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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA O SELF NARRATIVO EM CHARLES TAYLOR E SHAUN GALLAGHER Alexander Almeida Morais Teresina-PI 2012

Dissertação Alexander Almeida

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disertacion sobre charles taylor

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM TICA E EPISTEMOLOGIA

    O SELF NARRATIVO EM CHARLES TAYLOR E SHAUN GALLAGHER

    Alexander Almeida Morais

    Teresina-PI 2012

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM TICA E EPISTEMOLOGIA

    O SELF NARRATIVO EM CHARLES TAYLOR E SHAUN GALLAGHER

    Alexander Almeida Morais

    Dissertao apresentada ao Mestrado em tica e Epistemologia da Universidade Federal do Piau, sob orientao do Prof. Dr. Jos Srgio Duarte da Fonseca, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Teresina-PI 2012

  • FICHA CATALOGRFICA Universidade Federal do Piau

    Biblioteca Comunitria Jornalista Carlos Castello Branco Servio de Processamento Tcnico

    M827s Morais, Alexander Almeida.

    O Self narrativo em Charles Taylor e Shaun Gallagher / Alexander Almeida Morais. -- 2012.

    112f.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Federal do Piau, Teresina, 2012.

    Orientao: Prof. Dr. Jos Srgio Duarte da Fonseca.

    1. Epistemologia. 2. Self Narrativo. 3. Narratividade. 4. Ttulo.

    CDD: 121

  • TERMO DE APROVAO

    ALEXANDER ALMEIDA MORAIS

    O SELF NARRATIVO EM CHARLES TAYLOR E SHAUN GALLAGHER

    Dissertao _______________ como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre, pelo Mestrado em tica e Epistemologia, Centro de Cincias Humanas e Letras, Universidade Federal do Piau, pela seguinte banca

    examinadora:

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Jos Srgio Duarte da Fonseca UFPI (orientador)

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Sofia Ins Albornoz Stein UNISINOS (examinadora externa)

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Luizir de Oliveira UFPI (examinador/MEE)

    Teresina, _____/___/___

  • Agradecimentos

    Ao Prof. Dr. Jos Srgio Duarte da Fonseca, pela orientao sempre rigorosa e no grande incentivo dado a mim na execuo desta dissertao.

    Aos professores e aos meus colegas do MEE, que propiciaram um ambiente de aprendizagem enriquecedor que muito valeram na realizao dessa dissertao.

    A Deus, por dar-me sade e paz para fazer este trabalho.

    minha famlia, em especial meus pais pelo apoio e incentivo sempre constantes. A CAPES, pelo apoio financeiro pesquisa.

  • RESUMO

    A presente dissertao tem como objeto de pesquisa explicitar e confrontar dois modelos de self narrativo o de Taylor e de Gallagher -, para vermos at que ponto a posio de Gallagher (fenomenologia e cincias cognitivas) poderia ou no complementar a posio de Taylor (centrada em uma postura hermenutica), respondendo as questes que parecem, ao nosso entender, serem deixadas sem resposta (ou pelo menos, no atendida nas preocupaes de Taylor) no modelo narrativista de self proposto por Taylor. Entre essas questes esto: Como ns (os animais autointerpretativos) adquirimos essa capacidade narrativa? Qual a relao entre nossa capacidade intersubjetiva e a constituio do self narrativo? Quais so os elementos cognitivos que contribuem para o desenvolvimento dessa competncia narrativa? Nossa hiptese que uma descrio mais completa do self deve levar em considerao no s o processo de constituio social, mas tambm explicar nossa capacidade de interagir compreensivamente com o outro (nossa dimenso intersubjetiva e de empatia), pois, caso contrrio, ficaramos com um conceito muito abstrato de self.

    Palavras-chave: Charles Taylor, Shaun Gallagher, Self, Narratividade.

  • ABSTRACT

    The present dissertation aims at eliciting and confronting as well two models of narrative self - Taylor's and Gallagher's - in order to examine to what extent Gallagher's position (phenomenology and cognitive sciences) could complement Taylor's (whose focus is based on an hermeneutic positioning), so as to propose an answer to questions which do not seem to be responded, according to our analysis (or questions which, nonetheless, are not reached in Taylor's horizon of discussion) in the narrative model of self as proposed by Taylor. Amidst such questions we could adduce: how do we (the self-interpreting animals) acquire our narrative capacity? What is the relation between our inter-subjective capacity and the constitution of the narrative self? Which are the cognitional elements that contribute to the enhancement of our narrativistic ability? Our hypothesis states that a thoroughly description of the self should take into account not only the process of social constitution, but it should also explain our capacity of sympathetically interacting with others (our inter-subjective empathy-driven dimension ), so as not risking, on the other way round, to remain with a very abstract conception of self.

    Key-words: Charles Taylor, Shaun Gallagher, Self, Narrativity.

  • SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................9

    CAPTULO I: CHARLES TAYLOR E O SELF NARRATIVO ........................................13 1.1. A relao entre o self e a dimenso moral. .......................................................................................................15 1.2. A crtica de Taylor ao naturalismo ...................................................................................................................19 1.3. O homem como animal autointerpretativo e o processo de constituio narrativa do Self. ..............................26 1.4. A crtica de Taylor razo desprendida (disengaged reason) de Descartes e ao self pontual (punctual self) de Locke. ......................................................................................................................................................................31 1.5. A concepo de self corporificado em Charles Taylor. ....................................................................................34 1.6. O status ontolgico do self narrativo em Taylor...............................................................................................38 1.7. Algumas observaes crticas preliminares sobre o self narrativo de Charles Taylor......................................42

    CAPTULO II: A PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR DE SHAUN GALLAGHER: FENOMENOLOGIA, HERMENUTICA, CINCIAS COGNITIVAS E O SELF NARRATIVO..................................................................................................................44

    2.1. Teoria da Teoria e Teoria da Simulao ...........................................................................................................46 2.2. A Teoria da Interao de Gallagher: a intersubjetividade primria e secundria..............................................50 2.3. Percepo, corporificao e as perspectivas de primeira, segunda e terceira- pessoas. ....................................59 2.4. Competncia narrativa. .....................................................................................................................................64 2.5. A concepo de self narrativo em Shaun Gallagher .........................................................................................66 2.6. Dois modelos de self narrativo..........................................................................................................................69 2.7. Consideraes crticas preliminares sobre o self narrativo de Shaun Gallagher...............................................75

    CAPTULO III: CHARLES TAYLOR E/OU SHAUN GALLAGHER...............................78 3.1. Uma crtica interna teoria narrativista do self de Taylor: o problema ontolgico e intersubjetivo................78 3.2. Uma crtica externa a teoria narrativista do self de Taylor: crtica concepo de naturalismo (reducionista) tayloriana. ................................................................................................................................................................85 3.3. Um exame crtico da teoria narrativista de self em Shaun Gallagher: o problema metodolgico. ...................88 3.4. Um exame crtico da teoria narrativista de self em Shaun Gallagher: o problema ontolgico. ........................90 3.5. A dimenso moral e o self narrativo em Shaun Gallagher................................................................................92

    CONSIDERAES FINAIS. ........................................................................................101

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................105

  • 9

    INTRODUO

    Esta dissertao tem como foco de pesquisa explicitar e confrontar dois modelos de self narrativo o de Taylor e de Gallagher -, para investigarmos at que ponto a posio de Gallagher (fenomenologia e cincias cognitivas) poderia ou no complementar a posio de Taylor (centrada em uma postura hermenutica), respondendo as questes que parecem ser deixadas sem resposta (ou pelo menos, no atendidas nas preocupaes de Taylor em seu modelo narrativista de self). Nossa hiptese que uma descrio mais completa do self narrativo deve levar em considerao no s o processo de constituio social de nossas individualidades e o papel que a autonarratividade desempenha em tal processo, mas tambm explicar nossa capacidade de interagir compreensivamente com o outro (o fenmeno da empatia) pois, caso contrrio, ficaramos com um conceito muito abstrato de self.

    O primeiro filsofo que vamos estudar Charles Taylor. Este filsofo canadense considerado um dos grandes pensadores da atualidade, que tem se dedicado a estudar, adotando uma perspectiva hermenutica, vrias reas do saber, que se estendem da tica e da filosofia poltica filosofia da linguagem e aspectos da filosofia da mente. O exame de sua obra revela no uma disperso de interesses, mas uma tentativa de produzir uma verdadeira antropologia filosfica1. Em um de seus livros mais importantes, Sources of the self2, Taylor procura fazer um resgate dos elementos constitutivos de nossa identidade moderna que permaneceram inarticulados ao longo do desenvolvimento da histria moral e poltica da modernidade. Para isso, Taylor desenvolve uma narrativa sobre as fontes de formao desse self moderno, que desembocar, sintomaticamente, em uma abordagem narrativista sobre o self. Isto pode ser notado quando Taylor procura mostrar como ns construmos nossas prprias autointerpretaes enquanto agentes morais, articulando nossos padres avaliativos de bens e valores. Isto tratado por Taylor em sua teoria das avaliaes fortes (strong

    1 ARAUJO, P. R.M. de. Charles Taylor: para uma tica do reconhecimento. So Paulo: Edies Loyola,

    2004. 2 TAYLOR, C. Sources of the self The making of the modern identity. Cambridge/Massachusetts:

    Harvard University Press, 1989.

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    evaluations) e da hierarquia de bens que so constituintes de nossa identidade moderna. As avaliaes fortes so aquilo que envolvem discriminaes acerca do certo ou errado, melhor ou pior, mais elevado ou menos elevado, que so avaliados por nossos desejos, inclinaes ou escolhas, mas existem independentemente destes e oferecem padres pelos quais podem se julgados3. Para Taylor, ns adquirimos essa capacidade autointerpretativa por estarmos desde j inseridos em uma comunidade que possui um background (pano de fundo) de valores e papis sociais. atravs disso, que ns compreendemos os outros e a ns mesmos. Eles formam um horizonte ou estruturas morais inescapveis para ns. A dimenso narrativista de nosso self, ou seja, a nossa condio ontolgica de sermos animais autointerpretativos4 e que, por isso mesmo, constitumos nossas identidades de forma narrativista, a explicao que Taylor d para a interiorizao da dimenso espiritual de nossa comunidade. Taylor explica essa dimenso narrativista de nosso self rejeitando qualquer recurso a aspectos sociobiolgicos e fisicalistas da animalidade humana per se, postura essa que ele chama de naturalismo. Taylor criticar esta postura mostrando as diferenas constitutivas entre o modelo de pesquisa das cincias naturais e modelo de pesquisa nas cincias humanas.

