ANAIS XIII Congresso Internacional de Filosoia Medieval de Facundus - um estudo da... · jurídico-metodológica contemporânea, ... e âmbitos da Filosoia Medieval, desde a Alta

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  • ANAIS

    XIII Congresso Internacional de Filosoia Medieval

  • XIII Congresso Internacional de Filosoia Medieval

    Metafsica, Arte e Religio na Idade Mdia

    Departamento de Lnguas

    ORGANIZADORES Jorge Augusto da Silva SANTOS &

    Ricardo da COSTA

    Vitria, Esprito Santo, 01 a 04 de Agosto de 2011Campus de Goiabeiras

  • DEPARTAMENTO DE LNGUAS / Biblioteca SetorialAvenida Fernando Ferrari, 514, CCHN - Goiabeiras

    Vitria/ES - CEP 29075-910Tel.: (27) 4009.2881

    Design por Renan M. Birro Sociedade Brasileira de Filosoia Medieval

    Todos os direitos reservados

    Primeira edio, Janeiro 2013Circulao em formato Ebook

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)C7498a XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval: Metafsica, Arte e Religio na Idade Mdia (11.: 2011 : Vitria, ES).Anais... XIII Congresso Internacional de Filosofia Me-dieval, Vitria, Esprito Santo, Agosto, 1-4, 2011/ Autor: Comisso Organizadora do XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval/ Organizado por Jorge Augusto da Silva Santos e Ricardo da Costa. - Vitria: DLL/UFES, 2013. ISBN: 978-85-61857-13-4Disponvel em www.sbfm.net.br1. Filosofia. 2. Medieval. 3. Idade Mdia. 4. Metafsica. 5. Arte. 6. Religio. I. Comisso Organizadora do XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval. II. Santos, Jorge Augusto da Silva. III. Costa, Ricardo. III. Ttulo.

    CDD: 180 CDU: 1(3)

  • ndice

    Prefcio, xv Jorge Augusto da Silva Santos & Ricardo da Costa

    Textos

    1. Aristteles e a idia do Bem no livro dos Castigos del Rey Sancho IV, 1

    Adailson Jos Rui

    2. Algumas consideraes acerca das inluncias do pensamento pago no De Beata Vita de S. Agostinho, 15

    Adriano Beraldi

    3. Guilherme de Ockham e suas duas formas de Nominalismo, 41

    Anselmo Tadeu Ferreira & Ricardo Pereira Santos Lima

    4. Sobre o objeto da Metafsica: de Heidegger a Toms de Aquino, 57

    Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento & Juliano de Almeida Oliveira

    5. El estudio de los ngeles como un tema ilosico, 87 Carlos A. Casanova &

    Luiz Astorga

  • 6. Ramn Llull y la posibilidad de una discusin racional sobre las creencias religiosas, 105

    Celina A. Lrtora Mendoza

    7. La racionalidad de la fe como condicin de posibilidad del dilogo supra religioso. El Dialogus abelardiano, 121

    Celina A. Lrtora Mendoza & Natalia Jakubecki

    8. Religiosidad en Duns Scoto, 139 Celina A. Lrtora Mendoza &

    Ricardo Villaba

    8. Francisco Surez: su concepcin de lo religioso a partir de Defensio idei, 155

    Celina A. Lrtora Mendoza & Olga Beltramo

    9. O direito natural de Toms de Aquino como categoria jurdico-metodolgica contempornea, 167

    Cludio Pedrosa Nunes

    10. Origem da alma e sua relao com o corpo no De Consolatione Philosophiae de Bocio, 189

    Cleber Duarte Coelho

    11. Resolues de conlitos normativos e para consistncia na Summa aurea de Guilherme de Auxerre, 203

    Guilherme Wyllie

  • 12. A abordagem crtica da existncia divina na perspectiva do Argumento Ontolgico de Anselmo de Canturia, 213

    Jakob Hans Josef Schneider & Mrcio Fernandes da Cruz

    13. A relao alma e corpo na concepo agostiniana: o problema das paixes na conscincia humana, 227

    Joo Bosco Batista

    14. Porque os anjos so msicos, 245 Joo Lupi

    15. A liberdade de escolha em santo Anselmo, 271 Joo Paulo Ponteutor &

    Oscar Bauchwitz

    16. A natureza do Bem em Agostinho: uma leitura do cap-tulo I e III do De Natura Boni, 291

    Joel Gracioso

    17. A crtica de Ludwig Wittgenstein nas Investigaes ilosicas ao paradigma agostiniano de linguagem, 305

    Jorge Augusto da Silva Santos & Filicio Mulinari

    18. Compreenso das analogias no pensamento de Toms de Aquino, 315 Jos Jivaldo Lima

  • 19. A crtica de Ricardo FitzRalph s ordens mendicantes, 329 Luiz Alberto De Boni

    20. A Encarnao do Verbo em Anselmo e Boaventura, 353 Manoel Vasconcellos

    21. El discurso potico y el valor esttico y moral del integumentum en Petrarca, 377

    Marcela Borelli

    22. Filosoia e felicidade: apropriao e superao agostini-ana do eudaimonismo grego-romano, 391

    Marcos Roberto Nunes Costa

    23. Santo Agostinho: relexes sobre o homem e o conheci-mento de si, 407

    Maria Simone Marinho Nogueira & Maria Clia dos Santos

    24. Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores, 423

    Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto

    25. Notas sobre a noo de pessoa no medievo-cristo, 449 Mariana Paolozzi Srvulo da Cunha

  • 26. A presena do estoicismo na doutrina agostiniana das paixes da alma. Sua inluncia no conceito

