Alberto Cupani - Filosofia da Ciência 177-196

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    Neste captulo nal mostraremos que aarmao de que a cincia atinge a verdade discutvel, por mais que parea bvia ao sensocomum. Veremos tambm que a cincia podeter aspectos ideolgicos. Isso pode, por sua

    vez, conduzir a duvidar do valor do conheci-mento cientco. Por isso concluiremos apre-sentando uma maneira de entender a cinciaque permite, apesar de tudo, conservar a con- ana no conhecimento por ela produzido.

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    . A Para a viso popular da cincia, a relao da cincia com a

    verdade quase bvia . Na medida em que a atividade cientca seordena a obter um conhecimento rigoroso e sistemtico do mun-do, a informao assim obtida parece merecer, sem dvida, a qua-licao de "verdadeira". Certamente, em inmeras ocasies essainformao acaba se revelando incorreta, parcial ou totalmente.Nesses casos, interpreta-se que a suposta verdade no era tal, e queos novos resultados encerram a verdade, vale dizer que eles nosmostram, nalmente, a realidade de maneira adequada.

    A noo de verdade aqui implcita a de verdade como cor-respondncia entre o pensamento (e/ou sua formulao em umalinguagem) e a realidade, noo essa que vocs estudaram na dis-ciplina Teoria do Conhecimento.

    No entanto, e como vocs j viram em eoria do Conhecimento,essa noo, aparentemente fcil de aceitar porque coincide com ouso vulgar, est a rigor permeada de diculdades. Dizemos, p.ex.,

    que " verdade"que hoje dia 25 de novembro de 2009 porque nos-sa crena coincide com o calendrio em uso. Que pode signicar,com efeito, dizer que nossas crenas ou armaes "coincidem coma realidade"? Como comparar nossas crenas com "a realidade" (ou"os fatos")? Essas questes so igualmente vlidas no que tange screnas cientcas (descries de fatos, explicaes, teorias). Como vimos no captulo 4, essas diculdades fazem com que os lsofos

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    da cincia adotem posies diferentes com relao ndole das te-orias, considerando-as alguns deles como uma espcie de retratoda realidade (em seus aspectos no perceptveis), e vendo-as outroscomo instrumentos teis para lidar com a experincia.

    As reexes anteriores visam lembrar que, apesar da opinio vul-gar, no to simples assim armar ou aceitar que a cincia revele"a verdade" das coisas, uma verdade superior s verdades fornecidaspelo conhecimento ordinrio e mais convel que as supostas ver-dades contidas nas doutrinas religiosas ou nas posies ideolgicas.

    Ao estudarmos o pensamento de Tomas Kuhn, vimos que amudana de paradigmas impede, segundo esse autor, que se uti-lizem as noes de verdade e realidade como parmetros paraconstatar o progresso cientco. Vimos tambm que Larry Laudantirou da a concluso de que prefervel desvincular a atividadecientca da "busca da verdade", reduzindo-a ao esforo sistem-tico para resolver problemas de conhecimento. E vimos tambmque para Hugh Lacey a pretenso de que a cincia nos revele 'arealidade tal como ela em si mesma, independente de nosso co-nhecimento da mesma" uma ideia contraditria. O mximo quese pode armar, levando em considerao o sucesso tecnolgico

    da cincia, que esta ltima atinge a realidade nos aspectos emque convm para o controle dos eventos.

    Com outras palavras, diversos lsofos mostram-se hoje caute-losos no tocante a relacionar a cincia com "a verdade". Essa cau-tela, de resto, no to nova assim, porque tinha sido manifestadatambm pelos lsofos neopositivistas e pelos pragmatistas, quepropuseram reformulaes da noo de verdade,como vocs jestudaram . Mesmo um autor realista como Popper, conante narelao da cincia com a verdade, sustentou a rigor uma noo in-direta da verdade cientca, ao defender que a cincia avana porrefutaes que nos informam, antes de mais nada, dos nossos er-ros. Apenas nesse sentido, isto , descartando teorias desmentidaspelas evidncias, pode dizer-se que a cincia progride para Popper.

    A questo da vinculao da cincia com a verdade no , todavia,uma mera questo epistemolgica. O conhecimento cientco sus-

    Rero-me s concepes daverdade como coerncia entreenunciados (neopositivismo) ecomo efetividade das crenas(pragmatismo).

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    cita uma grande reverncia e alimenta expectativas sociais. A suaaplicao tecnolgica sugere a possibilidade de que fosse utilizadopara outras nalidades, como a reforma social, e quem sabe, pararesolver antigas questes loscas (como a existncia de Deus,o sentido da vida ou a fundamentao de normas morais univer-sais). Mas, se o conhecimento cientco no pode ser consideradocomo "verdadeiro", todas essas aspiraes parecem vs. orna-seinclusive suspeita a prpria reivindicao da verdade cientca.

