8
CAPA Alfabetização Alfabetização . além da disputa A proposta é deixar de lado a polêmica entre enfoques e discutir o que realmente funciona no ensino da leitura e da escrita Texto WElllNGTON SOARES. Design ALICEVASCONCEllOS Edição RODRIGO RATIER

Alfabetização . alémdadisputa - Vera Cruzsite.veracruz.edu.br/doc/artigos/comunicacao...Pesquisas recentes mostram que crianças aprendem sobre gêneros textuais e suas marcas (onde

Embed Size (px)

Citation preview

CAPA Alfabetização

Alfabetização .além da disputaA proposta é deixar de ladoa polêmica entre enfoques ediscutir o que realmente funcionano ensino da leitura e da escritaTexto WElllNGTON SOARES. Design ALICEVASCONCEllOSEdição RODRIGO RATIER

Acontrovérsia é velha. Você deve co-nhecê-Ia: na hora de alfabetizar osalunos, qual caminho seguir? Hápelo menos 100 anos essa é uma das

mais fortes polêmicas da Educação. Não só aqui:vários países registram versões mais ou menosestridentes da disputa entre formas de ensinar aler e escrever. Começou nas primeiras décadas doséculo passado, com a briga em tomo do melhormétodo. Ganhou novos contornos a partir dosanos 1980, quando as investigações de Emilia Fer-reiro trouxeram valiosas informações sobre comoas crianças refletem sobre a escrita. O marco é olançamento de Psicogênese da Língua Escrita (AnaTeberosky e Emilia Ferreiro, 300 págs., Ed. Art-med, tel. 0800-703-3444,79 reais). "O debate deixade ser sobre atividades externas ao aluno e passaa considerar como ele pensa", diz Ana Paula Dini,doutoranda em Educação e Linguagem pela Uni-versidade de São Paulo (USP) e professora da redeparticular da capital paulista.

Ao longo dos anos, os métodos rígidos, comapenas úm caminho, foram superados entre osespecialistas. Porém, eles continuam vivos em vá-rias salas de aula. Muitas vezes de forma escondi-da, um pouco envergonhada, professores ensinamcomo aprenderam, recorrendo a atividades comoa caligrafia e o uso de cartilhas. Num certo senti-do, é algo esperado. "Para o professor não interes-sa a polêmica. Ele precisa ensinar e, para isso, re-corre aos conhecimentos que possui e aos recur-sos que estão disponíveis", explica Valdir Barzotto,professor da Universidade de São Paulo (USP).

Mesmo as contribuições de Ferreiro - terrenocomum para perspectivas mais modernas, queembasam programas de formação continuada epropostas curriculares Brasil afora - acabam che-

gando à escola de maneiras distintas. Vem daí adiscussão que opõe dois enfoques, que ficaramconhecidos como construtivista e letramento.

Em meio à disputa, perde a aprendizagem.Apenas oito em cada 100 brasileiros de 15 a 64anos são plenamente capazes de se expressar comletras e números, segundo o Indicador de Alfabe-tismo Funcional, Inaf

Para mudar essa estatística no futuro, é precisoagir agora. Quais são, afinal, as práticas mais ade-quadas para alfabetizar? Nas próximas páginas,explicamos o que funciona, o que comprovada-mente não dá certo e o que ainda está sendo dis-cutido. As diferenças entre as duas concepçõesmodernas realmente existem, mas a prática desala pode até se enriquecer contemplando ativi-dades de ambas. Bandeira branca para que todospossam aprender a ler e escrever.

A era dos métodosrígidos fracassou.Só 8% dos brasileirossão plenamentecapazes de seexpressar comletras e números.

CAPA Alfabetização

Para ficar no passado

"Até a metade do século 19, todas as pessoasforam alfabetizadas do mesmo jeito", diz

Isabel Frade, diretora do Centro de Alfabetização,Leitura e Escrita da Universidade Federal de Mi-nas Gerais (UFMG) e coordenadora da equipe deespecialistas da Base Nacional Comum Curricular(BNCC). Primeiro, ensinavam-se as letras, depoisjuntavam-se as letras para formar sílabas e, só de-opois, a turma entendia que a junção de todos esseselementos poderia formar palavras. "Essas ativi-dades eram sem sentido, porque demorava-se achegar ao significado", afirma Isabel.

