude global na sociedadede escolha e de iniciativa individual na qual nos vivemos. Inserindo-se em um estilo de ao emforte desenvolvimento e ultrapassando amplamente a psiquiatria, preciso apreender mais dos queos efeitos ideolgicos das neurocincias: seu mago de racionalidade.

    Portanto, o caso de tratar tambm do naturalismo na vida social de hoje, o naturalismocomo idia social: com efeito, no somente uma questo filosfica, ele igualmente um elementorepresentativo da sociedade contempornea, ele faz parte de um esprito comum.

    As neurocincias afetivo-cognitivas11 desenvolvem a idia segundo a qual se pode explicarmelhor o lao social a partir de suas bases neurobiolgicas naturais do que partindo de um ponto devista sociolgico. Eu gostaria, ao contrrio, de mostrar que damos conta melhor das emoesligando-as instituio social da qual elas so indissociveis. Sendo a capacidade de agir por si

    mesmo como indivduo autnomo a condio da socializao bem sucedida, o controle da inibio,da vergonha, da culpa, da angstia ou da depresso so questes essenciais da sociabilidadecontempornea. Seus transbordamentos no indivduo consistindo em obstculos a um estilo de aoque consiste em agir por si mesmo na maior parte das situaes da vida, tal controle est no centrode nossa sociabilidade da autonomia, na qual a escolha e a iniciativa individuais impregnam a vida.Eles desregulam a ao pela inibio (como na depresso) ou pelo excesso (como nas adices). Ospares estimular/acalmar e aderir/desaderir polarizam a ateno. A invalidao da autonomiaindividual freqentemente formulada em termos de sofrimento psquico, mas tambm em termosde desvio. A seduo que o naturalismo exerce na sociedade (pensemos nas declaraesimprudentes de Nicolas Sarkozy, durante a campanha presidencial, sobre o carter inato dapedofilia) participa de uma mudana geral da sociabilidade na qual as competncias ou as

    capacidades so um elemento chave da boa socializao. Ela acompanha tambm uma conceponova de igualdade que consiste menos em proteger as pessoas do que em coloc-las em condiesque lhes permitam apreender as oportunidades.

    Freud havia definido trs profisses impossveis: governar, educar, psicanalisar. Essasprofisses so impossveis no sentido de que visam fazer do ser humano, que o objeto dainterveno, o agente de sua prpria mudana. Minha hiptese que ns ass istimos a generalizaodestas profisses visando a fazer do paciente (mas tambm do cliente, do usurio, dodesempregado, do trabalhador) o agente de sua prpria mudana. Veremos que as neurocincias sosua verso cognitiva.

    Quimera epistemolgica:a empatia no laboratrio de neurocincias

    Hoje, o crebro no mais compreendido como um rgo nem como uma mecnica, nomais numa perspectiva estreitamente localizacionista, mas como um sistema evolutivo em constantetransformao cuja funo a antecipao12 ou o reconhecimento 13. Alain Berthoz, por exemplo,

    10 Leslie Brother, The social brain : a project for integrating primate behavior and neuropsychology in a newdomain , Concepts in Neuroscience, I, 1990.11 Os afetivos se opem teoricamente aos cognitivos, mas na literatura nurocientifica, eles so freqentementemisturados.12

    A. Berthoz, le Sens du mouvement, Paris, Odile Jacob, 1999 e la Dcision, Paris, Odile Jacob, 2003. Jencontramos esta concepo em Alexander Luria, que comeou sua carreira na Rss ia nos anos 1920.13 G. Edelman, la Biologie de la conscience, Paris, Odile Jacob, 1992.

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    desenvolve a idia de que o crebro um simulador da ao, um gerador de hiptese que antecipaas conseqncias da ao e cuja propriedade fundamental a deciso. Imagem cerebral, biologiamolecular, gentica, bioinformtica, estas inovaes conduzem a propor uma biologia do esprito,isto , uma biologia do homem agente e pensante que se demonstra experimentalmente emlaboratrio, onde os pesquisadores associam as funes mentais as mais diversas ao funcionamentode circuitos de clulas nervosas localizadas nas reas cerebrais.

    Em uma obra consagrada empatia, Alain Berthoz e Grard Jorland explicam como osprogressos das neurocincias permitiro resolver numerosos problemas sociais e polticos:

    Transtornos do desenvolvimento psquico, imageria cerebral e teorias do esprito constituem,assim, o contexto no qual se desdobram as pesquisas atuais sobre a empatia. Mas, se se quiserum contexto mais geral ainda, pode-se convocar sem dificuldade o fim das grandes ideologiasde massa e a dobra sobre o entre si do homem contemporneo. Em uma palavra, as classessociais foram substitudas pelas redes de relaes; o fundo comum de valores, de crenas e depercepes que cada um divide e que lhe faz reconhecer imediatamente no outro uma rplica desi mesmo foi substituido pelo face-a-face das subjetividades deixadas a si mesmas. A afinidadede destino d novamente lugar diferena. ento que a questo da empatia surge emurgncia 14.

    Estas novas pretenses de dar conta do homem social so um elemento essencial dapopularidade indita das abordagens naturalistas, de revistas acadmicas internacionais imprensapopular, passando pelas revistas ilustradas de Antonio Damsio a David Servan-Schreiber. Ocrebro social est a um passo de se tornar o elemento chave da compreenso da sociabilidadehumana. Da, para alguns, uma concorrncia e, para outros, uma complementaridade (dependendode uma interdisciplinaridade) entre neurocincias e sociologia para a explicao de fatos sociais 15.Mas, enquanto no clarificarmos no que consiste um fato social em relao a um fato biolgico, notemos nenhuma chance de compreender que no h nem concorrncia nem complementaridade, masdois tipos de trabalhos diferentes.

    As pesquisas das quais irei falar se interessam pelo substrato biolgico da cognio, dasemoes e da ao, assim como pelas relaes entre estes trs conjuntos.A empatia16 definida como a capacidade, prpria espcie humana, de se colocar no lugar

    do outro, de ser capaz de partilhar da perspectiva subjetiva do outro. Este sentimento moral decisivo, pois ele comanda a distino si-mesmo/outro17, a presena ou a ausncia do altrusmo, daconfiana e da mentira, a capacidade de tomar de decises 18. Ela (a empatia) se tornou um tema

    14 A. Berthoz e G. Jorland (dir.), lEmpathie , Paris, Odile Jacob, 2004, p. 8-9.15 Com a dominao das explicaes bioqumicas, um dos assuntos maiores do campo da doena e da sadementais , sem dvida, de repensar as relaes entre biologia e sociedade, assim como seus termos associados, como oesprito e o corpo. [...]. As conseqncias da vida moderna para os indivduos [...] so definidas e tratadas de modocrescente atravs de construes de doena fundadas sobre as caractersticas neuroqumicas dos individuos, S. J.

    Williams, Reason, emotion and embodiments: is mental health a contradiction in terms?, Ibid., vol. 22, n5, 2000,p.565. J. Busfield, Introduct ion: Rethinking the sociology of mental health, ibid., vol. 22, n5, 2000. Ver tambm, V.James e J. Gabe (editores), Health and the Sociology of Emotions, Oxford, Cambridge, Blackwell Publishers,Sociology of health and illness monographies series, 1996.16 Ponho de lado a histria da empatia em psicanlise. At ualmente, o tema um verdadeiro saco de gatos. Ver

    principalmente, G. W. Pigman, Freud and the history of empathy, International Journal of Psycho -Analysis, n 76,1995; lEmpathie, Revue F ranaise depsychanalyse, juillet 2004.17 Entre os inumeros trabalhos sobre a distinoo si-mesmo/outro, ver, por exemplo, C. Calarge, N; Andreasen eD. S. OLeary, Vizualizing hox one brain understands another: a PET study of of theory of mind , The AmericanJournal of Psychia try, 160, 2003. Para uma literatura sobre os precessos de referncia si-mesmo, G. Northoff et al.,Self-referential processing in our brain A meta- analysis of imaging studies on the self, Neuroimage, 2006(encontrado no s ite Sciencedirect.com antes da publicao).18 Sobre a cooperao altruista, ver R. Boyd, H. Gintis, S. Bowles, e P.J. Richeson, The evolution of altruistic

    pun ishment, Proceedings of the National Academy of Science , vol. 100, n6, 18 maro 2003. Sobre a deciso: A. G.Sanfey et al., The neural basis of economic decision-making in the ultimatum game, Science, vol.300, 13 junho 2003e um importante artigo publicado em uma prestigiosa revista internacional de economia, C. Camerer, G. Loewenstein e

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    estratgico em neurocincia com o objetivo de testar hipteses filosficas sobre as relaes entre oesprito e o crebro, a partir de duas linhas diferentes: a primeira vem da patologia e concerne aoautismo, a segunda vem da evidenciao, pela imageria cerebral em 1995, do que os pesquisadoresem biologia molecular chamaram de neurnios-espelho.