    de vera religio, 463 Nilo Silva & Paula Oliveira e Silva

    27. O simbolismo do mal: a igura do Drago em Joaquim de Fiore, 485

    Noeli Dutra Rossatto

    28. Sobre o conhecimento em Nicolau de Cusa (1401-1464): um percurso pela natureza dinmica e pelos sentidos at o

    intelecto, 501 Oscar Federico Bauchwitz &

    Osvaldo Ferreira de Andrade Filho

    29. Arte de la perspectiva y metafsica en De visione Dei de Nicols de Cusa, 533

    Paula Pico Estrada

    30. Joo Buridano: nominalismo e universais, 549 Pedro Leite Junior

    31. A imagem poltica da monarquia aragonesa na novela de cavalaria Curial e Guelfa (sc. XV), 565

    Ricardo da Costa & Francis Rasseli dos Santos

  • 32. O verdadeiro amor nasce de um corao puro, de uma conscincia boa e de uma f sincera, e ama o bem do

    prximo como se fosse seu: a mstica de So Bernardo de Claraval, 577

    Ricardo da Costa

    33. O nmero na ordem csmica em santo Agostinho, 595 Ricardo Evangelista Brando & Marcos Roberto Nunes Costa

    34. A Liberdade em Anselmo de Canturia, 615 Roberto Hofmeister Pich &

    Fernando Rodrigues Montes dOca

    35. Os corpos podem agir na mente?: a resposta de Pedro Joo Olivi a partir da Quaestio 72, 641

    Roberto Hofmeister Pich & Mrcio Paulo Cenci

    36. Averris e a questo do im (tlos) no Comentrio sobre a Repblica: felicidade e perfeies humanas, 667

    Rosalie Helena de Souza Pereira

    37. A Prudncia no Defensor pacis de Marslio de Pdua, 683

    Srgio Ricardo Streling

    38. Sobre o princpio da unidade e a teoria das quatro causas na prima dictio do Defensor da paz, 705

    Srgio Ricardo Streling & Lucas Duarte Silva

  • 39. Nicolau de Cusa e a Correspondncia com os monges de Tegernsee, 719

    Maria Simone Marinho Nogueira

    40. Smbolo, alegora, heterogeneidad: manifestaciones de una verdad difusa, 755

    Susana B. Violante

    41. O tempo nas ilosoias medieval e ontempornea: tempo psicolgico versus durao, 769

    Vincius de Fontes & Elena Moraes Garcia

    42. Joo Duns Scot e a Prova Metafsica da Existncia de Deus, 799

    Moiss Romanazzi Trres

  • MS Hunter 374, fol. 4r (c.1386)

    O XIII Congresso Internacional de Filosoia Medieval da SBFM ocorreu na Universidade Federal do Esprito Santo entre os dias 01 a 04 de 2011 e foi coordenado pelos Profs. Jorge Augusto da Silva Santos e Ricardo da Costa. Reunimos quarenta trabalhos que versaram sobre diferentes temas e mbitos da Filosoia Medieval, desde a Alta Idade Mdia at o princpio da Modernidade.

    Prefcio

  • Prefcioxiv

    A Filosoia Medieval, como, de resto, a Idade Mdia, ainda causa perplexidade nos meios acadmicos brasileiros. Estranheza, indiferena, apatia, ou mesmo hostilidade. De fato, os pesquisadores que se debruam sobre as diferentes correntes de pensamento que surgiram no medievo enfrentam ainda esse ambiente cultural que se pergunta, regularmente, a utilidade de tais investigaes ilosicas.

    A Filosoia Medieval, ou, para usar uma expresso de um livro de Luiz Antnio de Boni, as ilosoias medievais, so os pilares do pensamento Ocidental que gerou a Modernidade e, indiretamente, o pensamento contemporneo. Esquec-lo, ou reneg-lo, signiica, na prtica, abandonar nossas razes mentais e lgicas.

    O XIII Congresso, nesse sentido, simbolizou as distintas correntes ilosicas, algumas por vezes herticas, ou mesmo hostis tradio ortodoxa crist. Nosso pas tem uma preferncia - notada na escolha temtica dos trabalhos - pelos pensadores que fundaram o pensamento moderno (Ockham, Duns Scot, Ramon Llull). Alm disso, foi uma surpresa constatar a presena de dilogo de ilsofos medievais com ilsofos contemporneos feito por colegas, por exemplo, santo Toms de Aquino e Heidegger ou Heidegger e Agostinho.

    Como j foi bem deinido pelo ilsofo alemo Kurt Flash, a prpria palavra medieval uma mera conveno que imprecisamente delimita um campo de trabalho. Nesse sentido, os autores mais tradicionais (como santo Anselmo, ou o prprio Toms de Aquino) tem pouca ou nenhuma relao com o mestre Eckhart e Marslio de Pdua. Nosso tradicionalismo confunde mais do que auxilia ao resolver ou diluir as problemticas questes relacionadas ao termo Idade Mdia: ainda no conseguimos nos desvencilhar da sombra que paira no imaginrio de muitos colegas, e talvez de alguns companheiros de investigao medievstica.

  • Ricardo da Costaxv

    A iluminura que representa Bocio ensinando a seus alunos oriunda de uma cpia de sua mais famosa obra, A consolao da Filosoia, pode ser usada como uma analogia dos paradoxos vividos pelos historiadores da Filosoia Medieval no Brasil: ensinamos, ensinamos e ensinamos, porm, aprisionados em uma cela imaginria, como o ilosofo esteve em uma cela real, quando redigiu seu mais importante e perene texto que tem como pano de fundo a Filosoia como uma atitude consolatria face aos desvairios do mundo.

    Seja como for, a presena em terras capixabas de um Congresso Internacional de Filosoia Medieval - mesmo com todos os silncios da comunidade acadmica local - proporcionou um ar mais cosmopolita aos debates universitrios da UFES. Tivemos o apoio do Programa de Ps-Graduao em Filosoia desta casa, alm do Centro de Cincias Humanas e Naturais, que nos forneceram o espao e as condies para execuo do evento.

