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1
Práticas de prevenção e cura de doenças através do Odaimoku1
Alexsânder Nakaóka Elias (Unicamp/São Paulo – Brasil)2
Palavras-chave: Budismo, Odaimoku, cura.
Introdução:
O presente trabalho pretende expor as diversas práticas de cura e prevenção de
doenças – sejam elas de origens físicas, mentais e/ou espirituais - da primeira corrente
budista do Brasil, denominada Honmon Butsuryu-shu (HBS) ou Budismo Primordial do
Sutra Lótus, que aportou em terras brasileiras através do Odoshi3 Ibaragi Nissui
Shounin, em 1908.
Acompanho esta escola budista, composta por sacerdotes e uma comunidade de
fiéis (sangha), desde o mestrado, iniciado no ano de 2011, tendo realizado pesquisas de
campo tanto em templos no Brasil quanto em santuários no Japão, país de origem do
segmento em questão.
Tais etapas de pesquisa e convívio com a comunidade HBS me permitiram
constatar a existência de um poder curativo associado à prática do Odaimoku, ritual que
consiste, basicamente, na entoação do mantra sagrado e principal oração desta corrente,
chamada Namumyouhourenguekyou. Tal mantra, que também corresponde a uma
prática meditativa - com entonação da voz, posturas e gestual característico - é capaz,
para os adeptos (que são chamados de “fiéis”, no Brasil), de curar e prevenir doenças
consideradas pela medicina ocidental como gravíssimas, como diversos tipos de câncer;
além de males psicológicos e psicossomáticos associados ao cotidiano, como o estresse,
a fadiga e o sofrimento.
1 “Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB.” 2 Bolsista da CAPES e do processo número 2014/01555-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP). “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material
são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES”.
3 Significa “monge” ou “sacerdote”, em uma tradução realizada pelos próprios religiosos, no Brasil.
2
Odaimoku: Imagem, Escrita e Oração Sagrada
O Budismo surgiu em uma região chamada Lumbini, localizada no atual Nepal,
perto da fronteira com a Índia. Foi ali que, no ano de 563 a. C4, a rainha Maya, mulher
do rei Sudohodana, deu a luz ao príncipe Siddharta Gautama, pertencente ao clã dos
Sakya.
De acordo com a literatura (Novak e Smith, 2003, p. 19) e com relatos por mim
coletados em uma viagem de pesquisa de campo, realizada em maio de 2014 - por
Índia e Nepal -, quando Siddharta nasceu, seu pai reuniu videntes para descobrir o que
o futuro para ele reservava. Os videntes concordaram que estavam diante de um ser
incomum, cujo destino poderia se desdobrar em dois caminhos: o primeiro era o
caminho do mundo, no qual Siddharta unificaria toda a Índia, tornando-se um grande
conquistador. Caso renunciasse a este primeiro caminho, tornar-se-ia o redentor do
mundo.
Reza o mito que, num certo dia ao cavalgar, o jovem Siddharta deparou-se com
quatro fatos, conhecidos no Budismo como “As Quatro Cenas”, que transformariam
sua vida. Na primeira cena, um velho homem foi visto por Siddharta. Em um segundo
passeio, se deparou com um corpo caído na estrada, consumido pela doença. Depois,
avistou um cadáver e, na quarta cena, viu um shramana, uma espécie de religioso
caminhante, de cabeça raspada, que sobrevivia apenas com aquilo que as pessoas lhe
doavam. Desta forma, aprendeu sobre a velhice, a doença e a morte e, percebendo a
certeza da decadência física, viu os prazeres carnais, com os quais estava tão bem
adaptado, perderem seu encanto.
Então, Siddharta, aos 29 anos, abriu mão de todos os luxos da vida nobre que
levava. Depois, trocando de roupa com um criado que o acompanhava, penetrou na
floresta com a cabeça raspada, procurando pela “Iluminação5”.
