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192 Sociedade e modernidade: a celebração do indivíduo e a minimização do sujeito José Sávio Leopoldi Individualismo, holismo; indivíduo, sujeito E m termos antropológicos, pode-se conceber dois tipos de formação social: de um lado, estão aqueles que se baseiam no predomínio da idéia de cole- tividade, associadas à ideologia holista; de outro, aqueles que priorizam a instância individual e que se pautam pelo ideário individualista. Tais configurações estão caracteristicamente associadas à oposição que se estabelece entre sociedade tradicional e sociedade moderna. Naquela o espaço social é concebido e vivido em sintonia maior com a coletividade, o indivíduo se resumindo a uma peça – ainda que das mais importantes – da engrenagem social. Já na sociedade moderna, mesmo considerando que a instância coletiva estabelece acima dos agentes sociais as diretrizes e o perfil do conjunto, o indivíduo é visto como a chave mestra de todo arcabouço social e celebrado como a instância que materializa as qualidades que humanizam definitivamente o ser humano: a liberdade e a igualdade. Um contraste bem aprofundado entre as sociedades individualistas do Ocidente moderno e as sociedades coletivistas (holistas), foi realizado por Louis Dumont – antropólogo, discípulo de Lévi-Strauss, portanto, vinculado ao estrutu- ralismo francês –, ao estudar a sociedade de castas da Índia. Segundo Dumont, O acento incide sobre a sociedade em seu conjunto, como Homem coletivo; o ideal define-se pela organização da sociedade em vista de seus fins (e não em vista da felicidade individual); trata-se, antes de tudo, de ordem, de hie- rarquia, cada homem particular deve contribuir em seu lugar para a ordem ALCEU - v. 10 - n.19 - p. 192 a 204 - jul./dez. 2009 Artigo 15 Leopoldi.indd 192 27/10/2009 11:33:13

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Geertz Clifford- A Interpretação Das Culturas

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192Sociedade e modernidade:a celebrao do indivduo e aminimizao do sujeitoJos Svio LeopoldiIndividualismo, holismo; indivduo, sujeitoEm termos antropolgicos, pode-se conceber dois tipos de formao social: de um lado, esto aqueles que se baseiam no predomnio da idia de cole-tividade,associadasideologiaholista;deoutro,aquelesquepriorizama instncia individual e que se pautam pelo iderio individualista. Tais configuraes estocaracteristicamenteassociadasoposioqueseestabeleceentresociedade tradicional e sociedade moderna. Naquela o espao social concebido e vivido em sintonia maior com a coletividade, o indivduo se resumindo a uma pea ainda que das mais importantes da engrenagem social. J na sociedade moderna, mesmo considerando que a instncia coletiva estabelece acima dos agentes sociais as diretrizes e o perfil do conjunto, o indivduo visto como a chave mestra de todo arcabouo social e celebrado como a instncia que materializa as qualidades que humanizam definitivamente o ser humano: a liberdade e a igualdade.Umcontrastebemaprofundadoentreassociedadesindividualistasdo Ocidentemodernoeassociedadescoletivistas(holistas),foirealizadoporLouis Dumont antroplogo, discpulo de Lvi-Strauss, portanto, vinculado ao estrutu-ralismo francs , ao estudar a sociedade de castas da ndia.Segundo Dumont,O acento incide sobre a sociedade em seu conjunto, como Homem coletivo; o ideal define-se pela organizao da sociedade em vista de seus fins (e no em vista da felicidade individual); trata-se, antes de tudo, de ordem, de hie-rarquia, cada homem particular deve contribuir em seu lugar para a ordem ALCEU - v. 10 - n.19 - p. 192 a 204 - jul./dez. 2009Artigo 15 Leopoldi.indd 192 27/10/2009 11:33:13193global, e a justia consiste em proporcionar as funes sociais com relao ao conjunto (Dumont, 1992:57). Mesmo num tal contexto evidente a importncia do indivduo, j que ele o ator social que encarna esse ideal coletivista e que exterioriza na vivncia cotidiana a natureza da sua humanidade, prenhe desse coletivismo. No entanto, nesse quadro caracterstico das sociedades tradicionais, o indivduo cede em importncia e sig-nificado categoria mais abrangente que a coletividade, a expresso do conjunto dos indivduos. Esta percepo coletivizadora do contexto social configura o que se convencionou chamar de holismo.Para as sociedades modernas, ao contrrio, cada ser humano emerge da sua constituio biolgica como um agente social individualizado, que traz em si a marca de toda a humanidade. Nesse caso, o indivduo o objetivo