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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/666 Álvaro de Campos O QUE É A METAFÍSICA? O QUE É A METAFÍSICA? Na opinião de Fernando Pessoa, expressa no ensaio «Athena», a filosofia — isto é, a metafísica — não é uma ciência, mas uma arte. Não creio que assim seja. Parece-me que Fernando Pessoa confunde o que a arte é com o que a ciência não é. Ora o que não é ciência, nem por isso é necessariamente arte: é simplesmente não-ciência. Pensa Fernando Pessoa, naturalmente que como a metafísica não chega, nem aparentemente pode chegar, a uma conclusão verificável, não é uma ciência. Esquece que o que define uma actividade é o seu fim; e o fim da metafísica é idêntico ao da ciência — conhecer factos, e não ao da arte — substituir factos. As ciências realizam esse fim de conhecer factos — realizam-no umas mais, outras menos— — porque os factos que pretendem conhecer são definidos. A metafísica procura conhecer factos in ou mal definidos. Mas, antes de conhecidos, todos os factos são indefinidos; e toda a ciência, em relação a eles, está no estado da metafísica. Por isso chamarei à metafísica, não uma arte, mas uma ciência virtual, pois que tende para conhecer e ainda não conhece. Se ficará sempre virtual, se o não ficará; se há outro «plano» ou vida em que deixe de ser virtual — são coisas que nem eu nem Fernando Pessoa sabemos, porque verdadeiramente não sabemos nada. Repare Fernando Pessoa que a sociologia é uma ciência tão virtual como a metafísica. A que conclusão, escassa que seja, se chegou já em sociologia? Positivamente, a nenhuma. Um congresso de sociologia, ocupando-se de ao menos definir essa ciência, não o conseguiu. A política moderna é tão compli- cadamente confusa porque o espírito moderno obriga-nos (talvez sem razão) a buscar uma ciência para tudo, e, como aqui não temos uma ciência mas só a preocupação de a ter, cada um toma por absoluta a sociologia relativa, isto é nula, que inventou ou que, mais ou menos estropiadamente, assimilou de outro que também no assunto não sabia nada. Compare Fernando Pessoa as discussões dos escolásticos com, sobretudo, as dos socialistas, comunistas e anarquistas modernos. É o mesmo especulativismo de manicómio, ressalvando que os escolásticos eram subtis, disciplinados no raciocínio e inofensivos, e 1/5 Obra Aberta · 2015-06-08 01:04

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    lvaro de Campos

    O QUE A METAFSICA?

    O QUE A METAFSICA?

    Na opinio de Fernando Pessoa, expressa no ensaio Athena, a filosofia isto , a metafsica no uma cincia, mas uma arte. No creio que assim seja.Parece-me que Fernando Pessoa confunde o que a arte com o que a cincia no. Ora o que no cincia, nem por isso necessariamente arte: simplesmenteno-cincia. Pensa Fernando Pessoa, naturalmente que como a metafsica nochega, nem aparentemente pode chegar, a uma concluso verificvel, no uma cincia. Esquece que o que define uma actividade o seu fim; e o fimda metafsica idntico ao da cincia conhecer factos, e no ao da arte substituir factos. As cincias realizam esse fim de conhecer factos realizam-noumas mais, outras menos porque os factos que pretendem conhecer sodefinidos. A metafsica procura conhecer factos in ou mal definidos. Mas, antesde conhecidos, todos os factos so indefinidos; e toda a cincia, em relao aeles, est no estado da metafsica. Por isso chamarei metafsica, no uma arte,mas uma cincia virtual, pois que tende para conhecer e ainda no conhece. Seficar sempre virtual, se o no ficar; se h outro plano ou vida em que deixede ser virtual so coisas que nem eu nem Fernando Pessoa sabemos, porqueverdadeiramente no sabemos nada.

    Repare Fernando Pessoa que a sociologia uma cincia to virtual comoa metafsica. A que concluso, escassa que seja, se chegou j em sociologia?Positivamente, a nenhuma. Um congresso de sociologia, ocupando-se de aomenos definir essa cincia, no o conseguiu. A poltica moderna to compli-cadamente confusa porque o esprito moderno obriga-nos (talvez sem razo)a buscar uma cincia para tudo, e, como aqui no temos uma cincia mas sa preocupao de a ter, cada um toma por absoluta a sociologia relativa, isto nula, que inventou ou que, mais ou menos estropiadamente, assimilou deoutro que tambm no assunto no sabia nada. Compare Fernando Pessoa asdiscusses dos escolsticos com, sobretudo, as dos socialistas, comunistas eanarquistas modernos. o mesmo especulativismo de manicmio, ressalvandoque os escolsticos eram subtis, disciplinados no raciocnio e inofensivos, e

