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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS CURSO DE DIREITO ALINE TIGGEMANN ESTRUTURA FUNDIÁRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO DAS ÁREAS PÚBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL BRASÍLIA 2012

ALINE TIGGEMANN - repositorio.uniceub.br · importância da posse agrária no processo de regularização das áreas rurais do ... 2.3.3 Posse em áreas ... e posse agrária, usucapião

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  • CENTRO UNIVERSITRIO DE BRASLIA

    FACULDADE DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    CURSO DE DIREITO

    ALINE TIGGEMANN

    ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS

    PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL

    BRASLIA

    2012

  • ALINE TIGGEMANN

    ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS

    PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL

    Monografia apresentada como requisito para

    concluso do curso de bacharelado em Direito

    do Centro Universitrio de Braslia

    UniCeub.

    Orientador: Prof. Joo Paulo de Faria Santos

    BRASLIA

    2012

  • ALINE TIGGEMANN

    ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS

    PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL

    Monografia apresentada como requisito para

    concluso do curso de bacharelado em Direito

    do Centro Universitrio de Braslia

    UniCeub.

    Orientador: Prof. Joo Paulo de Faria Santos

    Braslia, _____ de ___________ de 2012

    Banca Examinadora

    _____________________________________________________________

    Joo Paulo de Faria Santos

    Orientador

    _____________________________________________________________

    Examinador

    _____________________________________________________________

    Examinador

  • Dedico este trabalho a Deus, meu Senhor e

    Salvador.

    Aos meus queridos pais e irmo, que

    comemoraram comigo a cada pgina escrita e

    que em todos os momentos, de maneira

    incondicional, demonstraram verdadeiro amor

    por mim, me apoiando e incentivando quando

    me faltavam foras para continuar.

    Ao meu amado noivo, pela compreenso,

    apoio, companheirismo e incentivo durante a

    elaborao do presente trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao meu orientador Joo Paulo de

    Faria Santos por toda a ateno, compreenso

    e apoio prestado nos ltimos meses.

    A todos que contriburam para a realizao

    desse trabalho, meus sinceros agradecimentos.

  • H homens que lutam um dia e so bons.

    H outros que lutam um ano e so melhores.

    H os que lutam muitos anos e so muito bons.

    Porm, h os que lutam toda a vida.

    Esses so os imprescindveis.

    Bertolt Brecht

  • RESUMO

    O presente trabalho tem por principal objetivo a anlise do processo de regularizao das

    reas pblicas rurais do Distrito Federal que foram concedidas aos produtores rurais por meio

    de contratos de arrendamento e de concesses de uso e a importncia da posse agrria nesse

    processo. Para tanto, feita uma anlise da transferncia da capital federal para a regio

    Centro-Oeste, do processo de ocupao do Distrito Federal, com a vinda de produtores rurais

    de diversas regies do pas com o objetivo de criao de um cinturo verde em torno de

    Braslia e da tentativa de desapropriao das reas que abrigariam o Distrito Federal, com

    vistas a torn-las pblicas. No entanto, por uma srie de motivos, tal desapropriao no

    ocorreu de maneira completa, o que gerou ao Distrito Federal uma complexa estrutura

    fundiria, composta por terras de naturezas jurdicas diversas. Analisa-se uma dessas

    situaes fundirias do Distrito Federal, a das terras pblicas concedidas por contratos de

    arrendamento e concesses de uso aos produtores rurais e todo o processo de sua

    regularizao, com anlise das leis pertinentes ao tema. Os contratos de arrendamento e

    concesses de uso que os produtores rurais do Distrito Federal possuam foram considerados

    ilegais, o que gerou insegurana jurdica aos produtores rurais. Aps vrios debates e

    manifestaes, foi publicada a lei n 12.024/09, a qual surgiu com o objetivo de regularizar a

    ocupao e explorao das terras pblicas rurais do Distrito Federal. Tal lei demonstra a

    importncia da posse agrria no processo de regularizao das reas rurais do DF e o quanto o

    elemento trabalho foi preponderante para a regularizao dessas reas.

    Palavras-chave: Transferncia da capital. Incompleta desapropriao. Complexa estrutura

    fundiria. Regularizao das reas pblicas rurais. Posse agrria.

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................ 8

    1. HISTRIA DO DISTRITO FEDERAL.........................................................................11

    1.1 Transferncia da capital para o Centro-Oeste brasileiro................................................... 11

    1.2 Ocupao do Distrito Federal e a desapropriao das dcadas de 50 e 60....................... 14

    2. ESTRUTURA FUNDIRIA DO DISTRITO FEDERAL E CONCEITOS

    JURDICOS PRELIMINARES...................................................................................... 20

    2.1 Terras particulares e a propriedade.................................................................................... 21

    2.2 Terras devolutas e a possibilidade de usucapio............................................................... 24

    2.3 Terras pblicas e a posse................................................................................................... 30

    2.3.1 Origens e as teorias clssicas e sociolgicas da posse................................................. 30

    2.3.2 Funo social da posse e o conceito de posse agrria.................................................. 36

    2.3.3 Posse em reas pblicas e os instrumentos jurdicos para a utilizao dos bens pblicos

    pelos particulares.........................................................................................................39

    3. CUMPRIMENTO DA FUNO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE

    RURAL NAS REAS PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL E O SEU

    PROCESSO DE REGULARIZAO........................................................................... 43

    3.1 Consideraes iniciais acerca das reas rurais do Distrito Federal................................... 44

    3.2 Os contratos de arrendamento e concesses de uso e a inconstitucionalidade do Decreto

    distrital n 19.248/98.......................................................................................................... 45

    3.3 Cumprimento da funo social da posse e da propriedade rural e a regularizao das reas

    pblicas rurais do Distrito Federal por meio de alienao e ou concesso de direito real de

    uso...................................................................................................................................... 49

    CONCLUSO........................................................................................................................ 55

    REFERNCIAS..................................................................................................................... 59

  • 8

    INTRODUO

    O tema analisado na presente monografia decorre da necessidade de compreenso

    da complexa estrutura fundiria do Distrito Federal e do processo de regularizao de suas

    reas pblicas rurais, assunto amplamente debatido nos ltimos anos pelo Governo do Distrito

    Federal, produtores rurais e demais lideranas do setor.

    A monografia est dividida em trs captulos. No primeiro captulo feita uma

    anlise da histria do Distrito Federal, da transferncia da capital do pas do Rio de Janeiro

    para o Planalto Central e do processo de ocupao de Braslia. A ideia de transferncia da

    capital do pas para o Planalto Central foi concebida muito antes do projeto idealizado por

    Juscelino Kubitschek. Diversos estudiosos e exploradores vislumbravam a ideia de levar a

    capital federal ao centro do pas como uma forma de promover a interiorizao e o

    desenvolvimento econmico dessa regio. Braslia era vista como uma oportunidade de

    crescimento e melhores condies de vida. Por essa razo, o processo de ocupao da cidade

    ocorreu de maneira muito rpida, e em poucos anos a capital alcanou um grande contingente

    populacional, o qual no era previsto e esperado pelos seus idealizadores.

    O primeiro captulo da monografia tambm objetiva explicar o porqu da

    necessidade de criao de um cinturo verde em torno de Braslia e o porqu do incentivo

    do Governo aos produtores rurais das mais diversas regies do pas para que viessem explorar

    o Planalto Central. Alm disso, feita uma anlise da desapropriao efetuada nas dcadas de

    50 e 60 das reas que comporiam o quadriltero que abrigaria o Distrito Federal. Tal

    desapropriao tinha por escopo tornar pblicas todas as reas que circundariam a nova

    capital. No entanto, por uma srie de motivos elencados no captulo, a desapropriao

    ocorreu de maneira incompleta e parcial, o que acabou refletindo em vrios aspectos da atual

    situao fundiria do Distrito Federal.

    O segundo captulo traz as consequncias dessa incompleta desapropriao

    realizada nos primrdios da criao de Braslia, a qual fez com que o Distrito Federal

    adquirisse uma complexa estrutura fundiria que o diferenciou de todos os demais Estados do

    pas, possuindo terras no desapropriadas, terras desapropriadas em comum, nas quais a

    desapropriao foi efetuada de maneira parcial e terras desapropriadas passveis de

    regularizao. Alm disso, para melhor compreenso dessa complexa estrutura fundiria, que

    engloba terras particulares, terras devolutas e terras pblicas que foram cedidas por contratos

    de arrendamentos e concesses de uso, alm de terras pblicas que foram ocupadas de

  • 9

    maneira ilegal, feita, no segundo captulo, uma anlise detalhada de alguns institutos e

    conceitos jurdicos pertinentes ao entendimento de cada uma dessas terras de naturezas

    jurdicas diversas, como propriedade, posse, que inclui a pesquisa de posse em reas pblicas

    e posse agrria, usucapio de terras devolutas e instrumentos jurdicos para utilizao de bens

    pblicos pelos particulares.

    Por fim, no captulo trs, destaca-se uma das situaes fundirias existentes no

    Distrito Federal: a das reas pblicas rurais concedidas aos agricultores por meio de contratos

    de arrendamento e posteriores concesses de uso. Cumpre salientar que o objetivo da presente

    monografia a anlise do processo de regularizao dessas reas, as quais foram objeto de

    calorosas discusses entre produtores rurais, Governo do Distrito Federal e lideranas

    polticas.

    O captulo trs traz algumas consideraes iniciais sobre as reas rurais do

    Distrito Federal, como se deu sua criao e como est estruturada, atualmente, a rea rural do

    DF. Aps as consideraes iniciais, faz-se uma anlise de todo o processo legislativo e

    jurdico de regularizao das reas pblicas rurais do Distrito Federal, com uma breve

    discusso sobre a posse agrria e sua importncia no caso das reas pblicas rurais do Distrito

    Federal.