    No entanto, a nosso ver, permanecero algumas perguntas que precisam ser respondidas no modelo narrativista de Taylor, por exemplo: como ns (os animais autointerpretativos) adquirimos essa capacidade narrativista? Qual a relao entre intersubjetividade (a relao entre meu self e o outro) e o self narrativo? Quais so os elementos cognitivos que contribuem para o desenvolvimento dessa competncia narrativa? Como as configuraes morais, que formam as bases das avaliaes fortes, constituem nosso self?.

    Em sua crtica ao naturalismo e sua influncia sobre a dimenso moral do homem, Taylor no se d conta de explicar como seres constitudos biologicamente como ns podem adquirir a capacidade narrativa e se tornarem animais autointerpretativos. Se o modelo de terceira pessoa (objetivista e desengajada) das cincias naturais criticado por Taylor como insatisfatrio, parece que ele no percebe

    3 Ibidem, p. 4. Falaremos mais sobre as avaliaes fortes no decorrer deste trabalho.

    4 Mais abaixo explicaremos a dimenso ontolgica do self narrativista de Taylor e sua relao com sua

    noo de seres humanos como animais autointerpretativos.

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    os problemas que o modelo de primeira pessoa (as anlises hermenuticas e fenomenolgicas que ele faz sobre o self) tambm possui, quando se trata de explicar como adquirirmos as configuraes morais a partir das quais nos autodescrevemos narrativamente, principalmente no que diz respeito sua dimenso intersubjetiva (a relao do self com os outros selves).

    Parece que o modelo centrado em segunda pessoa resolveria melhor essa problemtica5. Esta a postura assumida pelo filsofo da mente Shaun Gallagher para explicar como ns chegamos a obter a habilidade narrativista.

    Gallagher tambm pretende estabelecer uma teoria narrativista sobre o self humano, levando em conta uma abordagem que trata tambm das questes biolgicas de como esses seres humanos alcanaram essa habilidade narrativa, atravs das capacidades corporificadas (embodied) do indivduo humano que Gallagher definir como Intersubjetividade primria6. Para explicar isso, Gallagher propor um projeto interdisciplinar que congrega a fenomenologia, a psicologia do desenvolvimento e as cincias cognitivas7, no que diz respeito descrio e explicao de nossas capacidades de autoconscincia e de compreenso das aes das outras pessoas (a chamada empatia ou cognio social), para desenvolver um modelo mais completo do self.

    Gallagher adota uma perspectiva narrativista com relao ao self, considerando a habilidade autonarrativa como constitutiva de nossa personalidade, de nossa autocompreenso e da compreenso (das intenes, desejos, razes etc.,) dos outros.

    Ao compararmos os modelos de self narrativo de Taylor e Gallagher, veremos que este ltimo no aceita esta dimenso narrativista do ser humano como algo j dado ontologicamente (como uma condio de nosso ser-no-mundo) e qual poderamos dar uma explicao somente hermenutica e fenomenolgica das relaes entre o indivduo e sua comunidade, tal como faz o primeiro. Ou seja, Gallagher quer

    5Esclareceremos mais abaixo em que consiste o modelo de segunda pessoa, quando estivermos definindo o programa de pesquisa esboado por Shaun Gallagher no estudo da intersubjetividade. 6 No segundo captulo sobre Gallagher, explicaremos os conceitos de capacidades corporificadas e

    intersubjetividade primria, bem como outros conceitos relacionados a estes, que nos ajudaro a compreender o modelo narrativista de self em Gallagher. 7 Esta possui j em si um carter interdisciplinar, pois o que hoje chamado de cincias cognitivas

    engloba os campos da filosofia da mente, neurocincia, psicologia do desenvolvimento e inteligncia artificial. Cf. WILSON, R. A. e KEIL, C. F. (Eds) The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences. Cambridge: The MIT Press, 1999.

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    produzir uma teoria que explique nossa habilidade narrativa, e no toma-l como dada, como faz Taylor. Gallagher pretende compreender as condies de possibilidade, entendidas em termos naturalistas (cognitivistas, conforme veremos) e no s hermenuticas, que permitem ao homem compreender-se a si mesmo de forma narrativista. Neste aspecto, Gallagher far algo um pouco controverso na filosofia atual, ao unir anlises fenomenolgicas, hermenuticas e empricas (das cincias cognitivas), para uma descrio mais completa, menos abstrata e mais contextualizada do self humano.

  • 13

    CAPTULO I: Charles Taylor e o self narrativo

    A tese de que os seres humanos so animais autointerpretativos8, defendida por Taylor, teve um forte impacto na filosofia das cincias sociais, na filosofia hermenutica, na historiografia e nos vrios ramos do saber que tratam de estudar o ser humano e seu comportamento no mundo9. Esta concepo de autointerpretao constitutiva do ser humano estabelecida por Taylor em contraposio s vrias abordagens cientficas, que pretendem explicar o self e o comportamento humano. Entre estas esto o Behaviorismo, os modelos de explicao da cognio humana inspirado nos computadores (funcionalismo) e teorias sociobiolgicas e neurofisiolgicas sobre o comportamento humano.

    Todas essas abordagens cientficas s quais Taylor nomeia como naturalismo, tm em comum, na perspectiva dele, uma postura fisicalista redutiva, na qual os fenmenos humanos (p.ex., o comportamento em geral, e o comportamento moral, em particular) so explicados por meio de uma reduo ao aspecto fsico e biolgico do desenvolvimento humano, explicao esta baseada na perspectiva objetivante de terceira pessoa das cincias naturais10. Por isso, Taylor criticar a transposio dos modelos de pesquisa baseados nas cincias naturais s cincias sociais, dadas as diferenas essenciais entre estes dois domnios do conhecimento11, no que tange ao objeto de pesquisa em questo.

    8TAYLOR, Charles. Human agency and language Philosophical papers I. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 45. 9 Cf. BAYNES, Kenneth. Self, narrative and self-constitution: revisiting Taylors Self-interpreting

    animals. In. The Philosophical Forum, Vol. 41, Issue 4, 2010, p. 441-457. 10

    Esta caracterstica de reduo dimenso biolgica ou fisicalista no se adapta muito bem ao funcionalismo, pois este pretende explicar o processo de cognio humana em termos computacionais, sem levar muito em conta as caractersticas fsicas do homem, conforme a tese da mltipla realizabilidade dos estados funcionais. As atividades superiores da cognio humana podem, segundo esta tese, ser instanciadas em outros meios fsicos materialmente diferentes dos crebros humanos (p.ex., computadores). Entretanto, j que o funcionalismo supe que possvel estudar a mente em termos objetivos, em terceira pessoa, ele criticado por Taylor como uma concepo que descuida da dimenso constitutiva e necessria da experincia de primeira pessoa na explicao do agir humano no mundo e de sua relao com seus semelhantes. 11

    TAYLOR, C. Philosophy and the human sciences Philosophical papers II. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.

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    Para Taylor, as idias de objetividade e neutralidade das cincias naturais no se aplicam de modo adequado quando se trata de investigar os fenmenos humanos, pois estes so constitudos por valores fundados em uma ontologia moral que possibilitam explicar o agir humano no mundo em termos, por exemplo, da escolha do melhor tipo de vida a ser aceito como o mais digno de ser vivido.

    A explicao sociobiolgica do homem inspirado pelo modelo naturalista criticada por Taylor, pois ela implica a rejeio a qualquer tipo de recurso a aspectos ontolgicos na explicao do comportamento humano, sobretudo no campo moral. Segundo Taylor, essa dimenso ontolgica que envolve necessariamente a moral, imprescindvel para compreendermos as nossas prprias aes e as de outras pessoas.

    Essa ontologia moral o pano de fundo ao qual esto ligadas as noes do que ser um agente humano, uma pessoa ou self (a maneira como nos autodescrevemos). Isto , os conceitos de bem (ou da moralidade, de forma geral), de individualidade e identidade, apresentam-se interligados de forma indissolvel no pensamento de Taylor:

    Desejo examinar vrias facetas daquilo que vou chamar de a identidade moderna. Uma boa primeira abordagem do que isso significa seria dizer que a tarefa envolve o rastreamento de vrias vertentes de nossa concepo moderna do que ser um agente humano, uma pessoa ou self. Contudo, o processo dessa investigao logo mostra que no possvel formar uma idia muito clara disso sem alguma compreenso adicional de como nossas representaes do bem evoluram. A individualidade e o bem, ou, em outras palavras, a identidade e a moralidade, apresentam-se como temas inextricavelmente entrelaados12.

    O modo como me caracterizo com relao ao tipo de vida que estou levando est vinculado a como eu avalio (bem ou mal, valiosa ou sem valor, digna ou vergonhosa, etc.,) meu ser em relao distncia ou proximidade com relao ao um bem objetivado. Para Taylor, o sujeito tem uma relao de orientao moral anloga nossa orientao espacial com relao queles bens mais valiosos que do plenitude a um modo de vida escolhido, sendo que essa caracterizao tomar necessariamente a forma de uma narrativa. A tese de Taylor que compreendemos a ns mesmos e, portanto, definimos nossos selves, na forma de uma busca (quest) pelo sentido de nossas vidas no mundo. O self humano tem, assim, uma caracterstica narrativista de

    12TAYLOR, C. 1989, p. 3.

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    ser-no-mundo. A narrativa seria o modo pelo o qual o sujeito tornaria inteligvel para si mesmo, como essa busca est sendo desenvolvida. Agora vamos examinar cada ponto do que afirmamos acima, sobre a concepo de self de Taylor, para termos uma compreenso acurada de sua concepo narrativista de self e porque ela to contrria a qualquer forma de explicao naturalizada sobre o comportamento humano. Assim, no prximo captulo, quando estivermos examinando a concepo de Shaun Gallagher sobre o self narrativo e sua proposta de dialogar com as cincias cognitivas (em particular, a neurocincia e psicologia do desenvolvimento), j estaremos em condies de entrever os pontos que separam e/ou aproximam Gallagher e Taylor. No terceiro captulo tentaremos levantar alguns questionamentos s teorias desses dois filsofos sobre o self, a fim de avaliarmos qual delas nos d uma descrio mais completa sobre o tema em questo, ou se, quem sabe, podemos obter uma terceira alternativa para caracterizarmos o self.

