34
A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV 1. Abastecimento urbano e regulamentação concelhia Já na Grécia Antiga um dos elementos fundamentais da Pólis era o designado ideal de autarcia, ou seja a cidade–estado deveria ser auto- suficiente para garantir a sua independência, relativamente ao estrangeiro. Na Idade Média e por influência das teorias aristotélicas, o ideal de auto-suficiência foi igualmente defendido. Sem dúvida que o auto – abastecimento seria o desejo de qualquer centro urbano medievo, contudo isso não se verifica: “ a cidade, sob o ponto de vista do seu abastecimento alimentar, era uma estrutura frágil, artificial mesmo, impossível de bastar-se a si própria...” 1 . O abastecimento urbano, nomeadamente no que concerne a bens de primeira necessidade, é uma das grandes preocupações dos concelhos em geral. Muito mais dependentes dos caprichos da natureza, do que actualmente, as produções agrícolas eram inconstantes, assim como os próprios preços praticados e a ameaça de fome, várias vezes se tornou realidade 2 . De forma a assegurar o aprovisionamento da vila, o concelho adoptava medidas de carácter proteccionista, que visavam fomentar as importações, e dificultar as exportações. 1 Iria GONÇALVES, in: “Defesa do consumidor na cidade medieval: Os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV - XV)”, Um olhar sobre a cidade medieval, Patrimonia, Cascais, 1996, p. 98. 2 Em Portugal houve uma grande fome no ano de 1331, que se agravou em 1348. Vide José MATTOSO, História de Portugal, Vol. II, Círculo de Leitores, 1993, p.249. 1

Alimentação em Loulé

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1. Abastecimento urbano e regulamentação concelhia

Já na Grécia Antiga um dos elementos fundamentais da Pólis era o designado

ideal de autarcia, ou seja a cidade–estado deveria ser auto-suficiente para

garantir a sua independência, relativamente ao estrangeiro. Na Idade Média e

por influência das teorias aristotélicas, o ideal de auto-suficiência foi igualmente

defendido.

Sem dúvida que o auto – abastecimento seria o desejo de qualquer centro urbano

medievo, contudo isso não se verifica: “ a cidade, sob o ponto de vista do seu

abastecimento alimentar, era uma estrutura frágil, artificial mesmo, impossível

de bastar-se a si própria...”1.

O abastecimento urbano, nomeadamente no que concerne a bens de primeira

necessidade, é uma das grandes preocupações dos concelhos em geral.

Muito mais dependentes dos caprichos da natureza, do que actualmente, as

produções agrícolas eram inconstantes, assim como os próprios preços

praticados e a ameaça de fome, várias vezes se tornou realidade2.

De forma a assegurar o aprovisionamento da vila, o concelho adoptava medidas

de carácter proteccionista, que visavam fomentar as importações, e dificultar as

exportações.

Ao assegurar a quantidade suficiente de bens alimentares para abastecer o

centro urbano, o governo concelhio garantia, de igual modo o preço justo dos

mesmos, evitando, assim a especulação e a inflação, características de períodos

de carestia, que em contexto medieval pode mesmo significar morrer à fome.

1 Iria GONÇALVES, in: “Defesa do consumidor na cidade medieval: Os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV - XV)”, Um olhar sobre a cidade medieval, Patrimonia, Cascais, 1996, p. 98.2 Em Portugal houve uma grande fome no ano de 1331, que se agravou em 1348. Vide José MATTOSO, História de Portugal, Vol. II, Círculo de Leitores, 1993, p.249.

1

Page 2: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

São pois preocupações do concelho garantir a todos os seus habitantes o acesso

ao sustento básico e a um preço justo3. Para que tal fosse possível, o concelho

tinha que controlar, de forma sistemática, as actividades económicas. O

funcionário responsável por tal tarefa era o almotacé, funcionário de indiscutível

ascendência islâmica.

Os locais de venda eram fixos e não era permitida a venda de produtos fora da

vila. Para garantir que os seus habitantes obtinham os produtos necessários para

o seu sustento, os preços eram tabelados e os pesos e medidas eram

regularmente fiscalizados pelo governo municipal, devendo apresentar a marca

do concelho, caso contrário eram considerados fraudulentos.

É pois evidente o forte controlo exercido pelo poder concelhio sobre as

actividades económicas, sempre com o objectivo fundamental de garantir o

abastecimento pleno da vila e a defesa do consumidor comum; tal como iremos

verificar ao longo da análise das actas de vereação do concelho de Loulé.

As preocupações com o abastecimento da vila de Loulé no período em estudo,

relatadas nas actas de vereação, fornecem importantes elementos no que

concerne aos hábitos alimentares dos louletanos de então.

3 Sobre o assunto veja-se Iria GONÇALVES, “art. cit.”, para Lisboa e Beatriz Arizaga BOLUMBURU, “El abastecimiento de las villas vizcaínas medievales: política comercial de las villas respecto al entorno y a su interior”, in: La Ciudad Hispanica Durante Los Siglos XIII Al XVI, Tomo I.

2

Page 3: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1. Bens alimentares regulamentados

1.1.1. Pão

No concelho de Loulé, bem como no Algarve, de um modo geral, a carência de

cereal (pão)4 é notória. A falta de pão não é um problema apenas desta região,

outras zonas do país também sofrem de tal deficiência e por este motivo, visto

que a produção nacional não é suficiente para abastecer o reino, por vezes é

necessário importar este bem tão precioso, que constitui a base alimentar

medieval.