    Quando o Governo incentivou a vinda de agricultores para formao de um

    cinturo verde que garantisse alimentos populao, utilizou-se o sistema de arrendamento

    das reas pblicas. Tal sistema perdurou at o ano de 1998, momento em que o Decreto

    19.248/98 estipulou que as reas rurais seriam exploradas atravs de concesso de uso.

    Durante todo o perodo em que ocuparam a rea pblica rural, os agricultores do Distrito

    Federal cumpriram o objetivo para o qual foram convidados a vir para a nova capital,

    garantindo abastecimento de alimentos e funo social propriedade rural.

    No entanto, em 2007, no julgamento da ADI n 2006.002.004.311-04, foi

    declarado inconstitucional o Decreto distrital n 19.248/98, de natureza autnoma, que

    autorizava a concesso de uso. A partir desse momento, todos os contratos de concesso de

    uso das reas rurais foram considerados ilegais, decidindo-se pela realizao de licitao

    dessas reas a qualquer pessoa interessada na sua explorao.

    O agricultor do Distrito Federal, ocupante da terra rural h muitos anos, enfrentou

    grande insegurana jurdica e temor frente a essa nova situao, realizando diversas

    mobilizaes e debates com vistas a assegurar uma regularizao justa das reas que

  • 10

    ocupavam. Assim, teve incio o processo de regularizao das reas pblicas rurais, o qual

    culminou na publicao da lei 12.024/09.

  • 11

    1 HISTRIA DO DISTRITO FEDERAL

    1.1 Transferncia da capital para o Centro-Oeste brasileiro

    A ideia de se transferir a capital do Brasil para o Centro-Oeste brasileiro j existia

    antes da prpria construo de Braslia na dcada de 60. Atribui-se ao Marqus de Pombal a

    primeira ideia de localizar a capital do Brasil no at ento inexplorado Planalto Central. O

    cartgrafo italiano Francesco Tosi Colombina, explorador e gegrafo, foi contratado pelo

    Marqus de Pombal para elaborar um plano geogrfico de Gois e com ele demonstrar o valor

    estratgico e econmico do Centro Oeste brasileiro1.

    O lder Tiradentes, juntamente com os inconfidentes mineiros, tinha como um de

    seus objetivos a mudana da capital do Brasil para So Joo Del Rei. Segundo o movimento

    da Inconfidncia Mineira, essa transferncia, alm de gerar segurana para a capital,

    promoveria um povoamento do interior do pas, o que possibilitaria uma expanso da

    economia e do desenvolvimento dessa regio. No ano de 1821, Jos Bonifcio de Andrada e

    Silva sugeriu a criao de uma cidade para a Corte no interior do pas, aproximadamente na

    latitude de 15. Aps a Independncia, em sesso da Assembleia Geral Constituinte, leu-se o

    memorial de Jos Bonifcio de Andrada e Silva, o qual sugeria a transferncia da capital para

    a cidade de Paracatu do Prncipe, em Minas Gerais. Para tanto, sugere os nomes Petrpolis ou

    Braslia2.

    Em 1877, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (Visconde de Porto

    Seguro) explorou, a cavalo, o Planalto Central, em busca de um local para a instalao da

    nova capital. Sugeriu, na poca, que a construo da capital fosse feita nas vizinhanas do

    Tringulo entre as lagoas Formosa, Feia e Mestre D'Armas3.

    O padre Dom Bosco, em 1883, tem uma viso proftica, na qual vislumbra a

    capital da Repblica entre os paralelos 15 e 20, momento em que uma voz lhe diz: ...

    quando vieres escavar os minerais ocultos no meio destes montes, surgir aqui a Terra da

    Promisso, fluente de leite e mel. Ser uma riqueza inconcebvel"4.

    1 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.

    2 Tudo sobre o Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.

    3 SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em http://www.mundo

    juridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=856> Acesso em 27 mar. 2012. 4 Histria de Braslia. Disponvel em: < http://www. infobrasilia.com.br/bsb_h1p.htm> Acesso em 27 mar.

    2012.

  • 12

    A partir desse momento, teve incio o projeto para concretizao da construo da

    capital no Planalto Central. A Primeira Constituio da Repblica estabeleceu a mudana da

    capital:

    Art. 3 - Fica pertencendo Unio, no planalto central da Repblica, uma

    zona de 14.400 quilmetros quadrados, que ser oportunamente demarcada

    para nela estabelecer-se a futura Capital Federal.

    Pargrafo nico Efetuada a mudana da Capital, o atual Distrito Federal

    passar a constituir um Estado.5

    Em 1892, Floriano Peixoto institui a Comisso Exploradora do Planalto Central

    do Brasil. A Comisso foi chefiada pelo engenheiro belga Luiz Cruls, ao qual foram

    atribudas as funes de analisar e de realizar a demarcao da rea da nova capital.

    Juntamente com gegrafos e engenheiros, foi demarcada uma rea de 14.400 km, com base

    no Decreto Legislativo n 494, de 18 de janeiro de 1922 e no art. 3 da Constituio Federal

    de 1891. A rea demarcada ficou conhecida por Quadriltero Cruls, e a expedio foi

    intitulada Misso Cruls, sendo a primeira expedio oficial organizada para dar incio ao

    sonho da transferncia da capital para o centro do pas6.

    Nos anos que se seguiram Misso Cruls, os deputados federais Americano do

    Brasil e Rodrigues Machado propuseram o lanamento da pedra fundamental da futura capital

    no Planalto Central, o que acabou ocorrendo em 07 de setembro de 1922, no dia da

    comemorao do centenrio da Independncia, prximo Planaltina. A pedra fundamental

    instalada representou um marco expressivo para a concretizao do sonho de interiorizao da

    capital7.

    A Constituio da Repblica de 16 de julho de 1934, no art. 4 das Disposies

    Transitrias, reservou lugar ao ideal de transferncia da capital:

    Art. 4. Ser transferida a Capital da Unio para um ponto central do Brasil.

    O Presidente da Repblica, logo que esta Constituio entrar em vigor,

    nomear uma Comisso, que, sob instrues do Governo, proceder a

    estudos de vrias localidades adequadas instalao da Capital. Concludos

    tais estudos, sero presentes Cmara dos Deputados, que escolher o local

    e tomar sem perda de tempo as providncias necessrias mudana.

    Efetuada esta, o atual Distrito Federal passar a constituir um Estado.

    Pargrafo nico. O atual Distrito Federal ser administrado por um Prefeito,

    cabendo as funes legislativas uma Cmara Municipal, ambos eleitos por

    sufrgio direto sem prejuzo da representao profissional, a forma que for

    estabelecida pelo Poder Legislativo federal na Lei Orgnica. Estendem-se-

    lhe, no que lhes forem aplicveis, as disposies do art. 12. A primeira

    5 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 24.02.1891.

    6 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.

    7 Ibidem.

  • 13

    eleio para presidente ser feita pela Cmara Municipal em escrutnio

    secreto.8

    Com o Estado Novo e a Constituio imposta pelo Governo de Getlio Vargas, a

    qual ficou conhecida como "A Polaca", ficou de fora do texto constitucional a transferncia da

    capital para o interior. Em 1939, o engenheiro Coimbra Bueno sugere ao Presidente Getlio

    Vargas a retomada da interiorizao, o qual, em 1940, deu incio Marcha Rumo ao Oeste.

    A ideia de transferncia da capital foi corroborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica (IBGE), o qual se posicionou a favor da transferncia, alegando que ela deveria

    acontecer por motivos de segurana nacional9.

    Com o fim do Estado Novo foi promulgada a quarta Constituio Republicana, de

    18 de setembro de 1946, a qual manteve os objetivos da Constituio anterior ao estipular

    prazos para a mudana da capital:

    ATO DAS DISPOSIES CONSTITUCIONAIS TRANSITRIAS

    Art 4. A Capital da Unio ser transferida para o Planalto Central do Pas.

    1 . Promulgado este Ato, o Presidente da Repblica, dentro em sessenta

    dias, nomear uma Comisso de tcnicos de reconhecido valor para proceder

    ao estudo da localizao da nova Capital.

    2 . O estudo previsto no pargrafo antecedente ser encaminhado ao

    Congresso Nacional, que deliberar a respeito, em lei especial, e estabelecer

    o prazo para o incio da delimitao da rea a ser incorporada ao domnio da

    Unio.

    3 . Findos os trabalhos demarcatrios, o Congresso Nacional resolver

    sobre a data da mudana da Capital.

    4 - Efetuada a transferncia, o atual Distrito Federal passar a constituir o

    Estado da Guanabara.10

    Em 1953, aps as devidas anlises, foi aprovada a Lei n 1.803, a qual autorizou o

    Poder Executivo a proceder com os estudos definitivos e necessrios para a definio do local

    da nova capital. A primeira providncia tomada foi a contratao das sociedades empresrias

    Cruzeiro do Sul Aerofotogrametria e Donald J. Belcher and Associates Incorporated, com o

    objetivo de colher dados suficientes para a escolha do melhor local a ser instalada a nova

    capital. Para tanto, elas se utilizaram de modernas tcnicas de fotointerpretao e diagnsticos

    detalhados da topografia, geologia, drenagem, solos para engenharia, para agricultura e para

    utilizao da terra, o que resultou o Relatrio de Belcher11

    .

    8 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 16.07.34.

    9 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.

    10 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 18.09.46.

    11 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.

  • 14

    No ano de 1956, o j ento presidente Juscelino Kubitschek prope ao Congresso

    a criao da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, a NOVACAP, a qual teria por

    finalidades principais o controle de terras, dos contratos, das concorrncias, da aquisio de

    materiais, do planejamento e execuo da construo da nova capital. Em 19 de setembro de

    1956, Juscelino Kubitschek sanciona a lei n 2.874, a qual dispe sobre a mudana da capital

    federal, cujo nome escolhido acabou sendo Braslia. Finalmente, no ano de 1960,

    inaugurada a nova capital no Centro do Brasil12

    .

