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Kínesis, Vol. III, n° 05, Julho-2011, p. 183-197 A CRÍTICA DE SCHOPENHAUER AO FUNDAMENTO DA MORAL PROPOSTO POR KANT SCHOPENHAUER'S CRITICISM TO GROUNDWORK OF THE MORAL PROPOSED BY KANT Alexander Almeida Morais * Resumo: Este artigo tem como objetivo explicitar a crítica que Schopenhauer faz à fundamentação da moral proposta por Kant. Para cumprir este objetivo exporemos em primeiro lugar e de forma concisa, a fundamentação da ética realizada por Kant. Depois analisaremos as críticas feitas por Schopenhauer à ética de Kant e finalizaremos indicando a alternativa de Schopenhauer em fundamentar a moral pelo sentimento da compaixão. Palavras-chave: Kant. Schopenhauer. Fundamentação da moral. Abstract: This article aims at explaining the criticism that Schopenhauer makes to groundwork of moral proposed by Kant. To achieve this we will expose first and concisely, the grounds of ethics proposed by Kant. Then we will examine the criticisms made by Schopenhauer to Kant's ethics and we will conclude indicating the Schopenhauer’s alternative to justify the moral through the feeling of compassion. Keywords: Kant. Schopenhauer. Groundwork of the Moral. Introdução O filósofo alemão Arthur Schopenhauer nos traz uma idéia de ética descritiva 1 baseada na sua concepção da imutabilidade de nosso caráter inteligível (manifestação de um ato originário da Vontade como coisa-em-si), de acordo com a qual não se pode ensinar ou instruir as pessoas a serem virtuosas. Uma vez que o caráter inato (o * Mestrando do Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista CAPES/CNPq. [email protected] 1 O termo “descritivo” marca a diferença entre a ética de Schopenhauer e as éticas anteriores a dele. Por exemplo, a ética das virtudes de Aristóteles e a ética cristã tinham um caráter “normativo”, baseado na ideia de que se podia ensinar a virtude e prescrever normas morais às pessoas. Como veremos no prosseguimento deste artigo, quando expormos a crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral proposto por Kant, Schopenhauer não acredita na possibilidade de ensinar a “virtude”. Para Schopenhauer, a ética, bem como toda a filosofia, é apenas um conhecimento teórico da razão, que por isso deve apenas contemplar e descrever o fenômeno moral nas ações humanas, mas nunca pode prescrever normas morais: “Na minha opinião, contudo, toda a filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter uma atitude contemplativa, não importa o quão próximo seja o objeto de investigação e sempre inquirir, em vez de prescrever regras [...] A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353-354).

Alexander Almeida Morais

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Kínesis, Vol. III, n° 05, Julho-2011, p. 183-197

A CRÍTICA DE SCHOPENHAUER AO FUNDAMENTO DA MORAL PROPOSTO POR KANT

SCHOPENHAUER'S CRITICISM TO GROUNDWORK OF THE

MORAL PROPOSED BY KANT

Alexander Almeida Morais*

Resumo: Este artigo tem como objetivo explicitar a crítica que Schopenhauer faz à fundamentação da moral proposta por Kant. Para cumprir este objetivo exporemos em primeiro lugar e de forma concisa, a fundamentação da ética realizada por Kant. Depois analisaremos as críticas feitas por Schopenhauer à ética de Kant e finalizaremos indicando a alternativa de Schopenhauer em fundamentar a moral pelo sentimento da compaixão. Palavras-chave: Kant. Schopenhauer. Fundamentação da moral. Abstract: This article aims at explaining the criticism that Schopenhauer makes to groundwork of moral proposed by Kant. To achieve this we will expose first and concisely, the grounds of ethics proposed by Kant. Then we will examine the criticisms made by Schopenhauer to Kant's ethics and we will conclude indicating the Schopenhauer’s alternative to justify the moral through the feeling of compassion. Keywords: Kant. Schopenhauer. Groundwork of the Moral. Introdução

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer nos traz uma idéia de ética descritiva1

baseada na sua concepção da imutabilidade de nosso caráter inteligível (manifestação

de um ato originário da Vontade como coisa-em-si), de acordo com a qual não se pode

ensinar ou instruir as pessoas a serem virtuosas. Uma vez que o caráter inato (o * Mestrando do Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista CAPES/CNPq. [email protected] 1 O termo “descritivo” marca a diferença entre a ética de Schopenhauer e as éticas anteriores a dele. Por exemplo, a ética das virtudes de Aristóteles e a ética cristã tinham um caráter “normativo”, baseado na ideia de que se podia ensinar a virtude e prescrever normas morais às pessoas. Como veremos no prosseguimento deste artigo, quando expormos a crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral proposto por Kant, Schopenhauer não acredita na possibilidade de ensinar a “virtude”. Para Schopenhauer, a ética, bem como toda a filosofia, é apenas um conhecimento teórico da razão, que por isso deve apenas contemplar e descrever o fenômeno moral nas ações humanas, mas nunca pode prescrever normas morais: “Na minha opinião, contudo, toda a filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter uma atitude contemplativa, não importa o quão próximo seja o objeto de investigação e sempre inquirir, em vez de prescrever regras [...] A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353-354).