    O autismo foi redefinido sob um plano diagnstico. Designando, desde os anos 1940, aspsicoses infantis associadas a retardos mentais e, tendo sido alargado at incluir os autistas de alto

    nivel (Asperger), sendo o critrio diagnstico maior justamente a incapacidade de se colocar nolugar do outro, a dificuldade de distinguir si-mesmo/outro e a falta de competncias sociais, oautismo aparece, hoje, como uma patologia da interao social19. Isto explica a incapacidade dosautistas de dissimular ou de compreender que mente-se: esses dficits caracterizam a ausncia deteoria da mente nas pessoas atingidas por uma sndrome autstica, em outras palavras, adificuldade de perceber a intencionalidade das aes do outro em todas as circunstncias. Estasteorias e estes conceitos so estendidos s esquizofrenias, onde os problemas neurocognitivos(ateno, memria, etc.) so objeto de pesquisas intensas desde 1980.

    Os neurnios-espelho so definidos como um sistema neuronal descoberto, a princpio, nocrtex prmotor dos macacos, depois na rea de Broca, nos seres humanos: este sistema ativadoquando o sujeito observa um gesto finalizado e quando ele faz o mesmo gesto. Acontece o mesmo

    com os movimentos da boca e os sons (neste caso, um sistema auditivo que ativado). Aconcluso tirada desta descoberta mostra que a percepo e a ao tm um mesmo substratobiolgico. A partir da, pesquisadores e filsofos levantaram a hiptese fascinante de que haveria,nestes circuitos, a base biolgica da cognio social, porque esses neurnios materializam em seuprprio crebro o que se passa na cabea de um outro 20. A relao social se tornou um assuntobiolgico decisivo.

    Administrao da prova

    Tomemos os trabalhos de Jean Decety sobre a empatia, freqentemente tratada com asimpatia21. Este pesquisador de reputao internacional lanou em 2006 uma revista acadmica detitulo ambicioso:Neurocincia social. Nos debates internos, de abordagens naturalistas, ele defendeuma teoria simuladora da mente. Eu gostaria de mostrar que esta teoria no pode corresponder auma relao social e, por conseqncia, ela no d conta de nada social.

    Antes de descrever o raciocnio e proceder avaliao, necessrio conceder a essaspesquisas um ponto que elas reivindicam:

    Sobre o plano epistemolgico, a naturalizao da subjetividade, longe de desumanizar apsicologia (clinica e psicopatolgica) como alguns receiam, traz elementos objetivos 22.

    No h qualquer razo para duvidar este humanismo, contrariamente ao que temem tantos clnicos.

    Porm, no o humanismo que est em causa.

    D. Prelec, Neuroeconomics: how neurosciences can inform economics, Journal of Economic Littrature, vol.XLIII,maro 2005, p.9-64.19 o que psiquiatras e neurocientistas chamam de fentipo social do autismo. Ver a revista de literatutaconsagrada a este assunto por A. Klin, W. Jones, F. Volkamar, D. Cohen, Defining and q uantifying the social

    phenotype in autism, The American Journal of Psychiatry, junho 2002, p.895-908.20 O leitor interessado poder ver as discusses entre partidrios da naturalizao da subjetividade (V. Gallese, Go ldman, M. Jeannerod, D. Sperber, P. Jacob, etc.) em www.interd isciplines.org21 Fontes : P. Ruby e J. Decety, Effect of subjective perspective taking during simulation of action : a PETinvestigation for agency , Nature Neuroscience , vol.4, n5, maio 2005; J. Decety, Naturaliser lempathie,

    Lncephale , XXVIII, 2002; J. Decety e T. Chaminade, Neural correlates of feeling sympathy,Neuropsychologia, 41,

    2003; J.Decety, Lempathie est-elle une simulation mentale de la subjectivit dautrui?, em A. Berthoz e G. Jorland(sob a direo de), lEmpathie, op. cit. 22 J. Decety, Natura liser lempathie , art. citado, p.18.

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    O artigo sobre os correlatos neurais do sentimento de simpatia visa compreendercomo ns podemos entrar automaticamente em relao com outras pessoas na vida cotidiana 23.

    Os autores especificam que combinam empatia e simpatia, pois esse dois sentimentos so orientadosem direo aos outros, logo, so suscetveis de desencadear desejos altrustas que permitem entrarem ressonncia com os outros. Esta ressonncia verdadeiramente

    um mecanismo neural distribudo [...] coerente com a noo de representaescompartilhadas que postula que as percepes e as aes compartilham cdigos neurais ecognitivos comuns [reconhecemos aqui a referncia aos neurnios espelho]. De acordo comeste modelo, a percepo de um dado comportamento em um outro indivduo ativaautomaticamente suas prprias representaes do comportamento24.

    Logo, trata-se de provar a teoria da simulao. Notemos aqui ser introduzida uma noo que no estritamente biolgica: a de representao.

    Nesta pesquisa, a implicao de dois circuitos neuronais testada, um para o tratamento dosafetos (ou das emoes) e o outro para o tratamento das representaes neuronais partilhadas (ou da

    cognio) para as aes observadas e executadas, implicadas no sentimento de simpatia em direoa um outro, o que considerado como uma relao social.O dispositivo experimental o seguinte: sete atores semi-profissionais masculinos contam

    primeira pessoa seis histrias curtas cujo contedo seja triste, seja neutro, (ou seja, dois fatoresnarrativos) e devem mostrar trs expresses: feliz, triste ou neutra (ou seja, trs fatores de expressomotora das emoes). As histrias so apresentadas a doze sujeitos masculinos em boa sadepsicolgica e fsica, destros, da mesma idade dos atores, que devem dizer se a histria crvel e se aexpresso facial das emoes congruente com o contedo. A hiptese que o sentimento deempatia destrudo se h uma distoro ou uma inadequao (mismatch) entre a expressoemocional do autor e o contedo da narrativa. O que medido o grau de coerncia ou de distoroentre contedos narrativos e expresses de emoes. Por exemplo, uma histria triste acompanhada

    de uma expresso feliz uma distoro.Os dados registrados so fisiolgicos e comportamentais. As medidas fisiolgicas soefetuadas sobre a condutividade da pele, as pulsaes sanguneas e o ritmo respiratrio, atravs deeletrodos postos no corpo. As medidas comportamentais so dadas pela imageria cerebral e pelapsicometria. Para a imageria, um contraste injetado nas veias dos sujeitos que passam por trezescanners de neuroimagem funcional. Para poder medir as variaes do crebro com relao a umanorma, necessrio dispor desta norma (como em epidemiologia, onde h a necessidade de umapopulao-controle). O recurso correspondente em neuroimagem um crebro mediano, aqui, o doMontreal Neurological Instiute (MNI), elaborado a partir dos crebros de 152 sujeitosrepresentativos da populao geral (a bioinformtica tem aqui um papel primordial25). Os scannersdos sujeitos da experincia so realinhados e normatizados em funo do calibre do MNI.

