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16 Unidade II Unidade II 5 10 15 20 2 A ANÁLISE DO PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO APLICADO AO TEXTO Ao analisarmos um discurso, partimos do texto, que é sua materialização. E, para que ocorra a análise, devemos aplicar um método. Como apresentamos na ementa, o modelo teórico adotado é o da análise do discurso de linha francesa, que tem como metodologia de análise de um texto a teoria semiótica greimasiana (de Greimás, idealizador da teoria). Segundo Barros (2002), a teoria semiótica que melhor atende às necessidades na análise de um texto é a que tem por base os conceitos da semiótica greimasiana, pelo fato de oferecer ferramentas para análise do texto enquanto objeto de significação e enquanto objeto de comunicação. Nesse sentido, afirma a autora: A primeira concepção de texto, entendido como objeto de significação, faz que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um “todo de sentido”. A esse tipo de descrição tem-se atribuído o nome de análise interna ou estrutural do texto. (...) A segunda caracterização de texto não o toma mais como objeto de significação, mas como objeto de comunicação entre dois sujeitos (...). Nesse caso, o texto precisa ser examinado em relação ao contexto

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2 A ANÁLISE DO PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO APLICADO AO TEXTO

Ao analisarmos um discurso, partimos do texto, que é sua materialização. E, para que ocorra a análise, devemos aplicar um método. Como apresentamos na ementa, o modelo teórico adotado é o da análise do discurso de linha francesa, que tem como metodologia de análise de um texto a teoria semiótica greimasiana (de Greimás, idealizador da teoria).

Segundo Barros (2002), a teoria semiótica que melhor atende às necessidades na análise de um texto é a que tem por base os conceitos da semiótica greimasiana, pelo fato de oferecer ferramentas para análise do texto enquanto objeto de significação e enquanto objeto de comunicação.

Nesse sentido, afirma a autora:

A primeira concepção de texto, entendido como objeto de significação, faz que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um “todo de sentido”. A esse tipo de descrição tem-se atribuído o nome de análise interna ou estrutural do texto.

(...) A segunda caracterização de texto não o toma mais como objeto de significação, mas como objeto de comunicação entre dois sujeitos (...). Nesse caso, o texto precisa ser examinado em relação ao contexto

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sócio-histórico que o envolve e que, em última instância, atribui-lhe sentido (p. 7).

Tendo em vista essa definição de texto, torna-se necessário investigar o texto em sua completude, verificando-se os procedimentos de organização e/ou construção linguístico-discursiva dele, levando-se em conta as duas noções postuladas: a de texto enquanto objeto de significação e a de texto enquanto objeto de comunicação.

Para tanto, deve-se verificar o que a semiótica denomina percurso gerativo de Sentido, uma vez que este visa analisar o plano do conteúdo de um texto, desde seu nível mais abstrato e simples até o mais concreto e complexo, passando por um nível intermediário. Cada etapa desse percurso recebe uma classificação e cada qual é constituída de uma sintaxe e de uma semântica, ou seja, de uma gramática. Elas serão apresentadas a seguir.

2.1 Nível fundamental

Por ser considerado o nível elementar do percurso, o mais simples e abstrato, trata-se da etapa em que as oposições semânticas mínimas se estabelecem. É nesse nível que, segundo Barros (2001, p. 16),

uma sintaxe explica as primeiras articulações da substância semântica e das operações sobre elas efetuadas e uma semântica surge como um inventário de categorias sêmicas com representação sintagmática assegurada pela sintaxe (...).

Na sintaxe do nível fundamental, a interpretação é estabelecida pela aplicação de um modelo lógico que traduz as relações em oposições de contradição, contrariedade e complementaridade, modelo este denominado “quadrado semiótico”, assim representado:

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S1 S2

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Relação de contrariedade

Relação de contradição

Relação de complementaridade

A título de exemplificação, se tivéssemos como categorias vida versus morte no nível fundamental, elas poderiam ser representadas da seguinte forma:

Morte

Não vidaNão morte

Vida

As operações são de dois tipos: a negação e a asserção. Assim, S1 e S2, enquanto termos primitivos (vida versus morte), produzem seus termos contraditórios (não vida versus não morte) pela operação de negação; a operação de asserção aplicada aos termos contraditórios faz aparecer seus termos primitivos afirmativos.

Dessa forma, as categorias semânticas podem ser axiologizadas pela projeção da categoria tímica “euforia versus disforia” sobre o quadrado semiótico. A relação de conformidade corresponde à euforia e a de não conformidade, à disforia, isto é, as categorias fundamentais eufóricas têm valor positivo e as disfóricas, valor negativo.

Esses valores constituídos nas oposições semânticas fundamentais, no segundo patamar, o do nível narrativo, são

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assumidos por sujeitos e circulam entre eles. Trata-se do nível em que os conteúdos negados e/ou afirmados são transformados pela ação de um sujeito. Passemos, então, para o nível narrativo.

2.2 Nível narrativo

O nível narrativo também é composto de uma sintaxe e de uma semântica. Na sintaxe, verifica-se um enunciado elementar de estado: F junção (S,O) e um enunciado elementar de fazer: F transformação (S,O).

Quanto ao primeiro tipo de enunciado, o de estado, nele encontra-se um sujeito que está em junção (conjunção ou disjunção) com um objeto. O objeto representa uma “casa vazia” que é investida de valor pelo sujeito.

Já no segundo tipo de enunciado, o do fazer, o sujeito opera transformações de um estado a outro, isto é, o estado do sujeito de conjunção em disjunção com o objeto-valor e vice-versa. Portanto, o objeto de transformação é sempre um enunciado de estado.