final da sociedade que cumpreseudestinomedidaquecriamelhorescondiesparaqueelevivaem sintonia com sua natureza mais essencial, revelada por instncias fundamentais como a liberdade e a igualdade. A sociedade constitui, assim, o ambiente atravs do qual o indivduo encarna o esprito da coletividade, fornecendo os meios para sua realizao como o fim legtimo da humanidade. A presena desse carter coletivista no indi-vduo foi marcante na sociologia francesa, particularmente com mile Durkheim (1858-1917), considerado um dos fundadores da sociologia, que deu considervel contribuioaoestudodassociedades,particularmentecomsuasreflexessobre representao coletiva e conscincia coletiva (cf. Sociologia e filosofia, 1970), instncias que resultamespontaneamentedainteraoentreosindivduosdeumdeterminado contexto social. Nesse caso, o indivduo pode ser visto como o repositrio das normas e valores criados pela dinmica da vida social e inconscientemente absorvida por ele. A sociedade, portanto, se representa no indivduo atravs das categorias criadas pela coletividade, e no constitui apenas o somatrio de indivduos; antes, resulta da inte-rao que se estabelece entre eles. Mas o foco da importncia se desloca da sociedade para o indivduo que surge no apenas como a cellula mater do conjunto societrio, mas tambm, e principalmente, como ser moral desse conjunto. A oposio entre individualismo e holismo consistente num nvel de abstrao elevado, adequado ao tratamento de categorias mais inclusivas. Nesse sentido lcito que se oponham a sociedade ocidental moderna e as sociedades tradicionais, conside-rando que a primeira permeada pela filosofia individualista e a segunda pela holista ou coletivista. Com isso quer-se enfatizar que no Ocidente a noo de indivduo fundamental para a compreenso daquilo que Clifford Geertz, muito apropriadamente, chamou de fluxo do discurso social. Para esse antroplogo americano, figura de proa da antropologia interpretativista, aquela noo a pea bsica na construo do edifcio social,onde,noobstante,hlugarparaidiasabrangentescomocoletividade, nao, sociedade, etc. cuja importncia no pode ser minimizada. Mas a categoria Artigo 15 Leopoldi.indd 193 27/10/2009 11:33:13194absolutamente central do universo scio-cultural que caracteristicamente referido como Ocidente a de indivduo. A nfase no vnculo entre a sociedade moderna e o individualismodetalmontaqueacaboupraticamentedestituindoassociedades tradicionais de qualquer compromisso com ele. como se nestas o indivduo, ou o que pode significar nelas a pessoa humana, na realidade no existisse; como se ele estivesse reduzido apenas expresso do coletivo, essncia da sociedade. Neste caso, o fluxo do discurso social s pode ser adequadamente interpretado quando se observa a precedncia das noes de cunho holstico.O indivduo, visto como o objetivo final da sociedade, constitui, portanto, a essncia da ideologia individualista que permeia as sociedades modernas, particular-mente as de feio liberal. Isto porque o liberalismo sustenta que apenas a sua con-cepo de indivduo, juntamente com as ideias de liberdade e igualdade que lhe so inerentes, permite defini-lo plenamente como tal. Essa noo de individualismo no uma criao do indivduo, mas da coletividade em que ele se insere, como asseverou Dumont, ao observar que a percepo de ns mesmos como indivduos no inata, mas aprendida. Em ltima anlise, ela nos prescrita, imposta pela sociedade em que vivemos (Dumont, 1992:56). A sociedade moderna tem no indivduo sua mola mestra, no sentido de que deve estar, em ltima instncia, sua disposio. Tal indivduo, portanto, tomado como um fim em si mesmo. Mas na realidade a categoria indivduo abriga dois sentidos diferentes, confundidos freqentemente nas questes levantadas em torno dele. De um lado, tem-se o indivduo universal, o ser moral, posicionado num nvel elevado de abstrao e objeto das formulaes de carter generalizante. A noo de individualismo se configura em sintonia com essa categoria de indivduo, esse ser moral a cujo servio a sociedade teoricamente se organiza e em funo do qual se define ser moral que se nutre, particularmente, de dois ingredientes to prezados quanto difceis de serem explicitados: a liberdade e a igualdade. Assim, quando se diz que todos os indivduos nascem iguais e devem ser iguais perante as leis, aquele indivduo moral, generalizado e idealizado, que se tem em mente. Os princpios de moral e justia, que constituem a base do ordenamento social, s podem ser delineados a partir da comunho de tais indivduos quanto s