    O comportamento medido atravs de duas questes: voc achou o humor desta pessoatriste ou feliz? Voc achou crveis as expresses desta pessoa? Cada sujeito v um mesmo ator duasvezes, uma vez para cada tipo de histria e a cada vez com um humor diferente, de modo que osujeito veja e oua todas as combinaes possveis (contedo triste, fisionomia feliz; contedotriste, fisionomia neutra; contedo triste, fisionomia triste etc.). As respostas so cotadas sobre umaescala psicomtrica da empatia. Os sujeitos estudados so representativos em referncia ao Manual

    for the Balanced Emotional Empathy Scale (BEES). A ativao de reas cerebrais medida pelos

    23 J. Decety e T. Chaminade, Neural correlates of feeling of sympathy, art.citado, P.127. 24 Ibid., P.128.25 O conceito de crebro mdio deveria ser objeto de uma anlise que eu no posso fazer aqui. Ver Anne

    Beaulieu, particularmente Voxels in the brain: neuroscience, informatics and changing notions of objectivity, SocialStudy of Science, 31/5, outubro 2001 e From b rainbank to database: the informational turn in the s tudy of the brain,Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Science , 35, 2004.

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    fluxos sanguneos (rCBF). Ns temos, ento, uma referncia psicomtrica e cerebral da populaogeral.

    Os resultados so mostrados em tabelas de dupla entrada, permitindo que todas ascombinaes entre os dois contedos narrativos e os trs tipos de expresses sejam feitas. Umaprimeira tabela apresenta os efeitos do contedo narrativo triste sobre as regies cerebrais; umasegunda tabela apresenta os efeitos da expresso motora da emoo por parte dos atores, com duas

    oposies, triste/neutra e feliz/neutra; e uma terceira tabela combina os contedos narrativos e asexpresses das emoes.A medida da empatia e da simpatia objetivas combina trs procedimentos em um dispositivo

    em uso h dcadas em psicologia experimental (medidas psicolgicas e testes psicomtricos). Anica novidade a inovao tcnica de imagem cerebral que tem a grande vantagem de ser no-invasiva: ela desmultiplica a potncia ilustrativa do dispositivo tradicional da psicologiaexperimental.

    A imageria torna objetivos os efeitos principais do contedo narrativo e da expressoemocional: algumas regies so ativadas pela expresso emocional triste, outras pela expressofeliz, uma outra regio ativada pelas duas emoes. Existem, ento, regies especificamenteativadas pelo contedo narrativo, pelo fato de escutar histrias tristes, notadamente a amgdala e

    seus crtex adjacentes, o que coerente com seu papel no reconhecimento das emoes. Regiesso afetadas pela expresso emocional, independentemente da narrativa: as expresses tristes ativamreas corticais diferentes, mas similares do ponto de vista funcional. Existiriam, ento, ligaesentre simulao e emoo. Em revanche, as expresses felizes so associadas ao crtex visual. Ogiro frontal inferior esquerdo afetado em duas regies por dois fatores.

    Esta anlise mostra que a parte anterior do giro frontal inferior est ligada semntica enquantoa parte posterior est ligada fontica26.

    No que concerne interao entre os contedos e as expresses (distoro ou no), existe um efeitoespecfico da distoro em duas regies, uma associada ao tratamento de conflitos e outra sensrio-

    motora.Em resumo, os contedos cognitivos e as expresses motoras recrutam redes perfeitamente

    observveis nas reas cerebrais graas aos instrumentos e mtodos empregados.A explicao final sempre no condicional, ela permanece hipottica. Quando as reas

    cerebrais implicadas em tal ou qual comportamento so estudadas, o pesquisador geralmenteacrescenta: O mecanismo poderia ser o seguinte, quer se trate de uma simulao mental do pontode vista subjetivo do outro ou de auto-referncia.

    Podemos perfeitamente aceitar os resultados destas experincias, mas contestar suasconcluses sociolgicas e filosficas. Quando Decety escreve que estes estudos mostram o papeldo crtex parietal inferior na distino entre si- mesmo e o outro, o que significa a operaodesignada por papel? Esta rea cerebral o agente causal? ela o mecanismo neurofisiolgicoimplicado, derivado, necessrio para enfrentar esta distino? ela a condio biolgica? Asexpresses empregadas pelos pesquisadores so: papel, implicao, sustentculo, base, apoiarsobre. Os mtodos so descritos da maneira mais precisa possvel, mas as palavras de valorinterpretativo empregadas nas discusses so vagas. Alm disso, necessrio ressaltar que nenhummecanismo fisiolgico foi descoberto por produzir experimentalmente a simpatia: so correlaes,no mecanismos; e correlaes, a pesquisa encontra todos os d ias. A constatao de uma correlaono suspende a ambigidade entre: quando eu fao X, meu crebro est num estado Y e se eufao X, porque meu crebro esta num estado Y, isto , entre alguma c oisa que acontece em meucrebro quando eu fao uma ao e alguma coisa que eu fao quando ajo porquemeu crebro asua causa.

    26 J. Decety e T. Chaminade, Neural corre lates of feeling sympathy , op. cit., p.134-135.

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    A concluso sublinha que o processo [descrito no artigo] prximo de um mecanismo docuidado que est no corao de nossa capacidade para o altruismo. Mecanismos do cuidado,congeneres tendo interaes sociais: de um lado, estamos na naturalizao da empatia e, de outro,numa concepo intersubjetiva (existem indivduos aos quais se acrescentam relaes ).

    A pessoa, a funo e a instituio

    Eu proponho um argumento contra a afirmao de que qualquer coisa de social foidescoberta pelas neurocincias, o que implica precisar o que a palavra social significa.

    Partamos de um exemplo: quando Naipaul chega na ndia pela primeira vez ao longo dosanos 196027, ele est doente e morto de sede em seu canto. Sendo o indivduo moderno que , ele seespanta e se revolta, pois ningum o olha nem vem em socorro lhe trazendo algo para beber. Porqueningum se ps em seu lugar? Falta simpatia ou empatia aos indianos? Eles teriam reas cerebraisdisfuncionais que os deixariam cegos para o Outro? Dar uma resposta positiva seria abordar a

    sociedade indiana em relao ao homem natural e no ao homem social

    28

    . A diferena entre ohomem natural e o homem social que um hbito, costumes, instituies so indispensveis para sefalar do segundo. Do ponto de vista do homem natural (na realidade uma projeo e umaindividualizao do indivduo moderno), esta situao moralmente indefensvel. Do ponto devista do homem social, isto , do ponto de vista do socilogo, necessrio entender que a sociedadeindiana uma sociedade de castas organizada por referncia hierarquia do puro e do impuro. Ovalor supremo preservar a pureza e a diviso do trabalho organizada em funo desta hierarquiado puro e do impuro. O que aconteceu a Naipul no uma falta de empatia ou de simpatia, mas uma

    situaona qual ele no encontrou nenhum indivduo pertencente casta apropriada para lhe serviruma bebida.

    Na sociedade indiana tradicional de castas ou nas sociedades de linhagem da frica negra,

    no nos dedicamos ao outro. Em revanche, este pode ser o caso na sociedade democrtica e mesmo um trao de seu estado social. Aqui, o autor-chave Tocqueville:

    Os homens que vivem nos sculos aristocrticos esto [...] quase sempre ligados estreitamente aqualquer coisa que posta fora deles [...]. A noo geral do semelhante obscura e [...] no seimagina em se dedicar a ele pela causa da humanidade; mas muitas vezes se sacrifica por certoshomens [de estatuto hierrquico superior]. Nos sculos democrticos, ao contrrio, onde osdeveres do indivduo relativamente espcie so bem mais claros, a dedicao a um homem setorna mais rara: a afinidade das afeces humanas se afrouxa e se desfaz.