A relação entre esses dois tipos de enunciados elementares é que define hierarquicamente um programa narrativo, unidade operatória elementar da organização narrativa de um texto. Então, esse programa (ou sintagma elementar da sintaxe narrativa) define-se como um enunciado do fazer que rege o enunciado de estado, assim representado:

PN = F [S1 ( S2 � OV)]

F = função. = transformação.

S1 = sujeito do fazer.S2 = sujeito do estado.∩ = conjunção.OV = objeto-valor.

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De acordo com Barros (2002), os programas classificam-se conforme: a. a natureza da função, em programa de aquisição ou programa de privação; b. a complexidade e hierarquia de programas, em programa de base ou programas secundários (de uso); c. o valor investido no objeto, que pode ser modal (dever, querer, poder, saber/ ser ou fazer) ou descritivo (como alimento, liberdade etc.); d. a relação entre os actantes narrativos (sujeito de estado e sujeito do fazer) e os atores que os manifestam no discurso, em que os sujeitos podem ser assumidos pelo mesmo ator ou por atores diferentes.

Os textos geralmente são compostos de narrativas complexas, em que se hierarquizam enunciados do ser e enunciados do fazer. Essas narrativas têm uma estrutura canônica, composta das quatro fases: manipulação, competência, performance e sanção.

A fase da performance, em que se dá a transformação central da narrativa, pressupõe a fase da competência, em que o sujeito que realizará a transformação é dotado de um saber e/ou poder fazer.

Segundo Barros (2002, p. 24-25),

a competência é, por conseguinte, uma doação de valores modais; a performance, uma apropriação de valores descritivos.

(...) A competência é o programa de doação de valores modais ao sujeito de estado, que se torna, com essa aquisição, capacitado para agir. A performance é a representação sintático-semântica desse ato, ou seja, da ação do sujeito com vistas à apropriação dos valores desejados.

Os dois percursos, tanto da performance quanto da competência, correspondem ao percurso do sujeito (ou da

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ação). O percurso do sujeito é, pois, a aquisição pelo sujeito da competência necessária à ação e execução, por ele, da performance.

Esse percurso da ação (ou do sujeito) pressupõe o percurso da manipulação (ou do destinador-manipulador). Nessa etapa do percurso, o sujeito-destinador doa ao sujeito-destinatário os valores modais do “querer-fazer”, “dever-fazer“, saber-fazer” e “poder-fazer”. Na manipulação, há um contrato proposto pelo destinador ao destinatário, tornando-se o primeiro responsável pelo “fazer-persuasivo” (ou “fazer-crer”), enquanto o segundo é responsável pelo “fazer-interpretativo” (ou “fazer-crer”).

A tipolologia mais comum da manipulação compreende quatro classes: a tentação, em que o destinador propõe ao destinatário um valor descritivo positivo como recompensa; a intimidação, em que o destinatário tem como recompensa um valor descritivo negativo; a sedução, em que o destinador manifesta uma avaliação positiva da competência do destinatário, com o objetivo de “levá-lo a fazer”; a provocação, ao contrário da sedução, leva o destinatário à ação a partir de uma imagem negativa de sua competência.

Barros (2002, p. 33), nesse sentido, propõe o seguinte quadro:

Competência do destinador-manipulador

Alteração na competência do destinatário

Provocação Saber (imagem negativa do destinatário)

Dever-fazer

Sedução Saber (imagem positiva do destinatário)

Querer-fazer

Intimidação Poder (valores negativos) Dever-fazer

Tentação Poder (valores positivos) Querer-fazer

O terceiro percurso do nível narrativo é o do destinador-julgador (ou da sanção) e corresponde à etapa que encerra o percurso narrativo, que é correlata à fase da manipulação. Essa

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etapa pode ser discriminada em duas: a da sanção cognitiva e a da retribuição (ou pragmática).

A sanção cognitiva corresponde ao fazer interpretativo do sujeito, em que este julga o contrato pela sua veridição. Dessa forma, os estados resultantes dessa interpretação definem o sujeito de estado como verdadeiro (parece e é) ou falso (nem parece nem é) ou mentiroso (parece, mas não é) ou secreto (não parece, mas é). Para esse julgamento, o destinador-julgador interpreta a conduta do destinador-manipulador de acordo com a conformidade dessa conduta com o sistema de valores que representa e com os valores do contrato inicial estabelecido por ele. Tal interpretação relaciona-se a uma ideologia que dá sentido ao percurso narrativo.

Ainda com relação ao percurso do destinador-julgador, há a sanção pragmática (ou retribuição), em que se pode dizer que o sujeito é reconhecido positivamente ou negativamente, de acordo com o seu cumprimento do compromisso assumido pelo contrato ou o seu desmascaramento por não ter cumprido seu compromisso. Desse modo, esse sujeito recebe uma recompensa, uma retribuição, que pode ser de aquisição ou de privação de valores, de acordo com o julgamento recebido.

Assim, hierarquicamente, o encadeamento lógico dos enunciados (do “ser” e do “fazer”) constitui o programa narrativo, que, por sua vez, em uma narrativa complexa, encadeia-se com outros programas no percurso narrativo, compondo, enfim, o esquema narrativo.

Como já fora exposto, cada nível do percurso gerativo é dotado de uma sintaxe e de uma semântica. No nível narrativo, a primeira diz respeito aos actantes (sujeito, objeto) e suas relações em enunciados de estado e de fazer, conforme já explicitado anteriormente. Quanto à segunda, há duas questões que normalmente são analisadas: a modalização e as paixões que decorrem delas.

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Desse modo, a partir do momento em que os objetos são dotados de valores, significa que elementos semânticos foram inscritos nesses objetos, com os quais o sujeito relaciona-se de acordo com a modalização do “ser” ou do “fazer”. Para cada uma das modalizações, a semiótica prevê quatro modalidades: “querer”, “dever”, “poder”, “saber”.