concepes do que seja o bem comum que deve ser acessvel a todos, aos meios para a concretizao dos objetivos comuns e disposio de agirem com eqidade e com um sentido de justia para que todos possam ser contemplados de maneira igualitria. Paraasociedademodernaoindivduoumapeatoimportanteparasua ideologia e para a justificao de suas atividades e de seus empreendimentos que, de uma noo abstrata, idealizada, com um carter necessariamente generalizante, esse indivduo adquire contornos concretos, de ser no mundo, de sujeito objetivo da ao. E isso ocorre a tal ponto e com tal intensidade que se levado no s a acreditar na existncia real dele desse indivduo abstrato como tambm a pensar que ele existe Artigo 15 Leopoldi.indd 194 27/10/2009 11:33:13195em ns, que somos esse indivduo. As cincias sociais exorcizaram h j um bom tem-po a materializao do homem genrico, do homem mediano ou tpico, considerando que na realidade ele no existe; existe apenas como abstrao, como concepo terica, como generalidade, a qualquer ttulo necessria para fazer valer outras generalizaes e abstraes to ilusrias como ele, como o caso da sociedade, da nao, enfim, de qualquer idia de conjunto onde a coletividade possa tambm estar representada em cadaumadasunidadesqueacompem.Semaprofundarmosaquiessaquesto mais sintonizada com o campo filosfico e que demandaria outras linhas de reflexo cabe, no entanto, dizer que no s uma coletividade no existe concretamente (a no ser que se pense em termos quantitativos, do conjunto concreto de indivduos) como no existe o indivduo tpico dela, o indivduo padro, o indivduo genrico de que estamos falando. Na realidade existem apenas pessoas, unidades reais da espcie humana, que no conformam o modelo idealizado da unidade abstrata e geral, o tipo mediano; no obstante, este se faz necessrio para que se possa dar conta das outras generalidades em que ele se insere e que, por serem abstraes, no so por isso de menor importncia para o discurso, o mtodo e o rigor cientficos.A digresso acima constitui apenas um pano de fundo para retomarmos a questo da inexistncia real do indivduo padro, genrico, abstrato , e da existncia esta, sim, real, concreta, materializada do ser no mundo, do sujeito efetivo da ao, que contribui para a construo daquele, mas que no deve confundir-se com ele. A dis-tncia que os separa pode, talvez, ser comparada com a que vai do crebro (a poro enceflica concreta, materialmente constituda) s imagens e representaes que ele produz. Cabe, portanto, enfatizar a oposio entre o primeiro elemento referido aqui como indivduo e o segundo, o homem real, aqui denominado sujeito. Quando se diz, portanto, que o individualismo uma ideologia onde prevalece a figura do indivduo, do indivduo abstrato, genrico, que se trata. Com isso quer-se afirmar que as referncias feitas ao indivduo pelo credo individualista nem sempre se mate-rializam no sujeito da vida real; que aquele apenas uma referncia para a constituio do conjunto social que representa todos os sujeitos particulares. Da poder-se dizer que as to apregoadas qualidades da ideologia individualista constituem, antes, metas ideais a serem buscadas, do que princpios efetivamente praticados, por mais que se creia que eles realmente possam contemplar a vida co-tidiana dos sujeitos. Quem na sociedade moderna poderia se opor a uma to justa afirmaoquantoaqueapregoaque,considerandoanaturezaeosobjetivosda sociedade individualista, todos so iguais perante a lei? Mas, a que igualdade se refere e que lei seria essa? E se a lei for considerada injusta? Uma lei que consagra a es-cravido legal? justa? legtima? Do ponto de vista de quem? Em um sistema escravocrata,senhoreseescravossoiguaisperantealeidaescravido?Porque devem obedecer igualmente a ela se os trata de maneira to desigual? de justia, ento, uma lei estabelecer e legitimar desigualdades? A lei no deve ser igual para Artigo 15 Leopoldi.indd 195 27/10/2009 11:33:13196todos? Mas, como pode ser igual para todos, se a diferena um dado inescapvel da condio humana e no pode ser desconsiderada para que a lei trate de maneira mais justa essa diferena? Ou mais justa a lei que favorece os menos capazes para promover uma igualdade que pode ser vista como artificial ou mesmo injusta pelos mais determinados ou mais competentes? Ou se deve preservar as desigualdades para se fazer valer outro tipo de justia, levando em conta que nem sempre elas so desvantajosas para a sociedade, caso em que se observaria a mxima: igualdade tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam?A