Face à necessidade de cereal, os homens do concelho reuniam-se, muitas vezes

em vereação para decidir como agir para obter o “pão nosso de cada dia”. Por

vezes a solução passava mesmo por recorrer ao poder central, solicitando

medidas proteccionistas que garantissem o aprovisionamento em pão. Entre

estas medidas destaca-se a autorização para adquirirem pão no Campo de

Ourique e na comarca de Entre Tejo e Odiana ou mesmo a importação de trigo

proveniente da Bretanha5.

À semelhança do que sucede actualmente, já na época, o mercado obedece à lei

da oferta e da procura e por isso mesmo, por vezes o preço do trigo atingiu

preços muito elevados. O concelho interveio então, e regulamentou o preço de

tal produto com base no preço do trigo praticado em Évora ( 20 soldos o

alqueire), decidindo que, em Loulé, o bom trigo não ultrapassará os 25 soldos.

Além disso, os vendedores ficavam obrigados a vendê-lo nas fangas ou no

mercado tradicional de cereais6.

4 A. H. de Oliveira MARQUES, Introdução à História da Agricultura – A Questão Cerealífera durante a Idade Média, Cosmos, Lisboa, 1978, pp. 79-80.5 Actas de Vereação de Loulé, acta de 1385, pp. 26-29; acta de 1403, pp.113-114; acta de 23 de Abril de 1468, pp. 204-205 e acta de 4 de Junho de 1468, pp. 210-211.6 Ibidem, acta de 1385, pp. 29-30

3

Page 4: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Uma moeda de troca utilizada pelos concelhos de Loulé e Faro, para obterem

cereal da Bretanha foi o figo. Para incentivarem a importação de trigo desta

região, acordaram entre si conceder aos vendedores uma peça de figos por cada

moio de trigo trazido aos ditos concelhos7.

Para além de se preocuparem com a quantidade de cereais panificáveis, os juizes

e vereadores zelavam pela qualidade do produto final, o pão cozido, devia ser

alvo e bem feito. Portanto as padeiras que amassavam e vendiam estavam

sujeitas a uma série de coimas no caso de não produzirem “boo pam branco

stremado e bem fecto”8, como convinha a uma terra onde viviam tantos homens

honrados e onde afluíam gentes estrangeiras. A qualidade do pão consumido era

o espelho da nobreza do concelho.

1.1.2. Fruta e produtos hortícolas

O figo era um produto de exportação internacional, daí que se justifique o facto

dos figueirais serem, constantemente, protegidos na legislação municipal9.

Contudo, os figueirais não eram as únicas espécies alvo de protecção e controlo

por parte do governo camarário, como refere Maria Ângela Beirante: “verificamos

que as propriedades ou espécies mais protegidas são, por ordem decrescente:

vinhas, figueirais, pães, olivais, ferragiais, hortas e pomares, arvoredo

espontâneo e espartal.”10.

Esta preocupação com a protecção do verde, traduz-se nas várias posturas

elaboradas pelos homens-bons nas reuniões camarárias e que funcionavam

como leis locais.

As pesadas coimas para quem não as cumprisse (que constituíam a renda do

verde), reflectem a importância do equilíbrio entre o centro urbano e o seu

7 Ibidem, acta de 4 de Junho de 1468, pp. 210-211.8 Ibidem, acta de Maio de 1408, p. 193.9 Vide Maria Ângela BEIRANTE, “Relações entre o Homem e a Natureza nas mais Antigas Posturas da Câmara de Loulé (Séculos XIV-XV)”, in: Actas das 1ªs Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia , Câmara Municipal - Universidade do Algarve, Loulé,1987, pp. 231- 242.10 Idem, ibidem, p.232.

4

Page 5: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

termo, isto é o equilíbrio que deveria existir entre a natureza e a acção do

homem.

Na vereação de 21 de Abril de 1408, são ordenadas muitas posturas referentes à

protecção do verde: “olhando pello prool e boo regimento da dicta villa per que

era dicto que as ordenações e pusturas que era m fectas ates o que per razom

da renda do verde nom andavam atam bem ordenadas e fectas segudo comprya

pera proll e boo regimento da dicta villa.”11.

Os animais à solta, que danificam as culturas são uma constante e por isso

mesmo são várias as actas que prevêem castigos para os donos dos animais12,

prova da extrema importância desta matéria para o “bom regimento ” do

concelho.

A importância dos bens alimentares que as hortas13, cortinhais e a própria serra

forneciam à população do concelho está bem patente ao longo da leitura das

actas de vereação. Estes bens constituíam uma parte significativa no

abastecimento do centro urbano. Como é típico na Idade Média, o diálogo e a

interdependência que se estabelece entre o mundo urbano e o mundo rural

reflecte-se na legislação camarária.

O controlo do abastecimento de Loulé não se limita, contudo à renda do verde,

para utilizar o termo medieval. No entanto, torna-se evidente, que o regimento

do verde decorre das necessidades de aprovisionamento local.

11 Ibidem, p. 177-188.12Ibidem, acta de 15 de Novembro de 1402, p. 106; acta de 26 de Maio de 1403, pp. 126-129; acta de 1 de Dezembro de 1403, p. 148; acta de 12 de Janeiro de 1404, p. 152 e acta de 22 de Fevereiro de 1404, p. 159. 13 De notar que o concelho encontrava-se envolvido por uma faixa de hortas, da qual se destaca a horta d’El-Rei, que abasteciam o mercado urbano. Loulé seria, pois um concelho rico em produtos hortícolas.

5

Page 6: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1.3. Carne

Um dos produtos fundamentais para o abastecimento da vila era a carne. Ao

longo da leitura das actas de vereação encontrámos várias referências a esse

respeito e até punições (prisão) aos carniceiros que se mostraram negligentes no

abastecimento de carne de vaca14.