O sujeito do “fazer” é considerado virtualizado quando ele quer e deve “fazer” ou atualizado quando ele sabe e pode “fazer”. Esse sujeito-destinador responde pelo “fazer persuasivo” e comunica ao sujeito destinatário os valores modais para que este creia e faça o desejado, assumindo o “fazer interpretativo”.

Na modalização do “ser”, a semiótica prevê as modalidades veridictórias, que assim podem ser representadas:

Verdade

ParecerSer

Segredo

Não parecer Não ser

Falsidade

Mentira

A modalização veridictória está relacionada ao “fazer interpretativo” do sujeito destinatário.

Enquanto efeitos de sentido das qualificações modais, a semiótica prevê as paixões, o que Barros (2002, p. 47) explica da seguinte forma:

Numa narrativa, o sujeito segue um percurso, ou seja, ocupa diferentes posições passionais, saltando de estados de tensão e de disforia para estados de relaxamento e de euforia e vice-versa.

As paixões podem ser simples ou complexas e se diferenciam pela intensidade do querer e pelo tipo de valor desejado. Dessa

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forma, as simples decorrem da modalização do (não) querer-ser, enquanto as complexas preveem todo um percurso passional.

O estado inicial do sujeito no percurso das paixões denomina-se estado de espera, em que o sujeito é caracterizado pela confiança (no outro e em si mesmo) e pela satisfação antecipada ou imaginada da aquisição do valor desejado, à qual se contrapõem a insatisfação e a decepção.

Nesse sentido, segundo Barros (2002, p. 50):

As paixões de insatisfação e/ou decepção denominam-se, em português, amargura (...) desilusão ou desengano (...), frustração (...) e outros. As paixões contrárias, isto é, de satisfação e de confiança, ocorrem como alegria e felicidade (...), esperança e ilusão (...).

No percurso das paixões, o sujeito pode tornar-se resignado (ou conformado) ou pode querer reparar a falta. Esse segundo desejo origina as paixões malevolentes da hostilidade, da antipatia, da aversão ou do ódio, da cólera, da raiva, do rancor, em oposição à benquerença das outras paixões, que se encontram em forma de amor, amizade, estima ou simpatia, entre outras.

2.3 Nível discursivo

No nível discursivo, considerado o mais concreto e complexo, as estruturas narrativas são convertidas em estruturas discursivas. Nesse sentido, o sujeito projeta no enunciado a enunciação, pelas categorias de pessoa, de tempo e de espaço. A análise do nível discursivo determina as condições de produção de um texto.

É nessa etapa que se explicam as relações do sujeito-enunciador com o sujeito-enunciatário, pelas quais são estabelecidos efeitos de proximidade e/ou distanciamento da pessoa do discurso, os quais caracterizam a subjetividade ou a

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objetividade, assim como o efeito de realidade ou do referente, que confere a ilusão de maior proximidade ou distanciamento dos fatos reais e que se define mais pela semântica que pela sintaxe do discurso.

A operação pela qual o sujeito da enunciação projeta os actantes e as coordenadas espaço-temporais do discurso é denominada desembreagem. Esta pode ser enunciativa (em primeira pessoa) e denomina-se “enunciação enunciada” ou enunciva (em terceira pessoa) quando diz respeito ao enunciado propriamente dito, de acordo com o efeito de proximidade ou de distanciamento que se queira dar ao sujeito enunciador. Além dessas, o sujeito pode instalar interlocutores no interior do discurso, o que caracteriza a desembreagem de segundo e de terceiro graus.

A fim de elucidar esse mecanismo de desembreagem, apresenta-se, a seguir, o esquema proposto por Barros (2001, p. 75):

Implícitos (enunciação pressuposta)

Desembreagem de 1º grau – atores explicitamente instalados

Desembreagem de 2º grau

Enunciador [ Narrador [ Interlocutor [ Objeto [ Interlocutário [ Narratário [ Enunciatário

Fiorin (2001), a partir da classificação de Catherine Kerbrant-Orechioni, distingue enunciação em sentido estrito de enunciação em sentido lato. Para a primeira, considera as projeções da enunciação (de pessoa, tempo e espaço) no enunciado, enquanto a segunda corresponde a todos os traços linguísticos da presença do locutor no interior do enunciado.

A enunciação enunciada e o enunciado enunciado são duas maneiras de construir o discurso e constituem dois contratos enunciativos diferentes. De acordo com o autor,

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A enunciação é o lugar do ego, hic et nunc (eu-aqui-agora), isto é, o lugar de instauração do sujeito, que é o ponto de referência das relações espaço-temporais. Para a instauração de pessoas, de espaços e de tempo, os mecanismos são denominados debreagem e embreagem (ou desembreagem/embreagem).

A debreagem, segundo Fiorin (p. 43), “consiste, pois, num primeiro momento, em distinguir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar, no enunciado, um não-eu, um não-aqui e um não-agora”.

Quando os actantes da enunciação (eu/tu) instalam-se no enunciado, assim como o espaço (aqui) e o tempo (agora), temos a debreagem enunciativa. Em contrapartida, a debreagem enunciva é aquela em que se instauram no enunciado os actantes, o espaço e o tempo do enunciado: ele, algures, então. Essas duas debreagens criam efeitos de subjetividade e/ou de objetividade no discurso.

A embreagem é o mecanismo de retorno à instância da enunciação e esse efeito pode ser produzido ao neutralizarem-se as categorias de pessoa, de tempo e/ou de espaço.

Nesse sentido, de acordo com Fiorin (2001, p. 48),

(...) obtém-se na embreagem um efeito de identificação entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação,

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tempo de enunciado e tempo da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação.

As categorias de pessoa, espaço e tempo, que têm por função indicar as circunstâncias da enunciação, podem ser interpretadas apenas se forem reportadas ao ato da enunciação que produziu o enunciado. Assim, o “eu” é aquele que enuncia, o “tu” é a quem o “eu” se dirige, o “aqui” é o lugar (espaço enunciativo) do “eu”.