    1.1. A relao entre o self e a dimenso moral.

    Antes de comearmos a discutir os pontos que unem a noo de self em Taylor com os aspectos relacionados dimenso moral, vamos abrir um parntese para especificar melhor o conceito de self em relao aos conceitos de pessoa, sujeito, identidade e agente. Estes termos so distintos dentro da terminologia filosfica tradicional tanto em tica quanto na poltica. Entretanto, Taylor no se preocupa muito em fazer distines terminolgicas sobre esses termos dentro de seu pensamento. s vezes ele fala de identidade e self como termos intercambiveis ou muito prximos em significado13. Em alguns momentos, no entanto, ele faz uma distino, como quando ele

    13 Segundo Arto Laitinen: Charles Taylor usa alternadamente as noes de agncia humana,

    subjetividade humana, pessoalidade, individualidade e identidade, na defesa da afirmao que as avaliaes fortes so inescapveis [...] Entretanto, importante distinguir entre essas vrias noes. O sentido no qual a avaliao forte inevitvel para pessoalidade e para a identidade diferente. [...] A distino crucial que Taylor faz entre animais que so agentes, sujeitos e possivelmente eus (selves) em algum sentido, mas que no so capazes de avaliao forte por um lado; e entre agentes, sujeitos e eus, que so capazes de avaliao forte e, portanto, contam como pessoas, por outro lado. Pessoas so sujeitos que se autodefinem em um sentido mais forte e diferente do que outros animais podem fazer, e sua orientao na vida, sua identidade, est baseada na avaliao forte (Strong Evaluation without Moral Sources: On Charles Taylors Philosophical Anthropology and Ethics. Berlin-New York: Walter de

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    vai discutir criticamente o problema da identidade pessoal em Locke e depois em Parfit. Segundo Taylor, a ideia de identidade pessoal est ligada a noo de autoconscincia em Locke. J para Parfit, a identidade est ligada ao aspecto da continuidade psicolgica do mesmo indivduo. Mas Taylor argumenta que o que ele est chamando de self se distingue dessas duas noes de identidades, pois o self s existe no espao de indagaes morais14. Taylor, s vezes, parece nos dizer que quem est nesse status de indagao moral o que definiramos como uma pessoa. Uma pessoa um ser que possui direitos, que capaz de responder moralmente as indagaes feitas sobre ele e que possui inclusive um sentido de si mesmo como um self:

    Uma pessoa um ser com um certo status moral, ou portador de direitos. Mas subjacente ao status moral, como sua condio, esto certas capacidades. Uma pessoa um ser que tem um sentido do self, tem uma noo do futuro e do passado, que pode sustentar valores e fazer escolhas. Em resumo, pode adotar planos de vida. Pelo menos, uma pessoa deve ser o tipo de ser, que em princpio, capaz de fazer tudo isso, mesmo que na prtica algumas dessas capacidades estejam danificadas. [...] Uma pessoa um ente que pode ser questionado e que pode replicar. Vamos chamar este tipo de ser de imputvel15.

    Dessa forma, deixaremos que os termos self, pessoa, agente e identidade, sejam definidos de acordo com o contexto em que eles aparecerem nos textos de Taylor, ressaltando que nossa preocupao com a caracterizao do conceito self narrativo tayloriano. Outra explicao inicial precisa ser feita sobre o procedimento de pesquisa que Taylor utiliza para descrever o self. Existem dois planos que se complementam na anlise hermenutica de Taylor. Vamos cham-los da dimenso ontolgica e histrica

    Gruyter, 2008, p. 85 traduo nossa). Para Taylor a capacidade de perseguir e responder a exigncias morais, atravs de normas e valores, algo constitutivo e distinto de agentes enquanto seres humanos. Podemos tambm dizer que outros animais perseguem fins e objetivos em seus comportamentos, mas at onde sabemos, apenas seres humanos orientam suas vidas em busca de um fim ou bem superior, por meio de uma linguagem de avaliaes fortes (strong evaluations). No vamos nos demorar em analisar a diferena entre agentes humanos e outros animais, pois nosso intuito aqui a caracterizao do self narrativo em Taylor que diz respeito apenas aos seres humanos, j que a linguagem ter um papel crucial na definio do self narrativo (a dimenso dialgica do self). Sobre a questo do que uma pessoa humana para Taylor, Cf. The concept of a person. In. TAYLOR, C. 1985, pp. 97-114. 14

    TAYLOR, 1989, pp. 49-50ss. Veremos mais abaixo em detalhes as crticas de Taylor noo de self pontual de Locke, bem como a rejeio de Taylor ideia de self fundado em uma razo desengajada (disengaged) de Descartes. 15TAYLOR,1985, p. 97. Traduo nossa.

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    de constituio do self narrativo. Taylor faz uma escavao hermenutica e histrica das fontes de nossa identidade moderna em seu livro Sources of the self. Nessa parte histrica, ele analisa as intuies morais (ideais ticos, religiosos, polticos etc.) e as instituies (modos de governo, de formao familiar, cincias etc.,) nas quais tais intuies morais se cristalizaram ao longo do desenvolvimento de nossa sociedade ocidental. J no plano ontolgico, esto as questes inerentes ao modo-de-ser-do-humano-no-mundo. no plano ontolgico que encontramos a ideia da constituio narrativista do self16, visto que somos seres que se autointerpretam atravs de nossa linguagem, e por meio dela, construmos narrativas que do sentido s nossas vidas. Segundo Taylor, os seres humanos so o tipo de seres para quem as coisas importam. Isto algo que distingue nossa identidade ou nossa autoidentidade (a autodescrio narrativista de nosso self) de tudo o que existe no mundo. Procuramos muitas vezes em nossas vidas dirias articular as coisas que importam para ns e isso acontece por meio da linguagem. A afirmao de que ns somos seres autointerpretativos implica tambm a exigncia de sermos seres de linguagem17.

    atravs de nossos atos lingusticos e das discriminaes avaliativas corporificadas nelas que podemos interpretar e articular o que importa para ns, o que valioso e o que constitui uma vida boa. Baseando-se na bem conhecida tese de Wittgenstein sobre a impossibilidade da linguagem privada18, Taylor afirma que somos seres de uma dimenso lingustica pblica incontornvel. Em nossa linguagem esto presentes termos que, segundo Taylor, so inevitveis, como valores, o bem, desejos, emoes, aspiraes etc., que definem o que bom e ruim, valioso ou desprezvel, e assim por diante. O modo como nos autodefinimos tem um carter avaliativo e, portanto, est ligado essencialmente ao campo moral. Taylor afirma que o estabelecimento de valores s tem sentido atravs de uma linguagem de contrastes, isto , em comparar algo que mais valioso, com outro que menos valioso. Surge a ideia de uma avaliao forte (strong evaluation) para Taylor, na qual, o self julga e avalia aquilo que de primordial

    16 Para mais comentrios sobre esses dois registros de pesquisa de Taylor, Cf. ABBEY, Ruth. Charles

    Taylor. Princenton; Princenton University Press, 2000. 17

    Cf. TAYLOR, C. 1985, pp. 215-290. 18

    Cf. WITTGENSTEIN. Investigaes Filosficas. Trad. Pablo R. Mariconda. So Paulo: Nova Cultural, 1989.

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    importncia para ele. A avaliao forte diz respeito maneira como fao distines qualitativas sobre modos de agir e de desejar alternativos, e maneira como decido quais deles so melhores a seguir. Taylor afirma que o self constitudo por suas autointerpretaes, mas, ao mesmo tempo, essas interpretaes (por causa de sua dimenso lingustica pblica) esto sempre em uma rede de interlocuo e, portanto, nosso self sempre dialgico. Ou seja, nossas autointerpretaes levam em conta sempre o modo como os outros nos descrevem. nessa rede de interlocuo em que eu ganho e afirmo minha identidade:

    Isto o sentido no qual no se pode ser um self por si mesmo. S sou um self somente em relao a certos interlocutores: de um lado, em relao aos parceiros de conversao que foram essenciais para que eu alcanasse minha autodefinio; de outro, em relao aos que hoje so crucias para a continuidade da minha apreenso da linguagem de autocompreenso e, claro, essas classes podem sobrepor-se. S existe um self no mbito do que eu chamo de redes de interlocuo19.

    Taylor nos afirma, apoiando-se nas anlises hermenuticas de Heidegger sobre a dimenso intersubjetiva do Dasein com os outros no mundo (a ideia do Mitsein ou ser-com), que sempre existe um background20, o qual se constitui como um horizonte ou uma estrutura a partir da qual ns avaliamos nossos juzos, intuies ou reaes morais. Ou seja, Taylor afirma que ns ao virmos ao mundo, j estamos desde sempre inseridos em redes de significao a partir das quais avaliamos nossas vidas e nos constitumos em nossas autointerpretaes. Podemos interpretar que esse background formado pelas as orientaes do modo de vida, as escolhas de valores e regras etc., que se constituem como uma espcie de configurao moral de minha comunidade.

    Procurar articular essas configuraes morais justamente buscar o sentido ou significado que torna um tipo de vida melhor ou mais valiosa do que outra21. O processo de articulao , para Taylor, o modo como ns identificamos, explicitamos, empoderamos e tornamos presentes para o indivduo, os aspectos morais que

    19 TAYLOR, C. 1989, p. 36.

    20 Cf. TAYLOR, C. Engaged agency and background in Heidegger. In. The Cambridge companion to

    Heidegger. Cambridge: Cambridge university press, 1993. 21

    TAYLOR, C. 1989, p. 26.

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    constituem nossa comunidade. Essas configuraes so incontornveis para o self22. Ao se perder essas configuraes se perdem tambm as dimenses essncias de quem ns somos. Taylor procura combater toda viso naturalista sobre o self. Essa concepo vem do sucesso das cincias naturais e, passando a adentrar nas cincias humanas, busca explicar o comportamento humano na perspectiva de terceira-pessoa. Algumas teorias naturalistas pretendem inclusive reduzir ou mesmo eliminar muitos dos termos de nossa linguagem avaliativa. Em contraposio a isso, Taylor argumenta que impossvel abrir mo dessas estruturas ou horizontes avaliativos, pois viver nesses horizontes constitutivo do agir humano em relao ao outro e com o mundo. No podemos abrir mo dessas linguagens substantivas de nossos horizontes morais, que envolvem tambm termos mentalistas como crena, desejo, razes etc., sem perder aquilo que conhecemos como sendo uma pessoa completa23.

    1.2. A crtica de Taylor ao naturalismo

    Em sua tese de doutorado, que foi publicada com o ttulo The explanation of Behaviour24, Taylor j tinha como alvo de crtica a tendncia naturalista de explicao do ser humano inspirada nos mtodos das cincias naturais (seus objetivos de mensurao, objetividade e neutralidade). Seu alvo principal foi o Behaviorismo e os tericos do estmulo-resposta (como B. F. Skinner, Ivan P. Pavlov e John B. Watson). Taylor rejeita as explicaes fundadas em tentativas de explicar o comportamento humano por simples movimentos (reflexos, aprendizagem mecnica por repetio etc.,) regidos por leis no-teleolgicas e causais. Segundo Taylor, a explicao do comportamento de seres animados, em particular os seres humanos25, s pode ser feita

    22 Podemos discutir o contedo dessas configuraes, mas aqui no importante para o argumento de

    Taylor. A incontornabilidade no est numa configurao de tipo particular a uma dada cultura. Mas, a incontornabilidade est em que todas as culturas tm alguma configurao avaliativa. 23

    TAYLOR, C. 1989, p. 27. 24

    TAYLOR, C. The explanation of Behaviour. London: Routledge ,1964. 25

    Em The explanation of Behaviour, Taylor tambm discute se podemos explicar o comportamento de animais (pelo menos os superiores) tal como explicamos o comportamento humano (como comportamento orientado a fins e objetivos, portanto, atravs de explicao teleolgica), ao contrrio das explicaes que fornecemos sobre objetos inanimados. No vamos entrar nessa discusso pois no interessa ao nosso objetivo aqui, a saber: a noo de self narrativo. Conferir nota 13 deste trabalho.