Assim, numa noite perto da região de Gaya, no nordeste da Índia e local que
4 Segundo relatos bibliográficos e, também, informações coletadas durante uma pesquisa de campo por
mim realizada pela Índia e Nepal, em maio de 2014, este seria o ano de nascimento do Buda Histórico,
embora uma afirmação exata e categórica de tal acontecimento seja imprecisa, visto que não existe um
consenso a respeito do assunto. 5 Iluminação ou Nirvaṇa, no Budismo, quer dizer despertar, sair do ciclo de renascimentos e mortes,
conhecido como samsara.
3
também visitei, ele se sentou embaixo de uma figueira, conhecida como “Árvore Bo”,
onde finalmente se libertou das amarras físicas6 e despertou. “Ele havia finalmente
encontrado o caminho da Iluminação, tornando-se, em 08 de dezembro, aos trinta e
cinco anos de idade, um Buda” (Kyõkai, 1998, p. 18).
Após a Iluminação, o Buda Histórico ou Buda Shakyamuni, como passou a ser
chamado pelos adeptos do Budismo, peregrinou durante quarenta e cinco anos levando
os seus ensinamentos, conhecidos posteriormente como “Sutras”, ao público. Aos 80
anos, por volta de 483 a.C., o Buda morreu de infecção alimentar, depois de ter
comido, segundo relatos coletados na minha pesquisa de campo, algumas trufas ou
cogumelos na casa de Cunda, o ferreiro.
Após a morte do Buda Histórico houve, gradativamente, uma segmentação que
originou em três grandes caminhos ou vertentes principais. O primeiro foi formado
por um grupo que defendeu que o Budismo é tarefa de dedicação exclusiva, no qual a
Iluminação consiste no grande objetivo. Para eles, para alcançar tal dádiva, é
necessário tornar-se um monge, como o próprio Buda o fizera. O segundo foi
composto por adeptos menos exigentes, originando um Budismo mais acessível aos
leigos. Argumentam que buscar o Nirvaṇa por si e para si é uma grande contradição. O
primeiro grupo se denominou Theravada, que significa “O Caminho dos Anciões”; o
segundo passou a se chamar Mahayana ou “Grande Balsa”, tendo atualmente várias
subdivisões; e o terceiro é denominado de Vajrayana ou “Veículo do Diamante”.
“Depois da morte de Shakyamuni, seus discípulos pregaram a mensagem, de
acordo com o que ouviram. Muitos antigos mestres se reuniram com o
propósito de retificar e consolidar as palavras e o ensinamento, cada um
expondo aquilo que julgou ter ouvido, e assim passavam meses em
discussão. O trabalho resultante dessas reuniões foi chamado de Concílio ou
Compilação” (Kyõkai, 1998, p. 271, 272).
Mais de 2500 anos se passaram desde que o príncipe Siddharta Gautama
peregrinou pelo subcontinente indiano. Mais de dois milênios se foram desde que a
doutrina ensinada pelo Buda Shakyamuni se ramificou em três grandes vertentes,
6 “Amarras físicas”, no caso, faz referência ao apego aos sentidos e aos valores seculares de uma
existência material mundana.
4
Theravada, Mahayana e Vajrayana.
A corrente HBS é uma das várias subdivisões da vertente Mahayana, sendo a
primeira corrente budista em solo brasileiro, tendo representatividade no seu país de
origem (com mais de 320 templos no Japão) e, também, presente de maneira sólida no
Brasil. A Honmon Butsuryu-shu (HBS) descende de três grandes mestres:
“O servo de Buda é Nichiren. O servo de Nichiren é Nitiryu, e
o servo de Nitiryu é Nissen. Nitiryu reestruturou a linha de
Nichiren e Nissen reestruturou a linha de Nitiryu” (Butsuryu-
Shu, Honmon. Revista Lótus: ano 9, n. 94. São Paulo, 2007, p.
02).
A HBS tem suas origens em Nichiren Daibossatsu, que se tornou um noviço aos
11 anos de idade, indo em direção ao Templo Kiyosumi, para ser discípulo do Mestre
Dozen Bo. Ali, estudou os ensinamentos da corrente Tendai7. Posteriormente, partiu
para uma peregrinação pelo Japão, em busca de conhecimento. Assim ele passou
quatro anos, até se fixar no monte Hiei para concluir seus estudos sobre a corrente
Tendai, mas tendo acesso também às demais correntes budistas do Japão. Após mais
onze anos de estudos, toma como ensinamento principal o Sutra Lótus, sintetizado na
oração sagrada Namumyouhourenguekyou, pronunciada por ele pela primeira vez em
28 de abril de 1253, no monte Kiyossumi, na sua cidade natal, Kominato.