Quanto aos elementos linguísticos que se referem a essas categorias (pessoa, tempo, espaço), na enunciação correspondem aos dêiticos, enquanto os anafóricos são elementos do enunciado enunciado e, portanto, compreendidos em função de marcos temporais e espaciais instalados no enunciado e de actantes do enunciado anteriormente mencionados.

Quanto à categoria tempo, dois pontos são importantes para o estabelecimento deste no discurso: o momento da enunciação enquanto eixo de origem e ordenação e a sequência de estados e transformações estabelecida no nível narrativo.

Dessa forma, há dois sistemas temporais: um que está diretamente relacionado ao momento da enunciação e outro ordenado segundo os momentos de referência instalados no enunciado. O primeiro é denominado sistema enunciativo, enquanto o segundo denomina-se sistema enuncivo.

O momento dos acontecimentos é ordenado em relação aos momentos de referência, aplicando-se a categoria topológica concomitância versus não concomitância (anterioridade versus posterioridade) aos três momentos de referência: momento de referência (MR), momento da enunciação (ME) e momento do acontecimento (MA).

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Nesse sentido, Fiorin (2001, p. 146) propõe o seguinte esquema:

ME (presente implícito)

Sistema enuncivo não concomitância

Sistema enunciativo concomitância

MR presenteAnterioridade MR pretérito

Posterioridade MR futuro

Concomitância MA presente

Não concomitância

Concomitância MA presente

Não concomitância

Concomitância MA presente

Não concomitância

Posterioridade MA futuro

Anterioridade MA pretérito

Anterioridade MA pretérito

Posterioridade MR futuro

Anterioridade MA pretérito

Posterioridade MR futuro

Os tempos enunciativos são os que têm como referência o presente, e podem ser assim esquematizados:

MR presente

Concomitância presente

Não concomitância

Anterioridade Pretérito perfeito 1

Posterioridade Futuro do presente

Segundo Fiorin (ibidem), no presente deve haver uma tripla coincidência: MA – MR – ME. No entanto, essa coincidência varia e pode originar três tipos de classificação:

a) presente pontual , em que há coincidência entre MR e ME ou, ainda, em que o momento de referência é um ponto preciso e há coincidência entre ele e o momento da enunciação;

b) presente durativo, em que o momento de referência é mais longo que o momento da enunciação e a duração pode

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ser contínua (presente de continuidade) ou descontínua (presente iterativo);

c) presente omnitemporal ou gnômico, em que o MR é limitado e coincide com o MA. Este é normalmente o presente utilizado para enunciar verdades eternas, em que o MR é um “sempre” implícito.

Quanto ao pretérito, em português, há dois: um é o tempo do sistema enunciativo e o outro corresponde ao sistema enuncivo. E, de acordo com Fiorin (2001, p. 154), “os tempos enuncivos ordenam-se em dois subsistemas: um centrado num momento de referência pretérito e outro, num momento de referência futuro”.

O primeiro subsistema, do pretérito, pode ser assim esquematizado:

MR pretérito

Concomitância Não concomitância

acabado pontual

dinâmico

inacabado durativo estático

pretérito perfeito 2

pretérito imperfeito

Anterioridade pretérito mais-que-perfeito

Posterioridade

Imperfectivo Perfectivo

Futuro do pretérito simples

Futuro do pretérito composto

O outro subsistema, do futuro, apresenta a seguinte estrutura:

MR futuro

Concomitância Não concomitância

Anterioridade Posterioridade

Futuro anterior Futuro do futuro

Presente do futuro

Além dos tempos verbais, a língua oferece outros recursos que podem caracterizar o sistema enunciativo ou o sistema

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enuncivo na categoria tempo, como o uso de advérbios, de preposições, de conjunções, do discurso direto ou indireto, entre outros.

O espaço é a categoria menos estudada dentre as três, segundo Friorin (2001), que faz uma revisão dos estudos já realizados sobre essa categoria e ressalta a importância de se verificar a construção do espaço linguístico a partir do hic, isto é, do aqui na enunciação.

Nesse sentido, afirma o autor:

O aqui é o fundamento das oposições espaciais da língua. Esse aqui, que se desloca ao longo do discurso, permanecendo sempre aqui, constitui os espaços do não-aqui. Chega-se, assim, à constatação de que o único espaço inerente à linguagem é o espaço axial do discurso, que é sempre implícito. Ele é que determina os outros.

Desse modo, segundo o mesmo autor (op. cit., p. 265):

(...) o conceito de debreagem só se aplica ao espaço linguístico e não a seu especificador. Teremos, assim, uma debreagem enunciativa, quando o ponto de referência for o espaço do enunciador.

(...)

A debreagem será enunciva quanto tivermos algures/alhures, figurativizado ou não, instalado no enunciado.

Para esse mecanismo, Fiorin postula a existência de quatro tipos:

a) debreagem enunciativa da enunciação: quando se projeta no enunciado o espaço de onde fala o enunciador;

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b) debreagem enunciva da enunciação: quando não se projeta no enunciado o aqui de onde fala o narrador, o que dá a impressão de que ele enuncia de um espaço indeterminado, um algures;

c) debreagem enunciativa do enunciado: quando os fatos se passam na localização enunciativa;

d) debreagem enunciva do enunciado: quando os fatos narrados se passam em um espaço enuncivo.

Portanto, o espaço linguístico é construído linguisticamente e para tanto deve haver um ponto de referência que se torna enunciativo (próximo/distante ao enunciador ou ao enunciatário) ou enuncivo (com um ponto de referência inscrito no enunciado).