    Oxal a SBFM prossiga com seus encontros bianuais: o prximo ser realizado na cidade de Tucumn na Argentina, na Universidad del Norte Santo Toms de Aquino.

    Vitria, 01 de Setembro de 2011

    Ricardo da Costa

  • Maria Cristina C. L. Pereira &

    Fabiana P. Favoreto1

    O termo Beatus refere-se a uma srie de manuscritos cujo prottipo foi elaborado por um monge annimo domosteirodeibana (epor issoconhecidocomoBeato, ou Beatus, dando nome s obras2), no sculo VIII, e, posteriormente, copiado inmeras vezes. De acordo com um levantamento de 1985, o total de Beatus cuja existncia pode se comprovar chega a trinta e quatro manuscritos, datados desdeoinaldosculoIXaoXIII,dentreosquaisvinteetrsencontram-se conservados e os restantes, perdidos3.

    O Beatus de Facundus, assim conhecido pelo nome de

    1 Profa. Dra. do Depto. De Histria da USP; Graduanda de Artes Visuais da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES) e Bolsista de Iniciao Cientica UFES.

    2 Neste texto, iremos utilizar o termo Beatus para nos referirmos ao manuscrito, e Beato, a seu compilador.

    3 ESCAR, Hiplito Los manuscritos: historia ilustrada del libro espaol. Madrid: Fundacin Germn Snchez Ruiprez, 1996. p. 102.

    Beatus de Facundus: um estudo da

    ornamentalidade

    das cores

  • Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores4

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    seu escriba, tambm designado por Beatus de Fernando I e Sancha,emrefernciaaocasalrealdeeoqueoencomendouem 1047. Como todos os Beatus, trata-se de uma obra compsita, que recorre a citaes de pensadores considerados autoridades sobre o tema do Apocalipse, como Isidoro de Sevilha,TicnioePrimasio,resultandoemalgoparecidocomo que depois veio a chamar-se de Catena urea4. Os Beatus englobam essencialmente o livro do Apocalipse de So Joo comcomentrios,almdeexcertosecomentriosdoivrodeDaniel.

    Compreende-se a importncia que tinha o Apocalipse no contextodaPennsulaIbricaapartirdasfonteseclesisticasnormativas: o IV Conclio de Toledo, realizado em 633, prescrevia no Cnone XVII sua leitura obrigatria desde aPscoaatPentecosteseoutroscnonesconciliaresdapocavisigoda, que ainda estavam em plena vigncia na Alta Idade Mdia, tambm incluam a leitura do Apocalipse na liturgia hispnica.5 Mas importante lembrar que j desde o sculo III eram frequentes os comentrios ao Apocalipse, como os de VictorinodePettaueosdeTicnio,entreoutrosAimportnciacrescente do livro do Apocalipse, ao longo da Idade Mdia, apresenta-se como um dos motivos para a feitura dos Beatus.

    Alm disso, cabe sublinhar que, durante toda a obra, o Beato insiste no tema da pregao, revelando a importncia da obra como material teolgico de apoio liturgia. Mas havia outro

    4 A Catena urea uma compilao de comentrios sobre os Evangelhos realiadosporPadresdaIgreja(Bispos,doutores,telogos,apologetase presbteros dos primeiros sculos do cristianismo), em modo de exposio ou comentrio, como a Catena urea de So Toms de Aquino,dosculoXIII

    5 ESCAR,Hiplito,opcit,p11

  • Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto4

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    fatorqueinluenciaranarealiaodetalobraomilenarismoEm sentido estrito, tratava-se de uma doutrina originada a partir de uma interpretao literal do captulo vinte do Apocalipse, versculosumaseis,ondeseairmavaavindadeumperodode mil anos em que reinaria a paz e que logo depois o mal seria libertadoporumbrevetempo,antesdoimdostemposBeatoairmavaqueadataespecicaparaoimdomundoeraoano800, tema explorado no captulo IV dos Beatus.6

    oentanto,aidiadequeoimdomundoestariadiretamenteligadoproduodascpiasdoBeatusdeibanaquestionadapor muitos autores, como Jean-Claude Bonne, uma vez que todas as cpias de que se tem notcia so posteriores ao ano 800, chegandoatosculoXIIIDessemodo,outroelementopassaa destacar-se como impulsionador das cpias, principalmente em se tratando do Beatus de Fernando I e Sancha: a beleza esttica e a riqueza das imagens.

    A feitura minuciosa de elementos como os entrelaados, o uso abundante de ouro, como em nenhum outro Beatus, e o brilho das cores tornaram esta obra digna de um encargo real luxo do cdice mostrase como relexo da riqueado reinado de Fernando I (1037-1065) que reuniu boa parte dos reinos cristos peninsulares e pontuou o comeo de uma recuperao e desenvolvimento destes territrios aps as guerras de resistncia ao domnio muulmano entre o sculo XeiniciodosculoXIEstarenovaosigniicounoapenasuma recuperao econmica, mas o estmulo as empresas artsticas,aumentandosigniicativamenteonmerodedoaesque,posteriormente,viriama formaro tesouro realdeeo

    6 WIIAS,JohnetalBeato de Fernando I y Sancha. Barcelona: M. Moleiro, 2006, p. 22.

  • Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores4

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    ernando I buscou tornar a cidade deeo umdosmaiorescentros de mecenato artstico por onde passariam os peregrinos a caminho do Santurio de Santiago de Compostela. No apenas a cidade, mas as obras que nela se ostentavam transformavam-se num smbolo de autoridade.