Na virada para o século 20, novas propostas sedividiam em dois grandes grupos. O primeiro, dosmétodos sintéticos, desenhava um caminho deensino da parte para o todo, começando com acompreensão de unidades como a letra (métodoalfabético), fonema (método fônico) ou sílaba(método silábico). Um segundo grupo, o dos mé-todos analíticos, propunha a trajetória inversa: dotodo para a parte, iniciando com o estudo de pa-lavras (palavração), frases (sentenciação) ou dotexto inteiro (método global).

Essas teorias chegavam aos professores de for-ma inflexível e fechada, o que trouxe problemas.Entre os métodos sintéticos, privilegiava-se a de-cifração, com os alunos memorizando sílabas (ba--be-bi-bo-bu) para depois tentar formar palavrasou frases descontextualizadas ("eu vejo a barrigado bebê"). Boa parte deles se focava em exercíciosmecânicos e práticas hoje reconhecidas como ine-ficientes. Em comum: todas elas tratam o proces-

Muitos métodos tradicionais seapoiavam em práticas mecânicas,como exercícios de coordenação,caligrafia e leitura de textos decartilhas. A repetição - e não oraciocínio - era o foco do ensino.

so de alfabetização como a aquisição de umatécnica, relacionada apenas às relações entre sonse letras (veja o quadro à direita). "São procedimen-tos lineares, sequências de atividades que nãopreveem a participação ativa do aluno", diz Regi-na Scarpa, diretora pedagógica da Escola VeraCruz, na capital paulista. "A tarefa de escrita nãoé mecânica", destaca Teima Weisz, pesquisadorado tema e idealizadora de diversos programas deformação de professores alfabetizadores.

Já entre os métodos analíticos, a crítica era afalta de reflexão sobre o funcionamento do siste-ma alfabético. Na busca exclusiva pelo significadodo que estava escrito, dedicava-se pouco tempo aoestudo das relações grafofônicas - a ligação entreos sons da fala e suas possíveis grafias.

Para os especialistas, cresce o consenso de queé preciso trabalhar, ao mesmo tempo, tanto asunidades menores (investigar com quantas equais letras se escreve uma palavra, e onde elasdevem estar posicionadas) quanto os processos decompreensão e produção de textos (estudar ascaracterísticas de cada gênero - marcasde estilo,intenção de escrita e destinatário -, possibilitandoà turma ler e escrever antes de dominar conven-cionalmente esses processos). É assim no Brasil eem outros países. Na França, o relatório Goigoux,uma enorme pesquisa com 2.800 alunos publica-da no ano passado, ficou conhecido por propor ofim da "guerra dos métodos" ao comprovar a efi-cácia da combinação entre análise da língua ecompreensão. E, nos Estados Unidos, a iniciativaCommon Core State Standards, que detalha ex-pectativas de aprendizagem para a Educação Bá-sica, estabelece que alunos da primeira série de-vem saber reconhecer diferentes tipos de sílabas,mas também compreender a estrutura de umafrase e estar familiarizados com a organização degêneros impressos para ler com fluência.

Propor exercícios Apresentar alfabeto Esperar para Usar materiais Relacionar letrasde preparação e famílias de sílabas produzir textos não autênticos com desenhos

A ideia de exercícios Primeiro, o ba-be-bi- No passado, as Cartilhas e pré-livros, O A é desenhado comde coordenação bo-bu. Depois, o ca- crianças só eram criados apenas para o os contornos de umamotora do tipo co-cu. Essasunidades convidadas a tentar uso em sala, distorcem abelha. O B, na formaligue os pontos ou não precisam ser ler e escrever depois a forma como a de duas bolas. Quandocaligrafia caiu por ensinadas numa que já dominassem, linguagem escrita forçamos relaçõesterra. O domínio da ordem específica, em alguma medida, é usada. Textos com desse tipo, ignoramoscoordenação para supostamente mais o sistema alfabético frases desconexas a primeira descobertaescrever letras fácil. O desejável de escrita. As e sem sentido ("Ivo que as crianças fazeme números deve é apresentá-Ias pesquisas indicam o viu a uva", "O dado sobre a lingua escrita:se dar no ato de de acordo com a contrário: é ao tentar é de Didi") pouco a de que letras nãoescrever essessinais necessidade dos ler e escrever - e ao ajudam a criança são desenhos. É umgráficos e não ao pequenos, como ao pensar sobre essas a compreender as tipo de prática quecobrir tracejados ou observar seus nomes ações - que os práticas culturais de não considera o quedesenhar palitinhos. ou títulos de livros. pequenos avançam. leitura e escrita. os pequenos sabem.