Dessa forma, Nichiren definiu a existência de dois caminhos presentes no Sutra
Lótus, o Caminho Primordial e o Caminho Provisório. Para ele, o Caminho Primordial,
seguido pela corrente HBS, está contido entre o 15º e o 22º capítulos. Para o mestre, os
adeptos budistas devem devotar o título do Sutra Lótus, sintetizado na oração
Namumyouhourenguekyou8, representada por um kandi, forma tradicional de escrita
japonesa, que consiste, também, em uma imagem, oração e mantra sagrado. Tal
imagem, para os adeptos da HBS, representa e consiste no Buda Primordial, que é a
origem de todos os Budas (inclusive do Buda Histórico) e princípio, também, de toda e
qualquer forma de existência.
7 A corrente Tendai é uma corrente budista japonesa que segue a vertente Mahayana. Tem suas origens
na escola chinesa Tiantai, também conhecida como escola do Sūtra Lótus.
8 A prática desta oração também é denominada “Odaimoku”.
5
O Budismo HBS coloca, portanto, o Buda Primordial como uma espécie de
divindade máxima, criadora, diferentemente de algumas doutrinas budistas, ateias em
relação a uma entidade suprema. Tal Buda Primordial teria transmitido, através do
Buda Histórico, o Sutra Lótus Primordial, que é totalmente sintetizado pela escritura,
imagem e mantra sagrado Namumyouhourenguekyou9, presente em todos os altares da
HBS.
Como escola do Budismo Mahayana, a HBS caracteriza-se, de acordo com
Usarski (2010, p. 64), não apenas por ter reinterpretações de elementos enraizados nos
ensinamentos do Buda Histórico, mas também “pelo acréscimo de constituintes não
imediatamente identificáveis nas fontes primitivas”.
Assim, ao contrário das escolas da tradição Theravada, a HBS baseia sua
doutrina no Sutra Lótus, compilado na segunda metade do século IV d.C e “um dos
mais citados textos da produção literária no ambiente do Budismo Mahayana”
(Usarski, 2010 , p. 70). Segunda esta visão, portanto, todos os constituintes
doutrinários, práticas e éticas remontariam aos ensinamentos originais do Buda. O fato
de que estes não se encontram em fontes como o Cânone Páli10
, seria uma
consequência das limitações intelectuais dos receptores da época de penetrar a
verdadeira complexidade, profundidade e sutileza da mensagem de um mestre
iluminado. Em outros termos, Usarski diz, indo de encontro ao material coletado nas
minhas pesquisas de campo junto à HBS, que “os conteúdos transmitidos pelas escolas
antigas são válidos, mas, do ponto de vista do Mahayana, apenas em caráter
provisório” (2010, p. 70).
9 Cujo original em sânscrito é “Sad-dharma Puṇḍárīka Sūtra”.
10 Principal compilação de livros sagrados budistas.
6
Fotografia 01: Imagem, oração e mantra
Namumyohourenguekyou (escrita japonesa,
dentro do círculo laranja). Na frente, a
estátua do mestre Nichiren Daibossatsu.
O mantra que elimina o Karma:
O karma é um conceito hinduísta herdado e adaptado pelo Budismo, já que o
Buda Histórico nasceu exatamente neste contexto religioso, sendo influenciado por
diversos mestres e práticas hindus. Tal conceito do karma budista afirma que qualquer
ato ou pensamento, por mais insignificante e inofensivo que pareça, voltará ao
indivíduo com igual impacto, ou seja, não existe causa que não gere algum efeito.
Assim, se uma pessoa tem um pensamento ou ação ruim em relação a ela ou a outro ser
vivo, ativando uma das 108 imperfeições mundanas, este será devolvido com uma
potência que abalará a sua integridade física, emocional e/ou espiritual, com igual
intensidade.