    Fernando I empenhava-se em fazer crescer seu reino, tanto territorial quanto economicamente. Seu comprometimento comeoeratointensoqueescolheuestacidadeparaabrigarfuturamenteseucorpoapssuamorte,emSanIsidorodeenEle poderia ter elegido o monastrio de Oa, devido sua origem(avarra),ouomonastriodeSoPedrodeArlana,por ter herdado de seu pai o condado de Castela, mas escolheu eo,emhonrasuaCoroaoentanto,apesarde todoseucomprometimentoeesforoemtornareoumreinoprspero,foi recebido pelo povo leons com certa hostilidade, como um intruso que havia matado seu cunhado e rei legtimo, Bermudo III, irmo de Sancha. Desse modo, a presena de Sancha foi de grande importncia, como mediadora entre o rei navarro e o povodeeo

    Estasituaodeconsolidarsuaposiocomoreideeodurou at por volta da poca em que encomendou o Beatus de Facundus, um smbolo de poder e de riqueza. Segundo JoaqunYarauaces,nenhummonarcadacoroaasturianaouda leonina esteve interessado especialmente na encomenda de manuscritos mais ou menos luxuosos, exceto por Alfonso III, reideeoem,queencomendou,porexemplo,oDiurnal,um saltrio de uso particular.7 possvel que Fernando I, assim como Alfonso III, tenha querido constituir uma biblioteca. Mas

    7 YARZAUACES,JoaquinailustracindelBeatodeernandoIySanchaInWIIASetal,,p,p

  • Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto4

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    o Beatus era um cdice espetacular, que havia quarenta anos no era copiado. (...) sin duda sera una obra de prestigio que enlazaba con el deseo de ofrecer una imagen leonesa a sus sbditos y a su iglesia8 A data de encomenda tambm no era casual. Alfonso III encomendou a Cruz da Vitria em 908 para do-la igreja de San Salvador, em Oviedo, exatamente cem anos depois de Alfonso II ter doado a Cruz dos anjos como relquia mesma igreja em Oviedo. E em 1047 completavam-sedeanosqueernandoIforacoroadonacatedraldeeo,aps a morte de seu cunhado em campo de batalha.

    Portanto,oencargodoBeatuspelocasalrealcarregavaemsiumaimportnciamaisdoqueartsticaereligiosa,reairmavaseupoder enquanto reisdeeoEm raodedemonstrar ariqueza dos comitentes, o cdice deveria ser igualmente rico, oqueinluiunocarterornamentaldaobraUmelementoquerevelaessainlunciaapresenadolabirintonoflio,quecarregaadedicatriaao reisernando I eSanchadeeoeCastela(verigura1)

    No que tange ao estudo que ora propomos, dois fatores tornaram este cdice um excelente objeto para relexo aencomenda real e o fato de se tratar do texto do Apocalipse. importante sublinhar que no perodo compreendido entre os sculosXeXI, esteBeatus foionico realiadoporumencargo real, e no monstico, o que denota sua particularidade e o grande investimento econmico na feitura, que, como j dissemos, contribuiu para a riqueza ornamental deste manuscrito. Alm disso, o Apocalipse, por ser o livro mais imagtico das Escrituras,justiicaograndenmerodeminiaturas,quetraamumanarraogricaparalelaedialogantecomotextoAssim,

    8 Ibidem, p. 77.

  • Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores4

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    estes dois fatores tornaram as 114 miniaturas deste Beatus uma rica fonte de estudo sobre o funcionamento da ornamentao.

    A ornamentao e o ornamental

    comum encontrarmos referncias s imagens medievais como compondo uma Bblia dos iletrados. No entanto, essa expresso, apropriada de uma carta do papa Gregrio Magno, escrita em um contexto preciso, em que havia um questionamento do uso de imagens por alguns religiosos, alm de no dar conta de todo o pensamento de seu autor, tampouco consegue abarcar a grande complexidade e o alto grau de funcionalidade das imagens medievais9.

    Ademais, se limitarmos a funcionalidade imagtica no medievo s trs funes bsicas extradas a partir do pensamento de Gregrio Magno ensinar, recordar e comover10 em que categoria estaria a produo artstica sem intencionalidade didtica, desprovida de explcitos valores morais e de carter narrativo? uma generalizao que no comporta a dimenso esttica da produo medieval, criando uma hierarquia que pe margem, por exemplo, a ornamentao, to importante para aquelas manifestaes.

    Na histria da arte tradicional, a ornamentao medieval,

    9 Ver a esse respeito, entre outros, BASCHET, Jrme. Introduo: a imagem-objeto, in: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jrme. Limage. Fonctions et usages des images dans lOccident mdival. Pariseoparddr,1,p

    10 PEREIRA, aria Cristina C Uma arqueologia da histria dasimagens. In: Seminrio: A importncia da teoria para a produo artsticaecultural,,VitriaI,William(org)A importncia da teoria para a produo artstica e culturalVitria,Sitehttpwwwtempodecriticacomlink1htm

  • Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto4

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    apesar de no ser ignorada, mantm-se presa a uma concepo unicamente decorativa, alm de ser pensada como subordinada ao objeto que orna e, por isso, tratada como gnero inferior, em queosvaloresornamentaispassamporextrnsecosesuprluos composio.

    Com o intento de evidenciar a importncia da ornamentao como elemento fundamental e no acessrio composio, este estudo aborda especiicamente a funo ornamentalnas miniaturas do Beatus de Facundus. Assim, torna-se importante frisar que o ornamento, bem como a ornamentao, aqui so pensados em termos de motivos, ou seja, temas e ideias recorrentes que estabelecem um padro; unidades essencialmente formais e eventualmente repertoriveis dentro de uma tradio artstica, ou transferveis de uma a outra. Estas unidades so, geralmente, formadas por repeties, variaes ou combinaes diversas, de composies que se inscrevem geralmente em zonas muito determinadas de objetos, de imagens ou de monumentos (molduras, partituras, superfcies de preenchimento, etc.).