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    com base em termos teleolgicos, pois os seres humanos possuem fins e objetivos ao agirem e, portanto, nossos movimentos no podem ser entendidos simplesmente em termos causais e mecnicos, por serem orientados para a realizao de nossos propsitos e intenes. Ou seja, os seres humanos no apenas se movimentam como os outros objetos fsicos, mas eles agem. Seu proceder uma ao26. Ao realizarmos uma ao, ns agimos para alcanar um fim objetivado. Isso implica que somos seres intencionais. Assim sendo argumenta Taylor, a linguagem mentalista (desejo, propsito, objetivo, intencionalidade etc.,) constitutiva de nossas autocompreenses (de nossos selves) e no pode ser abandonada em favor de uma linguagem objetivista e cientfica como querem alguns pensadores27. Taylor argumenta que mesmo estes que pretendem eliminar nossa linguagem ordinria mentalista e avaliativa com que nos descrevemos, no conseguem, eles mesmos, deixar de usar esses termos em suas vidas cotidianas. Eles continuam a avaliar e a julgar o comportamento dos outras pessoas, bem como as suas prprias aes, por meio desses termos mentalistas. Taylor argumenta que se eu no posso dar uma melhor descrio, uma que substitua um conjunto de princpios por outros, por que ento eu deveria esforar-me a adquirir uma linguagem objetivista e cientfica com relao aos meus hbitos de discriminao, se eu continuo a usar a velha linguagem mentalista, que me orienta, de forma muito mais efetiva, na minha vida cotidiana. Entre os termos da linguagem na qual nos orientamos em nossas vidas dirias, esto aqueles segundo os quais avaliamos nossa maneira de viver (e atravs disso definimos quem ns somos, ou seja, nosso self), bem como avaliamos a vida dos outros que nos cercam. uma linguagem discriminatria, na qual esto presentes nossas mais profundas intuies morais.

    Segundo Taylor, em sua anlise das fontes da identidade moderna, muitas das nossas intuies morais, que esto ligadas noo de avaliaes fortes (strong

    26 Ibidem, pp. 3-53.

    27 Entre estes pensadores que Taylor critica est B. F. Skinner. Este ltimo defende que referncias aos

    estados mentais internos ao organismo so dispensveis. Pelo contrrio, Skinner quer eliminar esses termos mentalistas (inobservveis) em favor da adoo de temos cientficos (considerados por ele) mais adequados, fundados em uma psicologia digna deste nome, ou seja, uma psicologia que tem o comportamento como objeto, e no pretensos estados mentais internos. Para uma viso maior dessa perspectiva, Cf. SKINNER. B. F. Beyond freedom and dignity. USA: Penguin Books Ltd, 1971; SKINNER. B.F. Science and behavior human. Cambrigde, Massachusetts: B.F. Skinner Foundation, 2005.

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    evaluations), esto arraigadas em nossa maneira de definirmos nossa prpria identidade, como, p.ex., o respeito vida, integridade, ao bem-estar e tambm prosperidade dos outros que esto unidos quase sempre a uma perspectiva que leva em conta uma dada ontologia do humano. Esta ontologia explicaria porque algo digno ou no de nossa aceitao moral:

    Todo o modo pelo qual pensamos, refletimos, argumentamos e nos questionamos sobre a moralidade supe que nossas reaes morais tm esses dois lados: no so apenas sentimentos viscerais, mas tambm reconhecimento implcito de enunciados concernentes a seus objetos.(...) As explicaes ontolgicas tm o estatuto de articulaes de nossos instintos morais. Elas articulam as afirmaes implcitas em nossas reaes. No mais podemos argumentar sobre elas quando assumimos uma instncia neutra e tentamos descrever os fatos tais como so, independentemente dessas reaes, como fizemos nas cincias naturais desde o sculo XVII. claro que existe uma objetividade moral. A evoluo da introviso moral requer com frequncia que neutralizemos algumas de nossas reaes. Mas isso ocorre para que as outras possam ser identificadas, percebidas e descobertas por meio de cimes mesquinhos, egosmo ou outros sentimentos indignos. Nunca se trata de prescindir por inteiro de nossas reaes28.

    A ontologia acima exposta implica na adoo, por parte de Taylor, de uma concepo realista da moral, no qual os valores tm uma objetividade independente da mera projeo de meus desejos e inclinaes, isto porque eles funcionam como padres qualitativos de avaliao de minha conduta:

    Falei no pargrafo anterior de nossas intuies morais e espirituais. (...) O que elas tm em comum com questes morais, e o que merece o termo vago espiritual, o fato de todas envolverem o que denominei alhures de avaliao forte, isto , envolverem discriminaes acerca do certo ou errado, melhor ou pior, mais elevado ou menos elevado, que so validadas por nossos desejos, inclinaes ou escolhas, mas existem independentes destes e oferecem padres pelos quais eles podem ser julgados. Assim, embora possa no ser julgado um lapso moral o fato de eu levar uma vida que na verdade no vale a pena e nem traz realizao, descrever-me nesses termos , de certo modo, condenar-me em nome de um padro, independente de meus prprios gostos e desejos, que eu deveria reconhecer29.

    Se o realismo moral proposto pela perspectiva tayloriana est correto, ento uma teoria de tipo sociobiolgica ou externa de explicao do fenmeno moral seria insuficiente para esclarecer como de fato ns discutimos, refletimos e deliberamos em nossa vida prtica. Neste ponto, Taylor acha que termos como crena, emoo e

    28 TAYLOR, 1989, pp. 7-9.

    29 Ibidem, p. 4.

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    desejo (que so termos de nossa linguagem mentalista), que so importantes nessas deliberaes e autodescries, so irredutveis a qualquer descrio fisicalista. Na viso de Taylor, nossas emoes, crenas e desejos, so aspectos cruciais. Elas definem algo como significativo para ns, como uma coisa com a qual definimos e avaliamos aquilo que de alto valor para ns, a qual Taylor chama de import30. Taylor identifica que um import aquilo que constitudo pelas as aspiraes e sentimentos mltiplos do sujeito, que so necessrias para a definio do tipo de escolhas ou modos de vida que so melhores do que outras. O import conceituado por Taylor como o ato mesmo de compreender um sentimento em toda a sua profundidade:

    Mas os imports tm uma lgica diferente. A minha primeira afirmao, portanto, pode ser colocada desta maneira: que o experienciar de uma dada emoo envolve a experincia de nossa situao como incorporando um certo import, no qual, para a atribuio e definio desse import, no suficiente somente que eu me sinta deste jeito, mas ao contrrio, o import d os fundamentos ou as bases para o sentimento. E isto a mesma coisa como dizer que uma emoo envolve a construo explcita de sentido da situao na qual ela se incorpora, ou, em nossos termos presentes, o significado da situao como ns a experienciamos31.

    De acordo com Taylor, ns s podemos articular nossas crenas, desejos e sentimentos por meio da linguagem, pois, para ele, o homem por natureza um animal autointerpretante. H, assim, uma relao indissolvel entre linguagem, sentimentos e imports. pela linguagem que o homem capaz de articular seus sentimentos que se encontram por vezes relacionado de uma forma fragmentria. Dessa forma, o ser humano chega ao que Taylor define como as avaliaes fortes (strong evaluations), que estabelecero os padres avaliativos de nossas escolhas mais significativas.

    Entretanto, Taylor no quer dizer que nossas escolhas so subjetivas por levarem em conta nossas emoes. Segundo ele, no se pode reduzir o plano moral humano a uma perspectiva subjetivista e nem naturalizar as aes e escolhas humanas na forma de uma emanao (epiphenomenon) da natureza emocional humana:

    Eu queria apenas articular um pouco o padro de clareza e objetividade, isto , de uma descrio clara do que as coisas so objetivamente, contra a qual a

    30 Import um termo que Taylor utiliza, oriundo do contexto da arte, que denota algo sublime e belo.

    Import poderia ser traduzido por significado, importncia, sentido e algo de alto valor. Entretanto, todas estas tradues esto embutidas no conceito de import, tal como Taylor utiliza. Assim, ns preferimos deixar o termo no original para preservar todos esses sentidos. 31

    TAYLOR, C. 1985, p. 46. Traduo nossa.

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    concepo do homem como autointerpretante tem de resistir sempre. Por isso, essencialmente, esta concepo autointerpretativa do homem se ope reduo da experincia a uma viso meramente subjetiva da realidade, ou um epifenmeno, ou a uma descrio confusa. Pelo contrrio, a alegao que a interpretao de ns mesmos e de nossa experincia constitutiva do que somos e, portanto, no pode ser considerada como meramente uma viso sobre a realidade, separvel da realidade, nem como um epifenmeno, que poderia ser contornado em nossa compreenso da realidade32.

    Taylor afirma que qualquer proposta de naturalizao fracassaria, pois ela parte de uma concepo errada do self como um eu desprendido (disengaged self). Taylor usa aqui, mais uma vez, sua teoria das avaliaes fortes (strong evaluations) para mostrar que parte de nossos desejos e aspiraes esto associados a uma determinada configurao que atua como instncia avaliativa de nossos desejos e das aes deles decorrentes. Essas configuraes permitem discriminar uma hierarquia de bens e at a formular uma idia de hiperbens, que no dependem do indivduo em si mesmo, mas j esto postos pelas formas avaliativas na cultura de determinada comunidade:

    O que venho chamando de configurao incorpora um conjunto crucial de distines qualitativas. Pensar, sentir, julgar no mbito de tal configurao operar com uma convico de que alguma ao ou modo de vida ou modo de sentir incomparavelmente superior aos outros que esto mais imediatamente ao nosso alcance (...) E esse o ponto em que a incomparabilidade vincula-se ao que denominei avaliao forte: o fato de que esses fins ou bens tm existncia independente de nossos desejos, inclinaes ou escolhas, de que representam padres com base nos quais so julgados esses desejos e escolhas. H obviamente duas facetas interligadas do mesmo sentido de valor superior. Os bens que merecem nossa reverncia tambm tm de funcionar em algum sentido como padres para ns33.