    Nos anos seguintes, objetivando agilizar o processo de ocupao do Distrito

    Federal, foi criada a Companhia Imobiliria de Braslia - TERRACAP, que sucedeu a

    NOVACAP, assumindo direitos e obrigaes desta na execuo das atividades imobilirias de

    interesse do Distrito Federal. Assim, o atual patrimnio imobilirio do DF pertence

    TERRACAP, empresa pblica que administra bens imveis pblicos. Nesse sentido, a Lei n

    5.861/72, determinou que do capital social original da TERRACAP participam o Distrito

    Federal com 51% e a Unio com 49%.

    1.2 Ocupao do Distrito Federal e a desapropriao das dcadas de 50 e 60

    O processo de migrao para a regio Centro-Oeste do Brasil teve seu incio antes

    mesmo da transferncia da capital, ainda no governo de Getlio Vargas, quando este realizou

    a Marcha para o Oeste. At aquele momento, a maioria da populao brasileira se

    encontrava na rea litornea do pas. O interior do Brasil era pouco explorado e habitado, e o

    pas necessitava povo-lo, especialmente as reas que hoje abrigam os estados de Gois, de

    Mato Grosso, do Amazonas e do Acre. Com a proposta de mudana da capital federal para o

    centro do pas, a possibilidade de povoamento do interior do Brasil e consequentes

    desenvolvimento e segurana nacional adquiriram contornos reais13

    . Afirmou Juscelino

    Kubitschek:

    A fundao de Braslia um ato poltico, cujo alcance no pode ser

    ignorado por ningum. a marcha para o interior, em sua plenitude. a

    completa consumao da posse da terra. Vamos erguer, no corao do nosso

    Pas, um poderoso centro de irradiao de vida e de progresso.14

    12

    Histria de Braslia. Disponvel em: < http://www. infobrasilia.com.br/bsb_h1p.htm> Acesso em 27 mar.

    2012. 13

    PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo

    possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.

    Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,

    Braslia, 2007. 14

    VASCONCELOS, Adirson. A epopia da construo de Braslia. Centro Grfico do Senado. Braslia, 1989.

  • 15

    Quando Braslia foi criada, j havia aproximadamente quinze mil pessoas

    morando nas reas que hoje abrigam Planaltina e Brazlndia. Nesse perodo, a migrao para

    Braslia teve seu auge, motivada especialmente pela necessidade de pessoas para trabalharem

    nas obras de construo da nova capital15

    . No entanto, mesmo aps a inaugurao de Braslia,

    o processo de ocupao do Distrito Federal foi rpido, graas aos incentivos do governo para

    que as pessoas viessem ocupar essa regio do pas quanto pelo prprio desejo de melhores

    oportunidades de vida.

    O projeto original de Braslia foi planejado pelo urbanista Lcio Costa. Esse

    projeto previa a criao de dois ncleos urbanos, o Plano Piloto e as cidades-satlites,

    atualmente conhecidas como Regies Administrativas, as quais s seriam concretizadas em

    um momento posterior, quando a demanda por habitao no pudesse mais ser satisfeita

    apenas pelos imveis da regio central da cidade. As cidades-satlites, portanto, no foram

    pensadas para surgir junto com a capital federal, mas em um momento posterior, no qual a

    Administrao elaboraria um projeto urbanstico especfico e adequado a cada uma16

    .

    A cidade de Braslia foi projetada para ter a forma de um avio. As Asas Sul e

    Norte seriam reservadas s reas residenciais. O centro seria destinado a abrigar a

    administrao federal e o Governo do Distrito Federal. Na praa dos Trs Poderes estaria a

    sede dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, alm dos Ministrios. A cidade abrigaria

    prdios de at seis andares e ruas divididas em quadras arborizadas sem muros ou cercas17

    . As

    quadras serviriam para acomodar os candangos que ajudaram a construir Braslia, bem como

    suas famlias.

    Tal planejamento, no entanto, no se concretizou. Esses candangos acabaram se

    instalando nas reas perifricas da cidade de Braslia, o que gerou a criao das cidades-

    satlites, denominadas atualmente de Regies Administrativas, antes do planejado, sem que

    houvesse qualquer interveno ou controle pela Administrao Pblica no sentido de um

    plano de urbanizao18

    . Dessa forma, as cidades-satlites se tornaram ncleos perifricos ao

    15

    SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em

    http:/www.mundojurdico.adv.br/sis_artigos. Acesso em 27 mar. 2012. 16

    SAVI, Aline Alves. A licitao dos lotes vazios e dos lotes comerciais nos condomnios irregulares do

    Distrito Federal. 2010. 56 f. Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro

    Universitrio de Braslia, Braslia, 2010. 17

    PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo

    possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.

    Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,

    Braslia, 2007. 18

    SAVI, op. cit., p. 8.

  • 16

    redor do Plano Piloto. Criaram-se, assim, paralelamente ao projeto inicial de Braslia, novos

    ncleos habitacionais, conforme entendimento de Hlio Andrade de Silva19

    :

    A 'Cidade Livre', posteriormente denominada Ncleo Bandeirante, surgiu em

    1956 para alojar os trabalhadores da construo civil. Taguatinga foi criada

    em 1958, decorrente da necessidade de remanejar os alojamentos dos

    trabalhadores da obra da Barragem do Lago Parano. Gama e Sobradinho

    surgiram em 1960. O Guar I foi criado em 1969, a princpio para alojar

    funcionrios da Novacap e de outros rgos do Distrito Federal. O Guar II

    foi criado em 1973. A Ceilndia formou-se em 1971, como um 'Centro de

    Erradicao de Invases - CEI', numa tentativa para conter as j gritantes

    invases de reas pblicas, que ocorriam na poca.

    A primeira cidade satlite do Distrito Federal foi Taguatinga, criada no final da

    dcada de 50. Nesse perodo, j existia a denominada Cidade Livre, hoje Ncleo

    Bandeirante. Essa regio experimentou grande inchao populacional, o que fez com que o

    presidente Juscelino realizasse uma transferncia do povoado para a regio que futuramente

    seria Taguatinga, objetivando abrigar operrios que chegavam de vrios lugares do pas para a

    construo da Capital. Taguatinga experimentou um rpido crescimento dentro de um curto

    perodo, passando de 10 mil para 30 mil pessoas em apenas seis meses20

    .

    A cidade de Sobradinho foi criada no final de 1959 e surgiu com caractersticas

    eminentemente rurais. O Ncleo Bandeirante, por sua vez, foi criado para ter durao

    provisria, apenas enquanto durasse a construo de Braslia. O Gama nasceu em decorrncia

    da mudana da populao de acampamentos localizados perto do Plano Piloto21

    .

    As cidades de Planaltina e Brazlndia eram cidades goianas que foram

    incorporadas ao Distrito Federal, portanto, j existiam antes mesmo da criao de Braslia.

    Todavia, com a criao da nova capital, experimentaram um grande crescimento

    populacional. O Guar, seguindo a mesma linha de outras cidades-satlites, surgiu com o

    objetivo de resolver a falta de moradia, especialmente entre os funcionrios da prpria

    NOVACAP. Assim como as demais, a cidade cresceu muito em pouco tempo. Ceilndia, por

    fim, nasce com o objetivo de acolher as mais de centenas de pessoas que estavam vivendo

    em situao de extrema pobreza22

    .

    19

    SILVA, op. cit. 20

    PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo

    possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.

    Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,

    Braslia, 2007. 21

    Ibidem, p. 17. 22

    Ibidem, p. 18.

  • 17

    Ao analisar o surgimento das cidades-satlites, percebe-se que estas foram sendo

    criadas com o objetivo, quase que unnime, de resolver o problema das ocupaes ilegais da

    rea central de Braslia e da extrema carncia da populao que veio para trabalhar nas obras

    da construo de Braslia, assim como das pessoas que vieram nova capital motivadas pelos

    ideais de melhores condies de vida e de trabalho.

    Toda essa populao, no entanto, significava aumento da demanda por alimentos.

    A nova capital foi instalada em um local at ento inspito e distante dos centros produtivos.

    Os nicos alimentos que abasteciam os primeiros habitantes da nova capital tinham que vir de

    outros estados, como So Paulo, o que prejudicava a qualidade da comida e encarecia o preo

    dos alimentos. Objetivando resolver esse problema e garantir alimentao barata e de

    qualidade, o governo passou a incentivar a vinda de produtores rurais de outros Estados para

    aqui desenvolverem suas atividades produtivas e gerarem alimentos populao da nova

    capital. Na rea rural do Distrito Federal o governo estabeleceu um cinturo verde que

    possibilitou o abastecimento de produtos hortifrutigranjeiros para a populao23

    .

    A estratgia encontrada para a implantao de um plano urbanstico e para a

    consolidao de projetos agropecurios que pudessem assegurar alimentos de qualidade, mais

    baratos e que garantissem abastecimento seguro e permanente para a populao foi a

    realizao de uma desapropriao de todas as reas que circundavam o local que futuramente

    abrigaria a capital do pas e o Distrito Federal24

    .

    Esse processo de desapropriao teve incio antes mesmo da inaugurao da nova

    capital. Quando da definio da rea do quadriltero que corresponderia ao Distrito Federal, o

    Governo iniciou o processo de desapropriao de todas as fazendas que existiam no local25

    .