    No entanto, o ornamental foge a este domnio de motivos, determinando-se como modus operandi, ou seja, o modo de funcionamento da ornamentao. De acordo com as elaboraes do terico da arte e medievalista francs Jean-Claude Bonne, as quaisnorteiamesteestudo,podeseairmarqueoornamentalno possui valor intrnseco e antes de tudo um modo de tratamento esttico da imagem. Sua primeira funo a de celebrao, seja qual for a capacidade do ornamento de cumprir outrasfunesPorm,quandoarticuladoaumsuporte,adquirevalor e exerce outras funes decorativa, iconogrica,simblica, expressiva, sintxica, emblemtica, ritual, mgica, etc. Assim, o ornamento difunde-se e adapta-se s ordens e s

  • Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores430

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    funes a que lhe pedido celebrar (o que melhor descrito pelo termo ornamental).

    Outro conceito cunhado por Bonne de que fazemos grande uso o de ornamentalidade, entendida como modo e qualidade (sendo o ornamental mais da ordem da funo) Ultrapassase, assim, uma abordagem tradicional do ornamento tanto iconogrica,emqueeletratadoapenascomosigno,quantoestilstica, em que ele visto s como motivo que deve ser classiicadosegundoiliaesornamentalcoloca,portanto,oseu peso esttico a servio de um sentido, que pode permanecer potencial, pois um motivo de ornamentao no constitui em si um signo ou smbolo motivado, nem mesmo compe a estrutura funcional da imagem. No entanto, no interior de uma tradio, ao ser combinado com outros, e ao exprimirem assim as necessidades de emblematizar e de celebrar uma ordem identiicvelnumadeterminadasociedade,oornamentotornase fundamentado. Dentro dessa tradio artstica, o ornamento vem a ser um instrumento que demonstra a fecundidade desta tradio, pela riqueza de variaes formais e de combinaes aos quais os motivos e temas se emprestam. Devido ao fato deste motivo no possuir valor intrnseco, ele pode trocar de valor e posio mesmo sem mudar de forma, depende da intencionalidade e do dilogo que estabelece com a composio da imagem.

    Nota-se que em poucos casos um motivo de ornamentao era transposto para outros espaos-tempo e culturas junto de valores que adquiriram na cultura de origem, pois estes valores, fossem eles simblicos, igurativos, ou rituais, por exemplo,relacionamsecomocontextohistricoculturalespecicoemque tal motivo de ornamentao foi utilizado anteriormente. mais comum encontrar a transposio apenas formal de

  • Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto431

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    elementos ornamentais, que passam a adquirir outros valores e exercer outras funes de acordo com a intencionalidade e o contexto em que foi inserido. Mas possvel tambm que motivos ornamentais fossem transpostos no apenas em sua forma, mas tambm carregando valores simblicos, como o casodacorprpuranoflio (igura),queexaminaremosmais adiante.

    Apesar de os Beatus serem cpias elaboradas a partir do prottipoelaboradopeloBeatodeibana,nosesabequalo referencial especico de cada um dos manuscritos, poiscada obra foi originria de outra cpia anterior ogo, cadamanuscrito possui o seu prprio conjunto de imagens por vees comalgumas similaridades iconogricas e estilsticasNo Beatus de Facundus, o miniaturista buscou demonstrar com excelncia a complexidade das imagens, interpretando-as e utilizando outros motivos ornamentais que passam a ser motivados dentro desta estrutura. Segundo Jean-Claude Bonne, o miniaturista no se passa por criador, mas um intrprete desta tradio11.

    Portanto, na arte medieval, o ornamental no se redusimplesmente ao decorativo, ele pode atuar tanto num segundo plano,porexemplo,quandoovalorsimblicoouiconogrico mais forte que o ornamental, bem como ocupando um lugar suicientemente central na arte, constituindo a prpriaobra e participando ativamente do discurso da imagem, ou ainda adquirindo funes diversas, dependendo do contexto. Segundo Jean-Claude Bonne, o ornamental possui um carter

    11 BE, JeanClaude De lornemental dans lartmdival (VII XIIsicle)emodleinsulaireInBASCHET,JrmeetSCHITT,Jean-Claude. (org.), 1996, p. 207-247, p. 217.

  • Beatus de Facundus: um estudo da ornamentalidade das cores432

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    de onipresena, de transversalidade, ou seja, a possibilidade de atravessargrauseformasdiversas,luindoentrearepresentaoeaabstrao,poiscombinaemodulaosmotivosigurativosou simblicos como se fossem elementos puramente formais e quase sem semntica, assim como o faz com elementos geomtricos (abstratos)12. Desse modo, o ornamental formal quando exclui a ideia de signo, como podemos perceber nos entrelaosdoflio(igura1),emqueoornamental,apesardeadquirir funo estrutural ao organizar os nomes dos doadores, puramente formal Pode tambm ter carter igurativo ouabstrato, mesmo quando no se reduz ao signo ou ao smbolo, comonoflio(igura),emqueasestrelasquecompema faixa que separa o espao celeste do terrestre so elementos igurativos que no adquirem valor simblico Portanto, aornamentalidade funciona em tenso com a representao, muitas vezes se articula com a representao e participa da estruturao interna, sendo determinada e semantizada por ela.

    12 BONNE, Jean-Claude. op. cit., p. 209.

  • Maria Cristina C. L. Pereira & Fabiana P. Favoreto433

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    igura1lio,abirintoedetalhedadedicatria

    A ornamentalidade das cores no Beatus de Facundus

    Ao todo, o Beatus de Facundus possui cento e quatorze miniaturas, muitas ocupando a pgina inteira, e outras, duas pginas. A maioria tem o fundo da imagem dividido em bandas horizontais de cores intensas e de grande luminosidade. Nota-se que a cor um elemento marcante nas miniaturas deste Beatus. Segundo Hiplito Escolar, nos manuscritos morabes, como o caso deste Beatus, [...] El color tiene un gran protagonismo:

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    4

    llenalosfondos,avecesdivididosenfranjas,animalostrajesylosrostrosyreinaenlosmotivosdecorativos13

    A importncia da cor neste manuscrito, que pode ser inferida atravs de sua simples visualizao, pode ser considerada como um smbolo de status, de posio e prestgio de seus comitentes e detentores. O ornamental confere valor ao objeto e s imagens contidas neste objeto, mas tambm aos seus comitentes e detentores,nocaso,ernandoIeSanchaPelofatodesetratarde um encargo real, este manuscrito possui feitura minuciosa de elementos ornamentais, como os entrelaados, o abundante uso de cores, vivas e intensas, alm do ouro - elementos que enriqueciam o manuscrito, e tornavam-no digno do prestgio dos monarcas.