Assim, tal oração questiona um modelo exclusivamente biomédico da saúde e da
doença, que ainda reproduz um ideal positivista impondo um modelo teórico fechado,
onde o usuário do serviço não participa ativamente do processo de cura, “além de
dissociar a saúde e a doença dos aspectos e dimensões históricas, sociais e culturais dos
indivíduos” (SENA et al, 2012, p. 13).
7
Segundo Maués, tal modelo atua conjuntamente com um sistema cultural de
saúde que inclui especialistas não reconhecidos oficialmente, como benzedeiras,
curandeiros, xamãs, pajés, pastores, padres, pais de santo, entre outros, “cujas
terapêuticas de cura são produtos de variados tipos de bricolage que têm raízes em
práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas, mágicas e de misticismo”
(MAUÉS, 2009, p. 125).
Neste sentido, os fiéis budistas acreditam que o poder da meditação através dos
mantras seja capaz de eliminar o karma negativo, dando fim ao ciclo (ou fluxo) de
renascimentos e mortes11
(chamado samsara), auxiliando na cura de enfermidades
diversas e levando, após incontáveis renascimentos, ao Nirvana ou Iluminação, objetivo
último da religião. A HBS, especificamente, utiliza o mantra
Namumyouhourenguekyou, contido no Sutra Lótus, considerando-o menos como uma
prática meditativa, mas, principalmente, como uma oração, imagem e doutrina sagrada,
capaz de eliminar tal karma negativo pelo “simples” ato da recitação.
Fotografia 02: Fiéis recitam o mantra Namumyouhourenguekyou, olhando fixamente
para a Imagem Sagrada e ritmando com as mãos. Também seguram o “terço budista”,
chamado de Odyuzu.
11
O conceito de morte, no Budismo, é distinto do significado nas religiões judaico-cristãs. No Budismo, a
morte do corpo físico não representa o fim, mas o início de um ciclo, através de um novo renascimento. A
questão do luto e dos rituais fúnebres, portanto, são tratados simbolicamente de uma forma diferente.
8
Portanto, é possível perceber que, embora não descarte a existência de fatores
biológicos como causa das doenças, tampouco das práticas e cuidados médicos capazes
de solucionar ou amenizar o sofrimento físico, a HBS coloca como causa primeira
desses males a herança do karma negativo, adquirido nessa ou em outra existência. A
forma de uma pessoa eliminar tal karma, que é o efeito (a doença ou o mal que a
acomete) de uma ação negativa, seria pela recitação do Odaimoku. Tal fato é
comprovado pelo enunciado de penitência, proferido em todos os cultos da HBS:
Para eliminar o karma negativo
Que acumulei desde um passado remoto
A partir da presente existência
Até atingir o estado de Buda
Devotar-me-ei à imagem sagrada
A doutrina e a oração sagrada
Causa, essência e semente da Iluminação
Transmitida pelo Jyougyou Bossatsu
Namumyouhourenguekyou (Enunciado de penitência da HBS, contido no
livro litúrgico, Myookoichiza).
Mas, embora a comunidade HBS dê ênfase à recitação do mantra sagrado como
uma prática devocional, em termos analíticos ela não deixa de compor uma prática
meditativa, visto que exige postura e gestos rituais preestabelecidos. Dentro de um
Hondo (nave do templo, onde ocorrem os cultos rituais), os sacerdotes e fiéis devem
olhar direta e fixamente para a imagem, escritura (em kanji, ideograma japonês) e
oração sagrada - que não apenas representa, mas é o Buda Primordial propriamente -,
enquanto oram o mesmo mantra em um ritmo específico, cadenciado por batidas das
mãos fechadas sobre as pernas e acompanhado por instrumentos musicais (sinos, clavas
e xilofones). A cada batida das mãos, pronuncia-se uma sílaba do mantra sagrado (Na-
mu-myou-hou-ren-gue-kyou).