Assim como ocorre com as outras categorias, pode haver também embreagens espaciais. Segundo Fiorin (2001, p. 285):

Temos um sistema enuciativo espacial, em que estão demarcados três lugares, e um sistema enuncivo, em que não se distinguem diferentes espaços linguísticos. Por conseguinte, temos dois tipos teóricos distintos de neutralização: entre espaços diferentes no sistema enunciativo e entre os lugares do espaço enunciativo com o espaço enuncivo.

O autor considera, ainda, na embreagem (que é o movimento contrário à desembreagem, quer dizer, uma volta à instância da enunciação), a existência de macroembreagens (referentes a um episódio mais longo ou à totalidade do discurso), para a qual postula seis possibilidades:

a) o espaço enuncivo torna-se espaço enunciativo;

b) o espaço enunciativo converte-se em enuncivo;

c) o “aqui” transforma-se em “lá”;

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d) o “lá” metamorfoseia-se em “aqui”;

e) o “aqui” modifica-se em “aí”;

f) o “aí” transmuda-se em “aqui” (Fiorin, 2001, p. 294).

Quanto à semântica do discurso, esta compreende dois procedimentos: a tematização e a figurativização. O primeiro corresponde aos valores dos objetos assumidos pelo sujeito da narrativa, os quais são inscritos em temas no nível discursivo, e estes são recobertos por figuras, conforme a intenção de concretizá-los.

Nesse sentido, afirma Barros (2002, p. 71):

Nos discursos temáticos enfatizam-se os efeitos de enunciação, isto é, de aproximação subjetiva ou de distanciamento objetivo da enunciação, em detrimento dos efeitos de realidade, que dependem mais fortemente dos procedimentos de figurativização.

A figurativização, por sua vez, pode ocorrer desde a mais próxima à tematização até a mais figurativa possível, ou seja, há discursos em que se utilizam os efeitos de realidade proporcionados pelas figuras (que podem ser esparsas) como ancoragem e há discursos que chegam ao grau máximo de figurativização, a iconização, em que as figuras tornam-se imagens do mundo real.

A reiteração de temas e a recorrência de figuras no discurso garantem a coerência semântica do discurso, e esse procedimento denomina-se isotopia. Portanto, pode haver isotopia temática e/ou figurativa em um discurso.

Há palavras, expressões que são consideradas desencadeadoras de isotopias. Trata-se de elementos que não se integram em uma linha isotópica e levam, portanto, a outra(s) leitura(s). Há outras que se denominam conectores de

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isotopias, uma vez que compreendem elementos integrantes de figuras localizadas em um texto e que podem ser identificadas em outros.

Além do percurso gerativo do sentido, que possibilita a apreensão do conteúdo de um texto, há também o plano da expressão que, em determinados tipos de texto, pode auxiliar a compreender esse percurso por meio do que se denomina sistema semissimbólico.

2.4 Análise do texto Brejo da Cruz

A título de exemplificação, vejamos a análise de um texto de acordo com a teoria apresentada:

Brejo da Cruz

Chico Buarque

1 A novidade2 Que tem no Brejo da Cruz3 É a criançada4 Se alimentar de luz5 Alucinados6 Meninos ficando azuis7 E desencarnando8 Lá no Brejo da Cruz9 Eletrizados10 Cruzam os céus do Brasil11 Na rodoviária12 Assumem formas mil13 Uns vendem fumo14 Tem uns que viram Jesus15 Muito sanfoneiro16 Cego tocando blues17 Uns têm saudade18 E dançam maracatus

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19 Uns atiram pedra20 Outros passeiam nus21 Mas há milhões desses seres22 Que se disfarçam tão bem23 Que ninguém pergunta24 De onde essa gente vem25 São jardineiros26 Guardas-noturnos, casais27 São passageiros28 Bombeiros e babás29 Já nem se lembram30 Que existe um Brejo da Cruz31 Que eram crianças32 E que comiam luz33 São faxineiras34 Balançam nas construções35 São bilheteiras36 Baleiros e garçons37 Já nem se lembram38 Que existe um Brejo da Cruz39 Que eram crianças40 E que comiam luz.

2.4.1 Nível narrativo

No nível narrativo, encontramos o percurso narrativo, que é composto de Programas Narrativos (de performance e de competência), nos quais encontram-se os actantes: sujeito do estado, sujeito do fazer e objeto. Estes, enquanto actantes sintáticos, tornam-se papéis actanciais e compõem o percurso do sujeito (ou percurso da ação). Além desse percurso, podemos encontrar, ainda, o percurso do sujeito-manipulador (ou da manipulação) e do sujeito-destinador (ou da sanção). Para melhor compreensão de cada um, esses percursos serão discriminados na análise que se inicia, embora eles não sejam estabelecidos linearmente no texto.

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2.4.1.1 Percurso do sujeito (ou da ação) no texto Brejo da Cruz

No texto, há uma sucessão de estados e transformações, que pode ser assim sintetizada: o habitante de Brejo da Cruz entra ora em conjunção, ora em disjunção com os objetos-valor “alimento da matéria” e “alimento do espírito”, do que decorrem as mudanças de estado desse sujeito, bem como suas transformações, que estão também relacionadas aos espaços por ele ocupados em cada sequência.

Desse modo, podemos segmentar o texto nos seguintes programas narrativos:

PN 1 – do verso 1 ao verso 10: é um programa de competência, de aquisição transitiva (por doação) de valores como a preservação da esperança, a libertação da matéria, a força para se locomover. Esses valores possibilitam o sujeito a poder fazer e a transformar seu estado, tornando-se capaz, posteriormente, de obter valores descritivos como a subsistência, ou seja, o alimento material, o “pão de cada dia”.

PN 2 – do verso 11 ao verso 16: trata-se de um programa de performance, de aquisição de valores por apropriação, em que o sujeito entra em conjunção com o mundo material, pois “assume formas mil” e se apropria de objetos-valor relacionados aos meios de subsistência (“vendem fumo”, “Cego tocando blues” etc.).