    O individualismo foi criado pela igualdade e constitui uma doena [...] natural ao corpo social nos

    tempos democrticos. O individualismo uma criao social que desvaloriza a vida social, umacaracterstica estrutural de nossas sociedades. A democracia americana combate o individualismo dediferentes maneiras, mas particularmente trs se sobressaem: a liberdade poltica, as associaes e areligio. Elas so as artes da vida comum. Na democracia, tambm naturallembrar ao homem queele vive em sociedade, mais do que em uma sociedade de descendncia que o faz lembrar de seusancestraisestes lembram de si mesmos, por exemplo tendo um descendente.

    27 V. S. Naipaul, lIllusion des tnbres. Une e xper ience de lInde, Paris, Un ion Gnerale dditions, 1989. 28

    Eu uso um artigo de Vincent Descombres que distingue, entre os filsofos, os que s precisam de um homemnatural, como Quine, e os que precisam igualmente de um homem social, como Vico e Wittgenst ein. V. Descombes,Lide dum s ens commun,Philosophia Scientoe, vol.6, n2, 2002.

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    As instituies livres [...] lembram sem parar e de mil maneiras a cada cidado que ele vive emsociedade. [O objetivo ] de multiplicar ao infinito, para os cidados, as ocasies de agir emconjunto e de lhes fazer sentir todos os dias que eles dependem uns dos outros 29.

    A religio e a liberdade poltica so instituies que tiram os homens das sociedades democrticasde si-mesmos, lhes mostrando concretamente que eles dependem uns dos outros e lhes propondo

    referncias maiores do que eles mesmos s quais podem se identificar e se dedicar. por isso que ohomem democrtico subserviente e dedicado, assim como disse Tocqueville. A piedade e asimpatia pelo semelhante, ao qual temos o hbito de chamar de o outro (ou o Outro), so um trao

    socialda sociedade individualista igualitria, e no um trao naturalda espcie humana. A simpatiaou a empatia pelo outro, no sentido de qualquer ser humano, no um mecanismo afetivo-cognitivouniversal (como o desejo sexual, por exemplo), mas um valor que singulariza estasociedade.

    Quando o neurocientista escreve que uma histria triste acompanhada de uma expressofeliz uma distoro, ele no diz algo falso, mas algo vazio: contar uma histria triste acontecidaao seu inimigo intmo com uma expresso feliz, eis a um ato totalmente coerente. A incompreensode uma tal possibilidade (e de tantas outras, como a teimosia afetuosa, as segundas intenes etc.)resulta da concepo intersubjetiva da ligao social: como se existisse eu (o sujeito da

    experincia) e voc (o ator contando suas histrias), mas no ele, no um mundo do qualfalamos, no um mundo que compartilhamos, no qual vivemos e agimos. Nada conecta ospersonagens, o dispositivo experimental no um mundo comum.

    Mas, responder o neurocientista, este mundo do qual voc fala uma quimera, ele no temnada de substancial, antes uma superestrutura e o que conta a base material (biolgica) e, almdisso, dispomos de uma explicao slida pela sua simplicidade:

    Os mecanismos que permitem a cooperao, o altrusmo, a empatia, assim como os quepermitem a coero, a impostura ou a manipulao dos congneres trouxeram vantagensadaptativas para animais que vivem no centro de grandes grupos30.

    Quaisquer que sejam as orientaes no centro das correntes naturalistas, as vantagens adaptativas dacooperao, por serem funcionais, so a causa da sociedade 31. Falar da sociedade (ou de grandesgrupos) uma miragem, a sociedade uma abstrao cujo uso no conduz a nada senogeneralidades que no explicam nada. Por exemplo, que uma sociedade seja feita necessariamentede controles e de liberaes. Pois o problema sempre prtico: trata-se de apreender corpus decrenas, de prticas, de costumes que permitam descrever porque estas pessoas (e no as pessoas)fazem o que fazem e crem no que crem. O que falta ao naturalismo reducionista levar emconsiderao os valores que so sempre especficos a uma forma de vida.

    Pois esta perspectiva funcionalista repousa sobre um dualismo fato/valor 32: os fatos soobjetivos, portanto dependem da cincia; e os valores, sendo objetivos, dependem da opinio. Ora, acaracterstica do fato social precisamente a opinio no ser exterior ao objeto, mas, bem ao

    contrrio, ser uma propriedade. Por exemplo, quando falamos da ausncia de culpabilidade nodistrbio de conduta ou, ao contrrio, do excesso de culpabilidade na melancolia e temosexcelentes razes para faz-lo -, no fazemos uma avaliao, no julgamos, no atribumos umvalor a um fato sem o qual no haveria nenhum fato? Se ns no falssemos do excesso de culpa namelancolia ou da falta de culpa nos transtornos de conduta, nem o fato melanclico nem o fato do

    29 A. de Tocqueville, la Dmocratie en Amrique, vol.2, Paris, Garnier-Flammarion, 1981, p.126-134.30 J. Decety, Natura liser lempthie , op. cit., p.12.31 Sem empat ia, nada de psicologia evolucionista. Por uma critica deste evolucionismo filosfico enquanto usometafsico da teoria da evoluo, ver H. Putnam, Does evolution explains representation?, em Renewing Philosophy,Harvard University Press , 1992. Notadamente o s ofis mo retrospectivo: escolhe-se uma capacidade hu mana e

    demons tra-se (retrospectivamente) que ela se explica por s eleo natural.32 H. Putnam, Fait/valeur : la fin dun dogme et autres essais, traduo para o francs M. Caveribre e J.-P.Cometti, Paris, Tel-Aviv, Ed. De lclat, 2004.

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    transtorno de conduta existiriam (eles no teriam valor enquanto fatos). Abordar essas questescomo fatos objetivos reduzidos suas funes no permite compreender o fato de que um juzocomo essa criana difcil significa, numa sociedade de linhagem, ele esta possudo por umafora (um ancestral ou um bruxo33) e, na sociedade individualista igualitria, lhe falta empatia,porque, no primeiro caso ,estamos num mundo onde a perseguio que regula as relaes inter-individuais (o mal vem de fora) e, no segundo caso, a culpabilidade deixa cada um confrontado com

    sua responsabilidade de agente real ou potencial do mal. esta singularidade concreta e significanteque no pode integrar a concepo funcionalista porque o indivduo um organismo que ela analisacomo um fenmeno e no como uma ao.

    Para integrar esta trapalhada, necessrio substituir a funo pela significao. EdwardEvans-Pritchard sublinha este ponto com um exemplo luminoso:

    Doze jurados decidem sobre a culpa de um indivduo e o juiz o condena a uma determinadapena. Os fatos que tm significao sociolgica nesse caso so: a existncia da lei, as diversasinstituies jurdicas e os processos legais que permitem sua aplicao quando h delito; e aao da sociedade poltica que, por intermdio de seus representantes, consiste em punir ocriminoso. No desenrolar deste processo, os pensamentos e sentimentos do acusado, do jri e

    do juiz foram sofreram variaes de acordo com o momento, assim como podem variar a idade,a cor dos cabelos e dos olhos de diversos protagonistas, mas essas variaes no so deinteresse nenhum, ao menos de imediato, para o antroplogo. Ele no se interessa pelos atoresdo drama enquanto indivduos, mas enquanto pessoas interpretando um certo papel nodesenrolar da justia. Por outro lado, para o psiclogo que estuda os indivduos, os sentimentos,as motivaes, as opinies etc., os atores so de primeira importncia e os procedimentosjurdicos no so mais do que secundrios. Esta diferena fundamental que ope a antropologiae a psicologia a ponte para os asnos do ensino da antropologia social 34.

    No nos interessaremos pelos atores do drama enquanto indivduos sentindo toda sorte de coisas,mas enquanto pessoas interpretando um determinado papel, em uma relao social. Este exemplomostra que o sujeito da instituio no um individuo natural, um organismo. Expliquemo-nos.