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inteligível) do homem já está determinado na sua essência, é impossível corrigir os

defeitos do caráter com qualquer tipo de tratados ou discursos sobre a moral.

O que se modifica em relação ao nosso caráter inteligível são os modos como

ele se manifestará por meio da força dos motivos (que, para Schopenhauer, são uma

espécie de causalidade acompanhada de conhecimento) que atuam sobre nossa vontade.

Esta manifestação é aquilo que Schopenhauer chama de caráter empírico. É com base

nesta disposição natural do nosso agir fenomênico que é a manifestação de um caráter

inteligível e, através da experiência empírica, que o homem passa a ter consciência do

que quer e do que pode fazer em cada situação dada, alcançando a consciência daquilo

que constitui seu caráter adquirido. Assim, o caráter empírico é a manifestação

fenomênica do caráter inteligível e o caráter adquirido é aquele que se obtém por meio

das relações que o homem tem com as circunstâncias contingentes de sua vida. É ao

caráter adquirido que as pessoas se referem quando dizem que alguém possui caráter ou

não:

Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o caráter adquirido, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não o ter. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 391).

Schopenhauer, com base na sua ideia de caráter inteligível imutável (como a

manifestação da Vontade), rejeitará a noção de um livre-arbítrio (compreendido como a

visão de que a pessoa poderia mudar sua própria vontade ou querer em relação as suas

escolhas e, portanto, mudar seu próprio caráter), mesmo trabalhando com noções como

liberdade da Vontade (como coisa-em-si), responsabilidade moral e uma ética fundada

na virtude da compaixão (enquanto um sentimento moral). Nesta rejeição da ideia de

livre-arbítrio, Schopenhauer criticará, entre outros filósofos, principalmente Kant e seu

conceito contraditório (na perspectiva de Schopenhauer) de um Dever moral fundado na

autonomia do sujeito moral.

O objetivo do presente artigo é explicitar a crítica que Schopenhauer faz do

fundamento da moral proposto por Kant, por consequência, a rejeição de Schopenhauer

da ideia de Dever moral de Kant fundado na liberdade autodeterminante do sujeito

moral por meio de sua razão prática. Para cumprir este objetivo, em primeiro lugar

exporemos de forma concisa a fundamentação da ética proposta por Kant em seus livros

Fundamentação da metafísica dos costumes (1980) e Crítica da razão prática (1989).

Em segundo lugar, analisaremos as críticas feitas por Schopenhauer à ética de Kant. E

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finalmente indicaremos a perspectiva de Schopenhauer em fundamentar a moral através

do sentimento da compaixão.

O fundamento da moral dado por Kant.

É em seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes que Kant procura

encontrar o princípio supremo da moralidade, segundo o qual serão estabelecidas as leis

morais, que valham independentemente da experiência empírica e sejam universais e

necessários para todo ser racional (e não só para o homem). Como em seu livro anterior,

Crítica da razão pura, Kant já tinha demonstrado que os únicos conhecimentos

universais e necessários são aqueles que são fornecidos pela razão pura, ou melhor, por

sua forma a priori de organizar a experiência no mundo; então, como base nisso, Kant

supõe que este princípio supremo da moralidade deveria ser obtido por meio de

conceitos a priori fornecidos pela razão pura, que, como neste caso está se referindo ao

agir humano, será denominado por Kant de razão prática.

Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes parte da consciência moral

popular para o conhecimento filosófico, a fim de estabelecer os princípios universais e

necessários de uma metafísica dos costumes. Segundo Kant o conhecimento do vulgo

sobre questões morais não deixa nada a desejar em relação ao saber filosófico mais

apurado (KANT, 1980, p. 35-36), pois o que é moralmente bom pode ser reconhecido

naturalmente por todas as pessoas, sendo exigido apenas como critério moral o querer

que a máxima2 de ação de cada um possa ser convertida em uma lei universal.

Entretanto, Kant admite que o homem não é só razão, mas também um sujeito cheio de

desejos e inclinações que pode, por vezes, ser levado a agir contra os ditames da sua

própria razão. Mas Kant rejeita qualquer fundamentação da moral baseada em uma ética

que busque a felicidade (Eudemonismo) como seu objetivo último. Assim, um agir

moral que se guiasse por qualquer outra fonte ou interesse que não o simples fato de

agir por ser um dever moral, não poderia ser concebido como o resultado de uma boa

vontade. Este conceito está, assim, ligado necessariamente à idéia de Dever em Kant. A

ação moral não é aquela que ocorre em conformidade ao dever, seja por egoísmo ou por

uma inclinação imediata, mas, sim por dever, embora não havendo por parte do agente

nenhuma inclinação que lhe obrigue a isso. Assim se caracteriza a boa vontade que é

2 A máxima é definida como o princípio que determina subjetivamente o agir moral do homem. Mas ela só se converte em lei moral quando é universalizado objetivamente para todos os seres racionais: Ver: KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, 1980, p. 31.

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boa em si mesma. Sobre isso Kant enfatiza:

Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral [...] pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arranca a esta mortal insensibilidade e praticasse a ação sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. (KANT, 1980, p. 28).