    Sobre as avaliaes fortes, Taylor se baseia na distino feita por Harry Frankfurt sobre desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem34. Segundo essa concepo, os desejos de primeira ordem so desejos que os homens compartilham com os outros animais, como o desejo de comer, de acasalamento e de fugir do perigo, por exemplo. Mas os seres humanos tm tambm um comportamento motivado por sentimentos negativos ou positivos sobre os seus prprios desejos. Ou seja, os seres humanos tm a capacidade de avaliar seus prprios desejos e, a partir dessas

    32 Ibidem, p. 47.

    33 TAYLOR, C. 1989, pp. 19-20.

    34 Cf. FRANKFURT, H. G. Freedom of the will and the concept of a person In. WATSON, G. (Ed). Free

    Will. Oxford: Oxford University Press, 1982, pp. 81-95.

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    avaliaes, eles podem agir (se sentem impelidos a agir pelo menos) com base nessas avaliaes35.

    Com base nessa ideia de Frankfurt, Taylor argumenta que nossas avaliaes e escolhas que tm como base os desejos, digamos, de escolher entre dois tipos de sabores de sorvetes, um dos quais favorecido com base apenas no desejo mais forte, um tipo de escolha avaliativa que ele chama de avaliao fraca (weak evaluation). Mas uma coisa completamente diferente quando estamos em uma situao de avaliao na qual estamos julgando o valor de nossos prprios desejos em situaes de alternativas contrrias ou contrastantes36. Esse tipo de avaliao o que Taylor caracteriza como avaliao forte (strong evaluation) e ela que est na base dos julgamentos morais, das escolhas dos bens mais significativos em nossa vida e, tambm, do fundamento de qual tipo ou modo de vida mais digno ou valioso de ser vivido. Este tipo de avaliao forte o que os seres humanos esto constantemente fazendo em suas vidas.

    As avaliaes fortes so imprescindveis para a constituio de nossa narrativa pessoal, ou seja, so responsveis pela maneira como nos autocompreendemos e compreendemos os outros e no podem, segundo Taylor, ser simplesmente deixadas de lado, como apregoam certas correntes naturalistas:

    Teorias como o comportamentalismo ou certas correntes da psicologia cognitiva contempornea, influenciadas pelo computador, que declaram a fenomenologia irrelevante em princpio, baseiam-se em um erro fatal. Elas esto mudando de assunto na expresso adequada de Donald Davidson. O que precisamos explicar so as pessoas vivendo suas vidas; os termos em que elas no tm como evitar de viver no podem ser removidos do explanandum, exceto se pudermos propor outros termos em que elas possam viver com mais sabedoria. No podemos simplesmente nos livrar por inteiro desses termos com base na idia de que sua lgica no se enquadra em algum modelo de cincia e de que sabemos a priori que os seres humanos tm de ser explicados nessa cincia. Isso exige a pergunta: De que maneira podemos saber que os seres humanos podem ser explicados por alguma teoria cientfica at que expliquemos de fato como eles vivem sua vida nos termos dessa teoria?37

    Na viso de Taylor, toda teoria cientfica que pretende explicar o comportamento humano, principalmente o moral, a partir de um ponto de vista no-realista com relao

    35 Ibidem, pp. 82, 83.

    36 Cf. TAYLOR. What is Human Agency In. TAYLOR, C. Human agency and language Philosophical

    papers I. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, pp. 16-44. 37

    TAYLOR, 1989, p. 58.

  • 25

    aos valores de nossas avaliaes fortes, como meras projees de nossos desejos sobre uma ordem neutra de coisas, uma teoria cientfica que pretende reduzir muitos dos elementos constitutivos que compem o mundo espiritual da cultura humana ao aspecto simplesmente fsico, ou seja, uma teoria reducionista e fisicalista da pessoa humana. Por exemplo, se eu pretendo explicar o comportamento moral ou a ao racional, apenas como um tipo de comportamento resultante do fato de o animal humano necessitar dele para sua sobrevivncia durante seu processo evolutivo; ento, estarei esvaziando esse aspecto do humano de seu valor intrnseco e de sua importncia com relao definio de quem realmente somos e de nossa singularidade em relao a todos os outros seres que compem a natureza. Para Taylor, essa tendncia reducionista do naturalismo38, que pretende dar uma explicao de terceira pessoa do fenmeno moral, fruto da predominncia da concepo epistemolgica39 que vem de Descartes a Quine. O reducionismo naturalista produziria, segundo Taylor, no apenas uma confuso para o conceito de razo prtica, mas tambm uma viso distorcida da constituio do agente moral, concebendo-o como um self desprendido (disengaged)40, que observa neutramente um mundo exterior a ele. Esta confuso se deve ao fato de que as tentativas naturalistas de explicao do comportamento humano possuem uma concepo inarticulada de valores e bens implcitos em sua maneira de explicar o agir humano, ou seja, elas pressupem sem saber ou sem poder articular, uma instncia qualitativa e hierrquica de valores

    38 Entretanto, vale a pena observar que alguns autores j apontaram que as crticas de Taylor recaem

    sobre um naturalismo que reducionista. Mas Taylor no se atentou para a possibilidade de uma espcie de naturalismo no-redutivo. Por exemplo, Kennett Baynes aponta para modelos de explicao no-reducionista de como o crebro gera a mente, como o de Joseph LeDoux. Richard Rorty tambm aponta uma postura de fisicalismo no-redutivo que ele v em Donald Davidson. Como veremos, Shaun Gallagher tambm, de certa forma, vai propor uma concepo do self narrativo que pode ser pesquisado e complementarmente estudado pela hermenutica e fenomenologia, como pela psicologia do desenvolvimento e neurocincias. O que Gallagher vai propor um modelo compatibilista entre hermenutica e cincias cognitivas no estudo do self humano, o que seria uma espcie de naturalismo no redutivo. Veremos como Gallagher faz isso no prximo captulo. Sobre os autores acima mencionados, Cf. BAYNES, Kenneth. Self, narrative and self-constitution: revisiting Taylors Self-interpreting animals. In. The Philosophical Forum, Vol. 41, Issue 4, 2010, p. 441-457 e RORTY, R. Taylor on Self-celebration and gratitude. In. Philosophy and Phenomenological Research. 54, 1994, pp. 197-201. 39

    Vamos ver mais sobre isso logo abaixo, Ver. Seo 1.4 deste trabalho. 40

    Falaremos mais na frente sobre isso, quando tratarmos das crticas que Taylor faz razo desprendida de Descartes.

  • 26

    (apoiado naquilo que Taylor chama de configuraes) que servem de guia para o agir humano.

    1.3. O homem como animal autointerpretativo e o processo de constituio narrativa do Self.

    Como temos visto at aqui, na viso de Taylor, o self constitudo por meio de um lao comunicativo e interativo com os outros e, por causa disso, o ser humano consegue compreender a si prprio e aos outros41. As autointerpretaes que constituem o self, na perspectiva de Taylor, indicam que o indivduo est constantemente se engajando em prticas com os outros, a fim de reforar sua busca por autenticidade. Este processo acontece por meio da linguagem, que nos lana para um mundo j pleno de significados, contendo horizontes valorativos com base nos quais o sujeito vai se constituindo narrativamente e, portanto, definindo seu lugar nesses espaos significativos, se posicionando com relao distncia do bem e da realizao de sua vida. J tocamos na questo da linguagem mais acima42, mas vamos voltar a este assunto, pois ele crucial aqui. Para Taylor, a filosofia do sculo XX fez da linguagem o problema principal. E a preocupao pela linguagem diz respeito questo do significado. Da tambm a fora crescente do ramo da hermenutica dentro da preocupao dos pensadores sobre a filosofia da linguagem43. Taylor tem a convico de que a questo da linguagem tem a ver com o tema da natureza humana. A

    41 Essa caracterstica chamada de empatia. Esta a nossa capacidade de nos colocarmos na situao

    do outro e, assim, compreendermos suas crenas, desejos, aspiraes etc., como se estivssemos passando pela mesma situao em que outra pessoa se encontra. As teorias dominantes na filosofia da mente que tentam explicar como compreendemos os outros so a Teoria da teoria e a Teoria da simulao. A primeira nos diz que usamos uma teoria sobre os estados mentais para podermos explicar e prever os comportamentos dos outros. A segunda nos diz que executamos uma rotina de simulao tendo como modelo nossas prprias mentes e, atravs disso, simulamos o que poderia estar acontecendo na mente dos outros. Gallagher, por vrios motivos, vai criticar ambas as teorias, propondo uma teoria prpria, a teoria da intersubjetividade primria, que uma forma no conceptual, corporificada e engajada de nos relacionarmos com os outros. Deixemos para o prximo captulo sobre Gallagher, para esclarecermos mais sobre estas idias e seus problemas. Por ora, levantamos o questionamento se a teoria hermenutica e narrativista de Taylor tal como ns temos compreendido at agora consegue nos dar uma explicao melhor para nossas prticas de nos engajarmos com os outros de forma inteligvel. 42

    Ver pginas 16 e 17 desta dissertao. 43

    Cf. TAYLOR, 1985, pp. 215, 216.

  • 27

    expresso lingustica o mbito no qual ns apreendemos o significado do mundo, onde temos a conscincia do mundo, dos outros e de nosso lugar em relao a eles. A teoria de Taylor sobre a linguagem que ela o locus essencial onde se constitui a atividade de nossa autoconscincia e de nossa separao e diferenciao dos outros. Isto se deve ao fato de que toda a linguagem se desenvolve sobre um pano de fundo que j est l, o qual ns no dominamos completamente, mas que precisamos desvelar e dar significado ao mesmo. Ou seja, a linguagem constitui as coisas que esto diante do indivduo. Ela apresenta um mundo para ns. A linguagem se desenvolve sempre em uma esfera pblica de significaes. A linguagem tem um papel importante para ns, no sentido de que ela permite que expressemos nossos sentimos e emoes perante os outros. Assim podemos articul-las em um espao pblico, pois todos esto abertos a esta dimenso. Isto quer dizer que muitas vezes no podemos entender nossas prprias emoes e reaes, at que as articulemos perante os outros, no espao pblico de interrogaes e, atravs disso, conseguimos obter clareza sobre ns mesmos. E a articulao da linguagem implica que ns constituamos uma viso de mundo prprio, diferente da dos outros, sendo importante para constituio e definio de nossa identidade, ou melhor, de nosso self. A linguagem torna-se fundamental para nossa autodescrio. Segundo Taylor, outro fator de fundamental relevncia da linguagem que, atravs de sua articulao, o ser humano capaz de reconhecer interesses de suma importncia para ele. Quer dizer, o ser humano capaz de reconhecer padres morais e valorativos, de acordo com as quais, ele deve pautar sua vida:

    Mas est aberto a este tipo de significncia, por exemplo, reconhecer que alguns atos tm um status especial, porque eles preenchem algum tipo de padro; para fazermos este tipo de reconhecimento necessrio termos linguagem. Porque j no estamos falando de uma discriminao que seja mostrada em nosso comportamento, somente porque tal discriminao seja constituda no prprio comportamento. Um gato pode exibir determinado tipo de comportamento. Mas nenhum mero padro de comportamento bastaria para induzir-nos a chamar um dado ente (no caso, o gato) de um sujeito moral. O que ns exigimos seu reconhecimento de padres44.