    . A Diversos pensadores sugeriram ou armaram que a exaltao

    da cincia como fornecedora da verdade constitui, no apenasum erro ou uma iluso, mas uma manobra ideolgica. Os lso-fos da Escola de Frankfurt, como Max Horkheimer (1895-1973),Teodor Adorno (1903-1969) e Herbert Marcuse (1898-1979) de-nunciaram a conivncia do culto verdade cientca com a mani-pulao social. Jrgen Habermas, em uma conhecida confernciaintitulada "Cincia e cnica como Ideologia", arma que a cinciae a tecnologia assumiram, sob o capitalismo, o papel legitimadorda sociedade que outrora coube s religies.

    Paul Feyerabend, cujas ideias mencionei a propsito da questode haver ou no um mtodo cientco, faz culminar sua crtica dalosoa da cincia tradicional com uma crtica da maneira como acincia ocidental se tornou mundial.

    (...) a cincia moderna seimps a seus oponentes, no osconvenceu . Acincia dominou pelafora , no atravs de argumentos (isto , especial-mente verdadeiro no que se refere s primeiras colnias, onde a cinciae a religio do amor fraternal foram introduzidas como algo natural, semconsulta aos habitantes e sem lhes ouvir argumentos). (Feyerabend,

    1977, p. 450, grifados do autor)Feyerabendcriticava o predomnio da educao cientca ,

    com quase excluso de quaisquer outras doutrinas (considera-das mticas, e portanto, ilusrias), como uma prtica, no apenasantidemocrtica, mas tambm prejudicial ao verdadeiro avanohumano na compreenso do mundo. A cincia, em sua opinio,constitua um grande mito contrrio ao bem-estar humano.

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    Bacon (s. XVII) se alude pesquisa cientca (como a de "lutarcom a Natureza" para que "revele os seus segredos"), as feministasdenunciam a frequente identicao da Natureza (a "Me Natu-reza") com a mulher, seja submissa ou rebelde (porm domin- vel). A cincia moderna, argumentam, vive da contraposio entreo abstrato e o concreto, o espiritual e o material, o racional e oemotivo, o cultural e o natural, dicotomias essas em que sempre oprimeiro elemento corresponde ao masculino e o melhor.Auto-ras como Evelyn Fox Keller e Susan Bordo destacam o carterandrocntrico de todo o pensamento losco ocidental , desdePlato, e Carolyn Merchant, em um livro muito citado intitulado A Morte da Natureza (Te Death of Nature, 1980), vincula o de-senvolvimento da cincia experimental aliada ao capitalismo coma "morte da Natureza" entendida como ser vivo, substituda pelasua concepo como um enorme mecanismo a ser desmontado.Esse processo teria sido paralelo represso da subjetividade femi-nina, manifestada sobretudo na caa s bruxas. Em palavras de S.Harding, a cincia "estabelece signicados" no apenas do mundoque ela investiga, mas tambm dos seres humanos que produzema cincia ou recebem os seus resultados. As verdades estabeleci-das pela cincia esto enviesadas pelo androcentrismo. Notem queessa crtica no implica que as feministas sejam cticas com rela-

    o a toda e qualquer forma de pesquisa. Muito pelo contrrio,a maioria apresenta suas objees ao tipo de prticas cientcashoje existentes como uma forma de abrir espao para um tipo decincia diferente. al o caso, em particular, de Sandra Harding,que acompanha sua crtica da pretenso de objetividade da cinciamoderna com uma noo de "objetividade forte" que resultaria deadmitir e neutralizar os preconceitos detectados e colocar a cinciaao servio de relaes sociais e culturais igualitrias (ver Harding,Whose Science? Whose Knowledge? , cap. 6).

    Outro tipo de crtica s pretenses da verdade cientca representado pelo pensamento dito "ps-moderno". Originada emum ensaio do lsofo francsJean-Franois Lyotard (1924-1998)intitulado A condio ps-moderna (1979), esta corrente intelec-tual se dene pela sua convico de que teria passado a poca das"grandes narrativas" justicadoras do saber humano. As duas prin-cipais "narrativas" teriam sido, segundo Lyotard, a que vincula o

    A perseguio a supostasbruxas , para as feminis-tas, um caso extremo dadiscriminao da mulherna cultura ocidental.

    Jean Franois-Lyotard

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    conhecimento com a emancipao humana (originada no Ilumi-nismo) e a que vincula o conhecimento com a formao do espri-to, com a cultura (originada na losoa alem do sculo XIX). Ops-modernismo uma corrente muito variada , que se manifes-ta em diversos campos: poltica, esttica, literatura, moral. No quetange ao assunto que aqui nos ocupa, o ps-modernismo consis-te em uma atitude contrria s convices e expectativas da Mo-dernidade. Com efeito, os pensadores modernos, principalmenteos iluministas (Locke, Kant), haviam conado em que o cultivoda razo faria com que o ser humano se desenvolvesse conformesua dignidade natural e organizasse a sociedade de maneira har-moniosa e justa. Com o desenvolvimento da cincia, vista comomanifestao concreta da racionalidade, esses ideais adquiriram aforma da conana no progresso material e moral da humanidadeembasado na cincia (o que foi exaltado, como sabemos, pelo Po-sitivismo). Pois bem: o "ps-modernismo" signica a rejeio deque existam cnones universais:a razo,a Natureza,a cincia,acultura,a moral etc. A mentalidade ps-moderna reivindica o par-ticular e "situado", o "direito diferena".Para ela, a cincia um"discurso" entre outros (o da religio, o da arte, o da poltica; oumelhor: das religies, artes etc.), sem qualquer ttulo que garantaa priori a sua superioridade e o direito ao nosso reconhecimento.