ideologia individualista,portanto,pode tratarmuitobem oindivduo o ser genrico, abstrato , mas nem sempre faz o mesmo com o sujeito, o agente social concreto, inescapavelmente submetido s idiossincrasias e contradies inerentes vidaemcoletividade.Eseselevaemcontaasoutrasdimensesdasociedade modernacomoosistemaeconmicocapitalistaeoprocessodecomunicao de massa com as quais o individualismo aduba cada vez mais eloqentemente o terreno para que o indivduo reine incontestavelmente no imaginrio da cada sujeito, percebe-se que, inversamente, este mesmo sujeito fica cada vez mais descaracteriza-do, frgil, ameaado, sitiado pela prpria ideologia individualista. Assim, observa-se que a sua individualidade, sua originalidade e sua liberdade so mitos criados pela imaginao social da sociedade moderna. o que se passa a argumentar para demons-trar que o indivduo de que trata a ideologia liberal fenmeno ilusrio, abstrato, construdopretensamentecomomodeloaservivenciadopelossujeitosemuma sociedade justa, livre e igualitria, mas cujo preo pago por estes prprios sujeitos que imperceptivelmente se veem, paradoxalmente, cercados de menos liberdade e de menor igualdade.Liberalismo e modernidade: o individualismo contra o indivduoA crena de que a ideologia individualista centrada no indivduo estabelece dire-trizes, condies e direitos que so compartilhados igualitariamente por todos os seres no mundo, pelos sujeitos empricos, apenas uma idealizao da vida em sociedade com indivduos iguais e independentes, celebrados num cenrio de liberdade e justia. Na realidade, o individualismo acaba constrangendo o sujeito no sentindo de cobrar dele uma adaptao s injunes scio-culturais da atualidade, largamente influenciadas pela mdia e pelo modelo econmico que valoriza o consumismo, a frugalidade, os modismos. Mas, acima de tudo, ele tem que se empenhar na venda de uma imagem positiva do eu, a par de uma sintonia por mais artificial que seja com o ambiente queocerca.Pode-sedizer,ento,queoindividualismoseposicionacontraoindivduo, contra o sujeito emprico, medida que o tiraniza para faz-lo adaptar-se aos valores do meio e ser valorizado por aqueles com quem convive, aos quais quer causar boa impresso, passando a imagem de uma pessoa bem integrada e bem-sucedida.Artigo 15 Leopoldi.indd 196 27/10/2009 11:33:13197A sociedade de economia liberal, que estimulou de maneira expressiva as cha-madas conquistas da alta tecnologia, da indstria cultural e dos meios de comunicao demassaquepareciamalargarocampodasliberdadesindividuais,narealidade atravs desses mesmos mecanismos acabou controlando, submetendo, invadindo, ameaando e angustiando o indivduo concreto, o ser no mundo, o sujeito de carne e osso, que vai sendo na prtica cada vez mais afastado das benesses do credo individualista. Assim, se o individualismo teoricamente valoriza de maneira desmesurada o indivduo ideal, na prtica atua contra o indivduo real, o sujeito. Ao nvel da realidade emprica, portanto, a sociedade acaba descurando deste o sujeito real a quem aparentemente quer celebrar e celebra o indivduo (genrico) que na prtica no existe. Nesse jogo de oposies entre realidades e abstraes, concretudes e irrealidades, vida e sonho, projeto e fantasia, o indivduo comum, o ser no mundo acaba retraindo-se, recolhendo-se do espao pblico para o privado, passando da nfase na percepo do outro postura intimista, da condio de objetividade ao envolvimento com o prprio sentimento.A subordinao do sujeito s determinaes do sistema, s exigncias que este, na realidade, acaba impondo quele a quem teoricamente devia servir o indivduo concreto o reduz condio de marionete manipulado pelas foras econmicas, pela demanda do mercado, pelos meios de comunicao e pela necessidade de integrar-se ao conjunto da sociedade. E essa integrao pode ser alcanada atravs de uma estra-tgia que visa adaptao superficial, passageira, s necessidades do momento num dado contexto. Essa maleabilidade exigida do homem moderno associada por Ernest Gellner (1926-1995) s caractersticas dos prticos mveis modulares que se compem com os vrios ambientes e diferentes espaos graas sua adaptabilidade: suas partes desconectadas podem ser encaixadas, combinadas e recombinadas de acordo com a necessidade do momento. Para esse pensador francs de formao multidisciplinar, o homem moderno um homem modular no sentido de quePodecombinar-secomassociaeslimitadasparaumpropsitoespecfico (...).Podedeixarumaassociaoquandodiscordadesuaorientao,sem ficar sujeito acusao de traio. Uma sociedade de