    O uso das cores particularmente marcante nas faixas de fundo onde elas no s se destacam por sua diversidade, o que enobrece ainda mais as imagens, mas tambm por desempenharem funes que vo alm da esttica: por exemplo, na estruturao das imagens.

    preciso atentar para as qualidades e propriedades das cores que se combinam nas imagens, como a saturao, o contraste e a energia, alm de outros fatores, como a quantidade de cores, sua localiao, seu valor igurativo, simblico, sintxico,etc., caractersticas que interferem no funcionamento e na signiicaodacorenquantoelementoornamental

    Nesse sentido, as faixas de fundo, caracterizadas por sua cor saturada, fazem uso de suas propriedades plsticas para participarem da composio da imagem, pois estas cores as tornam mais planas e acentuam o contraste com a textura linear

    13 ESCAR, Hiplito Los manuscritos: historia ilustrada del libro espaol. Madrid: Fundacin Germn Snchez Ruiprez, 1996. p. 106.

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    e cromticados elementosigurativos, comonaiguraAslinhas coloridas presentes nas vestes dos personagens destacam o rigor das pregas e membros, como tambm acentuam de modo rtmico as superfcies, numa quebra de continuidade.

    Alm de participarem estruturalmente da composio das imagens, as cores podem tambm possuir uma carga simblica lembrandoquesuasimbologianoixa,pelocontrrio,mutveleporestemotivo,deacordocomPastoureau,possveltrilhar uma historia das cores, de sua construo social. Como dito anteriormente, o ornamento no possui valor intrnseco seno quando associado a um suporte, assim como as cores, em seu carter ornamental, no devem ser pensadas fora de uma associao a um conjunto Segundo Pastoureau []Uncolor jamsviene solonoencuentra su rande ser,noadquiere su sentido hasta que no se lo asocia se lo opone a uno o ms colores diferentes.14 Torna-se necessrio um conjunto de elementos para que todas as funes que a cor possui em potencialidade possam ser exercidas em plenitude.

    Assim, para que o ornamental participe da construo da imagem,adquiravriosgrause formas, comoaigurativa, necessrio atentar-se para trs condies principais citadas por Jean-Claude Bonne.15 A primeira condio d-se no respeito da ornamentao pelas caractersticas funcionais e plsticas da obra que orna, pois quando um ornamento articulado a um suporte, este j possui, de antemo, uma funcionalidade

    14 PASTUREAU, ichel Una historia simblica de la Edad Media occidentalBuenosAiresKat,,p1

    15 BONNE, Jean-Claude. Penser en couleurs propos dune imageapocalyptique du X sicle In HSEESCH, Andrea von etSCHMITT, Jean-Claude (org). Die Methodik der Bildintrepretation. Gttingen: Wallstein, 2002, v.2, p. 355-379, p. 363.

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    prpria, qual destinado, bem como propriedades plsticas. No Beatus de Facundus, por se tratar de um manuscrito, ele possui em sua plasticidade a planeza das pginas, diferente do volumedeumaescultura,porexemploPodemosperceberessarelao de adequao nas faixas de fundo que compem grande parte das miniaturas aqui analisadas, pois suas cores saturadas e sem sombra no tendem a se expandir para alm do espao dapginaElasestoemacordoeintensiicamaplanaridadedoflio(veriguraou),bemcomoamoldura,quecontribuinadelimitao da imagem dentro a pgina. importante dizer que aplanaridadedapginanosigniicaaplanaridadedaimagem,pois esta pode possuir diversos planos que diferenciam a posiodecadaconjuntodeiguraseofundoEmrelaofuncionalidade do objeto que orna, a ornamentao enobrece, enriquece esteticamente no apenas a imagem, mas tambm o objeto-suporte, como a presena de cores vibrantes nas faixas de fundo e, como na imagem 4 os entrelaados ornamentais em ouro que conferem grande valor todo o manuscrito, principalmente por se tratar da primeira miniatura deste Beatus.

    A segunda condio trata-se da concordncia ou interferncia dasmarcasgricasecromticasornamentaiscomaconstruoigurativadaimageme,porconseguinte,comsuaidentiicaoiconogrica as a ornamentalidade pode assumir essaidentiicaodemodoeventual,ouseja,ascores,ostraoseos motivos ornamentais no podem se reduzir simplesmente ao signo igurativo Dependendo da imagem, os motivosmostram-se primeiramente enquanto elementos ornamentais, pois a priori qualiicam e depois descrevem, principalmenteas cores das faixas de fundo das miniaturas no Beatus, que so vibrantes e sem contornos.