Na perspectiva de Kant, é a razão enquanto prática que pode dar um fundamento

da moral que seja universal e necessário (o que implica, na linguagem de Kant, ser algo

a priori e não dependente da experiência). É a consciência do Dever moral como

Faktum da razão que nos permite alcançar nossa dimensão ética. Por sua vez, por não

sermos sujeitos totalmente racionais, os ditames da nossa razão nos aparecem como um

“Tu deves”, isto é, como um imperativo categórico. Comentando este ponto, Mario A.

G. Porta assinala:

A resposta kantiana é, ao mesmo tempo, conseqüente e surpreendente: na realidade, eu não “devo” porque sou um ser racional, mas sim porque, sendo um ser racional, não sou um ser total ou exclusivamente racional, mas também sensível (ou seja, submetido a impulsos e paixões). Um ser absolutamente racional seguiria a lei ética de modo espontâneo. Esta legalidade não seria para ele um “Dever”. Contudo, para um ser que não é absolutamente racional, ou seja, que eventualmente pode entrar em contradição com a Razão, a lei adquire o caráter de um imperativo. (PORTA, 2002, p. 121).

Apesar de Kant rejeitar qualquer elemento empírico fundado na sensibilidade da

natureza humana (que poderia ser demonstrado por um conhecimento antropológico

sobre o ser humano), que determinaria as ações morais do homem, Kant sabe que as

pessoas necessitam de uma certa motivação para agirem moralmente. Entretanto, esta

“motivação” é definida por Kant como o “princípio objetivo do querer”, que é o

“motivo”. Isto o diferencia do “princípio subjetivo do desejar” que é o “móbil”, este

sendo contingente. Já os fins objetivos que dependem dos motivos são necessários para

todo ser racional:

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Ora aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim (Zweck), e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais [...] O princípio subjetivo do desejar é o móbil (Triebfeder), o princípio objetivo do querer é o motivo (Bewegungsgrund); daqui a diferença entre fins subjetivos, que assentam em móbiles, e objetivos que dependem de motivos, válidos para todo o ser racional. (KANT, 1980, p. 67).

A relação entre o princípio subjetivo e o princípio objetivo (que diz respeito à lei

moral) é que a motivação racional (Bewegungsgrund) nada mais é do que um simples

respeito à lei moral independentemente de seu conteúdo. É a representação racional da

lei moral que inspira o sujeito a agir (por vontade própria) em conformidade com a

mesma lei: “A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesma a

agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só se

pode encontrar em seres racionais”. (KANT, 1980, p. 67).

Mas qual seria o conteúdo da lei moral? Ora, como Kant rejeita qualquer

conteúdo empírico para fundamentar a moral, o valor de uma lei moral só estaria na

forma dessa lei, isto é, em sua legalidade. Aqui está o famoso formalismo ético

kantiano. É a razão enquanto prática que determina autonomamente a agir de acordo

com a lei moral que ela mesma (a razão) dita a si. Isto corresponde à autonomia e à

autolegislação da razão prática no campo moral. Para Kant o dever moral estaria livre

de qualquer fundamentação que precisasse recorrer a algo transcendente à razão (Deus,

a ordem do cosmo ou qualquer outro tipo de princípio), caso contrário, isto implicaria

uma heteronomia da razão. A vontade boa é livre, e isto significa que ela se

autodetermina. Podemos dizer que neste ponto de sua teoria ética, Kant utiliza o

conceito de livre-arbítrio (que conforme veremos adiante será criticado por

Schopenhauer) não como um capacidade do agente moral fazer o que quiser, mas como

uma relação entre liberdade e legalidade, evidenciada pela capacidade do ser racional

prático de agir de acordo com a lei moral que ele mesmo legisla sobre si. É oportuno

citar aqui mais uma vez, as palavras esclarecedoras de Mario A. G. Porta:

O ser livre não é aquele que age sem lei alguma, mas aquele que impõe a si mesmo a sua própria lei. Em consequência, um ser livre é um ser racional e vice-versa. A vontade é um modo de causalidade próprio dos seres racionais. A liberdade é uma propriedade da vontade. O que é livre ou não é a vontade. A vontade é livre quando se autodetermina. Uma vontade livre é uma vontade autônoma. Vontade livre e vontade submetida às lei morais são para Kant a mesma coisa. A lei moral não é outra coisa que a legalidade de uma vontade livre. (PORTA, 2002, p. 122).

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Levando-se em conta a questão do respeito à lei moral, sobre a legalidade da

moral kantiana e sobre a idéia de universalidade e necessidade das leis morais, podemos

perceber que o fundamento da moral em Kant repousa sobre a fórmula do imperativo

categórico que diz “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo

querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1980, p. 59). Este é um imperativo

categórico que determina a agir por dever sem nenhuma consideração ulterior, sem se

relacionar com a matéria ou conteúdo da ação, mas se restringe em termos de valor

moral na intenção ou na disposição (Gesinnung) que caracteriza a boa vontade, que

segundo Kant, poderia também ser chamado de o imperativo da moralidade (KANT,

1980, p. 52).

A crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral fornecido por Kant.