9
Objetos curativos (con)sagrados pelo Odaimoku:
Além da prática do Odaimoku em si, existem diversos objetos (con)sagrados
pela recitação do Namumyouhourenguekyou, capazes de curar e amenizar os males do
que se convenciona chamar de doença:
Cartões de prece:
Alguém enfermo (ou um parente e/ou amigo) escreve um pedido no cartão de
prece12
, presente em todos os templos da HBS, tanto aqueles localizados no Brasil,
quanto no Japão; para que seja oferecido ao Gohonzen (Altar Sagrado). Realiza-se,
assim, um cordão de oração durante todos os cultos matinais da semana, que são diários.
Durante esse período, o Odoshi (mestre budista) pedirá pela recuperação da saúde física,
mental e/ou espiritual do solicitante, ou pela sua proteção de todos os males, sempre
com o cartão de prece nas mãos e pronunciando o mantra sagrado.
Odyuzu ou terço budista:
O Odyuzu é um instrumento religioso budista que representa determinação!
(BUTSURYU-SHU, Honmon. Revista Lótus: ano 6, n. 58. São Paulo, 2004,
p. 04).
O Odyuzu é uma espécie de colar, chamado no Brasil, pelos adeptos da HBS, de
“terço budista”. Ele é elaborado por contas provenientes de diversos materiais.
Normalmente é feito de madeira, mas pode ser confeccionado com frutos de árvores,
ferro, bronze, pérolas, jade, cristal, plástico, vidro e pedras.
Este “terço” só pode ser adquirido por membros da HBS, sejam eles sacerdotes
ou fiéis, sendo vendidos apenas nas lojas localizadas nos templos da religião. Além
12
Um cartão de papel que contém um campo para escrever o nome do solicitante da prece e outro para o
nome daquele a quem se destina a oração.
10
disso, passa necessariamente por um ritual de consagração, realizado durante um culto
(ou cerimônia), no qual o mantra Namumyouhourenguekyou é recitado.
Fotografia 03: Odyuzu nas mãos do sacerdote Amaral, em um “culto dos jovens”
realizado na cidade de São Paulo (maio de 2011).
O Odyuzu possui a função primeira de ajudar na realização de cálculos (como
sugere o termo “contas”). Ele serve para o fiel quantificar certas práticas religiosa,
como, por exemplo, o número de vezes que orou o Odaimoku.
Seguindo a tradição, um Odyuzu possui 108 contas pequenas, que representam
as 108 paixões ou imperfeições mundanas13
, além de mais quatro de tamanho e cores
diferentes, que representam os Quatro Bossatsus Primordiais, - seres de sabedoria
elevada, designados pelo próprio Buda Primordial para disseminar a oração sagrada
13
Abuso, Escárnio, Mentir, Achar que sabe tudo, Falsidade, Mesquinhez, Agressão, Falta de
compreensão, Negatividade, Altivez, Falta de misericórdia, Obsessão, Ambição, Falta de vergonha,
Obstinação, Ânsia por poder, Furtividade, Ódio, Antipatia, Ganância, Ódio de si mesmo, Arrogância,
Garrulice (falar demais), Opressão Autoritarismo, Gula, Orgulho, Baixeza, Hipocrisia, Ostentação,
Belicosidade, Hostilidade, Pessimismo, Blasfêmia, Humilhar, Praguejar, Brigar, Ignorância, Praticar a
maldade, Capricho, Ilusão, Praticar artimanhas, Censura, Impostura, Presunção, Ciúme, Impudência,
Pretensão, Cobiça, Indelicadeza, Prodigalidade, Cobiça por dinheiro, Indiferença, Raiva, Cobiça sexual,
Infidelidade, Rancor, Cometer excessos, Inflexibilidade, Rapacidade (hábito de roubar), Crueldade,
Ingratidão, Ridicularizar Degradação sexual, Insaciabilidade, Sadismo, Desatenção, Insatisfação,
Sarcasmo, Descaramento, Insensibilidade, Sedução, Descontentamento, Insidia (emboscar), Ser
calculista, Desejo de fama, Intolerância, Ser Maligno, Desonestidade, Intransigência, Soberba, Desprezo,
Inveja, Teimosia, Desregramento, Ira, Ter um coração duro, Desrespeito, Irresponsabilidade, Tirania,
Dipsomania, (ou alcoolismo), Jogar de azar, Tortura Discordar, Julgar precipitadamente, Vaidade,
Dogmatizar, Luxúria, Vingança, Dominação, Machucar Violência, Egoísmo, Manipulação e Volúpia.