CAPA Alfabetização

contam com uma excelente rede de bibliotecaspúblicas, a maioria das famílias assina ao menosum jornal e ler histórias para as crianças antes dedormir é uma tradição.

As descobertas sobre como as crianças apren-dem também impactaram profundamente o tra-balho em aula, tomando indispensável uma sériede práticas (veja o quadro abaixo). Em geral, elasestão relacionadas à importância de fazer com.que os pequenos reflitam sobre o sistema alfabé-tico enquanto se inserem no mundo da culturaescrita - justamente a mescla de perspectivas queos especialistas defendem hoje.

Os estudiosos também concordam quanto àimportância de se observar, durante todo o traba-lho, como as crianças estão avançando em suashipóteses de escrita: pré-silábica (o aluno conheceas letras, mas elas não correspondem ao que sefala), silábica (cada letra ou símbolo correspondea uma sílaba falada), silábica-alfabética (ora seescreve atribuindo a cada sílaba uma letra, orarepresentando todo o fonema) e alfabética (o alu-no entende que cada caracterer corresponde a umvalor sonoro menor do que a sílaba). "O trabalhoconsiste em garantir que o aluno avance progres-sivamente de um nível para o seguinte", defendeMagda Soares, da UFMG.

Para usar na sala de aula

Emilia Ferreiro é uma unanimidade. "Sua psi-cogênese da língua escrita deve influenciar o

trabalho de qualquer um que se volte para a alfa-betização", afirma Magda Soares, professora erné-rita da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Uma lição é confiar na capacidade dascrianças, dizem Ferreiro e Ana Teberosky no livroReflexões sobre a Alfabetização (104 págs., Ed. Cor-tez, tel. 11/3611-9616,29 reais). Por exemplo: des-de os 4 anos, antes de serem capazes de ler textos,elas possuem critérios para admitir se uma marcagráfica pode ou não ser lida - ou seja, distinguemletras e números de simples grafismos.

Todo esse aprendizado, explicam as autoras,começa antes mesmo da escolarização. Os peque-nos aprendem interagindo com textos nas maisdiferentes situações: em celulares e tablets, na te-levisão, ao observar livros existentes em casa e emoutros momentos, como em agendas telefônicasou observando placas com o nome de ruas. Nova-mente essa constatação tem espaço no ensino demuitos países. Para o Conselho Nacional de Edu-cação da Finlândia, uma das razões de o país figu-rar no topo do ranking de avaliações internacio-nais como o Pisa é o fato de sua população lermuito (veja reportagem sobre a importância da lei-tura na comunidade na página 51). Os finlandeses

Iniciar o ensinopelas letras bastão

Também chamadasde letras de fôrmamaiúsculas, elas sãoideais para os alunosque estão começandoa se questionar comquantas e quaisletras se escreve umapalavra. Elas são maissimples e isoladas - aocontrário das cursivas,emendadas umas àsoutras. Quando nãose preocupam com acaligrafia, os alunosrefletem sobre o querealmente interessa.

Garantir acesso adiversos gêneros

Pesquisas recentesmostram que criançasaprendem sobregêneros textuais esuas marcas (ondefica o título, possíveisrelações do escritocom as ilustraçõesetc.) mesmo antesde se tornaremleitores proficentes.Ler e escrever, então,precisa fazer partedo cotidiano da salaem situações diversas,com a ajuda ounão do professor.

38 MAIO 2016 novaescola.org.br

Utilizar o repertóriodos alunos

Usando o que jásabem para buscarnovos conhecimentos,os alunos avançammelhor. Umapossibilidade érecorrer a palavrasconhecidas pela turmapara descobrir a grafiade novas, O exemploclássico é o da listade nomes da classe.O "ca" de Carolina,por exemplo,pode ajudar aescrever casa,camelo e cachorro.

Realizardiagnósticos

Com' sondagens,o professor identificaos níveis de escritade cada um deseus alunos. Assim,consegue planejarquais as melhoresintervenções parafazer com que ascrianças aprendam.As ações podem serde variados tipos aomesmo tempo,já que os alunoscostumam passar portrajetos diferentesde aprendizagem.

Com a psicogêneseda língua escrita,o aluno passou aser visto como umparticipante ativoda aprend izagem.Todas as práticaspartem dessa ideia.

novaescoIa.org.br MAIO 2016 39

CAPA Alfabetização

Para um professorcompetente,enfoq ues diferentes- ..nao apnsronarn.Ao contrá rio,eles aumentamo leque de opções.para ensinar.