A crítica de Schopenhauer à ética de Kant já começa na diferença de como estes

dois filósofos definem o que seja a faculdade da Razão3. Para Kant, a razão (enquanto

cumprindo sua função teórica) é uma faculdade que levaria em última instância às

idéias transcendentais (Deus, mundo e alma), os dados sintetizados pelas categorias do

entendimento (as doze categorias a priori) que, por sua vez, unificam os dados

fornecidos pela nossa faculdade da sensibilidade (que gera a priori as formas puras de

espaço e tempo). Essas idéias transcendentais são originadas justamente pela tendência

natural da razão humana de levar a princípios cada vez mais unificados e sintetizados o

conhecimento adquirido pela nossa faculdade de conhecer. É com base no procedimento

da sensibilidade, do entendimento e da razão de fornecer formas a priori que organizam

o mundo e o tornam cognoscente ao homem, que Kant também pensa que a razão, no

campo prático, pode fornecer princípios a priori (que por serem independentes da

experiência são universais e necessários) para o agir moral.

Na visão de Schopenhauer, esta definição de razão prática de Kant está

equivocada e entra em conflito até mesmo com a opinião expressa na linguagem de

vários povos diferentes e filósofos do passado sobre a definição do que era a faculdade

da razão. Esta, conforme a diferenciação feita por Schopenhauer em O mundo como

vontade e como representação (2005, p. 47ss) entre representações intuitivas e

3 Sobre este aspecto da crítica schopenhaueriana à ética de Kant, Cf. DEBONA, Vilma. Schopenhauer e a razão prática. Kínesis, v. 1, n. 02, p. 277-286, out. 2009; FAUSTINO, S. Schopenhauer, Wittgenstein e a recusa da razão prática. Revista de Filosofia, Curitiba: Champagnat, v. 19, n. 25, p. 255-272. E ver ainda MARTINEZ, H. A recusa de Schopenhauer ao livre-arbítrio da moral kantiana. Revista de Filosofia, Curitiba, 18, n. 21, p. 45-68, jul-dez. 2005.

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abstratas4, nada mais é do que a faculdade de gerar conceitos a partir das representações

intuitivas. A razão é assim, sempre abstrata, conceitual e não tem nenhuma inclinação

para o campo ético, no sentido de prescrever princípios morais ou fazer qualquer

indivíduo moralmente bom. A identificação entre agir moral e agir segundo a razão feita

por Kant, é sumariamente rejeitada por Schopenhauer. Um criminoso pode agir de uma

forma extremamente racional na execução de seus crimes e, mesmo assim, não pode ser

considerado um virtuoso. Schopenhauer chega a dizer que ao longo da história nenhum

livro de moral escrito ou que venha a ser escrito tornará uma pessoa moralmente boa.

Para Schopenhauer a ética será sempre teórica e descritiva (pois é um conhecimento

racional) e nunca prescritiva5. Isto é confirmado por Cartwright:

A rejeição de Schopenhauer do papel central da razão que Kant designa na ética apóia toda a dimensão de sua crítica a Kant. Além do repúdio de Schopenhauer à ética não-empírica de Kant, na qual Kant afirma que a razão pura é a fonte para descobrir as leis morais, ele também rejeita o que ele vê como pressuposição básica do ponto de vista de Kant, que a “a íntima e eterna essência humana consiste na razão”. Para Schopenhauer, a razão (Vernunft) é simplesmente a faculdade dos conceitos, a habilidade para formar representações gerais e não-imagéticas que são simbolizadas e fixadas em palavras. A razão e o entendimento (Verstand), a faculdade da percepção, são secundários e fenomenais, “enquanto o fundo real no homem, aquele o qual sozinho é metafísico e, portanto, indestrutível, é a sua Vontade” (CARTWRIGHT, 1999, p. 261, tradução nossa).

De acordo com a confusão entre conhecimento intuitivo e abstrato, Kant teria,

segundo Schopenhauer, transposto de forma indevida aquilo que ele conseguiu

estabelecer na Crítica da razão pura referente ao conhecimento a priori, que segundo

Schopenhauer foi uma das maiores descobertas na metafísica (SCHOPENHAUER,

2005, p. 549-550), para o campo moral, como um médico que achou um remédio

maravilhoso para uma doença e passa a receitá-lo a todo tipo de doenças. Com base

nisso Schopenhauer critica a posição de Kant de começar postulando algo, que, na

verdade, deveria ser provado, ou seja, a existência de leis morais na consciência moral

humana. Para Schopenhauer, o próprio conceito do que seja uma lei moral foi

4 Schopenhauer admite que o início de nosso conhecimento se dá com a intuição (o contato imediato pelo o qual um objeto se constitui enquanto tal para um sujeito) dos objetos mediada pelo nosso corpo. Esta apreensão intuitiva nos fornece objetos regidos pelas formas do espaço, tempo e causalidade, segundo os quais o entendimento torna este mundo cognoscível e inteligível para o homem. Schopenhauer mostra também que no homem, por este ter a faculdade da razão, existe a capacidade de criar novas representações a partir das representações intuitivas. Estas representações da razão são abstrações (conceitos) daquilo que há de comum nas representações intuitivas particulares, elevando-as, desse modo, à universalidade do conceitual. 5 Cf. nota de rodapé nº 2 deste artigo.