    No exemplo dado por Evans-Pritchard, ns no nos encontramos na situao de um eventonatural onde o acusado A causa uma ao fsica do juiz B que causa uma ao fsica de convocar osjurados C para o processo, mas de um nico fato, de relao, de relao interna entre A, B e C.Interna quer dizer que consideramos os trs como parceiros, e no congneres (como se diz emneurocincias), em uma relao que faz sistema e sem a qual no h mais parceiros. Uma relaosocial uma relao de complementaridade entre parceiros, ainda que ela se estabelea segundorelaes de fora. Existem, ento, aqui trs indivduos (se aceitarmos contar os jurados como umindivduo), mas um sujeito da instituio: A, B e C so cada um o prprio sistema considerado emum de seus membros35. A do ponto de vista do acusado, B do juiz, C dos jurados, ou C1, C2 etc. decada jurado. isto que Vincent Descombes chama, citando Peirce, uma unidade tradica: o sujeitoda instituio no o indivduo, mas, aqui, a trade. O sujeito da instituio no est em nenhumasociedade, individualista ou no, no o indivduo emprico. Os juzes, os jurados e o acusado socada um o conjunto do sistema da justia do ponto de vista de sua posio no sistema de relaesque eles formam e que a forma adquirida pela instituio da justia. Eles no so indivduos, maspessoas interpretando cada uma o seu papel. Interessar-se pela empatia do acusado no nos descrevenada alm de uma quimera sociolgica. Em revanche, no plano psicopatolgico, podem bem existir

    33 Ver E. e M.- C. Ortigues, dipe Africain, 3a. ed., Paris, LHarmattan, 1984. Os Ortigues opem o o modoromanesco da aventura individual e da culpa interior ao modo trgico da perseguio pelas potencias do destino,P.163.34

    E. Evans-Pritchard, Anthropologie Sociale, Paris, Payot, PBP, 1969 (1950), p.36.35 V. Descombes , les Instiuitions du Sens, Paris, Minuit, 1996, P.256. O argumento des te pargrafo foi tomadode emprstimo de Descombes.

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    boas razes para se debruar sobre os aspectos psiquitricos do dossi jurdico: a imageria cerebralforneceria, e em quais casos, argumentos? A inocncia ou a culpa do acusado, que so estadosinternos para estas neurocincias, seriam vistas como uma leso neurolgica ou como descargasneuronais localizadas que se observada em um sujeito lendo ou sonhando? Veramos ento aparecerum neurodireito36?

    O fato biolgico caracterizado por uma integrao funcional. Ele implica a descoberta dos

    mecanismos especiais que permitem ao organismo manter seu equilbrio se adaptando ao meioexterior. Estes mecanismos so observveis e reprodutveis. O fato biolgico uma relaofuncional37. O fato social uma relao onde a funo est subordinada significao.

    Essas filosofias ou essas sociologias subjacentes s cincias neurais permanecemprisioneiras da oposio entre o indivduo e a sociedade ou entre um interior subjetivo e um exteriorobjetivo. Elas no compreendem que o socilogo no se interessa pelos atores do drama enquantoindivduos que sentem todo tipo de coisas e dos quais importa saber o que tm na cabea, porexemplo, se lhes faltam disposies pr-sociais, mas, sim, enquanto pessoas interpretando um certo

    papel numa relao social. Ora, o conceito de pessoa no separa o indivduo e a sociedade, comotambm no separa um interior subjetivo e um exterior objetivo, ele remete indiretamente umindividuo emprico; ele designa e descreve a possibilidade de ocupar as trs posies pessoais dapessoa verbal38: para poder dizer 'eu falo', necessrio ser capaz de se reconhecer, segundo o caso,como aquele que fala (eu), aquele ao que se fala (tu) e aquele de qual se fala (ele), a no-pessoa ou omundo que forma o membro faltante da correlao de pessoa39. O conceito de pessoa umconceito puramente relacional que permite ocupar todas as posies do discurso e, logo, viver alinguagem serve em primeiro lugar para viver, diz Benveniste. Esta estrutura necessria na medidaem que permite a cada ser humano ter um lugar no mundo, qualquer que seja esse mundo e qualquerque seja esse lugar. O socilogo pode assim superar a dicotomia do indivduo e da sociedade eultrapassar a psicologia que ela acarreta qualquer que seja o tipo de sociedade, ao compreender que

    o fato social no somente uma interlocuo (eu/tu), ele implica a de-locuo (ele) para que o quequer que seja de pessoal possa existir.

    Verdade sociolgica: do laboratrio vida social,Uma mudana no esprito do cuidado

    Denis Forest, na sua sutil Histria das afasias, escreve que a investigao neuropsicolgicano nem necessariamente individualista nem necessariamente solipsista:

    36 Ver D. Mobbs , H. C. Lau, O. D. Jones, C. Frith, Law, responsability, and the brain, PloS Biology, vol.5,n4, abril 2008. Ver tambm J. Rosen, The brain on the stand, The New York Times, 11 de maro de 2007. (n.t.:neurnico jurdico) 37 Eu no posso desenvolver aqu i a distino entre totalidade viva e totalidade social. Georges Canguilhe mresumiu em u ma frmula a diferena entre o todo vivo e o todo social: Para o organismo, a organizao seu fato; paraa sociedade, seu negcio. Seu fato, quer dizer que depend e de leis a serem descobertas, a serem objetivadas; seunegcio, quer dizer que depende de relaes institucionais a serem descritas. G. Canguilhem, La partie et le tout dansla pense biologique (1966), em Etudes dhistoire et de philosophie des sciences concernant les vivants e la vie, Paris,Vrin, 1994.38 E. Ortigues, Le concept de personnalit , Crit ique, n456, maio 1985, e le Discours et le symbole, Pris,Vrin, 1962, Le concept de personne . Irne Thry detalhou este ponto em la Distinction de sexe. Une nouvelle

    approche de lgalit, Paris, Odile Jacob, 2007.39 E. Benveniste, La nature des pronoms (1956), Problmes de linguistique gnrale, vol.1, Paris, Gallimard,1966, P.255.

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    A rea de Broca no contm mais as palavras do quea rea motora [...], no contm o gesto damo; ela permite, em revanche, programar o gesto intencional de articular tal frase e elacontribui tambm para detectar o gesto executado na minha frente apreender sua inteno. Osubstrato material da funo to somente preparar sua realizao num universo de troca40.

    A originalidade de sua abordagem ser naturalista. Mas, o que h para naturalizar sempre algoque foi definido em usos sociais, em prticas humanas dotadas de significao. No universo detroca, quer dizer, no universo de contextos, de hbitos, de costumes, de instituies de sentido,segundo a expresso de Vincent Descombes. este tipo de pista que preciso seguir para ter umachance de compreender qualquer coisa das relaes entre a biologia e a sociologia, e no em umaneurocincia social que pulveriza o fato relacional e significante da vida social.

    o que eu vou tentar especificar agora, o que implica sair da idia de que o social umarelao intersubjetiva, uma relao entre um indivduo e um outro indivduo, onde o indivduo umorganismo.

    A empatia como conceito natural da sociedade , sobretudo, uma variao do mito dainterioridade, em outras palavras, da crena de que encontraremos, numa vivncia interior, osegredo da sociabilidade. Encontramos somente uma coisa: o esprito humano funcionaria no modo

    do esprito autstico que treinado para interpretar ou para simular mentalmente as intenes deoutro para substituir a teoria da mente que lhe falta e compensar os dficits nas competnciascognitivas e sociais que da derivam. Essas competncias lhe faltam, certamente, porque sofuncionais. Funcionais no na sociedade em geral, mas sobretudo nesta sociedade em que vivemosconcretamente e onde existem decises a tomar: e estes so critrios dos quais temos necessidade,no somente de epistemologia41. Isto quer dizer que no basta se contentar em assinalar os errosou as incoerncias das demonstraes experimentais e dos raciocnios conceituais dos partidrios danaturalizao da empatia, assim como os pressupostos no empricos e no experimentais que elesse esforam justamente para demonstrar em laboratrio. A preocupao com a interioridade umsubproduto do individualismo, ou seja, do fato de que nossas sociedades do ao indivduo o valorsupremo42. E as neurocincias afetivo-cognitivas reproduzem nosso imaginrio individualista, mas

    alimentam simultaneamente novas maneiras de agir, elas fornecem os meios de participar de umaforma de vida, a nossa, meios que se devem ser objeto de debates e de avaliao polticos mais doque de polmicas estreis. O crebro social uma quimera. Em revanche, existe uma relaoindireta entre essas concepes to individualistas do crebro 43 e a vida social que passa pelainstituio.

    esta transfigurao de uma iluso epistemolgica em um fato social que eu vou explicar demodo sucinto.