PN 3 – do verso 17 ao verso 20: é um programa de privação transitiva (de espoliação), pois aqueles que se encontram em disjunção com os objetos-valor relacionados à sobrevivência, mas em conjunção com outros valores, como a manutenção da identidade, são espoliados, quer dizer, são privados do direito aos elementos de subsistência e, portanto, destinados à mendicância (“passeiam nus”).

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PN 4 – do verso 21 ao verso 24: é mais um programa de privação (reflexiva), em que o sujeito está em disjunção com o objeto-valor “identidade”, renunciando a esse objeto, uma vez que “(...) se disfarçam tão bem/que ninguém pergunta/de onde essa gente vem”, ou seja, os que entraram em conjunção com a subsistência, entram em disjunção com a identidade, dela se privam para sobreviver.

PN 5 – do verso 25 ao verso 28: programa de aquisição reflexiva (por apropriação), em que o sujeito está em conjunção com o Objeto-valor “sobrevivência” (“são jardineiros”, ”Bombeiros e babás”), mas em disjunção com outros objetos-valor como o reconhecimento social, a identidade (“São passageiros”).

PN 6 – do verso 29 ao verso 32: este é um programa de privação transitiva (por espoliação), uma vez que o sujeito do fazer tira do sujeito do ser objetos-valor como a esperança de sobrevivência e a identidade em relação ao lugar de origem. Esse programa repete-se no final do esquema narrativo, reforçando a ideia de privação desse sujeito.

PN 7 – do verso 33 ao verso 36: trata-se de mais um programa de aquisição do Objeto-valor “sobrevivência”, semelhante ao PN 5, em que o sujeito está em conjunção com este, mas em disjunção com aquisição de outros valores, já que se evidencia um estado permansivo desse sujeito.

Nesse Programa há, porém, um verso que rompe com o estado do sujeito e pressupõe um outro sujeito em disjunção com esse estado permansivo propiciado por funções assumidas no campo do trabalho. É o verso 34, “Balançam nas construções”, em que se encontra o referido sujeito, que rompe o contrato de “dever ser” e passa a “poder ser” um prestador de serviço temporário.

PN 8 – do verso 37 ao verso 40: é a reiteração do PN 6, reforçando o estado de privação do sujeito no final do percurso.

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2.4.1.2 Percurso do destinador-manipulador (ou percurso da manipulação) no texto Brejo da Cruz

Nesse percurso, o destinatário “habitante de Brejo da Cruz” estava em busca de alimento para o corpo, porém não conseguia obtê-lo nesse lugar. Então, o destinador “Brejo da Cruz” oferece o valor “alimento” em forma de esperança, levando o destinatário a acreditar que com ele pode transformar-se e obter o alimento concreto de que tem necessidade. Acreditando no valor proposto pelo destinador, o destinatário aceita o contrato e é manipulado a fazer o que lhe é determinado: transformar sua identidade e sua forma de ser para sobreviver em outro lugar.

Para tanto, o destinador “sociedade do sul-sudeste” atribui ao destinatário “migrante nordestino” competências modais, uma vez que, inicialmente, este (enquanto “habitante de Brejo da Cruz”) é manipulado por tentação a querer obter o alimento, passando à intimidação de dever assumir “formas mil” e a “disfarçar-se” para a obtenção do alimento, pois aqueles que não o fazem ficam à margem da sociedade e não encontram um meio de subsistência.

Nesse sentido, o destinatário que não se deixa manipular, recusa-se a participar do jogo do destinador, como os que “têm saudade e dançam maracatus” representam o sujeito em conjunção com valores não propostos, tais como a busca da identidade de seu povo. Há também aqueles que “atiram pedra” ou ainda os que “passeiam nus”, representantes de destinatários também em disjunção com os valores propostos pelo destinador, que se tornam marginalizados.

Finalmente, no percurso da manipulação, o destinador “sociedade do sul-sudeste” mantém a intimidação, levando o destinatário a dever assumir funções não valorizadas socialmente, como “babá”, “bombeiro”, “garçom”, para manter-se no contexto socioeconômico, além de dever esquecer sua

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identidade (“Já nem se lembram/ que existe um Brejo da Cruz/que eram crianças/e que comiam luz”).

2.4.1.3 Percurso do destinador-julgador (ou da sanção) no texto Brejo da Cruz

A sanção é o percurso do destinador-julgador, que se organiza tanto pela interpretação (ou sanção cognitiva) quanto pela retribuição (ou sanção pragmática).

No texto, o destinador-julgador, inicialmente, interpreta o sujeito como verdadeiramente carente de alimento e o torna competente para obtê-lo. Em um segundo momento, discrimina-os em dois grupos: os que parecem e são carentes (verdadeiros), uma vez que se propõem a esquecer suas origens para a obtenção de tal alimento e os que nem parecem nem são (falsos), já que insistem em não esquecer suas origens e, por isso, não conseguem sobreviver.

A retribuição também faz parte do percurso do destinador-julgador e, nesse texto, o grupo que é reconhecido como cumpridor do contrato de esquecer suas origens, assumindo outras identidades para sobreviver, é premiado com a obtenção de meios de subsistência; ao passo que o grupo que não cumpre o contrato é sancionado negativamente pela marginalização.

Todavia, esses grupos, verdadeiramente, sintetizam-se em apenas um, os que são punidos pela indiferença e/ou discriminação no contexto social em que se encontram inseridos, isto é, mais “um Brejo da Cruz”, mais um lugar de sofrimento, apesar das condições mínimas de subsistência não encontradas “no Brejo da Cruz”, lugar de origem.