    A ideia inicial da desapropriao das terras que compunham o quadriltero do

    Distrito Federal era evitar a especulao imobiliria e promover o abastecimento da

    populao com produtos agropecurios bsicos. Inicialmente, com o objetivo de implantao

    de um processo de produo de produtos agrcolas de forma integrada e eficiente para

    abastecimento da populao urbana, e em razo das distintas vocaes zonais do territrio,

    foram parcelados e dimensionados diversos ncleos rurais com tamanhos adequados a cada

    23

    SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em http://www.mundo

    juridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=856> Acesso em 27 mar. 2012. 24

    Ibidem. 25

    Situao fundiria e parcelamento do solo. Disponvel em http:/www.distritofederal.df.gov.br/sites.

    Acesso em 27 de mar. 2012.

  • 18

    tipo de solo e explorao agropecuria pretendida. Todavia, a realidade da desapropriao foi

    outra26

    .

    O processo de desapropriao das reas que formavam o quadriltero que

    abrigaria o Distrito Federal no foi realizado de maneira completa. Entre outras razes,

    destacam-se a premncia de se instalar a nova capital na data estipulada por Juscelino

    Kubitschek, a precariedade dos registros imobilirios dos imveis a serem desapropriados e a

    intensa especulao imobiliria ocorrida na regio27

    .

    Para a realizao da desapropriao, foi instituda a Comisso de Cooperao para

    a Mudana da Capital, presidida por Altamiro de Moura Pacheco, com os objetivos de

    desapropriar as fazendas inscritas na rea de 14.400km que comporiam a base fsica do

    Distrito Federal e realizar um estudo histrico e jurdico da cadeia dominial das fazendas

    situadas na regio28

    .

    A Comisso, quando do incio de suas atividades, defrontou-se com um grande

    movimento especulativo em torno dos preos das terras na regio, inclusive com notcia de

    loteamentos registrados anteriormente implantao da capital, bem como com a dificuldade

    de obteno de informaes consistentes sobre os limites das propriedades tombadas nos

    registros dos imveis. Alm disso, as pesquisas realizadas pela Comisso revelaram a

    presena de terras devolutas e ausncia de documentao por parte dos ocupantes, o que

    prejudicou o levantamento de registros imobilirios29

    . Toda essa situao gerou imensos

    transtornos para a desapropriao das terras do Distrito Federal.

    No ano de 1958, somente cento e setenta fazendas haviam sido efetivamente

    desapropriadas para a implantao do Distrito Federal, sendo que as que guardavam maior

    proximidade com o Plano Piloto de Braslia foram as que receberam prioridade no processo

    de desapropriao. Aps a inaugurao da nova capital, especialmente na dcada de 1960, o

    Governo tentou dar continuidade ao processo de desapropriao dos imveis particulares no

    DF. Esse perodo, porm, foi marcado por grande restrio oramentria, fruto dos gastos com

    a construo da capital, o que ocasionou a diminuio do ritmo das desapropriaes

    26

    Ibidem. 27

    Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 28 mar. 2012. 28

    Ibidem. 29

    Ibidem.

    http://www.zee-df.com.br/

  • 19

    realizadas. Essa situao perdurou pelas dcadas seguintes e impossibilitou o projeto de tornar

    efetivamente pblicas todas as terras do Distrito Federal30

    .

    Em decorrncia da desapropriao feita de maneira incompleta e parcial, alm da

    incerteza acerca da propriedade e dos limites territoriais das fazendas que compem o Distrito

    Federal, este passou a sofrer, e sofre at hoje, de uma intensa desordem fundiria.

    O objetivo inicial do Governo Federal era efetuar a total desapropriao das terras

    no DF. No entanto, estudos realizados pela TERRACAP em 1996 identificaram

    aproximadamente 51,4% das terras integralmente desapropriadas, 33,3% de terras

    particulares, 8,5% de terras desapropriadas parcialmente (aquelas que foram desapropriadas

    sem que houvesse definio clara das parcelas que so pblicas e das parcelas que so

    privadas) e 6,8% de terras ainda em processo judicial de desapropriao31

    .

    Ao analisar o histrico da transferncia da capital para o Planalto Central e o seu

    processo de ocupao, percebem-se vrias falhas que acabaram ocasionando problemas atuais

    ao Distrito Federal. Atualmente, uma das questes mais crticas do DF diz respeito aos

    diversos conflitos fundirios, sejam rurais ou urbanos, os quais tm como pano de fundo a

    incompleta desapropriao de terras para a construo da capital. O intuito de estabelecer

    como pblicas todas as terras que viriam a constituir a base territorial do Distrito Federal j

    existia desde a Constituio Federal de 1891. No entanto, a realidade demonstra que tal

    objetivo no se concretizou. Somado a isso, a impreciso dos registros das fazendas

    localizadas aqui no DF e a evoluo da populao, nos ltimos anos, tem contribudo para a

    ocorrncia de conflitos fundirios e dificuldade de regularizao das reas rurais e urbanas

    que compem o Distrito Federal.

    30

    Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 28 mar. 2012. 31

    Regularizao fundiria em imveis da Unio no Distrito Federal. Disponvel em http://.dpi.inpe.br.

    Acesso em 28 mar. 2012.

    http://www.zee-df.com.br/http://.dpi.inpe.br/

  • 20

    2 ESTRUTURA FUNDIRIA DO DISTRITO FEDERAL E CONCEITOS JURDICOS PRELIMINARES

    O incompleto processo de desapropriao ocorrido nas dcadas de 50 e 60 do

    sculo XX, a falta de discriminao correta das terras do Distrito Federal e da definio dos

    limites entre o pblico e o privado, bem como a indefinio das fazendas e das reas que

    compem o Distrito Federal, esto no centro da problemtica existente ao redor dos conflitos

    fundirios do DF, seja nas reas urbanas, seja nas reas rurais.

    Como consequncia, o Distrito Federal adquiriu uma estrutura fundiria que o

    diferenciou de todos os demais Estados do pas. Segundo dados do PDOT-2009, a situao

    fundiria do Distrito Federal complexa e abrange terras de naturezas jurdicas diversas,

    quais sejam32

    :

    a) Terras particulares, registradas em Cartrio de Registro de Imveis em nome

    do particular, que possui escritura da rea.

    b) Terras devolutas, nas quais a propriedade desconhecida, no sendo

    abrangidas por domnio particular por qualquer ttulo legtimo e que no foram

    objeto de causas discriminatrias.

    c) Terras Pblicas, que se dividem em: 1) Terras pblicas que foram cedidas por

    contratos de arrendamento e/ou concesso de uso aos produtores rurais; 2)

    Terras pblicas que sofreram invaso.

    d) Terras em regime de propriedade comum adquiridas pela TERRACAP, nas

    quais o Poder Pblico desapropriou parcialmente a gleba sem definir os limites

    da propriedade pblica ou privada.

    Para melhor compreenso dessa complexa estrutura fundiria do Distrito Federal,

    composta por terras de naturezas jurdicas diversas, englobando terras particulares, terras

    devolutas e terras pblicas que foram cedidas por contratos de arrendamentos e concesses de

    uso, alm de terras pblicas que sofreram processo de invaso, faz-se necessrio a anlise

    detalhada de cada uma delas, bem como a anlise de alguns institutos jurdicos referentes a

    elas , quais sejam: Propriedade, posse, usucapio de terras devolutas e instrumentos jurdicos

    para utilizao de bens pblicos pelos particulares.

    32

    Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012.

    http://www.zee-df.com.br/

  • 21

    2.1 Terras particulares e a propriedade

    Como j mencionado, a desapropriao realizada no Distrito Federal ocorreu de

    forma incompleta. Apesar do objetivo de tornar todas as reas que circundavam o DF

    pblicas, algumas dessas reas continuaram sob o domnio de particulares, que at hoje detm

    a escritura sobre elas. Estima-se que 3.883 reas do Distrito Federal possuam escritura

    definitiva33

    .

    A rea rural que est sob o domnio do particular remete ao conceito e anlise do

    instituto jurdico da propriedade, bem como a funo social que ela deve cumprir, mormente a

    propriedade rural.

    Segundo Ivan Chemeris34

    , a propriedade uma das mais importantes instituies

    jurdicas, pois reflete a opo das sociedades no que diz respeito ao modo de gerao e

    distribuio de riquezas.

    As condies econmicas e polticas de cada perodo foram fatores essenciais que

    determinaram a origem e o desenvolvimento dos fundamentos da propriedade. Em cada

    poca, esse instituto assumiu diferentes contornos, conforme as relaes econmicas e sociais

    vigentes em cada momento35

    . Ao se estudar a evoluo do Direito Ocidental, todavia,

    percebe-se que a propriedade, em sua essncia, sempre se caracterizou por ser o exerccio de

    um poder jurdico de carter soberano e privativo de algum sobre uma coisa determinada36

    .

    Apesar de ser um instituto jurdico de tamanha importncia para as relaes

    sociais, econmicas e polticas, dificilmente se lograr xito ao se admitir a existncia de um

    conceito nico e inflexvel de propriedade, pois esta sofre um permanente processo de

    transformao, sendo cada vez mais dinmicos os seus poderes37

    .

    No se conhece na doutrina e nos Cdigos uma definio do direito de

    propriedade, muito embora o artigo 1.228 do Cdigo Civil, ao anunciar seu contedo, traga

    uma conceituao: O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito

    de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

    33

    Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012. 34

    CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So

    Leopoldo: Unisinos, 2002. 35

    FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e da propriedade contempornea: uma perspectiva da

    usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 36

    COMPARATO, Fabio Konder. Direito e deveres fundamentais em matria de propriedade. In:

    STROZAKE, Juvelino Jos (Org.). A questo agrria e a justia; So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 37

    MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001.

    http://www.zee-df.com.br/

  • 22

    Atualmente, a propriedade apresenta um dinamismo nunca antes visto e torna-se

    imperativa a sua anlise baseando-se no apenas na sujeio de uma coisa ao seu titular, mas

    sim no interesse social que esta revela38

    .