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negligenciado por Kant. De acordo com Schopenhauer, o conceito de lei origina-se da

noção de “lei civil”, de uma instituição social criada pela vontade do homem. A palavra

lei tem um significado apenas figurativo quando aplicado à natureza. É assim quando

falamos de uma lei da natureza (o que é uma metáfora).

O “proto pseudós” [primeiro passo em falso de Kant] está no seu conceito da própria ética que encontramos exposto do modo mais claro (p. 62): “numa filosofia prática não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que deve acontecer, mesmo que nunca aconteça”. Isto já é uma “petitio principi” [petição de princípio] decisiva. Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O que vos dá o direito de antecipá-lo e logo impor uma ética na forma legislativa-imperativa como a única para nós possível? [...] No entanto, queremos antes investigar o conceito de uma lei. O seu significado próprio e originário limita-se à lei civil (“lex”, “nomos”), uma instituição humana que repousa no arbítrio humano. O conceito de lei tem um significado segundo, tropológico (figurativo) e metafórico, quando aplicado à natureza, cujos modos de proceder, conhecidos em parte “a priori”, em parte dela apreendidos “a posteriori”, que se mantêm constantes, nós os chamamos metaforicamente de leis da natureza. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 20-21).

Para a vontade humana só existe, segundo Schopenhauer, a lei da motivação,

isto é, aquela que explica a ação humana com base em motivos. Entretanto, a noção de

leis morais independente da regulamentação humana, da instituição do Estado ou de

doutrinas religiosas, não pode ser admitida sem uma prova posterior. Ou seja, de acordo

com Schopenhauer, Kant comete uma “petitio principi”. Ele admitiu de antemão como

real, algo que deveria ser provado como existente. Também Kant afirma que a lei moral

traz consigo uma necessidade absoluta. Mas Schopenhauer questiona: onde está a

necessidade e universalidade da lei moral no homem se, por vezes, como o próprio

Kant confessa, o homem age contrariamente a lei moral (KANT, 1980, p. 40).

Outra crítica de Schopenhauer à moral kantiana é que a própria noção de Dever

moral kantiano é contraditória com relação as idéias de autolegislação e de autonomia

da razão prática. O dever só tem sentido se está ligado a idéia de recompensa ou castigo.

Com relação a isto, Schopenhauer afirma que o que está por trás da ética kantiana é a

fundamentação religiosa cristã da moral, coisa que Kant havia expulsado pela porta da

frente de seu sistema ético, ao tentar fundamentar a moral somente na razão humana.

Mas agora esta fundamentação teológica volta pela porta do fundo da ética kantiana

com a utilização de idéias como Dever, obrigação, respeito a lei e coisas desse tipo.

Schopenhauer interpreta que a idéia de Kant do princípio de respeito (que vale como

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motivação objetiva) à lei moral nada mais é que a noção de obediência e que o conceito

do dever esconde em si a idéia de um legislador (mesmo que seja como um postulado da

razão prática) que garante a recompensa e o castigo com respeito a lei moral, ou seja, a

idéia de Deus:

O que está dito aqui quer dizer, em alemão, obediência. Porém, já que a palavra respeito não pode ser posta tão descabidamente no lugar da palavra obediência, então isto teria de servir a alguma intenção, e esta não é manifestamente outra senão a de ocultar a proveniência da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 39).

Uma crítica importante de Schopenhauer refere-se à falta de conteúdo da ética

de Kant. Schopenhauer interpreta que a ideia de Dever definida por Kant “como a

necessidade de uma ação por respeito a lei” (KANT, 1980, p. 31), exige que se defina

que tipo de lei, qual seu conteúdo e onde ela está escrita. Neste ponto Schopenhauer

enfatiza que Kant confundiu o que seja um princípio de uma ética e a questão sobre o

fundamento de uma ética. O princípio seria a proposição fundamental de uma ética que

sintetiza todo o conteúdo (ela diz o quê de uma ética) do agir moral que subjaz a esta

ética. Mas o fundamento da ética diz respeito ao porquê da virtude e se relaciona com a

razão da obrigação moral de uma ética (SCHOPENHAUER, 1995, p. 40).

O que Kant conseguiu com seu imperativo categórico estabelecido na

Fundamentação da metafísica dos costumes foi encontrar o princípio de uma ética.

Mas, segundo Schopenhauer, para estabelecer o fundamento da moral seria necessário a

Kant abandonar a mera forma do imperativo categórico constituído por simples

conceitos em um juízo e descer à matéria (o conteúdo) da lei moral. Pois simples

conceitos não fariam o homem interromper seu egoísmo e sua tendência natural de

procurar sua autopreservação para alçar-se em atitudes de benevolência para com o

próximo, muito menos se isso implicasse um risco ao próprio agente moral.

Na perspectiva de Schopenhauer é necessária uma motivação superior que esteja

arraigada na própria natureza do homem e que pudesse fazê-lo superar seu egoísmo

natural. Esta motivação será dada pelo sentimento da compaixão (que será abordado na

parte final deste artigo). Mas Kant, ao rejeitar qualquer elemento empírico, seja da

experiência externa ou da experiência interna do sujeito moral, não pode estabelecer tal

conteúdo e motivação moral, ficando restringido à forma do imperativo categórico e à

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idéia de Dever moral como Faktum der Vernunft6. Mas Schopenhauer questiona Kant:

como se pode estabelecer algo fundado como Faktum da razão se se rejeitou qualquer

tipo de recurso à experiência (interna ou externa) ou a algum conhecimento sobre a

natureza do ser humano que poderia ser objeto de uma antropologia empírica?