    A crtica da vinculao da cincia com a verdademanifesta-setambm na denominada sociologia do conhecimento cient-co. radicionalmente, a sociologia havia se ocupado dos aspectosinstitucionais da cincia, vale dizer, das condies sociais que pro-piciam ou dicultam a pesquisa, a peculiaridade da cincia face aoutras instituies, o papel do cientista na sociedade etc. A teoriade Robert Merton sobre o "ethos" da cincia que foi mencionadaem um captulo anterior corresponde a este tipo de estudos. o-dos eles, contudo, davam por bvio que o conhecimento produzi-do pela cincia autntico saber acerca da realidade, superior aosaber comum. Esses estudos pressupunham que o conhecimentocientco se justica pela sua mera existncia e, sobretudo, queno precisa nem pode ser objeto de explicao sociolgica. A par-tir da dcada de 1970, alguns socilogos comearam a questionaresta ltima pressuposio, vale dizer, a propor que o conhecimen-to cientco (ou mais exatamente, a sua produo) fosse pesquisa-

    Naturalmente, o ps-modernismo pode serentendido como umareao contra as frustraesdecorrentes do fracassoaparente de diversos ideaismodernos, principalmente oaumento de racionalidade eliberdade da vida humana,o controle da Natureza para benefcio de todos, ocrescimento da democracia etc.

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    do como qualquer outro fenmeno social. Ainda que a sociologiado conhecimento cientco assuma diversas modalidades, valemcomo exemplos tpicos dois empreendimentos: o autodenomina-do "programa forte" e os "estudos de laboratrio".

    O "programa forte" em sociologia da cincia (assim denomi-nado por contraposio aos estudos sociolgicos anteriores, queexcetuavam o conhecimento como objeto de pesquisa) foi propos-to pelos socilogos David Bloor e Barry Barnes, da Unidade deEstudos sobre a Cincia da Universidade de Edinburgo. O livroKnowledge and Social Imagery(Conhecimento e imaginrio social ,1976), de Bloor, o manifesto desta corrente.

    "O socilogo, escreve Bloor, se ocupa do conhecimento, incluin-

    do o conhecimento cientco, puramente como um fenmeno na-tural", e acrescenta que "conhecimento, para o socilogo, tudoquanto as pessoas tomam por conhecimento", no no sentido demeras opinies individuais, mas de crenas comuns em uma dadasociedade (Bloor, 1991, p. 5). Por conseguinte, o conhecimentocientco pode e deve ser visto pelo socilogo como um conjuntode crenas sustentadas por determinadas comunidades. Como emrelao com qualquer tipo de eventos naturais, o socilogo est in-teressado em identicar os processos e as regularidades que apre-

    senta o conhecimento a m de elaborar teorias que as expliquem.A explicao desejada se apoia em quatro princpios:

    Deve ser causal, isto , relativa s condies que produzem crenas ouestados de conhecimento. Naturalmente, haver outras classes de cau-sas aparte das sociais que iro cooperar na produo de crenas.

    Deve ser imparcial com relao verdade e a falsidade, a racionalidadeou irracionalidade, o sucesso ou o fracasso. Ambos os lados dessas dico-tomias requerem explicao.

    Deve ser simtrica em seu estilo de explicao. Os mesmos tipos decausas devem explicar, digamos, crenas verdadeiras e falsas.

    Deve ser reexiva. Em princpio, seus padres de explicao devem seraplicveis prpria sociologia. Como o requerimento de simetria, este uma resposta necessidade de buscar explicaes gerais. um requeri-mento bvio de princpio, porque de outro modo a sociologia seria umadireta refutao das suas prprias teorias (ibid., p. 7).