11
Namumyouhourenguekyou, pelos quatro cantos do universo14
-, somando um total de
112 contas. Além disso, existem duas contas ainda maiores, que representam os Budas
Shakyamuni (Buda Histórico, à esquerda) e Tahou (Buda dos muitos Tesouros, também
tido como Buda testemunha do Sutra Lótus, à direita).
Ainda segundo os preceitos da HBS, os antigos budistas utilizavam o Odyuzu
para contar as súplicas que faziam diante de uma imagem. Acreditavam que cada
súplica extinguia uma das paixões mundanas que possuíam.
Assim, a forma como Odyuzu é manipulado é extremamente importante. O
devoto deve unir as mãos em postura de devoção, chamada de Gasshou. Desta maneira,
as 108 paixões mundanas (ou paixões humanas), representadas pelas 108 contas
menores do terço, ficam esmagadas entre as duas contas maiores, que representam os
Budas.
Ao esmagar as 108 paixões mundanas, o fiel da HBS realiza, segundo a tradição
religiosa, a eliminação dos desejos que geram o karma. A fé no mantra sagrado
Namumyouhourenguekyou seria capaz, assim, de eliminar o karma negativo através da
sua recitação incessante, e o Odyuzu, neste caso, consiste em um objeto religioso
consagrado pelo mantra.
Fotografia 04: Odyuzu de um sacerdote, durante um culto na
Catedral Nikkyoji, em São Paulo (maio de 2011).
14
BUTSURYU-SHU, Honmon. Revista Lótus: ano 6, n. 58. São Paulo, 2004, p. 04.
12
Okoussui: A água sagrada (ou benzida)
Chamada de Okoussui, a água sagrada é considerada pela HBS como um
remédio, que age através da fé. Os seguidores da doutrina acreditam que, através da
força da oração sagrada Namumyouhourenguekyou, a água torna-se benzida,
propiciando a quem a ingere inúmeras graças, como, por exemplo, a cura de doenças
graves.
Fotografia 05: Recipientes contendo Okoussui, na mesa
de um sacerdote durante um culto na Catedral Nikkyoji,
em São Paulo (maio de 2011).
O Okoussui é considerado, ainda, o Namumyouhourenguekyou em sua forma
líquida. Por isso, deve-se orar o Odaimoku ao ingerir o Okoussui. Pela tradição, aquele
que oferece a água benzida tem o dever de explicar que a sua eficácia está associada à
recitação do mantra sagrado.
13
“Se faltar com esta explicação, então o Okoussui perderá um de seus
importantes efeitos além da cura, o efeito psicológico, que é fazer a pessoa
acreditar naquilo diferenciadamente de um remédio, ou seja, pela fé, que ela
pode curar-se independente de qualquer atestado negativo que possam lhe
apresentar” (BUTSURYU-SHU, Honmon. Revista Lótus: ano 6, n. 57. São
Paulo, 2004, p. 20).
Além disso, o ato de beber o Okossui também é ritual. Ele não deve ser utilizado
para fazer outro tipo de bebida (suco, café ou chá, por exemplo) ou para tomar um
remédio para ajudar na cura de alguma doença. Deve ser ingerido, assim, sempre na sua
forma pura, sem misturas. A explicação é que, ao seguir esta norma, a fé do devoto
estará 100% canalizada no Namumyouhourenguekyou, e não 50% no
Namumyouhourenguekyou e 50% no remédio.
Para a HBS, o Okoussui não apenas se diferencia dos demais remédios, como
deve, pelo modo espiritual, ser colocado acima de todos eles. Embora haja essas
restrições, é fundamental mencionar que, no Budismo HBS, não existe uma proibição
taxativa, já que:
O Budismo não proíbe, mas insere consciência. Se mesmo assim a pessoa
continuar acreditando que mesmo misturando está lhe fazendo bem, aos
poucos devemos conduzi-la a partir desta ‘crença’ (que nos favorece na
orientação) a praticar corretamente com o passar do tempo. Ensinamos
somente o que é certo, porém, se a pessoa não colabora totalmente, então
devemos graduá-la aos poucos, afinal essa persistência e compaixão da nossa
parte é o ingrediente mais importante desse processo de orientação e cura
pela fé (Correia Odoshi, maio de 2014).