    Quando deslocamos o olhar do laboratrio para a vida real, quando mudamos o nvel deanlise, este treinamento que acabamos de ridicularizar e a teoria da mente que o sustenta ganhamuma coerncia social. Ela tende a uma mudana da instituio psiquitrica, a uma mudana noesprito do cuidado que faz da autonomia do paciente, de uma s vez, o objetivo e o meio da

    abordagem.A mudana institucional que modificou a situao do doente mental, e que a etiqueta sade

    mental designa, o fim da instituio total descrita por Goffman em Asiles44, no incio dos anos1960: o doente mental no est mais no hospital, mas na cidade, ou seja, num meio que exigecapacidades cognitivas (ateno, memria verbal etc.) e sociais que se aproximem ao mximo

    40 D. Forest, Histoire des aphasies, Paris, PUF, 2006, p.78.41 Esta ques to amplamente desenvolvida por Stanley Cavell, les Voix de la raison..., op. cit.42 L. Dumont , Essais sur l individualisme, Paria, Le Seuil, 1983.43 Ver P. Urfalino, Holisme et individualisme : la clarification dne querelle , Esprit, ju illet, 2005.44 E. Goffman, Asiles. tudes sur la condit ion sociale des malades mentaux et autres reclus , trad. fr., Paris,

    Minuit, 1990. Em Goffman, instituio no tem o sentido sociolgico utilizado aqui, mas o da psiquiatria que fala dohospital psiquitrico como uma instituio e da abordagem do paciente na cidade como uma desinstitucionalizao.Este termo designa s obretudo uma desospitalizao.

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    daquelas do homem normal. Na nova configurao, o hospital um elemento de um sistema maisamplo. A questo da capacidade de viver uma vida autnoma passa a ser o centro da questo, o queimplica que a sociabilidade deve ser integrada na abordagem dos pacientes, que ela entra noscuidados45.

    Um novo consenso foi recentemente produzido em psiquiatria: as pessoas atingidas pelaesquizofrenia tm no mais somente os sintomas ditos positivos (alucinaes, delrios) e

    negativos (inibio afetiva, anti-pragmatismo), mas igualmente dficits cognitivos (transtornos daateno, da memria, do planejamento) e dficits funcionais (habilidades sociais e tcnicas, dficitsconcernetens s relaes interpessoais e autonomia social). Os novos neurolpticos (lanados nosanos 1990) tm pouco efeito sobre estes ltimos transtornos - e existem pesquisas para acharcognitive enhancers46 que ajam especificamente sobre esses dficits. razovel propor que essesdficits apaream hoje como um problema crucial porque a situao institucional dos doentesmentais foi totalmente redefinida: a questo da relao social revestida agora por uma importnciadecisiva prtica na abordagem. Logo, a situao que decide sobre o valor social do naturalismo.Estamso lidando com uma mudana na concepo do cuidado em funo dos critrios daautonomia.

    A palavra dficit doravante a palavra-chave da sade mental via psicologia cognitiva e

    neurocincias, de um lado, e nova situao institucional das pessoas atingidas por transtornospsiquitricos, de outro lado. A psiquiatra Marie-Christine Hardy-Bayl, que promove o paradigmacognitivo na Frana, escreve que

    a noo de dficit permanece, na cabea dos leitores, extremamente presa ao modelo lesionalda neurologia. [...] Mas, em psicopatologia cognitiva, corrente se falar em dficit parasignificar a ausncia de um tratamento cognitivo esperado em uma dada tarefa experimental,sem, por isso, ser inscrito num modelo deficitrio da patologia47.

    Mas, na mente do autor, trata-se, antes, de um modelo deficitrio ampliado que necessriocompreender, no relativamente a uma leso, mas a um desvio em relao norma: trata-se, menos

    de tratar a personalidade do doente mental, do que lhe fornecer as competncias funcionais particulares que lhe faltam devido a sua patologia.

    As abordagens cognitivas se inserem nesta concepo do cuidado concretizado pelo quechamamos em psiquiatria de reabilitao psicossocial (RPS): essa hoje uma grande preocupaoda psiquiatria porque a regra que o paciente psictico, cuja patologia geralmente crnica, possaviver na cidade (ou comunidade), e existem timas razes para pensar que melhor para os doentesmentais. Os trabalhos sobre as competncias cognitivas e sociais comearam a ser objeto depesquisas intensivas em psiquiatria nos Estados Unidos, nos anos 1970, quando a desospitalizaoapareceu como um fenmeno importante: o nmero de doentes mentais na comunidade ultrapassouo dos internos desde o meio da dcada. Esses trabalhos correspondem aplicao dos programas decommunity care48.

    O problema ao qual a RPS responde bem formulado em uma obra de 1992 sobre aabordagem cognitivo-comportamental no tratamento de psictico crnicos:

    45 Ver o pargrafo Le grand renversement , em Les changements de la relation normal-pathologique. propos de la souffrance psychique et de la sant mentale ,Esprit, maio 2004, p.144.46 Ver, por exemplo, R. W. Buchananm Important steps in the development of cognitive-enhancing drugs inschizophrenia , The A merican Journal of Psychiatry, vol. 163, n11, novembro 2006. A publiciade dos novosneurolpticos frequentemente d importncia socializao e relao : para um produto do departamento de neurocincia de uma e mpresa farmaceutica, quer dizer renovar o contrato .47 M.-C. Hardy-Bayl, Sciences cognitives et psychiatrie , volution psychiatrique, 67, 2002m p.91.48

    Ver principalmente, D. M.echanic , Mental Health and Social Policy. The Emergence of of Managed Care ,Allyn and Bacon, 1999 (4 edio). Para o estudo de um caso de programa (no Kansas), Ver J.Floerschm, Meds, Moneyand Manners. The Case Management of Severe Mental Illness , New York, Columbia Univeristy Press , 2002.

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    Um certo nmero de psicticos vivendo fora dos muros do hospital psiquitrico v suaexistncia limitada frequentar diferentes instituies do setor, representando uma novacronicidade [...], quando no o abandono ou a recluso domiciliar, uma verdadeira internaoespontnea49.

    Esta formulao certamente encontra consenso entre os profissionais e as associaes de pacientes ede famlias de pacientes. O doente mental est alienado na cidade que aparece como um asilo semmuros (e, logo, no preenche as condies que fazem do hospital um asilo, um refgio), piorando acondio do doente ao invs de lhe fornecer um ambiente favorvel.

    A reabilitao psicossocial revela uma modificao profunda nas preocupaes dosprofissionais cujos objetivos se estruturam [...] em torno demanda dos usurios e de seucrculo, escreve Denis Leguay, na apresentao de um nmero especial de LInformation

    Psychiatrique de 2006, dedicada ao IV congresso do movimento de reabilitao psicossocial, emoutubro de 2005. Os mtodos teraputicos, ressalta ele,

    se tornaram, cada vez mais, aqueles que aparecem como dando maiores chances cura(ousemos!) dos doentes. Derivados da medicina baseada em evidncia ou simplesmente deconsensos, inspirados por uma pesquisa sem a priori, eles consistem em programasdiversificados, compostos por intervenes complementares orientadas em direo aosresultados esperados e medidos no quadro de uma padronizao mundial dos procedimentos,das ferramentas, dos instrumentos de avaliao. Os meios sero os que os pacientes, exercendosua funo de cidados, [...] exigiro [...] tanto no campo sanitrio como no mdico-social parauma melhor qualidade de vida, se possvel, sem desvantagem50.