    Nesse sentido, a Constituio Federal estabelece, no seu art. 5, que a propriedade

    dever atender a sua funo social:

    Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza,

    garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a

    inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e

    propriedade, nos termos seguintes:

    XXI garantido o direito de propriedade;

    XXII a propriedade atender a sua funo social.

    Marquesi39

    define funo social da propriedade como os requisitos de direito

    pblico relativos ordem econmica que o titular de um imvel urbano ou rural dever seguir

    quando estiver no exerccio dos seus poderes de domnio. Nesse sentido, a funo social da

    propriedade corresponde a um dever-direito do titular do bem, que dever exercer seus

    direitos individuais sobre a coisa com vistas s necessidades coletivas.

    Dessa forma, percebe-se que no existe mais a possibilidade de se admitir que o

    titular empregue seu imvel com fins puramente individuais. Ao contrrio, cumpre ao titular

    de um bem us-lo de forma til sociedade, empregando-o como um instrumento de gerao

    de riquezas.

    De um lado, portanto, o direito de propriedade obriga os demais indivduos a no

    interferirem na maneira com que o proprietrio exerce titularidade sobre um bem, porm, em

    contrapartida, tem-se que a funo social vincula o proprietrio para que este utilize a coisa

    em seu domnio com vistas ao bem estar coletivo40

    .

    Especificamente em relao ao cumprimento da funo social da propriedade

    rural, positivou o Estatuto da Terra as condies para o cumprimento da funo social dessas

    propriedades, explicitadas no 1 do art. 2, que dispe:

    Artigo 2. assegurada a todos a oportunidade de acesso propriedade da

    terra, condicionada pela sua funo social, na forma prevista nesta lei.

    1. A propriedade da terra desempenha integralmente a sua funo social

    quando, simultaneamente:

    a) Favorece o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famlias;

    38

    MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001. 39

    Ibidem, p. 96. 40

    CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So

    Leopoldo: Unisinos, 2002.

  • 23

    b) Mantm nveis satisfatrios de produtividade; c) Assegura a conservao dos recursos naturais; d) Observa as disposies legais que regulam as justas relaes de trabalho

    entre os que a possuem e a cultivam.

    A Constituio Federal de 1988 tratou expressamente da funo social da

    propriedade rural no seu art. 186, acrescentando s condies elencadas pelo Estatuto da Terra

    para o cumprimento da funo social da propriedade a proteo ao meio ambiente:

    Artigo 186. A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,

    simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em

    lei, aos seguintes requisitos:

    I aproveitamento racional e adequado;

    II utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do

    meio ambiente;

    III observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;

    IV explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos

    trabalhadores.

    A funo social da propriedade rural elencada na Constituio Federal baseada

    em quatro fatores. O fator econmico diz respeito ao aproveitamento racional e adequado da

    propriedade rural, que ocorrer quando houver, por parte do produtor rural, a utilizao de

    tcnicas agrcolas peculiares regio onde se encontra o imvel, de forma a conduzir a uma

    explorao eficiente. O fator econmico-ambiental exige uma adequada utilizao dos

    recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente. O fator social expressa a

    necessidade de uma explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos

    trabalhadores. Por fim, o fator humano social definido como o atendimento das necessidades

    bsicas dos que desempenham funes ligadas a terra41

    .

    Percebe-se, diante dos requisitos elencados pela Constituio, que a funo social

    da propriedade rural no abarcou apenas a produtividade da terra, mas tambm aspectos

    ecolgicos e trabalhistas, ao exigir uma utilizao adequada dos recursos naturais disponveis

    e preservao do meio ambiente, alm da observncia das disposies que regulam as

    relaes de trabalho. Mais do que nunca, a propriedade rural deixa de ser apenas um meio

    para se atingir interesses particulares e passa a ser uma forma de assegurar a todos condies

    de vida dignas. Alm disso, deixa de ser apenas um bem patrimonial e passa a ser um bem de

    produo, que deve produzir alimentos e matrias-primas. A propriedade passa a implicar,

    41

    MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001.

  • 24

    para todo o seu titular, a obrigao de empreg-la na produo de riqueza e desenvolvimento

    para toda a sociedade42

    .

    A Constituio Federal atribuiu novos contornos propriedade, fazendo com que

    ela sirva de instrumento para concretizao de princpios constitucionais, em especial o da

    dignidade da pessoa humana. Dessa forma, no se pode encarar a propriedade apenas pelo seu

    aspecto absoluto e individual, mas sim pela importncia social e coletiva que desempenha.

    2.2 Terras devolutas e a possibilidade de usucapio

    O estudo realizado pela Comisso de Cooperao para a Mudana da capital com

    relao cadeia dominial das fazendas que ocupavam a rea que passaria a compor o Distrito

    Federal foi concludo em 1958 e revelou a presena de terras devolutas. Segundo o

    diagnstico elaborado pelo Zoneamento Ecolgico-Econmico do DF, a estrutura fundiria do

    Distrito Federal continua abarcando terras devolutas, nas quais a propriedade desconhecida,

    no sendo abrangidas por domnio particular por qualquer ttulo legtimo e que no foram

    objeto de ao discriminatria43

    .

    Segundo Benedito Ferreira Marques44

    , vrios conceitos tm sido atribudos ao

    instituto das terras devolutas, o qual consagrado na literatura jurdica brasileira desde a Lei

    das Terras de 1850. Para o referido autor, o principal objetivo da Lei n 601/1850 foi conferir

    titulao a todos os que ocupavam a terra, mas no a possuam. Nesse sentido, a edio dessa

    lei se justificou pela necessidade de evitar a perpetuao do regime de posses ilegtimas como

    meio de aquisio de propriedade.

    Altir de Souza Maia45

    define terras devolutas como aquelas que no esto

    aplicadas a qualquer uso pblico federal, estadual ou municipal, ou que no estejam

    incorporadas ao domnio privado. Importante salientar que a discriminao das denominadas

    terras devolutas no atende a uma preocupao do Estado em aumentar o seu patrimnio, mas

    sim em regularizar a situao dos posseiros46

    .

    42

    CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So

    Leopoldo: Unisinos, 2002. 43

    Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012. 44

    MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. p. 85. 45

    Apud MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. p. 88. 46

    RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 9, jan./fev. 1997.

    http://www.zee-df.com.br/

  • 25

    Tendo em vista que a estrutura fundiria do Distrito Federal composta tambm

    por terras devolutas, o questionamento pertinente ao presente trabalho monogrfico : Essas

    terras devolutas so usucapveis?

    O direito usucapio um dos efeitos mais importantes da posse, pois a

    maneira pela qual a situao de fato do possuidor ser transformada em direito de

    propriedade. No entanto, nem toda posse poder ser convertida em propriedade por meio da

    usucapio. Nesse sentido, a posse ad interdicta no se confunde com a posse ad usucapionem,

    pois enquanto esta se molda teoria de Ihering, bastando o poder de fato sobre a coisa para

    que se possa ajuizar uma causa possessria, aquela afirma ser necessrio acrescentar o animus

    domini da teoria subjetiva posse. Assim, qualquer posse permite ao possuidor o ajuizamento

    de causas possessrias. No entanto, apenas a posse qualificada pela inteno do dono gera a

    aquisio da propriedade pela usucapio47

    .

    Sobre o assunto, ensina Marcos Aurlio Bezerra de Melo48

    :

    [...] nem toda posse poder se converter em propriedade pela via da

    usucapio, pois se toda posse ad interdicta nem toda o ser ad

    usucapionem. A posse ad usucapionem tem que trazer consigo o elemento

    subjetivo do animus domini materializado na expresso possuir como seu

    (art. 1238 do CCB), alm de ter que ser sem oposio, ininterrupta e incidir

    sobre bem usucapvel durante determinado perodo de tempo.

    Enquanto a posse o poder de fato sobre a coisa, a propriedade o poder de

    direito nela incidente. O fato objetivo da posse, associado ao tempo e verificao dos demais

    requisitos legais geram juridicidade a uma situao de fato, transformando-a em propriedade.

    A usucapio uma maneira de realizar essa transformao, como um meio jurdico de soluo

    de tenses derivadas da confrontao entre posse e propriedade. Assim, um dos fundamentos

    da usucapio materializar a propriedade, ocasionando ao proprietrio desidioso com o seu

    patrimnio a privao da coisa em benefcio daquele que, aliando tempo e posse, anseie

    consolidar e pacificar a sua situao perante a sociedade e o bem49

    .

    Segundo Marcos Aurlio Bezerra de Melo50

    , a segurana jurdica que surge em

    decorrncia da paz social de se conferir juridicidade a um fato social que se alonga no tempo

    sem a oposio do antigo titular da propriedade tambm fundamenta a usucapio. Nada mais

    justo, segundo o entendimento do referido autor, que uma pessoa que atribuiu valor a um bem

    47

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. p. 113. 48

    MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 44. 49

    Ibidem, p. 273. 50

    Ibidem, p. 105.

  • 26

    em razo do trabalho, produo ou moradia seja beneficiado pelo reconhecimento social e

    jurdico de ser proprietrio desse bem.

    Sendo assim, a usucapio representa uma recompensa quele que por um perodo

    expressivo de tempo deu ao bem uma aparente destinao de proprietrio. No entanto,

    tambm importa em sano ao proprietrio desidioso e inerte que no tutelou o seu direito em

    face da posse exercida por outrem51

    .

    Tendo em vista a regularizao fundiria rural, merece destaque a usucapio

    agrria. Esse instituto jurdico foi criado pela Constituio Federal de 1934 e, a partir da, no

    foi esquecido por leis posteriores, exceo da Constituio Federal de 1967 e da Emenda

    Constitucional n 1 de 1969, as quais foram omissas em relao usucapio agrria. Vrias

    nomenclaturas foram atribudas a esse instituto, desde usucapio agrria, rstica, pr-labore e,

    mais atualmente, usucapio especial rural. Importante mencionar que a usucapio agrria se

    manteve presente na legislao ordinria, primeiramente no contexto do art. 98 da Lei n

    4.504/64 (Estatuto da Terra) e, atualmente, na Lei n 6.969/81, a qual regulou inteiramente a

    matria52

    .