    No podemos, na viso de Taylor, conceder status moral a uma pessoa que no possa expressar o reconhecimento de sua prpria ao, por meio de algum princpio

    44 Ibidem, p. 262. Traduo nossa.

  • 28

    moral, ou de sua ao como orientado para algum bem que ele deve realizar. A linguagem expressiva para Taylor no s porque ela capta os sentidos e significados de algo, mas porque, ao articular as coisas em nosso entorno, ns tambm damos significaes a elas. E no caso da dimenso moral, somente pela a articulao lingustica pode o sujeito dizer o que importante e o que exige a sua conduta de acordo com algum padro ou horizonte moral. A linguagem tem trs caractersticas centrais para Taylor: primeiro, ela articula e d significado s coisas e, portanto, nos proporciona uma autoconscincia em relao a essas mesmas coisas. Segundo, ela instaura um espao pblico de indagaes e significaes. E por fim, ela nos permite fazer discriminaes valorativas sobre questes morais:

    Existem trs coisas que se faz com a linguagem: construir articulaes e, dessa forma, chegar conscincia explcita; pe as coisas no espao pblico, e por meio disso constitui o espao pblico; fazer discriminaes as quais so fundamentais para os interesses humanos e, portanto, abri-nos para esses interesses. Estas so as funes para as quais a linguagem parece indispensvel45.

    por meio da linguagem que ns somos inseridos na dimenso da comunidade na qual nascemos. H assim uma estreita ligao entre essa dimenso lingustica e a concepo de self que Taylor defende. O self , em parte pelo menos, constitudo socialmente, atravs do dilogo constante com os outros. A narrao segundo qual definimos nosso self no envolve s o modo como eu me compreendo (minha autoimagem), mas ela leva em conta tambm sempre o que os outros dizem de mim (a imagem que eles tm sobre mim). Vivemos desde sempre em mundo de significaes que so possibilitadas em primeiro lugar na comunidade onde estamos inseridos.

    A tese de Taylor que a linguagem no se desenvolve fora da comunidade. O uso e desenvolvimento da linguagem acontecem por meio do uso e das significaes que se adquirem na comunidade humana. Por exemplo, a elaborao de projetos a serem realizados como significativos, s pode ser descrito como tal e buscado sob os parmetros que nossa comunidade coloca ao nosso alcance, pois ela estabelece os horizontes significativos segundo os quais devemos orientar nossa busca por realizao pessoal.

    45 Ibidem, p. 263. Traduo nossa.

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    A argumentao de Taylor que sem a comunidade no haveria a linguagem sobre coisas significativas e no-significativas, pois a comunidade estabelece esses parmetros. Mas sem a linguagem tambm no poderamos agir como seres morais, pois no poderamos definir o que significativo ou no para ns e para os outros tambm. Sem essa capacidade de discriminao no podemos definir nosso self e nossa alteridade com relao aos outros. Portanto, em nossa comunidade inicial46 e por meio da linguagem, que compreendemos quais so as coisas de importncia maior (a questo do bem), que definimos nossa identidade e alteridade em relao aos outros e podemos criar uma narrativa sobre quem somos.

    Agora uma questo surge para ns: por que a forma narrativa parece ser a mais adequada para expressarmos nosso self por meio do dilogo com os outros? Segundo Taylor porque a estrutura da narrativa nos d a ideia de uma busca47 (e portanto, ainda no realizada plenamente) que envolve a dimenso temporal e a possibilidade de redefinies de quem ns somos. Afinal, com base nas opinies dos outros e com base nas minhas prprias articulaes interiores, eu posso mudar de direo quanto ao bem que eu estou buscando e ao tipo de vida que avalio por ser o mais proveitoso. Dessa forma, a narratividade envolve a possibilidade, j que estou em dilogo com os outros, de eu integrar as narraes (histrias de vida) de outras pessoas com a minha prpria, dando uma articulao coerente no espao e tempo em que me encontro.

    Taylor se apia nas anlises de Heidegger sobre as ekstaseis48, para mostrar que a ligao entre a constituio narrativa de nosso self, a dimenso temporal e nossa posio com relao ao bem no um fator contingente, mas necessrio:

    Podemos ver isto em duas dimenses, a ekstaseis passada e futura de que fala Heidegger. No tenho um sentido de onde estou/o que sou, conforme eu argumentei acima, sem alguma compreenso de como cheguei onde estou ou me tornei quem eu sou. Meu sentido de mim mesmo de um ser que est evoluindo e se tornando. da prpria natureza das coisas que isso no possa

    46 claro que eu posso sair de uma comunidade para outra. Ou mudar meu horizonte cultural. Mas isso

    no muda o fato de que minha primeira formao e constituio com relao a minha identidade tenha envolvido um dilogo com os da minha primeira comunidade. Alis, por meio disso, por exemplo, que posso dialogar com outras formas de culturas e at mudar meu horizonte cultural. Mas isso se d agora, tambm, no dilogo permanente com os outros dessa nova cultura. 47

    Essa ideia de busca, Taylor assume de Alasdair MacIntyre, o qual tambm possui uma noo de um self que se desenvolve no intercmbio comunicativo permanente com a sua comunidade. Cf. MACINTYRE, A. Depois da virtude. Trad. Jussara Simes. Bauru-SP: EDUSC, 2001. 48

    Cf. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Trad. Mrcia S C. Schuback. Petrpolis: Vozes, 2009.

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    ser instantneo. No s que eu precise de tempo e de muitos incidentes para separar o que realmente fixo e estvel em meu carter, em meu temperamento e em meus desejos, daquilo que varivel e mutvel, se bem que isso seja verdade. tambm que como um ser que evolui e se torna, s posso conhecer a mim mesmo por meio da histria de minhas maturaes e regresses, superaes e fracassos. Minha autocompreenso tem necessariamente profundidade temporal e incorpora a narrativa49.

    Em outras palavras, o que Taylor quer afirmar so trs coisas: 1) Para que eu compreenda a minha vida e minha identidade, eu necessito de uma orientao para o bem. J vimos que h uma ligao indissolvel, no pensamento de Taylor, entre self e o bem; 2) O significado do bem tem que ser corporificado na minha vida como uma histria em andamento, como uma busca, pois eu estou indo em direo ao bem. A ideia de busca requer os conceitos de florescimento e de desenvolvimento para aquele objetivo ou meta. A vida feita de progressos e retrocessos. E por fim: 3) Essa busca, j que de uma jornada de autodescobrimento e de (re)descries de si mesmo, tomar a forma de uma narrativa, e o self ser o resultado dessa narrativa. Agora, o self, tal como Taylor o descreve, no pode ser identificado com alguma verso de self mnimo ou nem com uma concepo tal como a de Daniel Dennett que v o self como centro de gravidade narrativa50, isto , concebendo o self como entidade apenas ficcional. Ao contrrio, a concepo de Taylor ser de um self real, e os elementos que fazem parte da constituio do self narrativo (os valores, os bens, os termos mentalistas, as avaliaes fortes etc.,) so constituintes necessrios (ontolgicos) do self narrativo. Vamos agora abordar esses aspectos ontolgicos do self narrativo em Taylor com mais detalhes, mas antes exporemos a diferena entre a noo de self em Taylor e duas outras concepes sobre o sujeito humano, a saber: a ideia de razo desprendida

    49 TAYLOR,1989, p. 50.

    50 Cf. DENNETT, D. The self as Center of narrative gravity. In F. KESSEL, F, COLE P. AND JOHNSON,

    D. (eds), Self and Consciousness: Multiple Perspectives, Hillsdale, NJ: Erlbaum, 1992. No prximo captulo sobre Shaun Gallagher iremos discutir algumas concepes filosficas em voga sobre o self, em um artigo interessantssimo de Gallagher, intitulado Philosophical conceptions of the self: implications for cognitive science. Assim, poderemos ver como Gallagher vai unir discusses narrativistas do self com estudo emprico nas cincias cognitivas. Para uma crtica a Dennett, a partir da perspectiva de self narrativo de Taylor, cf. FONSECA, J. S. D. Manipulao gentica e a crise da identidade moderna: Taylor, Dennett e o naturalismo tardio In. Sntese Revista de Filosofia. Vol. 31, n. 99, 2004, pp. 65-90. Tambm conferir a crtica do prprio Taylor Dennett, em: TAYLOR, C. Engaged agency and background in Heidegger. In. The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge: Cambridge university press, 1993.

  • 31

    em Descartes e a concepo de self pontual em Locke, as quais Taylor criticar. Assim, teremos uma viso mais prxima do que Taylor compreende como o modo de ser do self narrativo.

    1.4. A crtica de Taylor razo desprendida (disengaged reason) de Descartes e ao self pontual (punctual self) de Locke. Taylor totalmente contrrio noo de razo desprendida de Descartes, segundo a qual, nosso eu estaria fundado em nada mais que em nossa razo (o eu penso ou cogito de Descartes), abstrada de tudo o que h na natureza e do nosso prprio corpo51. Para Descartes, o eu (ou self na terminologia de Taylor52) consiste somente em uma coisa ou substncia que pensa e inextensa, abstrada de tudo o mais que compe o mundo:

    E, portanto, pelo prprio fato de que conheo com certeza que existo e que, no entanto, noto que no pertence necessariamente nenhuma outra coisa minha natureza ou minha essncia, a no ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essncia consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substancia da qual toda essncia ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, j que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que apenas uma coisa extensa e que no pensa, certo que este eu, isto , minha alma, pela qual eu sou o que sou, inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ele pode ser ou existir sem ele53.