mercado opera no s com preos mutveis, mas tambm com filiaes e opinies mutveis: no humpreojustonemumajustacategorizaodoshomens;tudopode e deve mudar, sem, de forma alguma, violar a ordem moral. (...) As associaes do homem modular podem ser efetivas sem ser rgidas! (...) A modularidade do homem a principal resposta pergunta: Como pode haver instituies ouassociaesquecontrabalancemoEstadoequenosejamsufocantes? (Gellner, 1996:90, 91).Outra forma de integrao do indivduo sociedade propiciada pela iden-tificao com imagens, pelo consumo de bens, materiais e culturais, que a mdia Artigo 15 Leopoldi.indd 197 27/10/2009 11:33:13198associa, atravs da propaganda, participao em um mundo de alegrias e de prazeres ao alcance do indivduo modernizado, que para isso deixa para trs tradies, valores mais autnticos, sua prpria histria, bem como a histria da sua comunidade. A sintonia do homem com o mundo moderno exige o usufruto do momento vivido no palco da vida que se desenrola sua volta, ao qual convocado para representar imagens que transmitam aos outros a ideia de bem sucedido. Como observa Contardo Calligaris, psicanalista italiano de inspirao lacaniana, Para a modernidade, desde o fim do sculo XVIII o indivduo em sua autono-mia vale mais do que a comunidade que o abriga. provvel, ento, que ele recuse o patrimnio herdado e que, para ser algum, lhe reste correr atrs de imagens. Todo o mundo, alis, concordar que, em nossa poca, diluem-se os valores e as referncias tradicionais, e talvez, momentaneamente, prevalea a caa s imagens agradveis (aos outros) (Calligaris, 1996:50-51). Identificar-se com tais imagens, consumir e consumi-las, significa ento par-ticipar, inserir-se no fluxo de iluses que apontam para a auto-realizao, a busca do sucesso pessoal articulado com um sentido de modernidade, qualquer que seja o sentido que essa expresso possa conter. Nessa trajetria em busca da felicidade prometida pelos meios de comunicao, o indivduo vive mitos, sonhos, rituais que legitimam o modelo de produo industrial e de consumo de massa, transformando-se naquilo que de fato interessa ao sistema o cidado consumidor. Cidado esse que, frequen-temente, se confunde e, ao mesmo tempo em que obrigado a se confundir, almeja essa confuso com os bens que consome e com os objetos e marcas que o legitimam aos olhos do pblico que o cerca. Nesse processo de fuso ele virtualmente passa a ser esses bens e esses objetos, assimilando-os sua identidade para consumo pblico e,noraramente,paraseuconsumoparticular,quandoacreditaqueasqualidades trombeteadas pela propaganda das coisas que consome lhe so disponibilizadas pelo simples consumo delas. Umaimagemtopoticaquantovigorosadohomem-anncioaqueleque exibe as marcas dos produtos adquiridos oferecida por Carlos Drummond de Andrade(1902-1987),freqentementeconsideradooautormaisimportanteda moderna poesia brasileira, que, com a sensibilidade e a grandeza dos gnios lite-rrios, condensa no poema Eu, etiqueta atravs de pungentes idias, imagens e smbolos, a delirante trajetria do homem sentinte, pensante e consciente da sua humanidade ao homem-coisa, ao homem-objeto. Este percebe que, em vez de simplesmente usar os artigos que compra, na realidade usado por eles: Fazem de mim um homem-anncio itinerante, escravo da matria anunciada. Estou,estounamoda.doceestarnamoda,aindaqueamodaseja negar Artigo 15 Leopoldi.indd 198 27/10/2009 11:33:13199minha identidade (...). Com que inocncia demito-me de ser eu que antes era emesabiatodiversodeoutros,tomim-mesmo,serpensante,sentintee solidrio com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencvel condio. Agora sou anncio (...). Por me ostentar assim, to orgulhoso de ser no eu, mas artigo industrial, peo que meu nome retifiquem. J no me con-vm o ttulo de homem. Meu nome novo coisa. Eu sou a coisa, coisamente (Andrade, 1994:110,111).Sob cerrado ataque ao mesmo tempo abrangente e pontual dos meios de co-municao, da propaganda, da economia, da indstria cultural e do consumismo a servio da sociedade de massa, o indivduo desenvolve ento mecanismos, estratgias, manobras defensivas, para proteger ou camuflar seu eu mais interior. Assim, como ator sofrido pela desidentificao de si mesmo, busca apresentar-se da maneira mais adequada e positiva ao pblico observante, que ironia das ironias freqentemente produto exclusivo da sua prpria imaginao. Tais estratgias foram estudadas, com bastante profundidade, j anos 1960 por Erving Gofffman (1922-1982), socilogo canadense cujos trabalhos voltaram-se especialmente para a