Levando em conta a definição de Schopenhauer sobre a razão, os conceitos da

razão (representações abstratas) são obtidos e ganham valor e conteúdo a partir das

representações intuitivas. Isto quer dizer que ao rejeitar qualquer recurso à experiência

interna ou externa do agente moral, Kant produz uma ética sem conteúdo, de castelos no

ar, o que implica que dela não se poderia esperar nenhuma efetividade na vida real das

pessoas em seus relacionamentos sociais: “paira no ar como uma teia de aranha de

conceitos, os mais sutis e vazios de conteúdo, não se baseia em nada e não pode por isso

nada suportar e nada mover” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 49).

Por fim, podemos citar a contestação do livre-arbítrio que Schopenhauer faz na

primeira parte de Os Dois problemas fundamentais da ética7 como uma outra crítica

indireta a Kant, já que para Schopenhauer, Kant, com sua idéia de dever moral

incondicionado, está também ligado à noção de livre-arbítrio, pois quem deve tem de

poder agir conforme ao dever, ainda mais que este dever está fundado, segundo Kant, na

autolegislação e autonomia da razão prática do homem. Mas, Schopenhauer, vai rejeitar

essa noção de livre-arbítrio e a idéia de liberdade incondicionada a ela ligada, com base

em sua noção metafísica do que seja o fundamento ou a essência do mundo e do

homem.

É em seu livro O mundo como vontade e como representação, que

Schopenhauer estabelece a sua metafísica da Vontade (que constitui a essência íntima de

todo o universo). Partindo da divisão estabelecida por Kant na Crítica da razão pura

entre o fenômeno e a coisa-em-si, Schopenhauer afirma que a representação ou

fenômeno só constitui um lado ou aspecto do mundo – o mundo enquanto

representação. Mas existe outro aspecto do mundo e é justamente a Vontade como

coisa-em-si. Esta que, para Kant, era incognoscível, para Schopenhauer torna-se

6 É na Crítica da razão prática que Kant introduz sua noção de Faktum da razão: “ora, de uma lei, quando se eliminou toda a matéria, isto é, cada objeto da vontade (como princípio determinante), nada mais resta do que a simples forma de uma legislação universal. [...] À consciência desta lei fundamental pode chamar-se um fato (Faktum) da razão, porque não se pode deduzi-la de dados anteriores da razão, por exemplo, da consciência da liberdade (porque esta não nos é dada previamente), mas porque ela se nos impõe por si mesma como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica (1989, p. 38, 43). 7 A primeira parte foi traduzida em português como: SCHOPENHAUER. Contestação ao livre-arbítrio. Porto: Rés-editora, 2002.

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passível de um certo conhecimento que todos nós podemos obter a partir de nosso

interior e de forma imediata, quando percebemos nosso corpo como a objetivação

imediata do nosso querer. O corpo é assim um elemento-chave para a compressão da

Vontade como coisa-em-si. Entretanto, como o fenômeno humano enquanto um ser da

natureza não difere em nada de outros seres da natureza (todos estão submetidos às

mesmas leis que regem o mundo dos fenômenos), Schopenhauer, por analogia, estende

essa mesma essência do homem para todos os seres que compões o mundo. Assim, a

Vontade é o em-si de todo o mundo, sendo o ser humano somente uma das muitas

objetivações da Vontade.

No pensamento de Schopenhauer, a Vontade tem uma certa primazia em relação

ao intelecto e à razão humana, pois estes são secundários em relação à ela (ou seja, elas

são produtos das manifestações da Vontade). A vontade é a essência imutável do

homem e sua razão não tem poder para determinar uma mudança no querer da vontade.

Dessa forma, Schopenhauer define a essência íntima do homem como sendo a Vontade

como coisa-em-si que se objetiva em um ato originário em seu caráter inteligível, sendo

este imutável, individual, inato e conhecível através do caráter empírico e do caráter

adquirido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 388-391).

O que o homem é já está definido desde sempre em sua natureza, ou seja, em seu

caráter inteligível que permanece o mesmo por toda a sua vida8. O que o homem quer

em geral sempre quererá no particular. Neste sentido, Schopenhauer considera que a

defesa de um livre-arbítrio, está ligada à noção antiga e medievalesca de se ter colocado

a essência do homem numa alma, que teria a capacidade primordial de ser uma entidade

que conhece , e isto de forma abstrata. Assim, a ideia de um livre-arbítrio vai contra a

metafísica da Vontade de Schopenhauer e é por ele totalmente rejeitada:

Por conseguinte, esperar que um homem, sob influências idênticas aja, ora de uma maneira, ora de uma outra absolutamente oposta, é como se quiséssemos esperar que a própria árvore que, no verão passado, deu cerejas, dê no próximo verão peras. O livre-arbítrio implica, considerando-o de perto, uma existência sem essência, ou seja, qualquer coisa que é e que ao mesmo tempo não é nada; por