De facto, garantir o abastecimento de carne em quantidade e a um preço justo,

são duas preocupações que assaltam o governo concelhio. Para isso a edilidade

contratava, anualmente, dois carniceiros que se comprometiam a fornecer e

talhar a carne desde a Páscoa até ao Entrudo seguinte. É o que vemos na

vereação de 26 de Março de 1385, na qual estes se comprometem a respeitar o

tabelamento dos preços da carne15.

A carne mais cara é a de carneiro (a quatro soldos). Ao que tudo indica, esta

seria a carne mais apreciada na época, mas não parece significar que fosse a

mais acessível. Talvez a grande procura fizesse o seu preço subir, de acordo,

uma vez mais com a lei da oferta e da procura. Logo abaixo encontrava-se a

carne de vaca – a três soldos – e por fim a carne de cabra e “cabron” a dois

soldos e quatro dinheiros16.

Como já referimos, os vereadores puniam os carniceiros que não cumprissem o

seu dever, podiam ser presos, podiam ficar privados de exercer o ofício ou até

ser expulsos da vila. Na verdade não encontramos nenhum caso de expulsão,

pois o concelho reconsiderou e permitiu aos carniceiros, que não conseguiram

abastecer a vila de carne nesse Natal, de permanecerem em Loulé, pois eram

bons e naturais da vila e se obrigaram a fornecer a dita carne17.

14Actas de Vereação de Loulé, acta de 28 de Junho de 1402, pp. 90-91.15 Ibidem, pp. 40-41.16 Note-se que não é especificada a unidade de medida a que se refere o preço. É provável que se trate do arrátel, equivalente a 340 g.17 Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta sem data, p. 68.

6

Page 7: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Não interessa, contudo, apenas a quantidade da carne, é fundamental a

qualidade do produto e a relação entre a qualidade e o preço praticado. O

concelho adverte os carniceiros de que não podem vender a carne toda ao

mesmo preço do primeiro dia que é talhada; ou seja nos dias seguintes ao talhe

da carne o seu preço baixava para metade e quem não cumprisse tal postura

pagaria de coima duas libras18.

Outra disposição que demonstra a preocupação do concelho em defender o

consumidor, prende-se com o talhar a carne no Verão. A carne destinada a ser

vendida no domingo devia ser talhada no sábado à tarde e não de manhã, para

evitar que se deteriorasse com o calor19. Trata-se, pois de uma medida de saúde

pública.

Apesar de se considerar a cidade medieval uma cidade suja, a verdade é que, já

então existiam medidas que visavam prevenir doenças, epidemias, pestes e que

traduziam uma preocupação com a higiene e saúde pública20.

Em relação às condições em que a carne é vendida, encontramos uma postura

que proíbe quer a mistura dos diferentes tipos de carne, quer a mistura de

unhas, pés e cabeças dos respectivos animais expostos no talho21. Para além da

questão higiénica, a postura visa de igual modo evitar que o consumidor compre

“gato a preço de lebre”.

18 Ibidem, acta de 12 de Maio de 1403, pp. 125-126.19 Ibidem, acta de 23 de Junho de 1403, p. 133.20 Encontramos medidas desse género tanto em Loulé, como nas posturas antigas de Lisboa, como por exemplo a postura datada de 28 de Junho de 1458 – Ordenação do varrer as Ruas na qual o corregedor e vereadores de Lisboa mandam que todos os seus habitantes, desde a Páscoa até S. Miguel em Setembro varram a rua em frente à sua porta e levem diariamente o lixo para a ribeira. Quem não o fizesse pagaria cinquenta libras de coima. Este é apenas um exemplo, que recai sobre um período concreto, que é o mais quente do ano, logo o que representa um maior perigo de propagação de epidemias, in: Livro das Posturas Antigas da Câmara de Lisboa, Leitura paleográfica e transcrição de Maria Teresa C. Rodrigues, Lisboa, 1974.21 Actas de Vereação de Loulé, acta de 17 de Novembro de 1403, pp. 146-147.

7

Page 8: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

A vida económica concelhia é controlada e regulamentada pelo próprio poder

local, porém a crescente centralização e afirmação régia reflecte-se nos

concelhos, que acabam por ocupar um lugar “entre poderes”22. Por um lado são

um apoio do monarca; por outro contestam o seu poder. Na realidade é o rei que,

através dos seus regimentos, tem a última palavra a dizer sobre as actividades

económicas locais. É o que nos mostra o Regimento régio de 148723, registado no

livro de actas do concelho, onde na primeira coluna surgem as carnes de talho,

pela seguinte ordem: cordeiros, cabritos, leitões, patos, galinhas, frangos,

perdizes, capões, ovos e caças. Através desta extensa listagem podemos

conhecer e deduzir quão variada seria a alimentação medieval, neste caso no

que se prende com espécies animais disponíveis no mercado.

1.1.4. Pescado

Loulé não é propriamente uma vila do litoral, no entanto, a proximidade da costa

faz com que o pescado seja um produto importante na dieta alimentar dos

louletanos na época em estudo.

Tanto assim é que são várias as actas que contemplam tal assunto,

nomeadamente no que respeita aos preços, às formas de venda, ao

abastecimento suficiente de pescado, matérias que estão sob alçada do poder do

município, à semelhança do que já verificámos para a carne.

O local de venda devia ser sempre o mesmo, na praça, para que fosse possível o

controlo do concelho. Porém alguns habitantes da vila tentavam vender

sardinhas e outros pescados em casa, certamente para ficarem longe do olhar

fiscalizador do almotacé.

22 Vide: Maria Helena da Cruz COELHO, “ «Entre Poderes»- Análise de alguns casos na Centúria de Quatrocentos”, Separata da Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1989, pp. 103-135.23 Actas de Vereação de Loulé, acta de 28 de Setembro, p. 229.