Do ponto de vista da modalização do ser, podemos observar os efeitos de sentido que configuram as paixões desse sujeito que sofre as transformações no percurso narrativo. No caso do

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texto em análise, trata-se do habitante de Brejo da Cruz, que a princípio conta com o destinador para a realização de seu anseio de obter alimento para a sobrevivência, tornando-se, assim, iludido, esperançoso.

No entanto, esse sujeito, no final do percurso, encontra-se desiludido com o destinador, uma vez que se decepciona com o sujeito destinador, que não resolve sua falta, apenas o ilude com a imagem de satisfação do desejo de sobreviver, já que ele continua discriminado e marginalizado socialmente pelo grupo em que se insere.

Dessa forma, há o sujeito que se resigna, pois se conforma com a situação e nada faz para modificá-la, aceitando passivamente a nova condição para que possa obter condições mínimas de subsistência. Por outro lado, há o sujeito que não confia no destinador e se revolta, não cumprindo o contrato de modificar sua forma (“assumem formas mil”), mas tornando-se ou saudoso (“Uns têm saudade/E dançam maracatu”) ou agressivo (“Uns atiram pedra”) ou em estado de miséria (“Outros passeiam nus”).

2.4.2 Nível discursivo

Ao verificarmos o nível mais concreto do texto – o discurso –, devemos considerar que este tem uma sintaxe e uma semântica que o constituem. Assim, primeiramente, quanto à sintaxe, dois aspectos da sintaxe discursiva devem ser analisados: o das projeções da instância da enunciação no discurso enunciado e o das relações argumentativas entre o enunciador e o enunciatário.

Com relação ao primeiro aspecto da sintaxe discursiva, as categorias tanto de pessoa, quanto de espaço e de tempo podem ser analisadas, uma vez que são elas que determinam o afastamento e/ou a proximidade da instância enunciativa.

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Quanto às relações argumentativas entre enunciador e enunciatário, elas compreendem as estratégias de persuasão que se constroem no nível discursivo do texto, tais como a polifonia, a implicitação de conteúdos, a construção de figuras, entre outros.

2.4.2.1 Projeções da enunciação: categorias de pessoa, tempo e espaço em Brejo da Cruz

Ao analisarmos o texto Brejo da Cruz, considerando-se primeiramente a desembreagem actancial, verificamos que há um afastamento do sujeito e o discurso é construído em terceira pessoa, o que lhe garante efeito de objetividade e cria o efeito de realidade, ou seja, o “eu” da enunciação torna-se um “ele”, produto do efeito da desembreagem enunciva.

Nesse sentido, para se obter a ilusão de objetividade, o texto inicia-se com o sujeito colocando-se como um simples locutor, uma vez que aparentemente o narrador instaurado apenas preocupa-se com os fatos ocorridos e, simulando o discurso jornalístico, tem por objetivo reproduzir a realidade.

Dessa forma, o enunciador assume a voz do narrador e passa a contar o fato inusitado – “a novidade” – ocorrido em determinado lugar. Todavia, o efeito de realidade contrói-se de modo mais intenso por procedimentos da semântica do discurso que serão analisados posteriormente.

Além da projeção de pessoa, o tempo é outra categoria relevante na organização sintática do discurso e, nesse texto, contrariamente à categoria de pessoa, há uma desembreagem enunciativa, uma vez que o tempo da fala do narrador é o presente, aproximando-se, portanto, do “agora” da instância enunciativa.

Podemos verificar, assim, a concomitância entre o ME (momento da enunciação), o MR (momento da referência) e o

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MA (momento do acontecimento), na seleção pelo enunciador dos verbos “é”, “tem”, “cruzam”, “assumem”, entre outros, que presentificam as ações do sujeito, configurando uma sequência de transformações e estados que “dura”, isto é, um “presente durativo”, visto que o momento de referência é mais longo que o momento da enunciação.

Essa duração é longa no texto, pois no final, além dos verbos de ação já elencados anteriormente (entre outros que são enunciados ao longo do texto), há a expressão de um “estado permansivo” do sujeito pela utilização reiterada do verbo “ser” (“são jardineiros, guarda-noturnos, casais / são passageiros / Bombeiros e babás / São faxineiras / são bilheteiras / Baleiros e garçons).

Além dos recursos já apontados, o uso do gerúndio também é significativo com relação à categoria tempo nesse texto, pois reforça a ideia de duração e continuidade tanto de ações quanto de estado do sujeito, tendo em vista a expressão de outras ações concomitantes ao MR presente “Meninos ficando azuis / E desencarnando”; “Cegos tocando blues”.

Enfim, a aspectualização do tempo marca a continuidade e duratividade do sofrimento dos atores instaurados na narrativa. Estes assumem papéis actanciais diferentes, que caracterizam a transformação do “sujeito do fazer”, dinâmico no percurso narrativo do sujeito, o qual se contrapõe à estaticidade do “sujeito do ser”, o que gera a polêmica narrativa.

O espaço, embora seja uma categoria menos estudada que as outras, segundo Fiorin (2001), nesse texto é relevante, visto que além de a sua organização afastar ou aproximar o espaço da enunciação e/ou do enunciado, constrói o sentido do texto, direcionando tanto o encadeamento dos programas narrativos quanto o percurso do sujeito no nível narrativo. No nível

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discursivo, orienta a argumentação que se constrói no interior do texto.

Nesse texto, logo no início, o espaço enuncivo torna-se um espaço enunciativo, pois embora seja enunciado como “lá” – “no Brejo da Cruz”, é como se o narrador focalizasse os actantes, como se tivesse uma câmara em close e, por se aproximar, encontra-se no mesmo espaço para poder descrevê-los, ou seja, o “lá” transforma-se em “aqui”.

Em seguida, pelo distanciamento, ressaltado pelo uso explícito do advérbio “lá” – “Lá no Brejo da Cruz” –, o espaço enunciativo volta a converter-se em enuncivo, um lugar distante, o “aqui” transforma-se em “lá”. Na sequência, um outro espaço é apresentado como “aqui” – “na rodoviária” –, que se opõe, nesse trecho, ao “lá” – “lá no Brejo da Cruz”.