comunicao humana interpessoal onde sujeitos-atores dramatizam papis, na expectativa de evocar julga-mentos favorveis do eu que apresentam ao pblico. Em sua clssica obra A representao do eu na vida cotidiana (1985), observa-se a fragmentao do sujeito em sua tentativa de mostrar-se adaptado aos diferentes espaos sociais que freqenta, em harmonia com as caractersticas mais valorizadas desse ambiente. O indivduo age, ento, como um ator, procurando transmitir uma imagem positiva aos membros do grupo, processo esse de que nem sempre tem plena conscincia. Diz Goffman:Independentemente do objetivo particular que o indivduo tenha em mente e da razo desse objetivo, ser do interesse dele regular a conduta dos outros, principalmente a maneira como o tratam. Este controle realizado princi-palmenteatravsdainflunciasobreadefiniodasituaoqueosoutros venham a formular. (...) Em sua qualidade de atores, os indivduos se inte-ressaro em manter a impresso de que vivem altura dos mltiplos padres pelos quais eles e seus produtos so julgados. (...) Mas, enquanto atores, os indivduosinteressam-senopelaquestomoralderealizaressespadres, maspelaquestoamoraldemaquinarumaimpressoconvincentedeque estes padres esto sendo realizados (Goffman, 1985:13, 230). Goffman divide explicitamente o indivduo em dois agentes diferenciados, que desempenham papis fundamentais: de um lado, tem-se o ator, o sujeito que prota-goniza uma representao com o objetivo de impressionar favoravelmente o grupo e ser aceito por ele; de outro, a personagem representada, que no tem necessariamente Artigo 15 Leopoldi.indd 199 27/10/2009 11:33:13200origem no eu interior do sujeito, na sua verdadeira individualidade; ela resulta da ao especfica que engendra e da impresso que causa aos observadores. Mas, pode-se ainda acrescentar ao quadro de Goffman mais uma figura participante do processo que o sujeito desencadeia para efetivar uma representao convincente no seu palco social. Alm do sujeito emprico, o indivduo real, que desempenha o papel de ator, e da personagem representada adequadamente ao ambiente social e ao grupo ao qual quer causar impresso positiva, destaca-se o eu mais interior do sujeito, a instncia scio-psicolgica que define a sua individualidade, que constitui a essncia da sua personalidade diferenciada.Essainstnciafoiconsagradapelaexpressoomnimoeu(1986)deChris-topherLasch(1932-1994),socilogoamericano,crticoexacerbadodasociedade ps-moderna,daeconomiacapitalistaavanada,dosmeiosdecomunicaode massa e da idealizao do consumismo norte-americano. Sua abordagem d muita consistncia argumentao que estamos desenvolvendo em torno do individualismo contra o indivduo, do mito de que a sociedade moderna cria condies para que o sujeito emprico se realize em toda sua plenitude, quando na realidade ele vive a angstia de preservar o ncleo mais ntimo da sua pessoa. Segundo Lasch,Em uma poca carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exer-ccio de sobrevivncia. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trs, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. (...) Sob assdio, o eu se contrai num ncleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilbrio emocional exige um eu mnimo, no o eu soberano do passado (Lasch, 1986:9,14).De maneira semelhante, em A cultura do narcisismo (1983), Lasch delineia um quadro em que o indivduo, acuado pelos meios de comunicao de massa e pelos valores culturais que eles implementam, vive angustiado, tentando encontrar uma inacessvel paz interior, ao mesmo tempo em que se defronta com o drama de aceitar a banalidade da vida cotidiana. A busca de estratgias de sobrevivncia, de no se deixar consumir pela mquina que reduz todos os homens a impessoalidades massi-ficadas pelo sistema e de resistir ao controle cada vez maior dos aparelhos de Estado sintonizados com os meios de comunicao de massa, acaba apontando, como nica sada para o indivduo, o comportamento tpico da personalidade narcisista, com reflexos negativos para tudo aquilo que o cerca, da famlia ao ambiente de trabalho, das relaes de amizade ao simples lazer.O que se observa, portanto, que a sociedade moderna, que j foi definida como a sociedade do espetculo por Guy Debord (1931-1994) filsofo francs e um importantepensadordosculoXX,devotadoespecialmenteanlisecrticada Artigo 15 Leopoldi.indd 200 27/10/2009 11:33:13201moderna sociedade de consumo exige do sujeito uma representao, a constru-o de uma imagem, nem sempre identificada com os anseios mais profundos que emanam do seu eu interior, para