8

Page 9: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Para garantir que tal não acontecia, a vereação decidiu, por postura, que aqueles

que trouxessem o pescado até à vila, seriam obrigados a dirigir-se à praça – local

onde se efectuaria a venda – e mostrá-lo aos almotacés24. Garantir que o pescado

se vendesse sempre na praça era extremamente importante, em primeiro lugar,

porque assim todos sabiam onde adquirir o produto e, por outro lado, os

almotacés também conseguiam controlar os vendedores mais facilmente,

evitando fraudes e enganos.

O pescado era comprado em Faro e em Tavira, mas segundo o número de

referências a Faro parece que este era adquirido maioritariamente nessa cidade,

o que é normal, pois Faro situa-se muito mais perto de Loulé do que Tavira. Em

Faro, as cabeças de peixota (pescada), eram oferecidas, mas em Loulé chegaram

a vendê-las. O concelho ao tomar conhecimento de tal “negócio”, proibiu, por

postura a venda das cabeças do referido peixe25.

O pescado fazia parte da dieta alimentar de Loulé nos séculos XIV e XV, nos “dias

do pescado”, que eram três dias por semana - quarta-feira, sexta-feira e sábado -

os regatães tinham de garantir o “mantimento de suas jentes”26; uma vez mais o

concelho demonstra a enorme preocupação com o abastecimento da vila, desta

vez em matéria de peixe, como já objectámos para o pão e para a carne.

Os preços do peixe também eram tabelados por postura27. Essa postura oferece-

nos uma preciosa informação sobre as espécies de peixe vendido em Loulé. As

mais apreciadas e que não se vendiam a peso, mas segundo a avaliação dos

almotacés, eram as corvinas, os pargos e as pescadas. Entre as espécies

vendidas a peso destacavam-se os linguados e os sáveis, tabelados a 6 reais o

arrátel. Seguia-se o pescado de escama, a 4 reais o arrátel e por fim, o pescado

de coiro, como a raia e o cação, a 3 reais o arrátel.

1.1.5. Vinho

24 Ibidem, acta de 22 de Dezembro de 1403, p. 149.25 Ibidem, acta de 2 de Fevereiro de 1404, pp. 154-155.26 Ibidem, acta de 4 de Fevereiro de 1408, p. 162.27 Ibidem, acta de 17 de Março de 1408, p. 167.

9

Page 10: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

São apenas três as actas que mencionam a questão do vinho28. O facto de não

existirem mais referências a este produto, não significa escassez de produção ou

consumo reduzido do mesmo. A vinha, como já mencionámos, era a cultura mais

protegida no concelho e era sem dúvida uma cultura importante, visto que o

vinho era a bebida mais consumida na Idade Média, sacralizada no ritual da

eucaristia onde se transforma em sangue de Cristo.

Duas destas actas tratam do relego, direito régio que estava consagrado no foral

de 126629. Correspondia ao monopólio da venda do vinho do rei, durante três

meses do ano, o que podia prejudicar os demais produtores porque punha em

perigo a conservação do vinho e diminuía a procura no mercado. No entanto sem

licença do relegueiro, em Loulé, ninguém tinha o direito de vender o seu vinho

antes da data estabelecida, sob pena de pagar uma coima. A necessidade de

relego é sintoma de produção abundante de vinho.

Um dos pedidos levados pelo concelho louletano às cortes de Coimbra, foi

exactamente, para que o relego nessa vila não fosse superior ao de Faro e de

Tavira. Preocupações de carácter económico, demonstradas por tal pedido em

cortes30.

A forma de venda do vinho é igualmente regulamentada por postura. Nenhum

vendedor de vinho devia vender o produto sem o auxílio do funil, “qualquer

pesoa que vinho medir sem fonil que pague de coima pera o Concelho (...) dez

reaaes”31. O objectivo desta postura era, sem dúvida, proteger o consumidor.

28 Ibidem, acta de 9 de Janeiro de 1385, pp. 25-26; acta de 2 de Abril de 1385, pp. 41-43; acta de 4 de Agosto de 1403, p. 138.29 Isilda Maria Pires MARTINS, O Foral de Loulé de 1266, Câmara Municipal de Loulé, 1989, p. 25.30Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta de 2 de Abril de 1385, pp. 41-43.31 Ibidem, acta 4 de Agosto de 1403, p. 138.

10

Page 11: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

1.1.6. Azeite

Geralmente associado ao cultivo da vinha está o cultivo da oliveira, espécie

difundida pelos muçulmanos e que marca, indiscutivelmente, a paisagem

meridional.

O aumento do cultivo da oliveira, que traça um caminho inverso ao da

Reconquista, sem, contudo, ultrapassar muito a linha do Mondego, está

associado à produção de azeite.

O azeite é a gordura mais utilizada na Idade Média, quer por cristãos, quer por

muçulmanos. É utilizada na cozinha e também na iluminação.

Loulé, concelho situado a sul, antigo centro urbano muçulmano, como não

poderia deixar de ser, possuía lagares de azeite.

Através das posturas municipais referentes aos lagares de azeite32, sabemos que

os donos dos lagares não eram os donos dos olivais. As azeitonas não deviam ser

moídas sem que o concelho dissesse qual a quantidade a moer, para evitar o

desperdício da azeitona.

No caso dos lagares de azeite o concelho adquire uma posição conciliadora entre

os produtores da azeitona e os donos dos lagares. Uma vez mais a preocupação

é o cumprimento da ordem de forma justa, para ambos os intervenientes neste

negócio do azeite, vital para o consumo da vila.

Como foi possível verificar, ao longo da nossa análise o abastecimento de bens

alimentares é um assunto sempre presente no psicológico colectivo medieval.