    A terceira e ltima condio relaciona-se ao modo de

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    composio da imagem, algo que comentamos anteriormente e que nomeado por Jean-Claude Bonne como all-over, ou seja, a ornamentalidade investe-se por todo o espao ou em qualquer das partes da imagem, em estruturas rtmicas, lineares ou cromticas que envolvam tambm as iguras do fundoDesse modo, a ornamentalidade tende a desindividualizar os elementos,logo,entraemtensocomaqualidadedeiguraoque tende ao movimento contrrio, de individualizao das iguras A ornamentao cria dentro da imagem graus dehierarquia, pois uma de suas funes dar valor s imagens e, como a ornamentalidade onipresente, atravessa todos os graus da imagem, cria diferentes patamares de valores dentro da composio.

    o flio (igura ), as faixas de fundo auxiliam nodiscurso narrativo da imagem enquanto suas cores participam de um dilogo com as cores dos outros elementos, imprimindo marcas, destacando mensagens, contedos e criando hierarquias. O destaque maior recai sobre o cordeiro, no apenas por sua posio central, no topo do Monte Sio, mas tambm pelo contraste entre a faixa mais escura, a azul marinho, e a cor mais clara da imagem, a branca do cordeiro. A partir do ornamental, criam-se planos de importncia de elementos. Nesta imagem percebe-se como a verticalidade da imagem do Monte Sio apontaparaosquatroEvangelistasantropomorfos,intensiicadapela cruz sustentada pelo cordeiro e pela ornamentao na base dos quatro Evangelistas.

    Esta imagem, do Cordeiro sobre o Monte Sio, fornece uma clara diferenciao entre o ornamento e o ornamental, a qual se localiza na qualidade funcional da ornamentalidade. Apresenta-se como motivo o tema estrela e como elemento ornamental as estrelasqueselocaliamespeciicamentenafaixaquesepara

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    o espao celeste do terrestre. O motivo ornamental no possui um valor por si s, mas quando articulado sobre esta faixa, intensiicaaseparaodoselementos,auxiliandonodiscursoda imagem. Estas mesmas estrelas poderiam localizar-se dentrodoespaoceleste,comonaigura(fliov),masa sua localizao vem a ornamentar e auxiliar estruturalmente o discurso proposto de antemo pela presena da faixa j em destaque pelo contraste com as cores mais escuras que a circundamAsestrelas,apesardeseremumelementoigurativo,nodesempenham,nestaimagem,umpapeliconogricoogo,notaseque

    (...) les valeurs ornementales constituent une dimension interne et dynamique de lart (mdival) qui, sans ncessairementexclurelesens,nestplusfondamentalementdelordredusens(mieuxvaudraitsansdouteparlerdesigniication)unedimensionesthtiquedontilsagitdeprciserlesfonctionsqui ne sont pas seulement dcoratives (...)16

    16 (...) os valores ornamentais constituem uma dimenso interna e dinmica da arte (medieval) que, sem necessariamente excluir o sentido, no mais fundamentalmente da ordem do sentido (sem dvida, seria melhor falar de signiicao) uma dimenso esttica cujas funes,trata-se de esclarecer, no so somente decorativas. BONNE, Jean-Claude. 1996, op. cit., p. 214, traduo nossa.

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    Figura 2. Flio 205, A viso do Cordeiro sobre o Monte Sio17.

    Vale lembrar que a cor, enquanto ornamento, no da ordem dos signos ou smbolos, mas pode exercer essa funcionalidade, como a cor branca do cordeiro que alm de destac-lo, remete pureza. Mas a cor pode ser mutvel em seus simbolismos no apenas emcarter temporal e geogrico, como tambm

    17 EstaimagemreferenteaolivrodoApocalipseXIV,1

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    de acordo com o prprio contexto da imagem em que se insere, a partir das relaes que se estabelecem no interior da composio, seja com elementos representacionais, abstratos ou com outras cores.

    Una de las mayores virtudes del Beato de Fernando I y Sancha reside en el uso del color. Se ha querido buscar un simbolismoensudistribucinyempleo,peronorespondeaninguna realidad, igual que tampoco pretende recurrir a uno u otro tono cuando quiere conseguir efectos pticos de relieve oprofundidad()18

    Ao atentar para a funcionalidade ornamental, faz-se necessrio no inferir generalizaes quanto s cores, pois comum na cultura ocidental contempornea atribuir signiicadosespecicosefechadosparacadacor,sematerseaocontextoemqueelaempregadaPorexemplo,demodogeral, j desde a Alta Idade Mdia tem-se a ideia de que o azul sinnimo de luz, refere-se ao cu, e logo ao sagrado. Mas sepensarmossomenteporessembito,nofliov(igura3), seria contraditrio termos o cu celeste, azul, onde habita o cordeiro, e existir ao mesmo tempo uma besta de cor azul. Portanto, as cores nas imagens podem se apresentar comodesprovidas de justiicao iconogrica evidente, seja elaigurativaousimblica,sendoessencialextrapolarafunodesigniicado,oquejustiicavriasescolhaspelosiluminadores19 do Beatus de Facundus que no se explicam pela simbologia ou

    18 YARZAUACES,opcit,p19 Yarauacesopcitp1,sustentaaideiadequeasilustraesforam

    trabalhadas por dois miniaturistas diferentes. O trabalho do primeiro ocupa os flios 6 a 17 e o segundo ocupa o restante das miniaturas do cdice.

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    pelaiconograiaNo existe nada intrinsecamente sagrado dentro das cores,

    na sua associao siguras e s faixas de fundoque elaspodem adquirir esse alcance no cdice que elas ornam. As funes estruturantes e efeitos estticos das cores casam-se estreitamente.

    Figura 3. Flio 230v, o cordeiro vence a besta, o drago e o falso profeta20

    20 EstaimagemrefereseaolivrodoApocalipseXVII,11

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    No que tange ao contedo simblico da ornamentao, retomamos aqui a questo da transferncia da ornamentao. o flio (igura ), notase esse deslocamento no apenasformal, mas de valor no que diz respeito ao uso da cor prpura, smbolo de carter imperial, pois segundo a tradio romana, esta cor corresponderia ao imperador celeste ou terrestre. Os imperadores Otonianos recuperaram essa tradio e o rei de eo, tambm, provavelmente por seu intermdio uso daprpura ainda enfatizado por se tratar da primeira miniatura do Beatus de Facundus.