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    Ao longo do seu livro, Bloor mostra como as teorias e explica-es cientcas podem ser tambm explicadas sociologicamente,alm de compreendidas losocamente . Particular ateno mere-ce, por motivos bvios, a forma como considerada nesta aborda-gema noo de verdade . Aps reconhecer que a sociologia adotaa noo clssica da verdade como correspondncia, e ciente das di-culdades loscas que a mesma encerra, Bloor se pergunta pelouso desse conceito na prtica. Para ele, a armao de que umateoria verdadeira signica que ela funciona em um determinadocontexto, permitindo predies desejadas. "O indicador de erro afalha em estabelecer e manter esta relao operativa de prediesbem sucedidas". Esse funcionamento denominado por Bloor "co-erncia da teoria consigo mesma", justicando-se preferir tais teo-rias quelas que no so assim coerentes.A utilizao da expres-so "verdadeira" para caracterizar tais teorias responderia a trsfunes . Uma funo discriminatria (precisamos ordenar e clas-sicar as nossas crenas; "verdadeiro" e "falso" so rtulos to teiscomo quaisquer outros). Em segundo lugar, uma funo retrica:os rtulos que usamos tm uma funo nos argumentos, crticas eesforos de persuaso. Conceber a "verdade" como algo que trans-cende a "mera crena" ajuda a manter a ordem cognitiva, permite-nos alcanar consensos com autoridade. Por m a noo tem uma

    funo "materialista" (no sentido de realista). Pressupomos "instin-tivamente", diz Bloor, um mundo ordenado, causa das nossas expe-rincias. "Verdade" signica essa convico (ibid., p. 40-42).

    Embora com variaes, o esprito que anima esses princpiosmotiva todos os trabalhos deste tipo de sociologia que, s vezes,assume a pretenso de antropologia, ou seja, de estudo de umacultura. O colega de Bloor, B. Barnes, em seu livroOs interesses eo crescimento do conhecimento (Interests and the Growth o Kno-wledge, 1977), explora, conforme o ttulo indica, a maneira comoo saber produzido cienticamente est marcado pelos interessesde diversos grupos sociais. Cabe mencionar que esta abordagemsociolgica foi parcialmente estimulada pela losoa da cinciade autores como Tomas Kuhn, N. Hanson, M. Polanyi e outros,que chamaram a ateno sobre aspectos da prtica cientca queconvidam a uma inspeo sociolgica. Por exemplo, a "subdeter-minao" das teorias pelos dados, isto , a insucincia da evidn-

    Bloor ensaia mostrar que atas verdades matemticas

    podem ter condicionamentossociais. Notoriamente, amatemtica parece ser ocaso mais evidente de queo conhecimento cientcose impe pelo seu valorintrnseco. Conforme Bloor,esta uma apreciao puramente "fenomenolgica",isto , isso o que amatemtica parece ser.Como no caso de qualquerfenmeno, cabe cinciaexplicar essa impresso (ver ocaptulo 6 do seu livro).

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    cia emprica para obrigar os cientistas a se decidirem adoo deuma teoria de preferncia a uma outra, e a convico de que osdados estejam "impregnados de teoria". Outro exemplo seria a "in-comensurabilidade" entre teorias e a necessidade de apelar para apersuaso (a certo tipo de retrica) para promover a adeso a umanova teoria. Em todos os casos, tornou-se patente que os cientistasdebatem e devem chegar a um consenso sobre o que aceitam comoconhecimento, um processo que comeou a ser denominado "ne-gociao". Pode dizer-se que a sociologia do conhecimento cient-co se interessa por tais processos de "negociao", em que podemestar envolvidos, alm de valores cognitivos, valores sociais.

    Essa negociao focalizada tambm nos chamados estudosde laboratrio

    , cujo primeiro exemplo (e at hoje, o mais famoso)est constitudo pela pesquisa contida no livroVida de Laborat-rio (Laboratory Li e, 1986), de Bruno Latour (um socilogo fran-cs) e Stephen Woolgar (um epistemlogo ingls). Nesta obra, osautores expem o resultado de um estudo que caracterizam comoantropolgico (e mais especicamente, como etnogrco), porqueseu propsito foi o de observar, compartilhando-a, a vida de umlaboratrio de neuroendocrinologia , durante um perodo de doisanos. Com base na premissa de que no necessrio, nem conve-niente, possuir formao cientca para sua pesquisa, Latour e Wo-olgar acompanharam e descreveram as muito diversas atividadesdos cientistas (desde observar registros de aparelhos a manipularsubstncias, e desde debater acerca de dados at conversar infor-malmente), esforando-se em compreender como surge aordem cientca a partir do aparentecaos de atividades. Para os autores,essa falta de conhecimento uma ajuda para no partir da pressu-posio de que o conhecimento cientco algo especial e supe-rior, em algum sentido. Do mesmo modo como um antroplogose atreve a interpretar uma cultura estranha, com a qual compar-tilha apenas a elementar anidade da condio humana e talvezalgumas semelhanas transculturais, os nossos autores trataramde orientar-se na comunidade que desejavam compreender. Elesensaiaram decifrar o signicado das prticas que iam testemunha-do, tomando a noo de "inscrio" como chave da "leitura" (comose diz amide) dos acontecimentos. Dessa maneira, o laboratrioacabou sendo visualizado como um "sistema de inscries" (em

    A atividade especca dolaboratrio era identicar e

    sintetizar uma substnciaque age na vinculao entre ocrebro e o sistema endcrino.