40 MAI02016 novaescola.org.br

tos, as propostas para cada caminho divergem:para os construtivistas, muitos aspectos da línguaescrita - como a orientação do texto, a sua orga-nização em linhas, a diferença entre letras e ou-tros sinais - são aprendidos pela criança por meiode seu contato com os materiais escritos. Já paraa perspectiva do letramento, é importante reser-var momentos em que as crianças os observempor meio de exercícios de identificação de sílabasem palavras, por exemplo.

Nesse momento, ainda não há pesquisas queindiquem uma clara vantagem de um dos lados.Os dois têm bons resultados, por exemplo, no Sºano na Prova Brasil - os construtivistas em SãoPaulo, com o programa Ler e Escrever, e os defen-sores do letramento no Ceará, com o ProgramaAlfabetização na Idade Certa (Paie). Para você,professor, o avanço é que nenhum dos enfoquesnega o outro: embora a ênfase varie, os dois com-binam atividades de reflexão sobre o sistema ?eescrita com outras que priviligiam a compreensãode textos em seu uso social. Em vez de aprisionar,eles aumentam o leque de opções para ensinar.

Conhecer profundamente as diferentes linhasde alfabetização é essencial. Primeiro para separaro que está ultrapassado do que funciona. Segun-do, para escolher as práticas mais eficientes paracada aluno e cada ocasião. Na sua aula, o direitode aprender deve estar acima das disputas .•

Para seguir investigando

Apesar de unidos pela referência à psicogêneseda língua, o enfoque de inspiração constru-

tivista e a perspectiva do letramento divergemquanto a um aspecto fundamental: a relação en-tre fala e escrita. Para os construtivistas, a línguaescrita constitui um sistema de representaçãoindependente da fala. O ensino, então, não podese basear apenas na relação entre os sons e as le-tras. "As crianças tomam consciência dessa relaçãocomo uma consequência do processo de compre-ensão da escrita", diz Andrea Luize, coordenadorada pós-graduação em alfabetização do InstitutoSuperior de Educação Vera Cruz, em São Paulo.

Já para os adeptos do letramento, é necessárioum ensino sistemático dessas relações. "Para quea criança avance, devemos orientá-Ia a prestaratenção na palavra como som, e como som quepode ser segmentado em sílabas, e sílabas que po-dem ser segmentadas em fonemas, estes, final-mente, representados por letras", diz Magda Soa-res. "Talvez a principal diferença esteja no fato daênfase que se dá à tentativa de leitura, no letra-mento, e a ênfase que se dá à tentativa de escrita,no outro enfoque", diz Ana Paula Dini.

Se do ponto de vista teórico uma conciliaçãototal parece distante - seria preciso questionar osprincípios que fundamentam cada um dos enfo-ques -, a situação é bem menos radical em sala deau Ia. É verdade que, por causa de seus fundamen-

Devemos buscar a alfabetizaçãoou o letramento?

Uma parte da polêmica é puramente semântica. Paraos construtivistas, um leitor e escritor proficiente éum sujeito alfabetizado, condição que se aprimoraao longo da vida. A alfabetização inicial é o momentoem que a criança se debruça sobre o sistemaalfabético de escrita. Não há separação entre essesdois processos. Na outra perspectiva, a proficiência échamada de letramento, e a alfabetização é o começoda aprendizagem. A intenção é a mesma: formarpessoas capazes de atuar ativamente num mundoem que a escrita é tão importante. O letramentodefende uma ênfase no ensino do sistema, massem abandonar as práticas culturais. No enfoqueconstrutivista, a reflexão sobre o sistema ocorrequando os alunos pensam sobre as práticas culturais- via contato constante com textos em uso real.

o que dizem as pesquisas sobrea relação entre fala e escrita?

Há estudos que mostram grandes diferençasentre as duas. Por exemplo: em algumas regiõesdo Brasil, é comum que se diga "andanu"em vez de "andando". Esse tipo de irregularidadepode representar um problema ao se encarara escrita como transcrição da fala. Os críticosdizem que a relação não é direta e tende a sermais complexa. Por outro lado, também háinvestigações para demonstrar que a compreensãoadequada entre letras e sons pode auxiliarna aquisição da autonomia de cada aluno dianteda escrita, sobretudo durante a leitura,ênfase do letramento. Seria uma justificativapara um estudo sistematizado da relação fala-escrita. De todo modo, ainda não dá paraafirmar qual perspectiva leva vantagem.

novaescola.org.br MAIO 2016 41