32 Ibidem, actas de 20 de Novembro de 1402, p. 107 e de 28 de Outubro de 1487, pp. 237-241.

11

Page 12: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Tanto que quando algum mester não abastece a vila com os bens essenciais é

punido, como no caso dos carniceiros que quase foram expulsos de Loulé ou

daqueles que chegaram mesmo a ser presos33.

Há o controlo e fiscalização dos preços, pesos, medidas, locais de venda, enfim,

tudo o que esteja relacionado com actividades comerciais, pois só assim o

governo concelhio consegue garantir ao consumidor comum o seu sustento

diário, quer em quantidade, quer em qualidade!

33 Ibidem, acta sem data, p. 68 e acta de 28 de Junho de 1402, pp. 90-91.

12

Page 13: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

2. Hábitos alimentares dos louletanos nos tempos medievos

A alimentação continua a ser um aspecto mal conhecido da vida do homem

medieval, devido, essencialmente à falta de fontes directas. O primeiro livro de

cozinha português conhecido, remonta já ao século XVI34.

Os banquetes, as festas da realeza e até os livros de despesas dos conventos35 e

da casa real36 permitem uma análise em relação ao que as camadas sociais mais

altas comiam. No que respeita à dieta alimentar do povo, as informações são

mais escassas, não sendo, no entanto, inexistentes37.

Através das actas de vereação de Loulé dos séculos XIV e XV, podemos conhecer

os alimentos que constituíam a dieta alimentar de então.

Outros documentos que nos forneceram elementos relativos à alimentação, são

os forais da vila; quer o foral de 1266, quer o foral manuelino de 150438. Apesar

deste último ser já do século XVI, acreditamos que o tipo de produtos

alimentares consumidos nos dois séculos precedentes não seriam muito díspares

dos referidos no Foral Novo39.

Ao que tudo indica, já em tempos medievais, a carne era muito apreciada e por

isso mesmo muito consumida, e estaria maioritariamente presente nas mesas

mais abastadas40.

34 Estudado por Maria José AZEVEDO, “O Mais Antigo Livro de Cozinha Português ”, in: A Alimentação em Portugal na Idade Média, INATEL, Coimbra, 1997, pp. 35-66.35 Para Santarém o estudo de Maria Ângela BEIRANTE, “A Alimentação”, Santarém Quinhentista, pp. 247-252.36 Maria José AZEVEDO, ob. cit., “O Peixe e a Fruta na Alimentação da Corte de D. Afonso V”, pp. 1-33 e ainda Iria GONÇALVES, “Acerca da Alimentação Medieval”, in: Imagens do Mundo Medieval, Livros Horizonte, Lisboa, pp. 201-217.37 Maria Helena da cruz COELHO, “Apontamentos Sobre a Comida e Bebida do Campesinato Coimbrão em Tempos Medievos”, in: Homens, Espaços e Poderes, Séculos XI – XVI – I – Notas do Viver Social, Livro Horizonte, Lisboa, pp. 9-22.38 CMLLE / A / 001 / LV001.39 O Foral Novo torna-se quase num foral de portagem, havendo a preocupação de contemplar todos os produtos que entravam e saíam da vila. Sobre o assunto veja-se: Maria Ângela BEIRANTE, Introdução à Edição Facsimilada do Foral Manuelino de Évora, Câmara Municipal de Évora, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Évora, 2001, pp.11-40. 40 Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 247 e Iria GONÇALVES, ob. cit., p. 203.

13

Page 14: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Como foi possível constatar através das actas de vereação, a variedade de

espécies disponíveis no talho era vasta, desde carneiro, porco, vaca, a aves de

criação e caça.

Apesar de conhecermos as carnes que constituíam a alimentação medieval, nada

podemos adiantar quanto ao modo como estas seriam confeccionadas.

Não podemos esquecer que os animais não fornecem somente a carne, isto do

ponto de vista alimentar. A manteiga, o queijo e a banha, faziam, igualmente,

parte do quotidiano alimentar dos homens medievais41. Os ovos, embora não

sendo carne de talho, são mencionados no regimento régio junto das carnes de

talho, tal era a estreita relação entre os animais e os seus derivados.

Como já foi referido o pescado também está presente na mesa do homem

medieval. Há autores que sublinham a preferência pelo consumo da carne,

limitando deste modo o consumo de peixe às prescrições religiosas42, isto por

parte das camadas sociais mais elevadas, porque para as camadas populares o

pescado constituía um alimento comum.

O pescado podia ser consumido fresco, o que provavelmente acontecia na vila de

Loulé, visto que em três dias da semana era vendido peixe fresco no mercado da

vila. Encontrámos, na documentação consultada, referência à secagem do

pescado43 (não é especificada a espécie) antes deste ser levado para Castela.

Ora, para Castela era exportada pescada seca44, donde se conclui que, para além

do consumo interno de pescado este, depois de seco, era vendido para Castela.

41 Sobre o assunto veja-se: Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., e Maria José AZEVEDO, ob. cit..42 Vide A. H. Oliveira MARQUES, A Sociedade Medieval Portuguesa – Aspectos da Vida Quotidiana, “A Mesa”, 5.ª Edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, pp. 9-10.43 Actas de Vereação de Loulé, ob. cit., acta de 1468, pp. 199-200.44 A. H. Oliveira MARQUES, ob. cit., p.11.

14

Page 15: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Para além da secagem, um outro método de conservação muito difundido na

época medieval é a salga. No foral medieval da vila, o monarca guarda para si o

monopólio de todas as salinas de Loulé e seu termo, construídas e a construir45.

Ao lado dos frutos secos, o sal era um dos principais produtos de exportação.