    Depreende-se da postura de Descartes que o eu consiste na razo e esta tem como caracterstica essencial a funo de pensar. Esta funo, por sua vez, consiste em ter ideias (algumas obscuras e outras claras e distintas) sobre as coisas que compem o mundo. Dessa forma, Taylor identifica nessa teoria de Descartes, a viso moderna de conhecimento como representao que definida como a capacidade de

    51 Cf. DESCARTES. O Discurso do Mtodo; Meditaes Metafsicas. Trad. Bento P. Junior e J.

    Guinsburg. (1ed) Abril Cultural, 1973, pp. 33-150. 52

    S para lembrar o que j dissemos, Taylor s vezes no se preocupa muito em definir (e isso um problema terminolgico que podemos apontar no prprio Taylor) os conceitos de self, pessoa, identidade, eu e agente. s vezes, tais termos so usados de forma intercambiveis, ou englobados pela a noo de self. Quando Taylor critica as ideias de eu (cogito) em Descartes e de identidade pessoal em Locke, Taylor liga tais concepes desses dois filsofos como contrapostas sua prpria noo de self. Conferir pginas 14 a 16 desta dissertao, sobre o problema de definio terminolgica dentro da prpria teoria de Taylor em relao a sua concepo de self narrativo. 53

    Ibidem, p. 142.

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    os seres humanos poderem representar ou objetificar em sua mente (atravs de ideias e conceitos) os objetos exteriores a ele mesmo. Da a noo de uma razo desprendida (disengaged). Segundo Taylor, a razo desprendida de Descartes gera, por sua vez, uma concepo de self abstrado da natureza e da prpria sociedade. Um sujeito ahistrico e desvinculado de tudo, inclusive de seu prprio corpo. Em Descartes, Taylor interpreta que temos a formulao mais lmpida do ideal da cincia moderna, de um conhecimento fundado na postura representacionalista, na qual eu sou um self descorporificado que pode objetificar o mundo, como se fosse um observador externo (diramos em uma perspectiva de terceira-pessoa) e neutro em relao aos fenmenos do mundo54. Taylor tambm observa em Locke o representante da vertente empirista dessa postura representacionalista e de objetificao do mundo. A anlise da teoria do conhecimento de Locke, feita por Taylor, mais complicada do que em relao a Descartes. Locke nos diz que nossa mente processa os dados sensoriais que vm de nossos rgos dos sentidos. Taylor interpreta que o modelo representacionalista e desprendido de self est presente em Locke, pois na teoria deste, a mente tem uma funo passiva em relao s impresses que nos chegam pelos nossos rgos dos sentidos. Locke define nosso conhecimento do mundo como snteses de ideias que recebemos originalmente da sensao e da reflexo55.

    Locke se prope (assim como Descartes) a fazer uma avaliao crtica de nossas ideias, atravs da busca de suas verdadeiras origens e significados corretos. E para isso pretende elaborar um cnone adequado pelo qual possamos distinguir as ideias claras daquelas que so vagas e sem significado, muitas sendo adquiridas por ns por meio dos costumes ou da educao56. Na viso de Taylor, a insistncia de Locke de que eu me desprenda de minhas crenas e snteses espontneas com o intuito de submet-las a exame, aponta para o que o sujeito deve fazer por si mesmo, isto , na reflexo solitria. Taylor chama isso de self pontual (punctual self) de Locke:

    54 TAYLOR, 1989, p. 145.

    55 Cf. LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano.Trad. Eduardo A. de Soveral. Vol. 1. Lisboa:

    Fundao Calouste Gulbenkian, 2000. 56

    Ibidem, p. 135-137.

  • 33

    O sujeito que pode adotar esse tipo de postura radical de desprendimento para si mesmo com vistas reforma o que quero chamar de self pontual. Tomar essa postura identificar-se com o poder de objetificar e refazer e, por meio disso, distanciar-se de todas as caractersticas particulares que so objetos de mudana potencial. O que somos essencialmente no nenhum destes ltimos, mas o que capaz de consert-los e elabor-los. isso que a imagem do ponto pretende comunicar, com base na definio geomtrica: o verdadeiro self no tem extenso, no est em parte alguma que no nessa capacidade de consertar as coisas como objetos57.

    Assim, a prpria definio de identidade pessoal em Locke est ligada noo de conscincia e autoconscincia. Pois na nossa conscincia que representamos os objetos do mundo, e, ao me identificar (ter a autoconscincia) como o sujeito possuidor dessas representaes, eu posso definir quem eu sou (minha identidade). Assim, para Taylor, a concepo de self em Locke est ligada viso subjetivista de pessoa definida em termos de conscincia independente de sua incorporao ou que nossa autopercepo poderia ser isolada de nossa constituio corporificada.58 Taylor vai rejeitar tanto a teoria de self desprendido quanto a de self pontual mostrando que nossa autocompreenso nunca se d de forma separada ou isolada, seja com relao ao mundo, seja com relao aos outros. Por tudo o que vimos at aqui, depreendemos que, para Taylor, o self se constitui sempre em dilogo permanente com sua comunidade. Isso implica que este self nunca indiferente ou neutro em relao ao meio em que ele vive. O self s se constitui em um espao de indagaes morais, segundo as quais ele constri sua identidade por meio de uma narrativa que leva em conta os valores e bens de sua comunidade. O argumento de Taylor (conforme j vimos) que no podemos ser um self isoladamente. Nossa identidade em parte constituda pelos nossos interlocutores. o que Taylor chama de redes de interlocuo59. A resposta pergunta quem eu sou, envolve no s a referncia ao posicionamento em questes morais, mas tambm minha relao a alguma comunidade a partir da qual me defino. assim que muitas

    57 TAYLOR, 1989, pp. 171-172.

    58 No iremos aqui, pois isto no essencial ao objetivo desta dissertao, discutir a argumentao de

    Locke em defesa de sua viso da identidade pessoal, a partir da autoconscincia de nossas experincias. Ele faz vrios experimentos mentais, como de uma mesma conscincia em corpos diferentes, a de duas conscincias habitando o mesmo corpo e outras mais, para mostrar que a identidade pessoal deve ser entendida em termos relacionais, e no em termos da identidade de uma substncia mental. Cf. LOCKE, 2002, pp. 433-461. 59

    TAYLOR, 1989, p. 36.

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    vezes queremos nos posicionar quando dizemos que somos brasileiros, catlicos, anarquistas, socialistas e outras coisas mais. Para Taylor, o self de Locke, assim como o de Descartes, neutro tanto quanto natureza como sociedade. Ele deve se preocupar apenas com sua prpria conscincia a fim de refletir de maneira clara e correta. Locke, ao propor o desprendimento da dimenso humana no mundo, abriu espao para a concepo mecanicista da natureza e para a ideia de controle da natureza de modo instrumental. Esta concepo de controle instrumental estaria fundada na ideia de uma conscincia que pode se destacar completamente da natureza e das outras pessoas no ideal lockiano de autorreforma60.

    Entretanto, Taylor recusa esta tese de Locke, pois a ideia de uma conscincia distinguida e destacvel completamente de nossa corporificao uma iluso. Ao contrrio, nossa percepo do mundo e de ns mesmos sempre uma percepo corporifica e situada a partir de nosso ponto de vista. Essa a tese dos fenomenlogos (da qual Taylor compartilha) de que nossa conscincia sempre intencional, ou seja, nossa conscincia sempre conscincia de alguma coisa. Nunca somos neutros ou isolados no mundo perceptivo. Pelo contrrio, da prpria natureza de nossa percepo que sejamos seres corporificados tal como somos. Para entendermos melhor essa postura de Taylor, vamos abordar em linhas mais gerais a sua tese de um self corporificado, a partir da fonte na qual Taylor bebe, a saber: a teoria fenomenolgica da percepo de Maurice Merleau-Ponty.

    1.5. A concepo de self corporificado em Charles Taylor.

    Taylor formula sua concepo de self corporificado (como tese contrria ao self desprendido e pontual) inspirando-se na filosofia do fenomenlogo francs Merleau-Ponty, mais exatamente, na concepo deste de percepo corporificada61. Merleau-Ponty, ao analisar as condies transcendentais da percepo do sujeito sobre o

    60 Ibidem, pp. 172-173.

    61 Cf. SMITH, N. H. Charles Taylor: Meaning, Morals and Modernity. Cambridge: Polity Press, 2002, pp.

    26-34 e SMITH, N. H. Taylor and the Hermeneutic Tradition. In. ABBEY, R. (Ed). Charles Taylor: Contemporary Philosophy in Focus. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 32-33.

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    mundo e sobre si mesmo em seu livro A Fenomenologia de Percepo62, afirma que nossa abertura inicial ao mundo sempre de sujeitos corporificados e engajados no mundo. Nosso contato primeiro acontece pela nossa percepo que sempre orientada intencionalmente para um objeto, a partir da situao ou posio na qual estamos no mundo. Nossa relao perceptiva atravs da intencionalidade da nossa conscincia (nossa conscincia sempre conscincia de algo), molda o modo como o mundo aparece para ns. Assim sendo, a ideia de self pontual, neutro e desprendido, deve ser rejeitado por completo se aceitamos a teoria da percepo de Merleau-Ponty. O corpo ter um papel central para Merleau-Ponty, pois por meio dele que ns orientamos nossa intencionalidade perceptiva. Essa nossa relao primordial e primria de conhecimento que temos com o mundo e com as outras pessoas. No existe espao nesta teoria para as snteses de ideias realizadas por uma mente descorporificada como em Locke e tambm em Descartes. Conforme Merleau-Ponty afirma:

    O movimento do corpo s pode desempenhar um papel na percepo do mundo se ele prprio uma intencionalidade original, uma maneira de se relacionar ao objeto distinto de conhecimento. preciso que o mundo esteja em torno de ns, no como um sistema de objetos dos quais fazemos a sntese, mas como um conjunto aberto de coisas em direo s quais ns nos projetamos [...] Nosso corpo, enquanto se move a si mesmo, quer dizer, enquanto inseparvel de uma viso do mundo e esta viso realizada, a condio de possibilidade no apenas da sntese geomtrica, mas ainda de todas as operaes expressivas e de todas as aquisies que constituem o mundo cultural.63

    Para Merleau-Ponty no existe um conhecimento realizado por uma mente distinta da matria extensa, mas sim, conforme as anlises da percepo revelam, um conhecimento que corporificado e que nos abre primeiramente um mundo para ns. Existe uma relao intrnseca entre o mental e o corpo, que constitui o modo de ser-no-mundo (tre-au-monde)64. a partir desta teoria de Merleau-Ponty que Taylor sustenta que nossa maneira de sermos selves , falando amplamente, de seres ou agentes corporificados:

    62 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepo. (4 ed.)Trad. Carlos Alberto R. Moura. So

    Paulo: Martins Fontes, 2011. 63

    Ibidem, pp. 518-519. 64

    Ibidem, p. 576.

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    Nossa alegao enuncia antes que nossa maneira de ser sujeitos , em seus aspectos essenciais, a de agentes corporificados. uma afirmao sobre a natureza de nossa experincia e pensamento, bem como de todas as funes que so nossas qua sujeitos, em vez de acerca das condies empiricamente necessrias a essas funes. Dizer que somos essencialmente sujeitos corporificados dizer que essencial para nossa experincia e pensamento ser a experincia e o pensamento de seres dotados de corpo65.