14
Fotografia 06: Garrafas de Okoussui, que são distribuídas grã-
tuitamente para os fiéis nos templos, após serem consagradas pelo
Odaimoku.
Omamori ou protetor pessoal
O Omamori é chamado no Brasil de “protetor pessoal”. Consiste em um amuleto
dado ao fiel da HBS, assim que ele ingressa oficialmente na religião, passando por um
ritual de iniciação, chamado no Brasil de “Batismo Budista”.
Fotografia 07: Omamori ou “protetor pessoal” da HBS.
Assim como o Odyuzu, o Omamori só pode ser adquirido (também nas lojas
dentro dos templos) por um adepto, passando pelo mesmo processo de consagração do
Odyuzu, durante uma cerimônia religiosa. Ele serve para proteger o fiel de diversos
15
males, sejam doenças físicas, psicológicas e/ou espirituais, causados por algum karma
negativo acumulado.
A depressão, por exemplo, é uma doença ocasionada, na visão da HBS, pela
ansiedade, um tipo de descontrole espiritual. Embora a religião admita a existência de
várias causas para a depressão, eles afirmam que tanto o problema quanto a cura
existem dentro de cada ser, que sempre está predestinado à Iluminação. Para tanto, a
HBS coloca a fé no Sutra Lótus, que consistiria no melhor dos remédios, pois não só
tem o poder de curar as doenças naturais, como também as doenças karmicas.
Fotografia 08: Local onde são depositados os cartões de pedidos, as orações,
os terços e os protetores (Omamori) dos fiéis, para serem abençoados pelo ce-
lebrante durante o culto.
A cerimônia dos 100 incensos (Reapokegan):
Indo além destes objetos (con)sagrados, existentes em todos os templos e casas
dos fiéis brasileiros e japoneses, existe ainda uma prática considerada milagrosa pela
Honmon Butsuryu-shu, chamada Reapokegan ou “cerimônia dos 100 incensos”, capaz,
segundos os meus interlocutores, de curar doentes em estado grave (até mesmo
terminais), através da fé no Odaimoku.
16
Fotografia 09: Composição visual que mostra os incensos
(acima) e o incensário (abaixo), utilizados nas práticas ri-
tuais da HBS.
O sacerdote Campos, residente na Catedral Nikkyoji, o maior dos 10 templos e
02 núcleos de cultos da HBS do Brasil, definiu pormenorizadamente os meandros desta
prática milagrosa:
O grande Goryako, que significa benção, que eu recebi, foi ter encontrado
esse caminho. Felizmente, graças ao Gohozen, que é o nome japonês da
Imagem Sagrada, eu nunca passei por nenhuma doença grave, nada assim
que eu precisasse de uma benção forte para poder me livrar disso. Mas é o
que eu falo né, o que fortalece minha fé cada vez mais são as bênçãos que eu
vejo dos fiéis que eu tenho contato, os fiéis que eu conheço, as histórias que
eu escuto também, as bênçãos que eles recebem. É coisa impressionante
mesmo, é igual coisa de televisão. Mas eu acredito, eu acredito. Por exemplo:
o pessoal conta que quando a gente precisa de uma benção que é
praticamente impossível de conseguir, só um milagre pode salvar, existe uma
cerimônia dos 100 incensos, que chama Reapokegan. É a prece dos 100
incensos! Precisa de alguma coisa impossível, você faz a prece dos 100
incensos que é bem provável que você vai receber a benção. É uma prática da
HBS. Aqui no Brasil pouca gente faz, infelizmente. Mas no Japão, grande
parte dos fiéis praticantes mesmo, fazem. Você tem que ficar pelo menos
cinco horas por dia rezando, o tempo que for. Tem que se esforçar. Tem que
rezar até queimar os 100 incensos. Claro que você pode dividir esse tempo de
oração com outras pessoas próximas, amigos e familiares. Então, se tem
alguém próximo doente, pega os 100 incensos. Acende um por um, até
queimar inteiro, depois vai para o outro. E durante a queima de cada incenso,
17
você tem que rezar o Namumyouhourenguekyou, o mantra sagrado,
incessantemente. Pode parar para descansar, mas daí tem que apagar o
incenso e depois continuar de onde parou. Eu falo pras pessoas: “quer sarar?