    Essa modalidade de usucapio baseia-se na posse-trabalho, assim compreendida

    aquela que se caracteriza pela utilizao econmica do bem possudo por meio do trabalho. O

    reconhecimento da posse pelo Estado tem como fator de maior importncia o trabalho, da

    dizer que este o fator preponderante da propriedade na sua aquisio pela usucapio53

    .

    A usucapio agrria tem por objetivo a proteo do trabalhador rural e o fomento

    a que ele tenha condies de permanecer no campo54

    . Alm disso, objetiva a fixao do

    homem no campo, exigindo ocupao produtiva do imvel, devendo neste morar e trabalhar o

    usucapiente ou a entidade familiar, e a consecuo de uma poltica agrcola, promovendo-se a

    ocupao de reas subaproveitadas, tornando a terra til por produtiva. Nessa modalidade de

    usucapio, a funo social da posse mais evidente do que na modalidade da usucapio

    urbana, pois a mera pessoalidade da posse pela moradia no conduz aquisio da

    51

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. p. 272. 52

    Ibidem, p. 315. 53

    Ibidem, p. 127. 54

    MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 125.

  • 27

    propriedade se no acompanhada do exerccio de uma atividade econmica, seja ela rural,

    industrial ou de mera subsistncia da entidade familiar55

    .

    Benedito Ferreira Marques56

    afirma:

    Da abordagem feita sobre a usucapio agrria, conclui-se que se trata do

    instituto jurdico da mais alta significao no contexto agrrio e processual.

    No agrrio, porque representa mais um meio de titulao de imveis aos que

    trabalham a terra, com base na posse-trabalho. E, no campo processual, por

    seus aspectos inovadores, explicveis e justificveis pela finalidade social

    que encerra.

    O artigo 2 da Lei n 6.969/81 abrangia no apenas a possibilidade de obteno de

    usucapio rural de reas particulares, como tambm de terras devolutas, que integram o

    patrimnio das pessoas federativas, mas no so utilizadas para quaisquer finalidades pblicas

    especficas57

    .

    Segundo entendimento de Humberto Theodoro Junior58

    , alm da posse, da

    ausncia de oposio e do nimo da posse (posse ad usucapionem), o instituto da usucapio

    exige tambm que o objeto seja coisa hbil a essa forma de aquisio dominial originria:

    De maneira geral, diz-se que somente as coisas no comrcio podem prestar

    usucapio, porque res extra commercium exatamente a expresso utilizada,

    tradicionalmente, para designar a coisa que no pode ser incorporada ao

    patrimnio individual, nem de fato nem de direito. No entanto, no tem sido

    uniforme o tratamento que, sob esse ngulo, se dispensa aos bens pblicos,

    mesmo porque a orientao legislativa no se mostra constante e a prpria

    natureza desses bens no nica.

    Silvio Rodrigues59

    sempre defendeu a tese de que os bens pblicos, de qualquer

    natureza, no podem ser usucapidos. Segundo o autor, essa convico fruto da letra expressa

    da lei no Decreto-Lei n 9.760/46, que dispe sobre os bens imveis da Unio, bem como no

    texto do enunciado 340 do Supremo Tribunal Federal, o qual afirma que desde a vigncia do

    Cdigo Civil, os bens dominicais, assim como os demais bens pblicos, no podem ser

    adquiridos por usucapio.

    A Constituio Federal de 1988 tambm afirmou a impossibilidade de os bens

    pblicos serem usucapidos. O pargrafo 3 do artigo 183 e o pargrafo nico do artigo 191 da

    Constituio afirmam expressamente que os imveis pblicos no sero adquiridos por

    55

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. 56

    MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. 57

    FARIAS, op. cit., p. 317. 58

    JNIOR, Humberto Theodoro. Posse e usucapio: direitos reais I doutrina e jurisprudncia. Rio de Janeiro:

    Aide, 1994. 59

    RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev. 1997.

  • 28

    usucapio. No entanto, a regra contida nesses artigos pareceu sofrer um abalo por conta do

    disposto no caput do artigo 188 da Constituio Federal: A destinao de terras pblicas e

    devolutas ser compatibilizada com a poltica agrcola e com o plano nacional de reforma

    agrria.

    Para Silvio Rodrigues60

    , inegvel que o legislador constituinte acabou

    distinguindo as terras pblicas das devolutas, afirmando que sua destinao dever ser

    compatibilizada com a poltica agrcola do pas, a qual sempre foi, desde as capitanias

    hereditrias, a de privatizar as terras pblicas dominicais com a finalidade de que fossem

    cultivadas e colonizadas. Inclusive, a lei n 601/50 sempre procurou legitimar a deteno de

    quem tivesse na terra cultura efetiva e produtiva, alm de moradia habitual, ainda que sem

    possuir ttulo dominial.

    O artigo 188 da Constituio Federal acabou por distinguir as terras pblicas das

    terras devolutas, levando o intrprete a entender que o legislador constituinte criou uma nova

    espcie de bens pblicos, distinta das espcies j elencadas no artigo 98 do Cdigo Civil: bens

    de uso comum do povo, uso especial e bens dominicais. Slvio Rodrigues61

    sempre defendeu

    os bens dominicais como aqueles que fazem parte do patrimnio da pessoa jurdica de direito

    pblico, incluindo nessa classificao as terras devolutas. No entanto, o artigo 188 da

    Constituio, ao distinguir terras pblicas das terras devolutas, parece ter criado uma nova

    espcie de bens dominicais, ou seja, as terras devolutas. A transferncia dessas terras ao

    particular feita por meio de legitimao de posse, com a finalidade de atender ao interesse

    social e possibilitar a continuidade da explorao da terra. Em verdade, a usucapio uma

    forma de aquisio de propriedade que muito se assemelha legitimao de posse para o

    posseiro, pois em ambas as situaes a lei atribui ao possuidor a prerrogativa de tornar sua

    uma terra que ocupava pacificamente.

    Afirma Silvio Rodrigues62

    :

    Parece-me que o legislador constituinte, distinguindo as terras pblicas das

    devolutas, criou um novo gnero de bens pblicos dominicais, o das terras

    devolutas, que seriam aquelas que constituem um acervo que o Estado detm

    como os particulares detm o seu prprio patrimnio. Tal patrimnio,

    portanto, escapa da regra do artigo 100 do Cdigo Civil, que declara

    inalienveis os demais bens classificados no artigo 99, e est sujeito a

    usucapio. Essa opinio, agora por mim externada pela primeira vez, no

    original e apenas segue a de juristas que me precederam.

    60

    RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev. 1997. 61

    Ibidem, p. 9. 62

    Ibidem, p. 10

  • 29

    Juarez de Freitas63

    , em artigo denominado Usucapio de terras devolutas em face

    de uma interpretao constitucional teleolgica, adota postura semelhante de Silvio

    Rodrigues, ao afirmar:

    Em tal medida, mister admitir bens pblicos de uso comum do povo, bens

    pblicos de uso especial (ambos, enquanto tais, inalienveis e imprescritveis),

    ao lado de bens pblicos disponveis de duas espcies: os dominicais e os

    devolutos, estes ltimos usucapveis, obedecidos determinados requisitos, sem

    ofensa aos comandos dos artigos 183, pargrafo 3 e 191, pargrafo nico.

    Ademais, Celso Ribeiro Bastos64

    , em sua obra Comentrios Constituio do

    Brasil, defende:

    Os bens pblicos so aqueles que pertencem ao domnio das pessoas

    jurdicas de direito pblico. No entanto, nem todos esses bens esto sujeitos

    a um regime tambm de direito pblico. Pertencem ao domnio pblico sem

    que, contudo, sujeitem-se as regras jurdicas a que esto normalmente

    submetidos os bens pblicos na plena acepo da palavra. Estes so pblicos

    pela destinao e no somente pela titularidade. As terras devolutas

    constituem o maior contingente que compe essa categoria de imveis.

    Portanto, foroso reconhecer que, nada obstante um imvel ser pblico por

    compor o domnio de uma pessoa de direito pblico, ele pode ser dominical

    do ponto de vista de sua destinao ou utilizao. Esses so usucapveis.

    Assim, percebe-se que as terras devolutas so passveis de usucapio. Cabe

    destacar, no Distrito Federal, que no obstante a dificuldade de se obter o registro imobilirio

    das reas aqui localizadas, dificuldade essa j percebida pela Comisso de Cooperao para a

    Mudana da Capital na dcada de 50, entendeu o Superior Tribunal de Justia, no dia 18 de

    outubro de 2011, no Recurso Especial n 964.223-RN, que tal fato no induz presuno de

    que a terra pblica, conforme ementa do Recurso transcrita abaixo:

    DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIO. IMVEL

    URBANO. AUSNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE

    DO IMVEL. INEXISTNCIA DE PRESUNO EM FAVOR DO

    ESTADO DE QUE A TERRA PBLICA. 1. A inexistncia de registro

    imobilirio do bem objeto de ao de usucapio no induz presuno de que

    o imvel seja pblico, cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno

    como bice ao reconhecimento da prescrio aquisitiva. 2. Recurso especial

    no provido65

    .

    Percebe-se, assim, que cabe ao Estado demonstrar a titularidade sobre a rea, no

    havendo presuno de que a terra pblica somente pela ausncia de registro.

    63

    Apud RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev.

    1997. 64

    Apud RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev.

    1997.

    65

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso especial. REsp 964223 / RN. Quarta turma. Recorrente: Estado do Rio Grande do Norte. Recorrido: Jetro Maia Dantas. Relator: Min. Luis Felipe Salomo. Braslia, 18

    de outubro de 2011.