8 Não vamos entrar aqui na espinhosa questão sobre a relação do determinismo da Vontade e a questão da liberdade humana em Schopenhauer, mas podemos apontar que apesar do caráter inteligível ser imutável, o homem só chega a ter uma visão clara sobre si mesmo a posteriori , isto é, através da sua experiência que lhe desvela o seu caráter empírico e o caráter adquirido. Dessa forma, o homem não chega a conhecer de uma forma completa e total o seu caráter e de como vai reagir nas diferentes situações de sua vida, a não ser por uma longa experiência de vida. Para ver mais sobre isso Cf: JANAWAY, Christopher. Self and World in Schopenhauer’s philosophy. Oxford: Claredon Press, 1989, particularmente o capítulo 11 intitulado de “Freedom from Will”.

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conseqüência, que não é – daí uma contradição evidente. (SCHOPENHAUER, 2002, p. 75).

Portanto, na visão de Schopenhauer, a razão não tem força por meio de simples

conceitos a priori para fundamentar o agir moral e, assim, vencer o egoísmo natural do

homem como queria Kant. A combinação artificial de conceitos, seja ela de que tipo for,

não pode conter o “verdadeiro impulso para a justiça e a caridade” (SCHOPENHAUER,

1995, p. 102). A ação moral é independente do nível cultural da pessoa, exige até pouca

reflexão e abstração. É algo que se impõe a partir de uma percepção intuitiva e imediata

sobre a realidade das coisas do mundo. Schopenhauer está convicto que somente um

sentimento tão forte quanto e que rivalizasse contra o egoísmo, poderia fazer o homem

agir de forma benevolente para com seu próximo. Este sentimento é a compaixão, e

constituiria o único fundamento efetivo da moral, que pode ser constatado na própria

experiência humana em geral.

A compaixão como o fundamento da moral.

A compaixão é atingida quando o homem reconhece que sua essência é a mesma

que a de todos os seres do mundo. Este reconhecimento pode ser obtido por duas vias. A

primeira via é quando o homem chega a compreender intuitivamente que seu ser, suas

ações e seu próprio corpo, nada mais são que a manifestação de sua própria vontade,

esta sendo aquilo que constitui a sua essência. Enquanto o sujeito do conhecimento

observa o seu próprio corpo e suas ações, percebe-os como um objeto tanto quanto

outro do mundo, submetido às formas do espaço e do tempo, e seus atos seguindo a

motivos como outros objetos obedecem a causas e excitações. No entanto, este modo de

consideração não esgota o sentido das manifestações volitivas das ações corporais. Aqui

o sujeito do conhecimento, pelo seu corpo, torna-se um indivíduo que percebe a

identificação de cada movimento de seu corpo como um querer ou vontade sua, isto é,

como objetivações do seu ser mais íntimo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 156-157). O

homem compreende também, por analogia9, que ele compartilha esta mesma essência

9 Segundo Maria L. Cacciola, esta ampliação da Vontade como coisa-em-si do ser humano para o resto da natureza é feita por um procedimento analógico na filosofia de Schopenhauer: “A ampliação da Vontade como essência de todo os fenômenos é estabelecido por meio de um procedimento analógico [...] A base para essa analogia que permite dotar todos os fenômenos da mesma essência humana reside no fato de que os demais objetos, considerados como representações são idênticos ao corpo, isto é, preenchem o espaço e nele atuam por meio da causalidade. E assim, do mesmo que podemos conhecer o corpo de duas maneiras distintas, podemos por analogia admitir que os demais fenômenos sejam, de um lado,

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(a Vontade) com todos os outros seres da natureza, pois estes seres (assim como o

homem) também ocupam uma posição no tempo e no espaço, que agem e/ou sofrem

ações de seu meio ambiente. Aqui a filosofia pode exercer um papel importante em

levar essa compreensão intuitiva que homem pode alcançar à clareza do conceito.

Precisamente, é isso o que Schopenhauer tenta fazer ao escrever o Mundo como

Vontade e como Representação.

A segunda via pela qual o homem pode compreender a Vontade como a essência

de todo o mundo, é através da representação artística. O verdadeiro artista tem o poder

de traduzir aquele conhecimento intuitivo (a Vontade como a coisa-em-si de todo o

mundo) que o ser humano traz em si, em uma obra de arte10.

Portanto, retornando a questão da compaixão, esta surge de um conhecimento

intuitivo no qual o sujeito reconhece no outro a mesma essência que a sua. Isto é, o

homem ao se identificar com o outro, ao perceber que sua essência é a mesma que a do

outro, passa então a desenvolver uma atitude compassiva e de benevolência pela a dor

alheia. Ou seja, aquela diferença radical entre o Eu e o Outro, sobre a qual se funda o

egoísmo, é suprimida. Nenhuma representação abstrata poderia fazer o homem adentrar

neste conhecimento fornecido pela apreensão imediata que a compaixão transmite ao

homem. Dessa forma, este sentimento da compaixão se contrapõe ao egoísmo, como um

fenômeno que pode ser constatado diariamente, e que faz a pessoa participar de forma

imediata no sofrimento de outra pessoa:

O processo aqui analisado não é sonhado ou apanhado no ar, mas algo bem real e de nenhum modo raro: é o fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo contentamento e todo bem-estar e felicidade. Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a caridade genuína. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 129).