sobreviver ao assdio da sociedade industrial e da cultura de massa. As tenses que permeiam as relaes entre ator, personagem e p-blico, apontam acima de tudo para a iluso ou infundada esperana de se pensar um individualismo capaz de colocar em prtica os princpios que ele defende com tanto vigor. Surgem ento as agruras do indivduo quando ele colocado como ser no mundo, no papel de sujeito emprico, que vive em um permanente estado de angstia, em constante luta pela sobrevivncia do seu eu mnimo diante das ameaas e violncias que o mundo moderno enseja. Edgard Morin, pensador francs dos mais renomados da atualidade que atua numa vasta rea das cincias humanas que vai da cultura de massa discusso de um novo paradigma de conhecimento visando a ampliar os horizontes da explicao cientfica, observa queH uma angstia que deve, necessariamente, assaltar o ser humano, o qual, quando se torna tudo, sabe ao mesmo tempo que no nada. A cultura de massa recalca essa angstia tanto nos divertimentos csmicos como no mito da felicidade ou na procura da segurana. Na realidade, a angstia sai por todos os poros da cultura de massa, mas, precisamente, sai expulsa por movimentos, agitaes, trepidaes, imagens de golpes, armadilhas, ataques, homicdios... (Morin, 1990:179).Algumasanlisessituadasnumnvelmacrossociolgicotambmfornecem reflexes interessantes sobre as mesmas questes, enfatizando agora o ponto de vista do sistema, quer priorizando o aspecto ideolgico, quer destacando o fator econmico, a indstria cultural ou os meios de comunicao de massa. A ideologia individualista, particularmente sob a feio que lhe engendra a sociedade liberal, tem sido objeto de vigorosas denncias que, de uma forma ou de outra, condenam a opresso que ela exerce sobre o sujeito emprico. Entre elas se destaca o trabalho de Thierry Jeantet, economista francs, socialista, preocupado em propor mudanas radicais nas relaes entre os cidados e o poder, atravs de uma utilizao mais democrtica dos meios de comunicao, de modo a possibilitar uma participao mais eficaz das camadas populares. Em O indivduo coletivo (1986), Jeantet mostra como tal sujeito vtima dos regimes embalados pelo capitalismo liberal que, atravs dos meios de comunicao jornais, rdios, televiso , proclamam a sua liberdade, mas que de fato uma liberdade vigiada em proveito dos grupos instalados no poder. Eles fazem os sujeitos acreditarem estar desfrutando de uma liberdade e independncia plenas, sem perceber que so manipulados pelo sistema que, de fato, os convoca para o programa da produo. Em tal programa, o papel por excelncia reservado ao indivduo o de consumidor. E este, de bom grado, se submete ao que o sistema produtivo lhe reserva porque o consumo Artigo 15 Leopoldi.indd 201 27/10/2009 11:33:13202constitui uma espcie de ponte que liga o sujeito s promessas feitas pela propaganda e pela indstria cultural da sociedade de consumo. E essas promessas no so vs: o consumidor sente a eficcia do processo, acredita realmente que parte da realidade mgica que lhe pinta a propaganda cada vez mais aperfeioada em termos tecnolgicos e de contedos psicologizantes e, portanto, se convence de que est positivamente inserido no sistema. Nesse caso, o homem consumidor a um s tempo o centro e a vtima do mundo da produo e do Estado liberal, no momento mesmo em que este vai adquirindo condies de lhe propiciar segurana, educao e amparo na velhice. Centro, porque aindstriaculturaleoliberalismoseorganizamcomoobjetivomanifestodelhe proporcionar as condies para realizar plenamente suas potencialidades e qualidades humanas, num quadro de segurana e conforto. Vtima, porque em termos reais, pr-ticos, o sujeito se v ameaado, quando no tiranizado, pelos prprios instrumentos criados para se colocarem a seu servio, com destaque para os meios de comunicao demassa,especialmenteateleviso.PierreBourdieu(1930-2002),antroplogo, socilogo e pensador francs dedicado s vrias reas do saber com destaque para a poltica e o papel do Estado, a metodologia cientfica e o simbolismo, em seu vi-goroso e polmico ensaio Sobre a televiso (1997) refere-se a ela como um pernicioso mecanismo de violncia simblica. Numa linha de argumentao semelhante, Jean Baudrillard, filsofo francs que tem produzido reflexes importantes nas reas da poltica, da sociologia e da antropologia sobre a alienao da sociedade moderna, a compulso mrbida de consumo e a perda de valores ticos, afirma queAs mdias nos reconciliam com a violncia, com a guerra, com a banalidade. A publicidade, este sacramento nupcial e