Então, faz a prece dos 100 incensos!” (4º sacerdote Gyoen Campos, 27 de
maio de 2011).
Uma fiel também mencionou tal prática, durante a grande cerimônia de
inauguração da nova nave (Hondo) do Templo Ryushoji, em Mogi das Cruzes/SP, no
dia 13 de setembro de 2011. Em depoimento emocionado para a audiência do culto
matinal, ela se disse curada de um linfoma que a acometeu. Embora tenha feito radio e
quimioterapia, a fiel afirmou que o tratamento médico não surtia efeito e, após conhecer
a HBS e orar o Odaimoku, o seu espírito se fortaleceu e o corpo passou a reagir ao
tratamento, vencendo o câncer.
Fotografia 10: Fiel expõe seu relato de cura de linfoma aos presentes no culto de inau-
guração do Hondo (nave) do Templo Ryushoji, em Mogi das Cruzes (13 de setembro
de 2011).
A partir deste testemunho, é possível afirmar junto a Langdon e Wiik, que os
pacientes podem apresentar comportamentos e pensamentos singulares quanto à
experiência da doença, assim como noções particulares sobre a saúde e as formas
terapêuticas. Tais particularidades não viriam, pois, estritamente das diferenças
biológicas, mas, sim, das diferenças socioculturais, que teriam na religião um dos
alicerces fundamentais. Parte-se do pressuposto, portanto, de que todos têm cultura, e de
que é a cultura que determina essas particularidades. “Igualmente, sustenta-se que as
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questões inerentes à saúde e à doença devem ser pensadas a partir dos contextos
socioculturais específicos nos quais os mesmos ocorrem” (2010, p. 02).
Além da prática do Reapokegan, existe outro ritual que envolve a queima de
incensos, realizada durante os cultos póstumos, em homenagem a um parente falecido.
Nesta celebração, os adeptos (fiéis e sacerdotes) oram o Namumyouhourenguekyou,
com o intuito de auxiliar o falecido a eliminar o karma negativo. Isso ocorre porque o
Budismo, acreditando no ciclo de renascimentos e mortes (samsara), não percebe a
morte como o final da existência, mas sim como o início de um novo ciclo. Por esse
motivo, as doenças não são recebidas de forma tão assustadora como em outros
segmentos religiosos, mas, conforme foi relatado ao longo deste artigo, como uma
consequência e reflexo de um ato passado, pelo qual o enfermo necessariamente precisa
passar.
Fotografia 11: Ritual póstumo, realizado diante do Altar dos Antepassados,
na Catedral Nikkyoji, em São Paulo (maio de 2011).
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Considerações finais:
O presente trabalho buscou tencionar a noção usual do termo “doença”,
proveniente exclusivamente de uma ciência e de um saber biomédico. Para tanto,
utilizei como exemplo a corrente budista japonesa Honmon Butsuryu-shu (HBS), que
me dedico a pesquisar desde os meados de 2011. Tal escola budista faz uso de orações,
práticas meditativas e objetos (con)sagrados para curar e atenuar todas as formas de
enfermidades.
Neste sentido, é importante observar que tais “doenças” estão interligadas, tendo
como causa comum o karma negativo acumulado por uma pessoa, que por sua vez
também está interligada a todos os demais indivíduos viventes (não apenas seres
humanos). Isso significa que qualquer atitude e/ou pensamento negativo direcionado
para si ou para outro ser vivo (chamado de ser sensciente) gera um karma negativo, que
resultará em alguma forma de sofrimento em uma vida futura.
Assim, os equilíbrios físico, mental e espiritual, segundo os preceitos da HBS, só
podem ser alcançados através da prática do Odaimoku, expresso também no conjunto de
objetos que se tornam (con)sagrados e com faculdades curativas, através da recitação do
mantra Namumyouhourenguekyou.
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