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    sentido amplo: textos, grcos, nmeros, espectros etc.), possibili-tado por diversos "dispositivos de inscrio" (por exemplo, os apa-relhos que produzem grcos relativos s substncias analisadas).A "vida de laboratrio" mostrou-se como abrangendo as atividadesde simbolizar, codicar e arquivar, bem como as habilidades de ler,escrever, discutir e persuadir os colegas. Como resultado de todoesse esforo, nossos antroplogos identicaram a produo de ar-tigos, destinados a publicaes prossionais, em que se defende adescoberta de uma substncia, ou seja, a descoberta de fatos novos.Mas para Latour e Woolgar, o estudo deixa claro que os fenmenosnaturais "descobertos" so na verdadeconstrudos pela atividadeque tem seu eixo na produo e manipulao de "inscries". Estasltimas so vistas e apresentadas como indicadoras da existnciadas substncias estudadas, mas ao olhar antropolgico essa exis-tncia a consequncia das prticas de laboratrio. A interpretaodiscutida e "negociada" das "inscries" o caminho da produocientca. Os enunciados cientcos vitoriosos (isto , que persua-dem os cientistas) criam a iluso de que aquilo a que se referem (os"fatos") preexistia aos enunciados, quando na verdade, a fora dosenunciados que sustenta a realidade dos fatos . Os cientistas "per-suadem os outros de que no so persuadidos", de que to-somentereconhecem a verdade, que se curvam ante os fatos (ibid., p. 70).

    importante mencionar que esses e outros estudos sociolgi-cos ans no pretendem, de maneira explcita, negar existncia doconhecimento cientco como uma forma peculiar de saber, nem especialmente negar que exista uma realidade a que o mesmose refere. Ou seja, os socilogos no so cticos nem subjetivistas.A sua aspirao declarada a de modicar a imagem que se temdo conhecimento cientco como algo "transcendente", quase"sagrado" . Emprestando a conhecida expresso de Nietzsche, dir-amos que para os socilogos o conhecimento cientco "humano,demasiado humano". A sua captao da realidade est marcada pe-los interesses e limitaes dos seres humanos, at quando se trata de"fatos constatados" (e precisamente nesse caso). No entanto, im-possvel no sentir que suas pesquisas lanam a sombra da dvidasobre a validade do saber cientco. A busca sociolgica dos meca-nismos que explicam a aceitao, a credibilidade, o predomnio etc.,de descries, explicaes e teorias acaba deixando no leitor a pe-

    Em outro livro:A cinciaem ao ( Science in Action ,1979), Latour generaliza eradicaliza essa tese, tratandode provar que a verdadecientca (p.ex., de uma teoria)est relacionada com o apoiosocial que seu(s) defensor(es)conseguem.

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    nosa impresso de que a cincia, longe de ser um empreendimentosocial pelo que o homem conseguiu um conhecimento convel daNatureza, na verdade uma maquinaria de produzir crenas que,transitoriamente,tm a sorte de serem tidas por "verdades" . Que a"Natureza" pretensamente "descoberta" pela pesquisa cientca arigor uma construo social, particularmente, uma construo lin-gustica. E a crena no alcance objetivo da cincia vista como umaideologia a servio de algum tipo de interesse social.

    Essa impresso provocou uma (compreensvel) reao de partede cientistas e pensadores que acreditam na validade do conhe-cimento cientco. Em 1994, os cientistas Paul Gross e NormanLevitt publicaram um livro intitulado Alta Superstio: A Esquerda Acadmica e suas disputas com a cincia (Higher Superstition: Te Academic Lef and its Quarrels with Science), em que denunciavam

    (...) livros que ponticam acerca da crise intelectual da fsica contem-pornea, cujos autores nunca se deram o trabalho de resolver um sim-ples problema de esttica; ensaios que fazem referncia teoria do caospor escritores que no reconheceriam, muito menos resolveriam, umaequao diferencial linear de primeira ordem; crticas da tirania semnti-ca do DNA e a biologia molecular por literatos que nunca estiveram emum laboratrio real nem se perguntaram de que modo o remdio quetomam diminui sua presso arterial (Gross e Levitt, 1994, p. 6).

    A obra desses autores foi o estopim do que se convencionoudenominar guerras das cincias" (Science wars) durante a dca-da de 1990, entre crticos da cincia (sumariamente visualizadoscomo ps-modernistas) e defensores da objetividade do conheci-mento cientco (chamados amide "realistas"). Entre os primeirosencontravam-se guras como as de Bruno Latour, Gilles Deleuze,Flix Guattari, Julia Kristeva e Paulo Virlio. Entre os segundos,Mario Bunge, Gerard Holton, Susan Haack, Noretta Koertge, AlanSokal e Jean Bricmont. A disputa adquiriu particular veemnciacom a publicao, por parte do fsico Alan Sokal, de um artigo inti-tulado " ransgredindo fronteiras: em direo a uma hermenuticatransformativa da gravitao quntica", que aparentemente se unia opinio de que a realidade fsica, no menos que a social, uma construo social e lingustica. O trabalho havia sido enviado auma conhecida revista de crtica literria,Social ext , e foi aceito,aparecendo em um volume de 1996 dedicado a refutar as crticas

    Essa verdade poderia serentendida como conrmada pela aplicao tecnolgica, porm existe tambm uma

    sociologia da tecnologia quevisa demonstrar que a ecincia

    tcnica no tudo quantoexplica a adoo dos artefatos.