Ainda no primeiro foral de Loulé, o rei reserva para si a pesca à baleia46,

salientando deste modo a fonte de riqueza que constituía tal actividade

piscatória.

Em relação ao marisco, o foral manuelino refere apenas o “que se leva pera

Castella ”, contudo não nos diz qual. Ao que tudo indica a amêijoa, o berbigão e

as ostras47 eram “petiscos” já apreciados na época.

Os legumes, hortaliças e frutas eram abundantes na Idade Média. Em Loulé, nas

actas surgem inúmeras referências a hortas e a pomares, o que nos remete para

a riqueza do concelho quanto aos produtos dai provenientes, mas não fornecem

referências concretas aos mesmos.

Na carta de foral do século XIII, o rei retêm para si: “a horta que costumava deter

D. Martim Gil”48, que passou a designar-se de Horta d’El Rei; bem como o

figueiral que pertencera a Domingos Rodrigues. A detenção destas propriedades

por parte do rei mostra o papel fundamental dos legumes, hortaliças e frutas, em

particular do figo, quer no abastecimento e economia locais, quer no que

respeita à exportação.

Tal como acontecia com o pescado, os legumes e hortaliças não eram muito

apreciados pelas camadas sociais mais ricas, no entanto, na mesa dos menos

favorecidos estes produtos eram muito consumidos e constituíam um

complemento alimentar importante49.

45 Isilda Maria Pires MARTINS, ob. cit., p. 31.46 Idem, ibidem, p. 32.47 A. H. Oliveira MARQUES, ob. cit., p. 10 e Maria José AZEVEDO, ob. cit., “O Peixe e a Fruta na Alimentação da Corte de D. Afonso V”, p. 6.48 Isilda Maria Pires MARTINS, ob. cit., p. 33.49 Maria Helena da Cruz COELHO, ob. cit., p.12.

15

Page 16: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Curiosamente encontrámos, em duas sessões de vereação, o pedido de férias por

parte dos oficiais do concelho, para apanhar, num dos casos as suas

“novidades”50 e no outro para a apanha do pam51.

As “novidades” a que se referem os oficiais são os figos e passas, produções de

extrema importância económica, pois como mencionámos anteriormente o figo

era um produto de exportação, assim como as passas, nomeadamente para

exportação de longa distância, para: Flandres, Brabante ou as cidades alemãs da

Hansa52.

No foral de 1504 são referidos: castanhas, nozes verdes e secas, ameixas,

alfarrobas, amêndoas, azeitonas, laranjas, avelãs, pinhas e pinhões, bolotas,

romãs, grãos, favas secas, lentilhas e feijões. Como se pode verificar a variedade,

quer de fruta, quer de legumes, era já quase tão vasta como a actual.

Os alhos secos e cebolas já eram utilizados na cozinha da época, apenas para

temperar – adubar – ou, juntamente com o azeite para a confecção do tradicional

refogado53. No Foral Novo54, encontrámos referências a estes produtos,

certamente presentes na cozinha louletana de então.

Na confecção dos doces medievais o mel era de uso generalizado, e mais barato

que o açúcar55. O mel era um produto que existia em Loulé, pois encontramos

várias referências, tanto nas actas, como no Foral de 1504.

A produção da vinha, como ficou dito atrás, surge inúmeras vezes referida nas

actas de vereação, sendo as vinhas a espécie mais protegida no concelho de

Loulé durante o período em estudo56.

50 Actas de Vereação de Loulé, acta de 10 de Agosto de 1394, pp. 58-60.51 Actas de Vereação de Loulé, acta de 8 de Junho de 1408, pp. 196-197.52 Vide: Manuela Santos SILVA, “Para o Estudo da Produção Frutícola do Concelho de Loulé”, in: Actas das III Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia, Câmara Municipal de Loulé, 1989, pp. 255-264. 53 Iria GONÇALVES, ob. cit., p. 207.54 CMLLE / A / 001 / LV001.55 Sobre a utilização do açúcar na doçaria portuguesa, vide: Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 252.56 Maria Ângela BEIRANTE, “art. cit.”, pp. 231 – 242.

16

Page 17: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Apesar de não encontrarmos referências directas ao consumo de vinho, sabemos

que este é a bebida medieval por excelência; podia ser bebido simples ou

misturado com água, bebia-se às refeições, ou apenas para matar a sede. O

verbo beber, na Idade Média significa beber vinho!

Lado a lado com o vinho, encontramos, para a época medieval, o pão! O pão é

um dos alimentos base da alimentação medieva.

Devido à falta de cereal, “pão” não era sinónimo de pão de trigo. O pão dos ricos

era alvo, feito de trigo, o cereal nobre; enquanto que o pão dos pobres era

escuro, de mistura, por vezes até com mistura de três cereais: centeio, milho-

miúdo e cevada. Era um pão de segunda. O pão de trigo para os mais

desfavorecidos era apenas consumido em dia de festa!

A base da dieta alimentar medieval é constituída pelo pão e pelo vinho. O pão é

sem dúvida alguma, presença obrigatória, quer na mesa dos ricos, quer na dos

pobres, com as respectivas diferenças. De facto, o enorme cultivo que se faz de

cereal por todo o país, inclusivamente em zonas onde os solos não se mostram

férteis para tal cultura e a necessidade de importar pão do estrangeiro, só se

justifica devido ao seu enorme consumo, consumo esse associado ao consumo

de vinho.

Para além destes dois elementos básicos a nível da alimentação na Idade Média,

vimos ainda que a carne, principalmente no que respeita aos gostos dos mais

abastados, era muito apreciada, com destaque para a carne de carneiro.