    Na opinio de Taylor, o agente corporificado est engajado no mundo e se relaciona primariamente atravs da percepo que percepo de sujeitos dotados de corpo. Mas isso, para Taylor, no implica que devemos fazer uma anlise emprica (como, por exemplo, em neurofisiologia) das condies de possibilidade corporal que fornecem nossa capacidade de percepo. Fazer este tipo de coisa equivaleria a tentar dar uma explicao naturalizada sobre a pessoa humana. E j vimos acima na seo 1.2 deste trabalho que Taylor rejeita explicaes de carter naturalista sobre o comportamento humano66. Taylor descreve a percepo apenas em um nvel, poderamos dizer, fenomenolgico, hermenutico e ontolgico. Essas caractersticas da percepo e da corporificao so modos de ser dos agentes humanos no mundo. Taylor afirma que nosso campo perceptual tem uma estrutura orientacional67, ou seja, tem um primeiro e segundo planos, um alto e um baixo. Quando perdemos essa orientao no sabemos onde estamos e no conseguimos nos situar68. A estrutura orientacional, argumenta Taylor, no se relaciona apenas com os objetos no mundo em relao aos quais me encontro, e nem apenas simplesmente com a posio de meu corpo. Posso estar de cabea para baixo e, ainda assim, ter essa orientao intacta. Assim, essa direcionalidade de alto e baixo no se relaciona com a

    65 TAYLOR, C. Philosophical Arguments. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p. 22.

    66 Veremos no prximo captulo sobre Shaun Gallagher que este concorda (tal como Taylor) com a tese

    da percepo corporificada como nosso modo primrio de acesso ao mundo e aos outros. No entanto, ele se distancia de Taylor pois, para Gallagher, ser importante estudar, com o intuito de dar uma explicao mais completa sobre o comportamento e o self humano, as caractersticas fsicas e/ou neuronais responsveis por essa nossa percepo e autopercepo (o sentido proprioceptivo de ns mesmos). Isso far Gallagher unir as anlises fenomenolgicas (Gallagher se inspira muito nos estudos fenomenolgicos de Merleau-Ponty) com estudos em cincias cognitivas (nas reas de neurocincia e psicologia do desenvolvimento), para descrever o self, conforme o prprio Gallagher diz, de uma forma mais completa e menos abstrata. No prximo captulo observaremos como Gallagher faz isso. 67

    Ibidem, p. 23. 68

    Taylor no d um exemplo de como pode ser isso, mas podemos supor de casos motivados por doena (fsica ou mental) e por acidentes. Pessoas que sofrem traumas psicolgicos, s vezes, podem perder a noo de quem elas so.

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    posio de minha cabea. Essa direcionalidade tem a ver com o modo segundo o qual nos movemos e agimos no mundo. porque sou o sujeito corporificado em um campo gravitacional que as coisas adquirem sentido para mim, enquanto alto e baixo. Meu campo perceptual tem um alto e baixo por ser ele o campo de um agente do tipo que eu sou. Ele estruturado como um campo de ao possvel para mim69. Embora esse exame de Taylor fique apenas no campo fenomenolgico, ou seja, de nossa percepo e autopercepo (de nossos selves), enquanto sujeitos corporificados, Taylor no afirma que essa explicao exclua a possibilidade de qualquer tipo de explicao de carter naturalizado (que ele considera sempre reducionista) sobre o comportamento humano baseado, por exemplo, na neurocincia:

    Isso diz algo sobre a natureza de nossa vida como sujeitos. Diz, por exemplo, que nossa experincia constituda por nosso sentido de ns mesmos como agentes corporificados [...] Mas isso no nos assegura que no podemos dar uma descrio do que subjaz esta experincia e pensamento em, digamos, termos neurolgicos redutivos [...] Pois a possibilidade permanece aberta de que o que ns somos em nossas autoconscincias possa ser, de um modo crucial, algo enganoso. Um nvel mais profundo de explicao do comportamento dos seres humanos poderia estar baseado em princpios bastante diferentes70.

    Percebe-se que Taylor abre a possibilidade para que essa explicao sobre a percepo, o comportamento humano e do self, possa ser dada em termos naturalistas. No entanto, a aposta de Taylor que essas anlises sobre a percepo e sobre nossas caractersticas de agentes corporificados nos fornecem a forma indispensvel que todo o relato que diz respeito nossa autopercepo tem de ter71. Essa forma excluiria todas as categorias mecanicistas (fundadas em leis causais) ou dualistas aplicadas a compreender o funcionamento do pensamento e experincia humana no mundo72.

    69 Ibidem, idem.

    70 Ibidem, p. 26.

    71 Ibidem, p. 27

    72 Conforme veremos no captulo seguinte, Gallagher pretende justamente fazer essa descrio mais

    profunda e menos abstrata do self, fazendo um dilogo interdisciplinar entre cincias cognitivas e fenomenologia. Mas Gallagher pretende fazer isso de maneira no redutiva. Gallagher de nenhum modo vai abandonar as anlises fenomenolgicas (como poderemos notar, Merleau-Ponty fornecer muitos elementos que Gallagher vai reinterpretar e utilizar em sua filosofia), pois, seu objetivo ser uma descrio compatibilista entre o que nossas experincias fenomenolgicas de primeira-pessoa nos fornecem e aquilo que as cincias cognitivas tm descoberto sobre nosso comportamento e sobre nossa autoconscincia. Assim, pensa Gallagher, poderemos chegar a uma explicao mais completa sobre o self.

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    1.6. O status ontolgico do self narrativo em Taylor.

    Viemos at aqui definindo os aspectos que constituem a concepo de self em Taylor tais como: a autodescrio narrativista do self; o ser humano como um animal autointerpretativo; o papel da linguagem nessa autointerpretao que o sujeito faz de si mesmo; a dimenso moral inescapvel das avaliaes fortes; a ideia de pano de fundo (background) e horizontes de sentido segundo os quais o sujeito constri sua identidade; a rejeio de Taylor s explicaes de carter naturalista sobre o comportamento humano, que pretendem fornecer leis causais baseada no modelo mecanicistas das cincias naturais em voga. Todos estes aspectos da teoria de Taylor foram debatidos acima, mas fica uma pergunta que ainda pode ser levantada: Qual a concepo de self narrativo e seu estatuto ontolgico em Taylor? Esses questionamentos surgem de forma clara se recordamos as crticas de Taylor noo de self pontual e de self desprendido de Locke e Descartes respectivamente.

    A concepo de self em Taylor no de um self narrativo meramente ficcional (como seria para Dennett), mas de um self que possui caractersticas ontolgicas (como sua dimenso inescapavelmente moral as avaliaes fortes) intrnsecas e reais em sua autoconstituio narrativa. Assim, em Taylor, poderamos interpretar que o estatuto ontolgico do self narrativo de uma dimenso realista (e no meramente ficcional, como seria para Dennett) e constitutiva de nosso modo de ser no mundo. Isto , Taylor toma uma posio realista com relao ao self e seu modo no contingente de se apresentar numa forma narrativa. Vamos agora, ento, reunir os elementos at aqui analisados na teoria de Taylor sobre o self, para podermos dar uma definio mais acurada do estatuto ontolgico do self narrativo. Segundo Taylor, o self est necessariamente ligado a alguma concepo do bem, no sentido de que todo ser humano faz distines qualitativas e contrastantes, entre o tipo de vida mais valiosa e a menos digna de ser vivido. Isso ficou claro quando analisamos mais acima o papel das avaliaes fortes na autodefinio ou autodescrio que o sujeito faz de si mesmo ou do curso de sua vida. Isso quer dizer que ns avaliamos tambm a posio que nos encontramos em relao a esse bem ou fim mais

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    apreciado que tentamos alcanar em nossas vidas. Observamos tambm que nossa orientao a esse bem leva em conta nossa dimenso temporal constitutiva, pois tomamos essa busca do bem como envolvendo possibilidades de sofrer mudanas ou ajustes conforme avanamos. Essa dimenso temporal, bem como a caracterizao que fazemos de nossas mudanas avaliativas sobre o tipo de vida que levamos e sua relao com o bem que almejamos alcanar, capturada de forma singular e perfeita pela forma narrativa, segundo a qual definimos nossa identidade. Assim, a dimenso narrativa de nosso self no algo contingente, mas algo intrnseco s descries que fornecemos de ns em relao ao bem que esperamos realizar. Comentando esse ponto, Nicholas H. Smith observa:

    Para Taylor a indispensabilidade do valor forte no a nica razo para supor que a subjetividade humana tem uma dimenso moral inescapvel. Tambm existe algo sobre a unidade de um self que necessariamente empresta-lhe um significado moral. Taylor introduz esta ideia por meio da extenso da metfora de uma vida conduzida no espao moral. Nosso sentido de quem ns somos est ligado posio que tomamos sobre questes de interesse e para isto necessitamos de pontos de referncia; os pontos de referncia fornecidos pelas estruturas de contraste qualitativo. Mas no estamos fixados neste espao de uma vez por todas. Nossas vidas e interesses mudam. Ningum est congelado no tempo [...] Por conta do fato que a autocompreenso ocorre no tempo, exige-se alguma sntese do presente, passado e futuro. As narrativas fornecem o veculo de tal sntese. Assim, para Taylor, somente conforme o self e deve ser orientado por uma estrutura, a qual traa um mapa do espao moral, ele deve ser tambm localizado em uma narrativa a qual segue seu desenvolvimento no tempo73.

    Na perspectiva de Taylor, a dimenso narrativa constitutiva do modo de ser de seres como ns, que articulam uma descrio de si mesmos levando em conta sua posio com relao ao bem74 que visam alcanar em suas vidas. na reconstruo narrativa de nossa vida que ns definimos quem ns somos (nossa identidade) e caracterizamos nossos compromissos em relao dimenso moral. Taylor v que construir o sentido da prpria vida , ao mesmo tempo, fornecer uma narrativa que

    73 SMITH, 2002, p. 97 Traduo nossa.

    74 S pra lembrar, esse bem tem haver com as avaliaes fortes segundo as quais ns definimos o que

    significativo (o import segundo Taylor) ou no em nossas vidas. A partir da, fazemos projetos de vida e julgamos que tipo de caminho mais digno ou louvvel a ser seguido. Cf. pp. 14-15 desse trabalho.

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    tomar a forma inevitvel de uma busca75. Essa busca se desenvolve no sentido de tentarmos realizar os bens ou valores que consideramos primordiais para uma vida plena de significados:

    Aqui, fazemos uma conexo com outra caracterstica inevitvel da vida humana. Tenho argumentado que a fim de construir uma compreenso mnima de nossas vidas, com o intu