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    de cientistas ao modernismo e ao construtivismo social. Um escn-dalo estourou quando o autor revelou que se tratava de uma farsa,em que, deliberadamente, haviam sido misturados dados cient-cos,meias verdades e expresses sem sentido, porm impactantes ,com o intuito de provar que as crticas cincia costumam provirde pensadores incompetentes que opinam sobre o que no com-preendem e sustentam teses que se tornam verossmeis graas aum jargo sosticado. Essa manobra acirrou a contenda, alegandoos "ps-modernistas" que a atitude dos "realistas" era sintoma deque a cincia estava perdendo respaldo poltico e econmico, comoconsequncia do m da Guerra Fria, ou seja, os crticos da cinciatenderam a interpretar a defesa da mesma em termos de conveni-ncias polticas de parte dos que se negam a aceitar que a cinciaperca a reverncia social de que goza. Naturalmente, os realistasno puderam (nem podem, ainda hoje) aceitar que o debate seja dendole poltica e no epistemolgica, ou que as questes epistemo-lgicas no sejam mais do que um disfarce de conitos polticos.

    Ao longo da dcada de 1990 e do incio do presente sculo fo-ram feitas diversas tentativas de reconciliar essas posies, prin-cipalmente mediante a organizao de congressos com a partici-pao de representantes de ambos os bandos. Alguns partidriosde cada viso da cincia mostraram certa tendncia a reconhecer,parcialmente, as razes dos adversrios ou as limitaes do pr-prio enfoque. Contudo, as diculdades recprocas de compreensofazem pensar em algo parecido com a "incomensurabilidade" en-tre teorias, sustentada por Tomas Kuhn.

    .

    Do ponto de vista social, a atividade cientca est (e sempre es-teve) vinculada a diversos condicionamentos e interesses que ami-de interferiram na aceitao ou rejeio de teorias, explicaes edescries de fatos, para no falar da utilizao do conhecimentopara nalidades censurveis. Do ponto de vista epistemolgico, oconhecimento cientco dista de ser uma representao el da re-alidade, um "espelho da Natureza", para usar a expresso com que

    Um livro fundamental paraconhecer essas crticas Imposturas Intelectuais.O abuso da cincia peloslsofos ps-modernos , de Alan Sokal e Jean Bricmont(RJ: 1999).

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    o lsofo contemporneo Richard Rorty (1931-2007) criticou essanoo. As teorias cientcas nunca so perfeitamente vericadas,sua aceitao exige debates acerca de provas frequentemente insu-cientes e ambguas, as entidades que elas postulam podem acabarno existindo, e so, acima de tudo, intrinsecamente refutveis.

    As diversas pesquisas (principalmente sociolgicas e histri-cas) e reexes crticas a que vem sendo submetida a atividadecientca e seu produto, o conhecimento cientco, no deixamdvida acerca da iluso e do perigo de querer preservar a nootradicional da cincia como um saber seguro e neutro.

    No entanto, difcil aderir opinio de que o conhecimentocientco no seja convel, ou que constitua uma viso da rea-lidade to vlida quanto qualquer outra (como as narrativas mi-tolgicas, os dogmas religiosos ou as ideologias polticas) e que acincia deva sua fama apenas fora da tradio cultural modernaou, pior ainda, propaganda do Estado e das instituies que delase servem. A uma pessoa instruda (isto , capaz de entender ainformao e os argumentos cientcos) lhe resulta muito difcilaceitar que a explicao cientca do mundo seja ilusria ou equi-

    valente a qualquer crena cultural. Por exemplo, que a explicaodo arco-ris como resultado da reexo e refrao da luz nas gotasde gua suspensas no ar valha tanto quanto a crena dos gregosde que se tratava da passagem de uma deusa pelos cus; ou quea explicao biolgica da evoluo do homem a partir de outrasespcies animais valha tanto quanto o relato bblico da criao doser humano por Deus; ou que a explicao histrico-sociolgicada existncia de classes sociais valha tanto quanto a justicativadas mesmas como naturais em uma dada tradio popular.

    Certamente, muitas entidades que a cincia sups como reaisacabaram resultando inexistentes (como o ter, o ogisto, ou ostomos entendidos como elementos indivisveis). Outras vezes,porm, desenvolvimentos tecnolgicos permitiram constataras que inicialmente pareciam entidades quase fantsticas (comoquando o telescpio tornou possvel ver as montanhas da Lua, ouo microscpio perceber as clulas, ou os satlites articiais veri-

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    car a forma dos continentes). De modo geral, a existncia da tec-nologia de base cientca tem sido alegada como forte prova emseu favor. Seria um milagre que a tecnologia funcionasse, caso oconhecimento cientco no fosse, ao menos aproximadamente, verdadeiro. Essa verdade, claro, pode ser entendida, ou no senti-do da noo de adequao realidade, ou de acordo com a noode eccia das crenas. Em qualquer hiptese (este o mago daquesto), o conhecimento cientco "toca" ou "alcana" o real.