    O objetivo da RPS de

    permitir pessoa sofrendo de transtornos psiquitricos chegar ao melhor funcionamentopossvel no seu meio escolhido, assim como os meios de atingi-lo (psicoeducao, treinamentodas habilidades sociais, remediao cognitiva, apoio social e familiar, empregos e abrigos

    apropriados51

    ).

    Ora, para escolher, necessrio ser capaz de levar uma vida autnoma. Recentemente,

    a RPS foi enriquecida pela contribuio das cincias cognitivas que mostraram ser umcomplemento precioso de cuidados 52.

    Essas contribuies esto ligadas concepo da esquizofrenia como um transtorno neurocognitivodo desenvolvimento oriundo ou afetando o crebro, com dficits neuropsicolgicos sendoencontrados na maior parte dos pacientes. Eles concernem ateno, memria, aprendizagem, conceitualizao, capacidade de planejamento, de controlar seu prprio comportamento. Estes

    dficits so preditivos de resultados e tem papel importante nas competncias sociais e na vidacotidiana. Eles so fortemente correlacionados aos sintomas negativos que deixam as pessoasincapazes de ter um emprego. A eficcia limitada dos neurolpticos implica o emprego de tcnicasno farmacolgicas e que no so necessariamente a psicoterapia. Essas tcnicas so oriundas

    49 O. Chambon e M. Marie-Cardine, la Radaptation sociale des psychotiaues croniques. Approche cognitivo-comportamentaliste , Paris, PUF, 1992, p.8.50 D. Leguay, La psychiatrie avance avec la rhabilitation , LInformation Psychiatrique, vol.82, n4, abril2006, p.277-278. Sobre a elaborao da escolha de um programa de reabilitao americano, ver A. M. Lovell e S. Cohn, The elaboration of choice in a program for homeless persons labeled psychiatrically disabled , HumanOrganization, vol.57m n1,1998.51

    E. Giraud- Baro, G. Vidon, D. Leguay, Soigner, rabiliter : pour une rformulation de lffre de soins etservices ,LInformation Psychia trique , vol.82, n4, abril 2006, p.282.52 J. Dubuis, La rhabilitation : une problemat ique mondiale , ibid., p.323.

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    primeiramente da neurologia, mas tambm e cada vez mais estudos de psicopatologia experimentalsobre a esquizofrenia53, em laboratrio, a partir do fim dos anos 1970, nos Estados Unidos. Mas nos anos 1990 que este campo verdadeiramente desenvolvido. Qualificativos diferentes soempregados para um mesmo gnero de prticas, sendo as trs principais: a remediao cognitiva, otreinamento cognitivo, a reabilitao cognitiva. O treinamento cognitivo tem por objetivo a melhoradas competncias, ele no uma terapia cognitiva que visa modificar crenas erradas dos sujeitos.

    A remedio cognitiva justamente uma dessas tcnicas modeladas sobre a teoria damente que sai do laboratrio 54. Ela deriva, menos de um reducionismo, do que da inteno damelhora de competncias parciais de uma pessoa global: seja sob o modo compensador, sejarestaurando as funes atingidas por estimulaes cognitivas (da memria, da a teno, de processosde contextualizao etc.). As disfunes cognitivas so assinaladas graas a testes psicomtricos eaos dispositivos de psicologia experimental: as performances do sujeito so avaliadas por umatarefa, depois se intervm para remediar a insuficincia, seja agindo diretamente sobre osprocessos em questo, seja tendo que desenvolver competncias alternativas55. Deste ponto devista, no h nenhuma contradio com uma abordagem psicodinmica da doena mental.

    Nesta nova situao do doente mental, a estigmatizao se torna um problema e a auto-estima, o alvo, quando no tinham a menor importncia num quadro de uma abordagem hospitalo-

    centrada. A estigmatizao um obstculo socializao, logo, ao cuidado do paciente quenecessita de auto-estima e de reconhecimento para poder viver uma vida autnoma (em qu a auto-estima poderia ser uma categoria prtica no hospital?) num ciclo virtuoso que melhore seussintomas. Reconhecer que a doena cria uma limitao psquica representa, ento, uma estratgiaadequada quando se trata de ir mais longe do que um ambulatrio hospitalo-centrado: umaverdadeira integrao da vida social que seja a mais prxima possvel da de um indivduo normal. Areabilitao psicossocial , segundo Grard Massm, presidente da Misso Nacional de apoio emsade mental, um meio de levar em conta

    evolues importantes das aspiraes dos pacientes, eles as assumindo como tais ou no. Novasgeraes de usurios e de seus prximos aceitam cada vez menos uma marginalizao [...]. O

    desejo de valorizar o mximo possvel um potencial mantido se tornou o corolrio ntimo daauto-estima.

    Os doentes mentais, saindo do hospital, se tornaram indivduos modernos. Mass estima que amaior parte das experincias estrangeiras mostra que dois teros dos pacientes psicticos crnicospodem sair do hospital.

    A maior parte destes pacientes no tem melhora em seus sintomas psiquitricos pelo fato de suasada, mas suas habilidades sociais, sua rede de vizinhana, sua qualidade de vida lhe permitemviver em ambientes claramente menos restritivos que o hospital56.

    Estamos a numa igualdade da autonomia consistindo em abrir o leque de escolhas e faz-lo demodo a permitir que os indivduos aproveitem as oportunidades.

    53 E. W. Twamley, D. V. Jeste e A. S. Bellack, A review of cognitive training in schizophrenia ,Schizophrenia Bulletin, 29 (2), p.359-382, 2003, A. S. Bellack, J. M. Gold e R. W. Bucharan, Cognitive rehabilitationfor schizophrenia : prob lems, prospects, and strategies , Schizophrenia Bulletin, 25 (2), p.257-274, 1999.54 Para um dos primeiros estu dos sobre os efeitos da remediao cognitiva sobre a ativao cerebral, ver T.Wykes et al., Effects on the brain of a psychological treatment : cognitive remediat ion therapy. Functional magneticresonance imaging in schizophrenia , British Journal os Psychiatry, 181, 2002. Acabou de ser publicado : S. R.McGurk, E.W. Twamley, D. I. Sitzer, G. McHugo e K. T. Mueser, A meta-analysis of cognitive remediation inschizophrenia , The American Journal of Psychiatry, 164, dezembro 2007.55

    N. Franck, Rmed iation cognitive , La Lettre du psychiatre , dezembro 2005, p.17.56 G. Mass, Pour une rabilitation sociale la franaise , Linformation psychiatrique, vol.62, n4, abril2006, p.292.

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    Ainda necessrio que as oportunidades existam. O problema , ento, de poltica pblica: afalta de meios para promover eficazmente essa concepo, por exemplo, os apartamentosteraputicos, gritante. Infelizmente, no dispomos de nenhum tat de lieux57. Nenhuma poltica depesquisa foi proposta sobre esses problemas cruciais foi proposta. E se os poderes pblicospublicaram numerosos relatrios em uma quinzena de anos, foi certamente mais sob o modonormativo do que descritivo.