  • 30

    2.3 Terras pblicas e a posse

    A desapropriao realizada nas dcadas de 50 e 60 tornou pblicas,

    aproximadamente, 51,4% das reas que futuramente comporiam a base territorial do Distrito

    Federal e da nova capital do pas.

    As terras pblicas do DF podem ser divididas em dois grandes grupos: as que

    foram cedidas aos particulares por meio de contratos de arrendamento e/ou concesso de uso

    e as terras que foram invadidas e ocupadas de maneira ilegal.

    Para melhor compreenso desses dois grupos de terras pblicas, bem como para

    melhor entendimento do processo de regularizao das reas rurais do Distrito Federal, faz-se

    necessria uma anlise mais detalhada de alguns conceitos jurdicos referentes ao instituto da

    posse.

    2.3.1 Origens e as teorias clssicas e sociolgicas da posse

    O poder fsico exercido pelo homem sobre as coisas, bem como a sua necessidade

    de se apropriar de bens tm, historicamente, justificado a origem da posse66

    . No possvel,

    entretanto, estabelecer uma data especfica para o surgimento desse instituto jurdico, pois o

    perodo que antecede ao direito clssico no totalmente conhecido pelos juristas pelo fato

    das informaes dessa poca serem escassas e conflitantes67

    . Apenas com o surgimento da

    escrita e com o advento da histria que houve a possibilidade de se aferir as instituies

    jurdicas existentes, pois esses marcos histricos possibilitaram o fornecimento de subsdios e

    de informaes seguras68

    .

    Os primeiros estudos a respeito da posse foram realizados em Roma. Assim,

    afirma-se que em Roma se gerou e se desenvolveu esse instituto. Todavia, a causa que lhe deu

    origem um dos grandes problemas estudados pela Histria do Direito e parece estar longe de

    uma soluo pacfica69

    .

    Apesar de a posse ter surgido em Roma, o direito romano no reconheceu apenas

    uma nica concepo desse instituto, o qual apresentou diversas diferenas conforme

    66

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. p. 27. 67

    FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da

    usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 14. 68

    LOPES, Ana Carolina Seixas. Funo social da propriedade rural e a tutela processual da posse. 2009. 76

    f. Monografia (Graduao) - Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,

    Braslia, 2009. 69

    RODRIGUES, Manuel. A posse: estudo de direito civil Portugus. 4. ed. Portugal: Coimbra, 1996.

  • 31

    evolua70

    . Nesse sentido, trs grandes fases do direito romano merecem destaque: a pr-

    clssica ou antiga, a clssica e a justiniania. Ressalta-se o fato j mencionado de que a noo

    de posse no se manteve, durante esse perodo, inaltervel e permanente71

    .

    Na fase pr-clssica, a posse era baseada na conjugao de dois elementos

    objetivos: um material, assim considerado por existir uma imediata relao entre sujeito e

    objeto, e outro jurdico, por conta da causa possessionis72

    . Nessa fase, a posse era uma

    senhoria de fato sobre uma coisa com relao qual o concedente tinha a senhoria de direito.

    Essa senhoria de fato no se transformava em senhoria de direito, tinha carter revogvel e

    deveria ser exercida com a inteno de ter a coisa para si73

    .

    No perodo clssico, a noo de posse permaneceu centrada no elemento material,

    mas houve o acrscimo de um elemento intencional, o animus possidendi. J na fase

    justiniania, o conceito de posse se altera e passa a ser o exerccio do direito de propriedade

    ou de que qualquer outro direito real, que se associa a um estado de direito74

    .

    O nascimento da posse, no perodo romano, esteve associado a um contedo

    econmico privado, por que esse instituto era dotado de exclusividade e pessoalidade, ao

    contrrio do que se verificava no uso, o qual tinha um carter social e comunitrio75

    .

    Importante salientar que o estudo da posse no mundo moderno no se pauta

    apenas no Direito romano, pois ela foi influenciada tambm pelo Direito germnico medieval

    e pelo Direito cannico. A posse, portanto, fruto da unio de elementos histricos

    heterogneos, os quais se misturaram por motivos tnicos (costumes de povos brbaros que

    foram levados para o Imprio Romano do Ocidente), culturais (acolhida do Direito romano na

    Europa) e religiosos (direito laico que sofreu influncia do direito cannico)76

    .

    Os romanos, apesar de terem analisado o instituto da posse, no investigaram a

    sua natureza jurdica nem sistematizaram regras sobre a matria77

    . No entanto, diversas

    teorias buscaram, a partir do direito romano, justificar a necessidade de proteo da posse.

    Dentre essas teorias, merece destaque a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de

    70

    ALVES, Jos Carlos Moreira. Posse: evoluo histrica. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 71

    FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da

    usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. 72

    ALVES, op. cit., p. 11. 73

    ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 61. 74

    ALVES, op. cit., p. 12. 75

    FACHIN, op. cit., p. 23. 76

    ALVES, op. cit., p. 2. 77

    RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 22. ed. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 17.

  • 32

    Ihering, as quais definem, a seu modo, as figuras do possuidor e do detentor, alm de

    justificarem a essncia da proteo possessria e identificarem os limites da tutela da posse78

    .

    Segundo Fachin, no h autor da cultura jurdica moderna que, ao tratar do

    instituto da posse, no analise a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering

    referentes a tal instituto79

    .

    Savigny, em 1803, elaborou o livro que por si s serviu para imortaliz-lo: O

    Tratado da Posse (Das Recht des Besitzes). Seu objetivo com a obra era apresentar a teoria da

    posse como ela era vista em Roma80

    . O escritor, em sua tentativa de reconstruo do direito

    romano, desenvolveu uma teoria que obteve grande efeito e repercusso na maioria das

    legislaes do sculo XIX81

    .

    Para a teoria subjetiva, a posse o poder de dispor fisicamente da coisa, com a

    inteno de consider-la sua e defend-la contra a interveno de terceiros82

    . Na concepo de

    Savigny, a posse composta por dois elementos constitutivos: o corpus e o animus. O corpus

    o elemento material representado pelo poder fsico sobre a coisa. J o animus o elemento

    volitivo que consiste na inteno do possuidor de exercer o direito como se proprietrio fosse.

    Para Savigny, no basta deter a coisa, ou seja, no basta o elemento material, necessrio

    haver o propsito de ter a coisa para si, isto , o animus possidendi83

    .

    Segundo a teoria de Savigny, os dois elementos (material e volitivo), so

    indispensveis para que a posse seja caracterizada. Se faltar o corpus, inexiste relao de fato

    entre a pessoa e o bem, e se faltar o animus no haver posse, mas mera deteno84

    . Nesse

    sentido, entendia Savigny que se uma pessoa tivesse apenas o corpus, sem o animus, seria

    considerada mera detentora do bem e no poderia, por conseqncia, invocar a proteo

    possessria. Assim, para a teoria subjetiva, considerado possuidor somente aquele que

    possui o corpus e o animus85

    . Justamente por atribuir tamanha nfase ao aspecto psicolgico e

    ao elemento volitivo do animus, a teoria de Savigny ficou conhecida como teoria subjetiva86

    .

    78

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. p. 27. 79

    FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da

    usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 14. 80

    ALVES, Jos Carlos Moreira. Posse: evoluo histrica. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 81

    RODRIGUES, op. cit., p. 18. 82

    Ibidem, p.18. 83

    FARIAS, op. cit., p. 23. 84

    RODRIGUES, op. cit., p. 18. 85

    MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 17. 86

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009.

  • 33

    Sustenta Savigny que em situaes nas quais a pessoa possua o contato fsico com

    a coisa sem o animus, haver mera deteno. o caso, por exemplo, do locatrio, do

    comodatrio, do usufrutrio e do arrendatrio. Para Savigny, essas pessoas, por terem a

    carncia do elemento volitivo, so meras detentoras que no fazem jus proteo

    possessria87

    . Nesse ponto, a teoria de Savigny recebeu veemente crtica com a alegao de

    que o direito moderno no pode negar proteo possessria ao locatrio, ao comodatrio ou a

    qualquer das pessoas citadas anteriormente88

    .

    Assim, buscando estender a proteo possessria a essas figuras, Savigny

    construiu a teoria da posse derivada, a qual consistia na transferncia dos direitos

    possessrios, e no do direito de propriedade, e aplicvel, por exemplo, ao credor pignoratcio

    e ao depositrio de coisa litigiosa, para que pudessem conservar a coisa que lhes fora

    confiada89

    .

    Sobre o assunto, Arnaldo Rizzardo90

    defende:

    Contrariando a prpria tese, isto , admitindo a posse sem a inteno de

    dono, Savigny demonstrou a fragilidade de seu pensamento, embora tenha

    procurado fazer a distino entre o nimo exigido para a posse e o nimo do

    proprietrio propriamente dito. No primeiro caso, o nimo mais que

    representao. No outro, o arrendatrio, o locatrio e o usufruturio estariam

    representando o arrendante, o locador ou o nu-proprietrio, situao, no

    entanto, diferente daquela que a realidade apresenta.

    Apesar das crticas que sofreu, a teoria subjetiva teve seu mrito e importncia,

    pois possibilitou reduzir o fenmeno da posse a um mnimo bsico de autonomia frente

    propriedade, projetando-se autonomia ao instituto da posse pelo fato do uso dos bens adquirir

    relevncia jurdica fora da estrutura da propriedade privada91

    .

    Ihering, por sua vez, viveu no perodo de transio entre o mtodo histrico-

    natural e o positivismo, no qual a Europa vivenciava o triunfo do individualismo, do

    liberalismo e o incio das codificaes. Nessa poca, Ihering confrontou os representantes da

    denominada Escola Histrica, da qual Savigny foi expoente92

    .