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    (a) (b)Figura 4. Flio 6, letra Alfa (a) e detalhe do entrelao em ouro (b).

    oflio11v(igura),temseumclaroexemplodarelaoentre a ornamentao, os valores simblicos e composio estrutural da imagem. A miniatura refere-se ao Apocalipse IV, 1-6:

    1 Depois disso, tive uma viso: vi uma porta aberta no cu, e a voz que falara comigo, como uma trombeta, dizia: Sobe aquiemostrarteeioqueestparaacontecerdepoisdisso2 Imediatamente, fui arrebatado em esprito; no cu havia um trono, e nesse trono estava sentado um Ser. 3 E quem estava assentado assemelhava-se pelo aspecto a uma pedra jaspe e sardnica Um halo, semelhante esmeralda, nimbava otrono. 4 Ao redor havia vinte e quatro tronos, e neles, sentados, vinte e quatro Ancios vestidos de vestes brancas com coroas de ouro na cabea. 5 Do trono saam relmpagos, vozes e troves. Diante do trono ardiam sete tochas de fogo, que so os Sete Espritos de Deus. 6 Havia ainda diante do trono um mar lmpido como cristal. Diante do trono e ao redor, quatro Animais vivos cheios de olhos na frente e atrs.21

    21 BBIA Bblia Sagrada Revisada por rei Joo Jos Pedreira de

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    A organizao espacial da imagem segue, como podemos ver, as indicaes textuais, localizando o trono ao centro e ao redor deste os 24 ancios. Em geral, algumas cores e elementos formaissoevocadospelotextoeaornamentaosejustiicapelo valor mimtico, como as sete tochas de fogo, os raios e as ondulaes que indicam o mar. H duas instncias com funcionalidades e caractersticas formais prprias a serem consideradas, a ornamentao e o texto. Neste flio, apesar da descrio das vestes dos ancios como sendo de cor branca, smbolo de pureza, a imagem mostra-as diferentemente, o que refora a crtica viso tradicional de que o ornamento est subordinado ao objeto que ornamenta, ou ao texto do qual se origina. No seguir a descrio do texto do Apocalipse colocar o valor esttico e estrutural do ornamental em primeiro lugar, antes do valor simblico e do iconogrico Percebese, aocontrrio, a cor enquanto ornamento, exercendo funes como a relao de contraste que destaca determinados elementos e cria relaesdehierarquiaentreasigurasdaimagemmedalhode cor malva ao centro ajuda na estruturao da imagem, destacando e enobrecendo o Cristo sentado ao trono. Nota-se que o uso da cor e das formas no ao acaso. Talvez se os ancios estivessem de fato representados com vestes brancas, o contraste que surgiria entre as faixas de fundo e suas vestes poderia traz-los ao primeiro plano, deixando Deus num plano secundrio, o que seria inadmissvel em uma representao medieval.

    CastroSoPauloAvearia,

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    Figura 5. Flio 112v, Viso de Deus entronizado, ancios e mar de vidro

    Portanto, o ornamental no uma operao externa aoobjeto ou um simples acessrio de beleza, ele visa tomar posse da matria, articular-se com seu suporte e dele fazer parte. Como um advrbio, modulador, no possui autonomia de funcionamento, depende da relao que estabelece com o suporte e a proposio, sendo que o ornamental pode ocupar umlugarsuicientementecentralnaarteaofornecermodosdeestruturao esttica e simblica, como tambm determinaes semnticas ou sintxicas.

    a igura , flio 11v, o ornamental atua estabelecendo

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    estas relaes acima descritas. Mas, antes, necessrio esclareceralgumasquestesdeordemiconogricaComocitaa passagem do Apocalipse em questo, Imediatamente fui arrebatado em esprito, tem-se representado Joo na banda inferior, deitado, aparentemente dormindo. De sua boca sai uma linha ondulada que conduz at o crculo e representa o caminho do esprito que sai da boca de Joo e se encontra em forma de ave diante do Senhor. Esta linha, juntamente com os raios que saem deste crculo, so motivos ornamentais e se ecoam formalmente entre si, alm de estabelecerem relaes de ordem semntica, uma vez que todos frisam e pem em destaque no apenas o crculo, mas principalmente Aquele que est dentro dele. H tambm uma determinao sintxica na medida em que h diferenas de quantidade e tamanho entre estas linhas. A ornamentalidade pode tambm, neste caso, exercer valor iconogrico,comoditoemrelao linhaornamentadaquesai da boca de Joo, e s outras linhas que saem do trono, que representam os relmpagos, vozes e troves. Estes motivos ornamentais ainda exercem funo simblica, pois so o poder deDeusde falar, julgar e castigarPercebese, portanto, quenesta imagemo valor iconogrico e simblico se conjugamcom o ornamental.

    De toda forma, as cores e as formas utilizadas na construo das imagens no servem apenas como complemento secundrio, como uma colorao ou elemento decorativo, mas conferem um ritmo e uma organizao sintxica em relao aosvaloresigurativosesimblicos,nosendo,portanto,umornamentoexternoesuprluoAdivisodofundoemfaixascoloridas corresponde, tambm, para fora da determinao possvel de lugar (celeste, intermedirio, terrestre), a graus de ao, principalmente estabelecidos pelo contraste como, por

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    exemplo, ao destacar elementos. Ou seja, h uma articulao entreasfaixasdefundoeasiguras,constituindosetambmcomo meio pelo qual a ao ocorre.

    Portanto,doisdosaspectosmaisimportantesdessetrabalhodo ornamental, atravs das cores, so de ordem esttico ainal, tratasedeumaencomendareal, logocomimportantee variada utilizao de pigmentos coloridos e sintxico as cores so usadas para criar contrastes, ressaltar determinados elementos e tambm evocar determinadas passagens do texto bblicoEaornamentalidadecromticadasigurasedofundoproduz uma desnaturalizao tanto do lugar (locus) quanto da ao (storia), pois o que representado na imagem torna-se pertencente ao sagrado, enobrecido e honrado pela presena do ornamental.

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