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    os modernos avanados (como a si-prprios se chamam, como se houvesseavano onde no h cincia) so estpidos, confusos e, dada a pseudo-semi-cultura da poca, incmodos. Discutir quantos anjos podem convenientementefixar-se na ponta de uma agulha, pode ser improfcuo; mas no menos impro-fcuo e com certeza mais engraado que discutir qual ser ou deve ser oregime humanitrio (e porque no anti-humanitrio?) e equitativo (e porque nomais injunto e desigual do que o presente?) em que viver a humanidade futura(e que sabemos ns, que ignoramos toda e qualquer lei sociolgica, que desco-nhecemos portanto, mesmo sob a aco delas, quais so as foras naturais queactualmente nos regem e arrastam e para onde, o que ser a humanidade futura,o que querer pois pode no querer para si o que qualquer de ns quer paraela , ou mesmo se haver humanidade futura, ou um cataclismo destruidorda terra, e da nossa sociologia ainda incompleta, e dos humanitarismos debizantinos que no sabem ler?).

    Repare ainda Fernando Pessoa no facto que alis cita em outra conexo de que a cincia tende para ser matemtica medida que se aperfeioa, parareduzir tudo a frmulas abstractas, precisas, onde mxima a libertao dasequaes pessoais, isto , dos erros de observao e coordenao produzidospela falibilidade dos sentidos e do entendimento do observador (). Ora fr-mulas abstractas justamente o que a metafsica procura. E a matemtica, nosseus nveis superiores, confina com a metafsica, ou, pelo menos, com ideiasmetafsicas. Tudo isto no quer dizer, certo, que a metafsica venha a ser maisque uma cincia virtual, ou que no venha a ser mais. Quer dizer apenas queela efectivamente, no uma arte, mas uma cincia virtual.

    Pasmaro talvez destas consideraes os que leram o meu Ultimatum, noPortugal Futurista (1917). Nesse Ultimatum l-se sobre a filosofia uma opinioque parece, salvo que a precedeu, exactamente a mesma que a de FernandoPessoa. No bem assim. A concluso prtica pode realmente ser idntica, masa concluso terica, que a prtica para uma teoria, diferente.

    A minha teoria, em resumo, era que: 1. se deve substituir a filosofia porfilosofias, isto , mudar de metafsica como de camisa, substituindo metafsicaprocura da verdade a metafsica procura da emoo e do interesse; e que 2. se deve substituir a metafsica pela cincia.

    E fcil de ver como esta teoria, tendo na prtica quase os mesmos resultadosque o pensamento de Fernando Pessoa, diferente dele. No rejeito a metafsica,rejeito as cincias virtuais todas, isto , todas as cincias que no se aproximaramainda do estado, v, matemtico; mas, para no desaproveitar essas cincias

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    virtuais, que, porque existem, representam uma necessidade humana, fao artesdelas, ou, antes proponho que se faa artes delas da metafsica, metafsicasvrias, buscando arranjar sistemas do universo coerentes e engraados, mas semlhes ligar inteno alguma de verdade, exactamente como em arte se descrevee expe uma emoo interessante, sem se considerar se corresponde ou no auma verdade objectiva de qualquer espcie.

    E por esta mesma razo, por que substituo por partes as cincias virtuais nocampo subjectivo, para no desamparar o desejo ou ambio humana que asfaz existir, e exige, como todos os desejos, uma satisfao embora ilusria, quesubstituo as cincias virtuais pelas cincias reais no campo objectivo.

    Ponhamos ainda mais a claro a discordncia entre mim e Fernando Pessoa.Para ele a metafsica essencialmente arte, e a sociologia, de que no fala, naturalmente, cincia. Para mim so, ambas e igualmente, essencialmente cincias,no o sendo porm ainda, nem talvez nunca, mas por uma razo extrnsecae no intrnseca. Proponho pois que se substituam por artes enquanto no soefectivamente cincias, o que pode ser que seja sempre, dando-se ento naprtica, entre a minha teoria e a de Fernando Pessoa, aquela coincidncia deefeitos que no rara entre teorias no s diversas, mas absolutamente opostas.