    A verso cognitiva das competncias impossveis

    A chave das relaes entre neurocincia, vida social e abordagens deve ser pesquisada nocomo um mecanismo sinttico quimrico ligando o biolgico, o psicolgico e o social (pois isto esmagar, umas sobre as outras, dimenses epistemolgicas irredutveis ao consider-las comofatores), no mais do que como um novo controle social que se chamaria o biopoder, mas emtermos de estruturas, de sistemas de relao onde necessrio levar em conta a coerncia. Eu creioque, seguindo tal abordagem, a de Mauss, podemos relativizar as guerras do sujeito e os conflitosintelectuais estreis (naturalismo reducionista contra construtivismo ps- foucaultiano) em benefcio

    de uma reflexo menos metafsica e mais poltica.No podemos compreender a insistncia sobre a empatia, a tomada de deciso, as

    competncias etc. se no considerarmos nossos novos costumes nem a mudana de esprito dainstituio. A partir da, podemos descrever como a inovao cientfica e tcnica, as concepes demente e os modos de vida se misturam. As noes de competncia e de capacidade so, hoje emdia, uma forte preocupao social e um conjunto de modos de ao ligados autonomiageneralizada. As neurocincias fazem parte desta dinmica geral que consiste em tratar o pacientecomo indivduo, concebido como o agente de sua prpria mudana, como nessas duas variantes daautonomia que so o empowermentamericano 58 e os caring statesescandinavos 59: a antiga proteosocial hoje desvalorizada e subordinada capacidade do indivduo de aproveitar oportunidades.Esta igualdade de capacidade uma igualdade da autonomia. O tipo de neurocincia que acaba deser analisado assenta sua autoridade e seu prestgio sobre esta mudana da mentalidade de nossasinstituies60.

    Os problemas encontrados pelas pessoas autistas de alto nvel e pelas atingidas pelasesquizofrenias ou por outros transtornos psiquitricos graves condensam e radicalizam assim todosos problemas de socializao e de sociabilidade que encontra o indivduo da sociedade deautonomia generalizada, uma sociedade que exige de cada um competncias que no so mais as deobedincia disciplinar; uma sociabilidade onde, por exemplo, o trabalho operrio mais umarelao de servio com o cliente do que um trabalho sobre a matria; uma sociabilidade onde setrata menos, na obedincia ou na obrigao, de executar ordens e do que encarregar-se dosproblemas. Ela implica que cada um tenha as capacidades que permitam depender de si mesmo para

    agir, tendo iniciativas, numa temporalidade incerta e num ambiente instvel, e no que reaja em

    57 Os relatrios anuais e a carta (Pluriels) da Misso Nacional de apoio em sade mental se esforam para fazero balano, mas permanecem limitados. Podemos consultar esses trabalhos geralmente interessantes emwww.mnas m.com. Para os lares abrigados, ver Les hbergements de patients psychiatriques. Rflexion partir desexpriences en le -de-France ,Pluriels, 65, fevereiro 2007.58 Ver Jacques Donzelot, Cathrine Mvel e Anne Wyvekens, Faire societ. La polit ique de la ville aus tas-Unis et en France, Paris, Le Seuil, 2003,59 Ver principalmente o dossi ltat-providence nordique : ajustements, transformations au cours des annesquatr-vingt-dix , Revue franaise des affaires sociales, n4, outubro-dezembro 2003, assim como G. Esping-Andersen, Quel tat-providence pour le XXIe s icle ? Convergences et divergences des pays europens , Esprit, fevereiro2001.60

    Para Amartya Sen, a igualdade de capacidade tem por objetivo a liberdade de escolha, a liberdade de agirquer dizer a possibilidade realque temos de fazer as escolhas que valorizamos , Repenser l inegalit (1992), Paris, LeSeuil 200, p.55. Eu recomendo igualmente os trabalhos de Jacques Donzelot sobre o indivduo capaz .

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    uma temporalidade regular e um ambiente previsvel, mas que aja como senhor de sua prpriavida61.

    Nesse contexto, as prticas cognitivistas no so necessariamente o adestramento queamedronta os partidrios da psicanlise, mas a verso cognitiva (ou naturalista) das trs profissesasimpossveis de Freud. Segundo Castoriadis, o carter impossvel significa que essas profissesvisam o desenvolvimento da autonomia no sentido de que o paciente o agente principal do

    processo psicanaltico, pois o que visado o desenvolvimento da sua prpria atividade (aatividade do paciente). O objeto da psicanlise

    a autonomia humana [...] para a qual o n ico meio de chegar atravs dessa prpriaautonomia62.

    Na sociedade da autonomia, a profisso impossvel foi generalizada63 atravs de trs modalidades: otreinamento das competncias cognitivas e sociais, o acompanhamento das trajetrias de vida e atransformao de si. Aqui, elas encontram um guia de ao num modelo deficitrio de doena. Se asneurocincias so sociais no sentido de que elas encontram usos que fazem parte deste estilo deao que consiste em fazer do cliente, do usurio ou do paciente, o agente de sua prpria mudana,

    desenvolvendo suas competncias, seja ele autista, esquizofrnico, hiperativo, dislxico, borderline,desempregado, assalariado, cidado em dificuldades etc. Se as abordagens em termos dedesenvolvimento cognitivo e de competncia cognitiva ocupam tal lugar na sade mental hoje emdia, tambm porque elas tm um valor social decisivo para uma socializao ao longo de todavida, elas so as mais eficazes instrumentalmente e tm o maior prestgio simbolicamente, oinstrumental e o simblico estando totalmente misturados.

    As neurocincias adquiriram tamanho valor, apesar de seus resultados muito falhos emfisiopatologia da doena mental ou das recadas clnicas concretas de seus pacientes, po is e las tm oprestgio da cincia a mais moderna e da tecnologia de ponta para o ideal do indivduo autnomo. Oadmirvel sucesso social do programa grandioso das neurocincias, marcado pela crena crescentede que as solues sairo dos laboratrios e de que os investimentos em psiquiatria e em sade

    mental devem ir para essas disciplinas, repousa tambm sobre a confuso conceitual e prtica quereina sobre essas questes64. por isso que aliar aqui a epistemologia e a sociologia tem uminteresse crtico essencial: visa justificar decises polticas e no provar um mecanismo ou validartal ou tal mtodo teraputico, ela ajuda assim a clarificar as escolhas que surgem a fim de decidirentre o que mais ou menos prefervel.

    Alain Ehrenberg

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    Ver A. Ehrenberg, le Culte de la performance, Paris, Calmann-Lvy, 1991.62 C. Castoriadis, Psychanalyse et Politique , le Monde morcel. Carrefours du Labythe , t.3, Paris, Le Seuil,1990, p.178-179, e a discusso de V. Descombes que enriquece a idia, le Complment de sujet. Enqute sur le faitdagir de soi-mme, Paris, Gal limard, 2004, chap. XXV.63 A. Ehrenberg, Lindiv idu narciss ique : une chimre sociologique ? , em P. Pdront e M. Delage (dir.),Individualisme, normes et vulnrabilit, Presses universitaires de Grenoble, no prelo. Aos socilogos e filsofos quepensam que assistimos a uma des institucionalizao e a uma crise do lao social, preciso opor o argumento damudana da mentalidade da instituio: minha hiptese que a profisso impossvel encarna o esprito da instituio dasociedade de autonomia.64 Um magnfico exemplo nos foi dado pelo antigo ministro da Educao Gilles de Robien, Mas eis que acincia, a verdadeira, a cincia experimental, est investindo nesse campo. Esta cincia nova a cincia do crebro.Com o nome de neurocincias cognitivas, essas novas cincias comeam a nos dar respostas [...]. As pesquis as emandamento so nos esclarecero, amanh, sobre a memria, o clculo, o raciocnio, ou sobre os melhores meios de

    aprender a aprender. [...] A ns, poderes pblicos, cabe organizar essas trocas para criar vias de progresso para nossascrianas ( Le cerveau, puits des s ciences : les neurosciences apportent des rponses crtuciales en matiredducation, de soinsm de savoir ,Libration, 28 de janeiro 2006).

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    Referncia Bibliogrfica

    A. Ehrenberg, Le cerveau social. Chimre epistemologique et verit sociologique, Esprit, n341,janeiro 2008.(Traduzido para o portugus por Anna Luiza W. de Almeida e Silva)