    Ihering dirigiu a Savigny veemente crtica pelo fato de acreditar que a noo de

    corpus j incorporava a de animus, razo pela qual a distino que se fazia entre ambas era

    87

    Ibidem, p. 28. 88

    GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 89

    Ibidem, p. 31. 90

    Apud GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 91

    FARIAS, op. cit., p. 27. 92

    FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da

    usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 26.

  • 34

    irrelevante93

    . Assim, a teoria de Ihering denominada por ele mesmo de objetiva, pois no

    concede ao animus a importncia que lhe conferia a teoria subjetiva94

    .

    A teoria objetiva de Ihering afirma que para a caracterizao da posse basta o

    corpus. Entretanto, tal expresso no significa contato fsico com a coisa, mas sim conduta de

    dono, a qual se revela na forma com a qual o proprietrio age em face da coisa, tendo em vista

    sua funo econmica95

    . A posse, portanto, reconhecida por sua destinao econmica,

    independendo qualquer manifestao ou ato do possuidor. Dessa forma, suficiente, para a

    teoria objetiva, que o possuidor se comporte em relao coisa como se comportaria o

    proprietrio em relao ao que seu. Assim sendo, no importa a possibilidade de apreenso

    imediata da coisa, mas o fato do possuidor agir como agiria o proprietrio, concedendo

    destinao econmica ao bem, tenha ou no o possuidor o animus domini. Dessa maneira, ao

    se dispensar o animus, a teoria objetiva estende condio de possuidores aqueles que seriam

    considerados meros detentores pela teoria de Savigny96

    .

    A teoria de Ihering tida como um avano em relao teoria de Savigny, pois ao

    abrir mo da exigncia do animus domini, amplia-se o rol dos possuidores, concedendo

    queles antes considerados meros detentores proteo possessria direta e imediata97

    .

    Entretanto, a maior crtica que se faz teoria objetiva decorre do fato de Ihering

    subordinar a posse propriedade, acabando com a sua autonomia e reduzindo a posse a um

    direito mnimo, como mera exteriorizao do direito de propriedade98

    .

    Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald99

    , ao analisar o contexto atual e as teorias

    de Savigny e Ihering, afirmam:

    [...] nos dias atuais, as teorias de Savigny e Ihering no so mais capazes de

    explicar o fenmeno possessrio luz de uma teoria material dos direitos

    fundamentais. Mostram-se envelhecidas e dissonantes da realidade social

    presente. Surgiram ambas em momento histrico no qual o fundamental era

    a apropriao de bens sob a lgica do ter em detrimento do ser. Ambas as

    teorias se conciliavam com a lgica do positivismo jurdico, na qual a posse

    se confina no direito privado como uma construo cientfica, exteriorizada

    em um conjunto de regras hermticas.

    93

    RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 22. ed. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 18. 94

    GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 95

    Ibidem, p. 32. 96

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. 97

    Ibidem, p. 30. 98

    Ibidem, p. 31. 99

    Ibidem, p. 31.

  • 35

    Assim, apesar da importncia das teorias de Savigny e de Ihering, inegvel o

    fato de que atualmente no possvel compartilhar apenas dessas teorias para explicar a

    posse, pois estas, alm de insuficientes para expressar a densidade dos direitos fundamentais

    nas relaes privadas, so divorciadas da realidade do Brasil100

    .

    Nesse sentido, afirma Marco Aurlio Bezerra de Melo101

    que a posse deve ser

    encarada pelos operadores do direito como uma situao jurdica capaz de garantir a

    dignidade da pessoa humana e o direito constitucionalmente assegurado moradia. Dessa

    forma, a posse no pode ser analisada sem a necessria adequao realidade social e

    econmica do Brasil.

    Nesse contexto, as denominadas teorias sociolgicas, preconizadas por Silvio

    Perozzi, Raymond Saleilles e Antonio Hernandez Gil, tm trazido ao estudo da posse novos

    rumos, fazendo-a adquirir autonomia em face propriedade. Essas novas teorias constituem

    um importante instrumento jurdico de fortalecimento da posse por enfatizarem o seu carter

    econmico e a sua funo social102

    . Alm disso, as teorias sociolgicas procuram demonstrar

    que a posse no um apndice ou uma mera aparncia da propriedade. Pelo contrrio, essas

    teorias buscam reinterpretar a posse conforme os valores sociais nela considerando-a um

    fenmeno de relevante interesse social, com autonomia em relao propriedade e aos

    direitos reais103

    .

    Perozzi, em 1906, formulou a teoria social da posse, caracterizada pelo

    comportamento passivo dos sujeitos integrantes da coletividade com relao ao fato. Para essa

    teoria, a posse prescinde do corpus e do animus e resultado do fator social, dependente da

    absteno de terceiros104

    . O socilogo em questo sustenta que a posse um fenmeno social

    baseado na moralidade e no costume105

    .

    J a teoria da apropriao econmica de Saleilles preconiza a independncia da

    posse em relao ao direito real. Isso se deve ao fato de que a posse, nessa teoria, manifesta-se

    por um juzo de valor segundo a conscincia social considerada economicamente. Saleilles

    afirma que o critrio que deve ser utilizado para distinguir posse de deteno o da

    observao dos fatos sociais, e no o da interveno direta do legislador para dizer em que

    100

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009, p. 36. 101

    MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 23. 102

    GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 37. 103

    FARIAS, op. cit., p. 36. 104

    GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 105

    ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 76.

  • 36

    casos no h posse, como afirmava a teoria de Ihering. Sendo assim, haver posse onde h

    relao de fato para estabelecer a independncia econmica do possuidor106

    .

    Hernandez Gil, por sua vez, defende que a funo social pressuposto e fim das

    instituies reguladas pelo direito. Assim, afirma que as coordenadas da ao prtica humana,

    que so a necessidade e o trabalho, passam pela posse107

    . Para a doutrina de Hernandez Gil, a

    posse tem que se analisada como instituio jurdica de maior densidade social,

    fundamentado-a no uso e no trabalho dos bens. Dessa forma, portanto, frente funo social,

    a posse deixa de ser simples aliada da propriedade privada e expoente da liberdade individual,

    porque a pessoa, ainda que seja livre, tem outras necessidades108

    .

    Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald109

    afirmam que, para as teorias de Savigny

    e de Ihering, a pessoa era considerada apenas o ser abstrato e neutralizado que ocupava um

    dos plos de uma relao jurdica patrimonial, centralizada na ideia da autonomia da

    vontade. Esse conceito, no entanto, em nada se parece com o que se visualiza atualmente.

    Assim, as teorias sociolgicas possibilitam enxergar a pessoa como ser humano em seu

    contexto, valorizando-se os atributos de sua personalidade e sua dignidade.

    2.3.2 Funo social da posse e o conceito de posse agrria

    A funo social da posse um tema clssico na doutrina. O sistema jurdico

    sofreu grandes abalos no decorrer do sculo XX, especialmente com a crise do positivismo

    jurdico, o qual passava a noo de que o direito imune s transformaes sociais.

    Atualmente, entretanto, no h mais um interesse to evidente em buscar conceitos de

    institutos, mas sim em direcionar esses institutos jurdicos para a coletividade, a fim de

    alcanar a solidariedade e o bem comum110

    .

    Ao analisar a funo social da posse, inevitvel citar, concomitantemente, a

    funo social da propriedade. Sabe-se que o instituto da propriedade, resultado de construo

    jurdica de muitos sculos, recebeu, atualmente, um carter relativo, inspirado no princpio da

    funo social. Esse carter relativo modernamente atribudo propriedade contrape-se ao

    106

    GONALVES, op. cit., p. 38. 107

    ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 108

    Ibidem, p. 80. 109

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009. p. 38. 110

    FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009.

  • 37

    carter que perdurou durante muito tempo de inviolabilidade absoluta, fruto de ideias

    fundadas no individualismo111

    .

    Zavascki112

    , em sua anlise sobre posse e propriedade, afirma que o princpio da

    funo social est mais relacionado ao fenmeno possessrio do que ao direito de

    propriedade. Nesse sentido, Luiz Edson Fachin113

    defende que a funo social mais clara na

    posse do que na propriedade, a qual, mesmo sem uso, se mantm como tal. Assim, a posse,

    diante do ordenamento civil-constitucional, adquire uma estrutura renovada, no sendo mais

    possvel confinar esse instituto dentro de uma proteo propriedade. Nessa direo,

    esclarece Joel Dias Figueira Junior114

    :

    A posse existe no mundo ftico por si s, independentemente da propriedade

    ou outro direito real, merecendo ser tutelada juridicamente pela funo social

    e econmica que representa e no por outro motivo, seja ele qual for.

    Ressalte-se mais uma vez que no se tutela a posse para proteger o domnio

    ou a propriedade; isso mera consequncia. A posse que d vida, razo e

    sentido social ao domnio e a propriedade no mundo ftico, pois, sem ela, a

    existncia desses institutos no ultrapassaria o mundo dos direitos reais e

    eles jamais encontrariam a sua funo, que reside justamente na relao

    possessria.

    Essa nova viso conceitual implica na necessidade de despatrimonializar e

    repersonalizar a posse. Nesse sentido, adverte Ana Rita Vieira de Albuquerque115

    :

    Torna-se evidente que o instituto da posse no pode deixar de receber

    influxo constitucional, adequando s suas regras ordem constitucional

    vigente como forma de cumprir a sua funo de instituto jurdico, fruto do

    fato social em si, verdadeira emanao da personalidade humana e que, por

    isso mesmo, ainda mais comprometido com os prprios fundamentos e

    objetivos do Estado Democrtico e a efetividade do princpio da dignidade

    da pessoa humana.

    Com a constitucionalizao do direito civil, percebe-se que para que seja

    determinada a funo social da posse caber a verificao da concretizao dos valores

    constitucionais e direitos f