    Os diversos fatores sociais, culturais e at psicolgicos que so-cilogos e historiadores tm identicado como condicionantes daatividade cientca no so, to facilmente assim, explicativos doconhecimento produzido, no que tange validade objetiva deste l-

    timo. perfeitamente possvel que um dado conhecimento exprimadeterminados interesses e ao mesmo tempo seja correto. As "nego-ciaes" dos cientistas em torno aceitabilidade de dados ou teoriasno tm por que equivaler a simples barganhas movidas pelo af dedinheiro, prestgio ou poder, ainda que essas motivaestambm estejam presentes. Com outras palavras, nas tais "negociaes" (ter-mo decididamente infeliz), os valorescognitivos so os decisivos(isto , at que ponto uma teoria est bem apoiada pelas observa-es, por exemplo).Prova o fato de que, nos casos em que no oso (as fraudes, por exemplo), se simula que o sejam . E quandose arma que os cientistas constroem os fatos, dever-se-ia dizerque eles produzema representao do que entendem ser um fato(como observa Bunge). "Representao" no tem por que denotaraqui uma mera fantasia ou uma miragem, nem "entender" deve for-osamente signicar "iludir-se" ou (pior ainda) "querer iludir".

    Por outra parte, um fato que o conhecimento cientco e o in-centivo pesquisa foram e so com frequncia usados como instru-mentos polticos, econmicos, militares. Mas isso no invalida, ne-cessariamente, seu valor cognitivo (uma teoria fsica empregada comsucesso na fabricao de uma bomba no por isso falsa; o mesmopode dizer-se de uma teoria psicolgica utilizada para manipular aopinio pblica). O que esses casos deixam claro que a escolha deassuntos, o favorecimento de linhas de pesquisa e at a escolha decertas metodologias pode decorrer de interesses no cientcos. am-bm verdade que a exaltao da cincia cumpre amide funes

    Quero dizer que, quandose comete uma fraude, sea reveste de credibilidadecognitiva (v.g., se forjam dadosque apoiam uma teoria).

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    ideolgicas. A fundamentao cientca, real ou alegada, de produ-tos (como remdios, v.g.), procedimentos (como tcnicas de ensino-aprendizagem), organizao (como a administrao de empresas) e

    planos de ao dos governos geralmente um recurso para facilitarou forar a sua adoo. No entanto, a reexo crtica pode e deve aquiintervir para perguntar-se se o conhecimento alegado autntico e,ainda que o seja, se basta para legitimar o que se pretende implantar.

    A primeira condio para se alcanar uma viso equilibrada dacincia parece residir em sermos conscientes das suas limitaes e domodo, muito complexo, como o conhecimento cientco produzido.

    O fsico e terico da cincia inglsJohn Ziman (1925-2005) es-creveu diversos livros analisando detalhadamente a elaborao dosaber cientco. Ziman insistiu no carter, no necessariamente verdadeiro nem (muito menos) certo, pormconvel , do conheci-mento cientco, uma conabilidade que remete ndole pblica domesmo, capacidade humana de "cosensibilidade" (isto , de termosas mesmas sensaes em determinadas circunstncias) e ao esforo,socialmente organizado, para se obter consensos razoveis. O valordos escritos de Ziman reside, em grande parte, na sinceridade comque assumiu, graas sua experincia prossional, os defeitos e am-biguidades da prtica cientca (como os problemas na experimen-tao, as limitaes da linguagem cientca, o carter metafrico dosmodelos, as incertezas na interpretao dos dados), e a habilidadecom que mostrou a credibilidade do conhecimento que, apesar dis-so tudo, se obtm. "A boa cincia difcil", armou resumindo suasobservaes. Em portugus podemos consultar seus livrosConheci-mento Pblico, Conhecimento Convel , e A ora do conhecimento.

    Ajuda-nos tambm a essa viso equilibrada da cincia o pen-samento do lsofo norte-americano, tambm contemporneo,Nicholas Rescher (1928- ). Em seu livroLos limites de la cincia(1994), situa da seguinte maneira o conhecimento cientco.

    O conhecimento to-somente um bem humano entre outros, e a suaprocura, to-somente um objetivo vlido entre outros. Alm disso, devereconhecer-se tambm que, inclusive no domnio estritamente cogniti-

    John Ziman

    Nicholas Rescher

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    vo, o conhecimento cientco apenas uma classe de conhecimento:existem outros projetos epistmicos e intelectuais vlidos aparte do cien-tco. A autoridade epistmica da cincia grande, mas no inclui tudo.