Por outro lado o povo, tentava complementar a sua pobre dieta alimentar com

pescado, legumes e fruta fresca. Esses legumes e frutos eram provenientes de

pequenas hortas situadas nos próprios quintais, denunciando deste modo a

existência de uma produção de auto-suficiência, que por vezes podia ser

excedentária e por isso vendida no mercado da vila, ou ser mesmo exportada

servindo, também, como um complemento económico e não apenas alimentar.

17

Page 18: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

2.2. Aculturações alimentares

Não podemos esquecer que a Europa Mediterrânea, nomeadamente a Península

Ibérica, sofreu uma profunda aculturação, devido à longa permanência dos

muçulmanos, nos actuais territórios da Andaluzia e Algarve.

A herança árabe, como é sabido, reflecte-se nos mais diversos campos; reflecte-

se de igual modo na alimentação.

Afinal a fronteira entre o mundo cristão e o mundo muçulmano é por vezes

ténue, neste território que é hoje Portugal e Espanha.

Em relação à alimentação medieval portuguesa, encontram-se algumas

semelhanças com a alimentação árabe57, o que denuncia, desde já uma certa

continuidade e não, necessariamente uma ruptura entre estes dois mundos em

confronto no movimento designado de “Reconquista Cristã”.

Pelo que se conhece da cozinha árabe, à semelhança do que verificámos no mais

antigo livro de receitas portuguesas58 as receitas de carne são as mais

numerosas, sendo as carnes de talho, aves de capoeira e de caça, a grande

diferença reside na carne de porco, que não é consumida pelos muçulmanos.

O carneiro é, nas duas dietas, a carne mais apreciada. As aves de capoeira

também eram muito consumidas e a sua criação bastante frequente, até mesmo

nos centros urbanos.

Uma herança directa da cozinha árabe são as almôndegas, como Maria Ângela

Beirante evidência no seu estudo sobre Santarém Quinhentista59.

57 Sobre este assunto: História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, Dir. de Jean – Louis Flandrin e Massimo Montanari, XX Capítulo, Bernard ROSENBERGER, “A Cozinha Árabe e o Seu Contributo para a Cozinha Europeia ”, Terramar, Lisboa, 1998, pp. 305 – 323.58 Maria José AZEVEDO, “O Mais Antigo Livro de Cozinha Português ”, ob. cit., pp. 35-66.59 Maria Ângela BEIRANTE, ob. cit., p. 251.

18

Page 19: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

O número de receitas de peixe conhecido é reduzido, quando comparado com as

receitas de carne, certamente por se tratar de um alimento menos apreciado,

como atrás foi dito.

Os legumes, que variam bastante de região para região, como é evidente,

desempenham um papel importante na alimentação dos grupos sociais mais

baixos, tal como já tínhamos referido para o caso português dos séculos XIV e

XV. Não podemos, no entanto, deixar de sublinhar o consumo da fava e do feijão,

sem dúvida, de tradição muçulmana mencionados no Foral Manuelino de Loulé.

De acrescentar ainda o enorme uso do alho e da cebola, considerados

ingredientes básicos na cozinha árabe. Apesar de não se consumir vinho, o

vinagre é muito utilizado, assim como o agraço e o sumo de citrinos,

exactamente como acontece na Europa cristã.

Ao contrário do que se possa pensar, a vinha era cultivada pelos muçulmanos,

que utilizavam o vinagre para tempero e confecção de pratos e apreciavam

também as passas e as uvas quando estas eram muito doces.

Os figos são igualmente apreciados, tanto por cristãos como por muçulmanos.

Aliás as uvas e os figos eram os únicos frutos considerados bons para a

alimentação. Geralmente os demais frutos eram cozinhados, serviam de

acompanhamento aos pratos de carne ou podiam ser transformados em

deliciosas geleias e xaropes.

Não podemos ficar indiferentes à enorme importância da uva e do figo na

alimentação muçulmana, sem esquecer a importante produção de passas, figos e

amêndoas no concelho de Loulé nos século XIV e XV, e sua posterior exportação,

prática enraizada nesta tradição muçulmana.

19

Page 20: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Nos costumes muçulmanos entronca, sem dúvida, a doçaria regional algarvia que

tem como base o maçapão, massa (lawzinadj) feita de amêndoas moídas e

açúcar60 e os doces que têm como base fundamental: amêndoas, nozes,

pistácios, tâmaras, açúcar, mel e canela61, as filhós, exemplo da herança árabe a

nível culinário, ainda fazem parte da doçaria portuguesa, perpetuando desde

modo as nossas raízes muçulmanas!

Uma outra prova da forte ligação entre as cozinhas árabe e portuguesa

encontramo-la no Livro de cozinha da Infanta Dona Maria, do início do século XVI

que “apresenta várias receitas cuja origem árabe é evidente. Entre elas

aparecem doces: o alfitete, gulodice de farinha e mel cozida a vapor (árabe

alfitât), as almojavenas, onde se reconhecem facilmente os mujabbnât, aquelas

filhós com queijo fresco que os habitantes de al – Andalus adoravam, alfeloas (al

- halâwat) e maçapães. Também aparecem duas receitas de galinha: uma

galinha mourisca, com um nome revelador, em que entra contudo, toucinho, o

que revela uma adaptação, e uma galinha albardada (do árabe al – barda’), cujos

pedaços são fritos depois de serem mergulhados em ovos batidos”62.

Como ficou evidenciado muito ficou da alimentação árabe em Portugal, quer de

forma directa, quer com algumas adaptações à nova realidade, como é o caso da

utilização de toucinho, numa receita certamente mourisca!

A gordura animal – banha e toucinho – frequentemente utilizada no mundo

cristão, não fazia parte da cozinha árabe, pois era proveniente do porco, assim

sendo a gordura mais utilizada era o azeite.