    Esclareo ainda mais. . . A metafsica pode ser uma actividade cientfica, mastambm pode ser uma actividade artstica. Como actividade cientfica, virtualque seja, procura conhecer; como actividade artstica, procura sentir. O campoda metafsica o abstracto e o absoluto. Ora o abstracto e o absoluto podemser sentidos, e no s pensados, pela simples razo de que tudo pode ser, e, sentido. O abstracto pode ser considerado, ou sentido, como no-concreto,ou como directamente abstracto, isto relativamente ou absolutamente. Aemoo do abstracto como no concreto isto , indefinido a base, oumesmo a essncia, do sentimento religioso, incluindo neste sentimento tanto areligiosidade do Alm, como a religiosidade laica de uma humanidade futura,porque, desde que se forme uma viso de uma humanidade definitiva, ou deum ideal poltico definitivo, isto absoluto, sente-se no concretamente, porquese sente em relao realidade concreta, mas em oposio ao fluxo e refluxoeterno, que a base dela. A emoo do abstracto como abstracto isto ,definido a base ou mesmo a essncia, do sentimento metafsico. O sentimentometafsico e o religioso so directamente opostos, o que se v claramente nainfecundidade metafsica (a falta de grandes originalidades metafsicas) empocas como a nossa, em que a especulao social utpica o fenmenomarcante, e no haveria metafsica alguma se no houvesse deficincia da outra

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    parte do esprito religioso, e aquela liberdade de pensamento que estimulatoda a espcie de especulao; ou como a Idade Mdia, perdida na adaptaoteolgica de metafsicas gregas, e em cuja noite caliginosa s de vez em quandobrilha metafisicamente o astro breve de uma heresia.

    O sentimento religioso inteiramente irracionalizvel, nem pode haverteologia, ou sociologia utpica, seno por engano ou doena. O sentimentometafsico racionalizvel, como todo o sentimento de uma coisa definida,que basta tornar-se inteiramente definida para se tornar matria racional, oucientfica. Proponho eu, simplesmente, que a matria da metafsica, enquantono est inteiramente definida, e portanto em estado de se pensar, e a metafsicase tornar cincia, seja ao menos sentida, e a metafsica seja arte; visto que tudo,bom ou mau, verdadeiro ou falso, tem afinal, porque existe, um direito vital aexistir.

    A minha teoria esttica e social no Ultimatum resume-se nisto: na irracionali-zao das actividades que no so (pelo menos ainda) racionalizveis. Comoa metafsica uma cincia virtual, e a sociologia outra, proponho a irracio-nalizao de ambas isto , a metafsica tornada arte, o que a irracionalizaporque lhe tira a sua finalidade prpria; e a sociologia tornada s a poltica, oque a irracionaliza porque a torna prtica quando ela terica. No proponhoa substituio da metafsica pela religio e da sociologia pelo utopismo social,porque isso seria, no irracionalizar, mas subracionalizar essas actividades,dando-lhes, no uma finalidade diversa, mas um grau inferior da sua prpriafinalidade.

    isto, em resumo, o que defendi no meu Ultimatum. E as teorias, poltica eesttica, inteiramente originais e novas, que proponho nessa proclamao, so,por uma razo lgica, inteiramente irracionais, exactamente como a vida.

    LVARO DE CAMPOS

    (l) Convm que, para preveno dos leigos, se faa uma observao, emboradigressiva, a este respeito. As cincias, ao aproximarem-se do estado mate-mtico, tornam-se mais precisas: porm duvidoso que, por isso, se tornemmais certas. Tanto os puros matemticos como os leigos em matemtica tendema atribuir a essa cincia um carcter de certeza que no necessariamenteexacto. A matemtica uma linguagem perfeita, mais nada. H a considerara relatividade dos prprios princpios matemticos no a simples relativi-dade condicional, conhecida h muito de todos que sabem que para muita

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    aplicao prtica, isto , verdadeiramente cientfica da matemtica, preciso in-troduzir coeficientes de correco; mas uma relatividade mesmo incondicional,sobejamente demonstrada j, por exemplo e para a geometria, pela existnciade geometrias no-euclidianas, to certas na aplicao como a clssica.Convm ainda avisar esses mesmos leigos que a expresso relatividade aqui empregada no seu sentido tradicional e lgico, e no no sentido, alisinfeliz e absurdo, em que se chama da relatividade teoria de Einstein, que simplesmente uma teoria, primeiro restrita, depois generalizada, do movimentorelativo.

    1924

    Textos de Crtica e de Interveno . Fernando Pessoa. Lisboa: tica, 1980: 243.

    1 publ. in Athena, n 2. Lisboa: Nov. 1924.

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