    A cincia natural um quefazer orientado por uma misso, com uma es-trutura de ns moldada em funo do quarteto tradicional de descrio,explicao, predio e controle da natureza. Ela indaga que classes de coi-sas h no mundo e como funcionam no nvel da generalidade governadapor leis, centrando-se antes de mais nada no modus operandi [a maneirade operar] legal dos processos naturais que caracterizam os objetos danatureza. Dada essa misso, o interesse da cincia , e deve ser, o rostopblico das coisas, suas facetasobjetivas. Ela persegue resultadosreprodu- zveis e se interessa pelos traos objetivos das coisas quequalquer um podediscernir (em circunstncias adequadas), independentemente de sua par-ticular constituio ou seu histrico de experincias. A cincia prescindedeliberadamente da dimenso relativa ao observador da experincia (...)

    Os fatos a que a cincia se refere so, portanto, aqueles que surgem daobservao intersubjetivamente vlida. (...) Dessa maneira, a cincia ignoraa dimenso individualizada, afetiva e pessoal do conhecimento humano:simpatia, empatia, sentimento, intuio e reao pessoal. Os fenmenosque ela leva em considerao como dados para a projeo e comprovaode teorias so publicamente acessveis. A apreciao de valor como afe-tam as coisas s pessoas no contexto formativo das suas experincias pes-soais (e acaso idiossincrticas) ou seu pano de fundo sociocultural (condi-cionado pelo grupo) algo de que a cincia prescinde; ela se concentranos traos impessoais medveis das coisas. Essa orientao quantitativa danossa cincia natural implica que passa ao lado da dimenso qualitativa,afetiva, avaliativa do conhecimento humano (Rescher, 1994, p. 238-239).

    Como pode apreciar-se, Rescher se refere cincia naturalquanticadora. Pode acrescentar-se, de acordo com o que vimosno captulo anterior, que as cincias humanas no necessariamenteassumem todos os traos que caracterizam as naturais. Podem in-teressar-se mais pelos aspectos qualitativos que pelos quantitativosdos eventos estudados. Podem privilegiar a compreenso explica-o mediante leis. Podem no propor-se a prever o comportamentohumano. No entanto, vale tambm para elas que o que armam serconhecimento (p.ex., uma explicao psicolgica ou a interpreta-o de um evento histrico) deve poder ser reconhecido por cri-trios intersubjetivamente vlidos. Nesse sentido, por conseguinte,tambm as cincias humanas visam "o rosto pblico das coisas".

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    Posies como as de Ziman e Rescher possibilitam tambm evi-tar outra convico extrema com relao ao valor cognitivo e so-cial da cincia. Rero-me ao cienticismo, vale dizer, expectativade que o conhecimento cientco possa (e deva) substituir todooutro tipo de saber na soluo dos problemas humanos, pessoaisou sociais. pica do positivismo no sculo XIX e do neopositi- vismo do sculo XX, ela tem ainda hoje defensoresna academia .Existe tambm na forma de uma conana difusa, na sociedadeindustrial, em que o mesmo saber que produz maravilhas tecno-lgicas possa resolver os problemas sociais e at morais. Certa-mente, a informao cientca pode contribuir para melhorar ascondies de vida das populaes, seja mediante a educao, sejamediante obras que transformem as circunstncias em que os se-res humanos devem existir (moradia, sade etc.). O conhecimentocientco pode ajudar tambm a exercer melhor a cidadania. Pode,por outra parte, contribuir a aperfeioar nossa conscincia e nossa vontade moral, ao nos mostrar, por exemplo, que comportamen-tos atribudos tradicionalmente maldade decorrem de perturba-es psquicas ou de problemas sociais. O conhecimento cientcosobre outras culturas e seus padres morais pode estimular tam-bm a tolerncia e a compreenso. Nada disso invalida o fato deque existem diversos tipos de saber humano, e que todos eles so

    necessrios. Agir de maneira moralmente correta, adotar uma de-ciso poltica segura ou, entender a mensagem de uma obra de arteou encontrar uma resposta para questes existenciais so casos emque devemos proceder de maneira diferente da pesquisa cientca.

    E assim, por mais que faamos avanar a cincia nos frentes fsico, qumi-co, biolgico e psicolgico, h problemas sobre o homem e suas obrasque seguiro sendo inabordveis por meios cientcos; no porque a ci-ncia seja impotente em seu domnio, mas porque caem fora do mesmo.Sempre teremos perguntas sobre o homem e seu lugar na estrutura deste

    mundo que cam fora do conhecimento da cincia (Rescher, 1994, p. 240).

    L RSobre o carter ideolgico da cincia e a tecnologia na socieda-

    de contempornea, recomendo A Ideologia da Sociedade Industrial ,de Herbert Marcuse, bem como o artigo "Cincia e tcnica como

    Mario Bunge um deles. No seuTratado de Filosoa Bsica

    ( Treatise on Basic Philosophy ,1974-1988), Bunge defende umalosoa cientca, que reformule

    as questes tradicionais luzdos conhecimentos cientcos

    avanados.

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