Ao lado do azeite surge a manteiga, que era muito utilizada na cozinha árabe.

Para adubar usava-se uma manteiga de conserva, fundida e clarificada. A

manteiga fresca era comida no pão.

60 In: História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, “art. cit.”, p. 318.61 Vários destes ingredientes são, também, grandemente utilizados no século XVI pelas freiras de St.ª Clara de Santarém, na confecção de doces.62História da Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, “art. cit.”, p 321.

20

Page 21: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Utilizavam-se do mesmo modo outros lacticínios na culinária. O leite servia para

cozer o arroz, e azedo entrava em numerosas receitas. O queijo fresco ou seco

servia para dar gosto, ou simplesmente para ligar os outros ingredientes.

Os ovos serviam, basicamente, para ligar ingredientes, à semelhança dos

referidos anteriormente. Na Europa cristã os ovos são largamente consumidos, o

que não é de estranhar devido à criação de aves de capoeira ser uma prática

bastante difundida em período medieval, como já foi evidenciado.

As aculturações alimentares, nomeadamente no que respeita às influências

árabes na nossa culinária, devem ser abordadas numa perspectiva

multifacetada, sem nunca esquecer que para além das influências exercidas

durante os séculos de ocupação islâmica, houve uma evolução regional da

cozinha.

Não podemos, negar a introdução de novos produtos, pelos mouros, que criaram

deste modo novos gostos, novas tendências, como a utilização de especiarias, o

açúcar63 e de algumas espécies de legumes e frutos.

Até ao século XV foram os muçulmanos a ditar o gosto pelo doce e pelo picante,

mas com a chegada, ao, que os europeus de então baptizaram de, Novo Mundo,

houve uma alteração do gosto, consequência da busca pelo exótico e

desconhecido e com a introdução de novos produtos – milho, tomate, pimento,

batata – doce... – enfim todo um novo mundo de sabores a descobrir!

Após esta nossa viagem por entre os paladares de Loulé medieval, sem esquecer

os condimentos deixados pelos árabes no nosso património culinário, resta-nos

deixar o mote para a continuação da investigação e de trabalhos de divulgação

neste campo da alimentação, campo este fundamental para a História, pois a

alimentação é parte integral da condição humana e também ela sofreu uma

evolução, acompanhando o percurso do próprio homem.

63 Note-se que a utilização de especiarias e do açúcar, em contexto medieval, é limitado, devido ao elevado custo destes produtos. Com a expansão marítima o consumo de especiarias e de açúcar difundiu-se um pouco por todo o Velho Continente.

21

Page 22: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

Bibliografia

Fontes

- Actas de Vereação de Loulé Séculos XIV-XV, Separata da Revista Al’Ulyã,

N.º 7, Loulé, 2000.

- O Foral de Loulé de 1266, ed. de Isilda Maria Pires Martins, Câmara

Municipal de Loulé, Loulé, 1989.

- Foral Manuelino – CMLLE / A / 001 / LV001

- O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria de Portugal, ed. de G. Manupella

e Salvador Dias Arnaut, Coimbra, 1967.

Estudos

- AZEVEDO, Maria José – A Alimentação em Portugal na Idade Média,

INATEL, Coimbra, 1997.

- BEIRANTE, Maria Ângela – Santarém Quinhentista, Lisboa, 1981.

- “ Relações entre o Homem e a Natureza nas mais Antigas Posturas da

Câmara de Loulé (Séculos XIV-VX)”, Actas das 1.ªs Jornadas de História Medieval

do Algarve e Andaluzia, Câmara Municipal – Universidade do Algarve, Loulé,

1987.

- Introdução à Edição Facsimilada do Foral Manuelino de Évora, Câmara

Municipal de Évora, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Évora, 2001.

22

Page 23: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

- BOLUMBURU, Beatriz Arizaga - “El abastecimiento de las villas

vizcaínas medievales: política comercial de las villas respecto al entorno y a su

interior”, in: La Ciudad Hispanica Durante Los Siglos XIII Al XVI, Tomo I, Editorial

de la Universidad Complutense, Madrid, 1985.

- COELHO, Maria Helena da Cruz – “ «Entre Poderes»- Análise de alguns

casos na Centúria de Quatrocentos”, Separata da Revista da Faculdade de

Letras, Porto, 1989.

- “Apontamentos Sobre a Comida e Bebida do Campesinato Coimbrão em

Tempos Medievos”, Homens, Espaços e Poderes, Séculos XI – XVI – I – Notas do

Viver Social, Livros Horizonte, Lisboa, 1990.

- FLANDRIN, Jean – Louis e Massimo Montanari (Dir.) - História da

Alimentação – Dos Primórdios à Idade Média, Terramar, Lisboa, 1998.

- GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: Os

produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV - XV)”, Um olhar sobre a cidade

medieval, Patrimonia, Cascais, 1996.

- “Acerca da Alimentação Medieval” – Imagens do Mundo Medieval, Livros

Horizonte, Lisboa, s/d.

- MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura – A

Questão Cerealífera durante a Idade Média, Cosmos, Lisboa, 1978.

- A Sociedade Medieval Portuguesa – Aspectos da Vida Quotidiana, 5.ª

Edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987.

23

Page 24: Alimentação em Loulé

A Alimentação no Concelho de Loulé nos séculos XIV e XV

- MATTOSO, José (Dir.) – História de Portugal – A Monarquia feudal, Vol. II,

Círculo de Leitores, Lisboa, 1993.

- SILVA, Manuela Santos – “Para o Estudo da Produção Frutícola do

Concelho de Loulé”, Actas das III Jornadas de História Medieval do Algarve e

Andaluzia, Câmara Municipal de Loulé, 1989.

24