Entretanto, a compaixão não consiste em se colocar no lugar da outra pessoa que

sofre e na imaginação de sofrer sua dor no lugar dele. No sentimento da compaixão

existe sempre a consciência de um Eu e de um Outro que sofrem, ao mesmo tempo que

representações, e de outro, ‘o que em nós chamamos vontade’” (CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, 1994, p. 50). 10 Transcende os limites deste artigo, discorrer pormenorizadamente sobre a epistemologia schopenhaueriana em relação ao conhecimento da Vontade, mas sugerimos conferir o livro III de O mundo como vontade e representação no qual Schopenhauer trata da possibilidade do homem alcançar uma compreensão (pela arte) da Vontade como a coisa-em-si de todo mundo, através dos vários graus de objetivação da Vontade no mundo.

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há uma identificação entre este Eu e Outro em um Nós. Para esse sujeito que obteve

uma representação adequada sobre a essência de todo o mundo, abre-se lhe a

possibilidade de uma atitude moral de benevolência voltada para o sofrimento de seus

semelhantes. Esta moral baseia-se no sentimento real e efetivo da compaixão e não em

algum princípio racional, segundo o qual Kant pretendia fundamentar sua teoria ética.

Por isso, a recusa de Schopenhauer de qualquer ética normativa e caracterizando a sua

como uma ética somente descritiva. Unicamente através da compaixão, na perspectiva

de Schopenhauer, podemos de fato nos aproximarmos dos outros indivíduos de forma a

desenvolver para com eles atitudes de benevolência e de ajuda desinteressada para com

o seu bem-estar.

A compaixão está ligada ao reconhecimento daquele aspecto metafísico que

caracteriza o mundo cheio de sofrimentos no qual vivemos. Isto é, o conhecimento da

Vontade como um esforço insaciável por satisfazer os desejos sempre recorrentes de

nossa natureza, que são as raízes das dores do mundo. Já que todas as pessoas sofrem e,

eu sei que a mesma essência do outro constitui minha própria natureza, reconhecerei

que o sofrimento do outro também faz parte de minha própria identidade. O outro sou

eu mais uma vez. Está é a fórmula que define o (que) da ética schopenhaueriana. O

sujeito egoísta se reconhece como único no mundo, e vê os outros como estranhos,

concorrentes e inimigos. Quando as pessoas se livram dessa ilusão, elas percebem que o

bem dos outros é seu próprio bem. Eis a efetividade da compaixão11.

Considerações finais.

Portanto, como podemos perceber neste artigo, a crítica de Schopenhauer sobre

o fundamento da moral fornecido por Kant incide principalmente sobre as idéias de

Dever moral, a noção de imperativo categórico e a uma noção de livre-arbítrio que

estaria subjacente à filosofia ética de Kant. Parte destas críticas de Schopenhauer tem

como base a confusão entre representações intuitivas e abstratas realizadas por Kant,

que tem como origem a definição equivocada de razão prática feita por Kant. Para

Schopenhauer a razão é uma faculdade conceitual (de gerar representações abstratas a

partir das representações intuitivas) e ela é secundária em relação a Vontade. Esta é a

11 Para uma caracterização maior do conceito de compaixão e sua relação com a compreensão da Vontade como coisa-em-si de todo os seres que compõem o mundo, conferir o artigo: STAUDT, Leo Afonso. O significado moral das ações como negação da vontade para Arthur Schopenhauer. Revista de Filosofia. Curitiba: Champagnat, v. 19, n. 25, p. 273-303, jul-dez. 2007.

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coisa-em-si de todo o mundo e também do homem. A partir do conhecimento deste

aspecto metafísico do mundo, por meio de um percepção intuitiva, o homem pode

compreender que sua essência é a mesma que a de todas as pessoas.

Para o sujeito que obteve este conhecimento intuitivo acima mencionado, abra-

se para ele a possibilidade de uma atitude moral voltada para o sofrimento de seus

semelhantes. Esta moral, então, se baseia no sentimento da compaixão e não em algum

princípio racional como sustentava a ética kantiana. Segundo Schopenhauer, somente o

sentimento de compaixão, nos permite aproximarmos dos outros indivíduos de forma a

desenvolver para com eles atitudes de benevolência e de procura desinteressada pelo o

seu bem-estar.

Referências CACCIOLA, Maria Lúcia Mello e Oliveira. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994. CARTWRIGHT. Schopenhauer’s Narrower Sense of Morality. In: JANAWAY, Christopher (Org). The Cambridge companion to Schopenhauer. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. JANAWAY, Christopher. Self and World in Schopenhauer’s philosophy. Oxford: Claredon Press, 1989. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. ______. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1989. ______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1980. PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. São Paulo: Loyola, 2002. SCHOPENHAUER. O mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: UNESP, 2005. ______. Contestação ao livre-arbítrio. Porto: Rés-editora, 2002. ______. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Artigo recebido em: 20/03/11 Aceito em: 20/06/11