esta extrema-uno, nos reconcilia com nosso ambiente artificial (...) Transformado ele mesmo em vrus, o homem saqueia seu habitculo e santurio. E o maior mistrio que talvez ele tenha sido criado para isso, que este seja seu destino (Baudrillard, 1995: 40,41).Disso resulta uma espcie de cerco crescente a que o sistema de produo, em sintonia com o a ideologia individualista, submete o indivduo, o qual em uma reao de proteo e defesa volta-se cada vez mais para o espao privado, para sua individualidade. No deixa de ser paradoxal a percepo de que o indivduo consu-midor, se por um lado, se v como agente participativo da sociedade de consumo e integrado na respectiva cultura de massa, por outro, se sente acuado pelas ameaas emanadas do prprio sistema que pe em risco a sobrevivncia do mnimo eu. Com isso, desenvolve uma atitude cada vez mais centrada em si mesmo, um comporta-mento eminentemente individualista, narcisista, retroagindo a espaos cada vez mais individualizados. Edgard Morin sintetiza bem esse quadro ao destacar o papel do consumo e da cultura de massa na vida moderna.Artigo 15 Leopoldi.indd 202 27/10/2009 11:33:13203Na medida em que as grandes organizaes ignoram ou esmagam o homem concreto, no consumo, no lazer, na vida privada que este pode encontrar ou reencontrar interesse, competncia e prazer. O homem consumidor, sendo por excelncia aquele que se realiza no tempo presente, tempo que pode ser simbolizado pelo prprio ato da consumao em si, desde o momento em que se abrem as possibilidades de consumo e de lazer, procurar consumir mais sua prpria vida. O indivduo privado que quer consumir sua prpria vida tende a valorizar o presente. Fica, alm disso, cada vez mais privado de passado; este no lhe fornece mais sabedoria e norma de vida; os antigos valores, as gran-des transcendncias so esmagadas por um devir acelerado. (...) A cultura de massa responde essencialmente a esse hiperindividualismo privado. Mais ainda: contribui para enfraquecer todos os corpos intermedirios desde a famlia at a classe social para constituir um aglomerado de indivduos, a massa aos ps da Super-Mquina social (1990:175).Jos Svio LeopoldiProfessor da Universidade Federal Fluminense - UFFReferncias bibliogrficasANDRADE, C. D. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1994.AUG, M. Por uma antropologia dos mundos contemporneos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.BAUDRILLARD, J. Cool memories II. So Paulo: Estao Liberdade, 1995.BOURDIEU, P. Sobre a televiso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.CALLIGARIS, C. Crnicas do individualismo cotidiano. So Paulo: tica, 1996.DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto,1997.DUMONT, L. Homo hierarchicus. So Paulo: Edusp, 1992.DURKHEIM, E. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense, 1970.GELLNER, E. Condies da liberdade: a sociedade civil e seus rivais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.GOFFMAN, E. A representao do eu na vida cotidiana. 3a. ed. 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Porm, obrigado a adaptar-se ao mundo moderno sob o comando da produo capitalista e dos meios de comunicao o sujeito desempenhaopapeldeator-consumidor,naexpectativadeapresentar-secomoaquele indivduo idealizado, ilusrio e abstrato. Dessa perspectiva, o individualismo acaba agindo contra o sujeito, medida que o obriga a apresentar-se como um indivduo bem integrado na sociedade, enquanto ignora sua natureza mais exclusiva que a sua subjetividade.Palavras-chaveIndividualismo; Holismo; Modernidade; Indivduo; Sujeito.AbstractThis article intends to discuss the implications of the individualistic ideology that derives from the notion of an idealized individual, very different from the concrete being, to which it would serve as model. Whereas that individual appears as the ideal social being, the subject the concrete being sees himself unable of copying his profile. However, forced to adapt to the modern world under the command of the capitalist system and the mass media the subject plays the actor-consumers role, expecting to present himself as that idealized, illusory and abstract individual. From this point of view, the individualism ends up acting against the subject, constraining him to present himself as an well integrated individual in the society. As a result, the individuals more exclusive nature his subjectivity is ignored by the individualism.KeywordsIndividualism; Holism; Modernity; Individual; Subject.Artigo 15 Leopoldi.indd 204 27/10/2009 11:33:13