Finalmente, o “lá” metamorfoseia-se em “aqui”, uma vez que o enunciador situa-se em um espaço que considera “um Brejo da Cruz” em relação a “o Brejo da Cruz”. Entende-se que ao contrapor “um” a “o” Brejo da Cruz, o sujeito da enunciação encontra-se situado nesse espaço como “aqui”, isto é, trata-se de um espaço fixo, que embora mude enquanto espaço físico, é sempre o mesmo para esse sujeito.

Nesse jogo de distanciamento/aproximação, o espaço constrói o significado da narrativa nesse texto, cujo título inclusive coincide com a denominação dele, o que será também analisado posteriormente, na semântica do discurso.

2.4.2.2 Relações argumentativas em Brejo da Cruz

Podemos verificar que esse é um texto argumentativo, tendo em vista a opinião que se constrói no e pelo discurso. Brejo da Cruz de Chico Buarque, por ser uma crônica, que entendemos como um texto do tipo opinativo em que o discurso é polifônico e dialógico, contrapõe-se às crenças sociais.

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Barros (2001, p. 103-104) faz uma revisão das teorias que preconizam a argumentação e chega ao conceito de polifonia ao afirmar que:

o discurso é, portanto, essencialmente polifônico. A polifonia faz reconsiderarem-se as relações entre fatos, no quadro teórico da análise do discurso. Em primeiro lugar, as “vozes” discursivas confirmam a concepção de Ducrot (...). A segunda observação diz respeito à comparação possível de locutor/alocutário com narrador/narratário (...). Pode ainda o narrador optar pelos mecanismos de subentendido e, nesse caso, três vozes estão sendo atribuídas ao discurso: a do narrador que assevera o conteúdo explícito, a do narratário que, ao interpretar, afirma o conteúdo subentendido e a do grupo social que garante o pressuposto e o caráter polêmico do discurso.

Barros (2002) ressalta, ainda, que, do ponto de vista da semiótica, a argumentação é produto de um contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário, em que o primeiro (enquanto desdobramento do sujeito manipulador da enunciação) é responsável pelo fazer persuasivo, ao passo que o segundo (sujeito destinador) responde pelo fazer interpretativo.

Nesse sentido, a autora afirma:

Pelo contrato, o enunciador determina como o enunciatário deve interpretar o discurso, deve ler “a verdade” (...). O enunciatário, por sua vez, para entender o texto, precisa descobrir as pistas, compará-las com seus conhecimentos e convicções e, finalmente, crer ou não no discurso (p. 63).

Nessa perspectiva, observamos que o enunciador de Brejo da Cruz inicia seu discurso pela voz “daquele que sabe”, quer dizer,

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de um narrador que tem por objetivo contar algo novo – “a novidade” –, o que pressupõe algo inusitado que se contrapõe a algo “velho”, da rotina.

A fim de cumprir o contrato de veridicção, o enunciador produz, então, a princípio, um efeito de verdade, instaurado pela voz inicialmente apresentada, que em seguida se diz “mentirosa”, ao construir metáforas como em “se alimentar de luz”, momento da enunciação em que “a mentira” está relacionada à voz do poeta, que é interpretada pelo enunciatário como ficcional, aquela que pode construir figuras.

Dessa forma, o discurso, polifonicamente, vai delineando a polêmica entre “a verdade” e “a mentira”, ou seja, o que é verdadeiro e o que é ficcional, o que de um lado ancora o efeito de realidade em atores que figurativizam o contexto social e, de outro, as figuras que constroem o lado ficcional do texto. Para entendermos melhor esse mecanismo, torna-se necessário analisar semanticamente o discurso em questão.

Além da polifonia, o conceito de intertextualidade também se torna importante, uma vez que todo texto é um intertexto, ou seja, não existe texto autofundado, pois todo texto está em dialogia com outro(s) texto(s), o que também constitui a sua argumentação.

No caso do texto em análise, o enunciador assume o papel do poeta, que o legitima a se comunicar pela construção de implícitos e de figuras, pois segundo Barros (2003, p. 6-7):

Discurso poético, por sua vez, é aquele que instala internamente, graças a uma série de mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e as contradições dos conflitos sociais. Observa-se que se considera poético qualquer discurso (...) que apresente as características polifônicas mencionadas.

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O discurso polifônico, de acordo com Barros (op. cit.), opõe-se ao discurso monofônico, classificando este como discurso autoritário, uma vez que representa “a verdade única, absoluta, incontestável”, ao passo que aquele reproduz a ambiguidade das múltiplas vozes em polêmica.

A autora conclui, então, que:

(...) Os discursos poéticos se caracterizam, em resumo, pela ambivalência intertextual interna que, graças à multiplicidade de vozes e de leituras, substitui a verdade “universal”, única e peremptória pelo diálogo de “verdades” textuais (contextuais) e históricas.

O texto analisado apresenta essas características, já que pelo uso da linguagem poética expressa uma avaliação do contexto social, expressão esta enunciada por um sujeito enunciador representante da multiplicidade de vozes constituída no interior do texto. Logo, a produção de sentidos, no texto, está condicionada pela noção de alteridade postulada por Bakhtin e, assim, a polifonia pode ser relacionada tanto à intertextualidade implícita quanto à explícita. Todavia, nessa análise, essas noções estão sendo vistas apenas enquanto estratégias argumentativas para a coerência do texto no percurso gerativo do sentido.

2.4.3 A semântica do discurso em Brejo da Cruz

De acordo com as teorias linguísticas, todo texto, no percurso narrativo, é um simulacro do fazer do homem no mundo e, por isso, constitui uma sucessão de transformação de estados e de estabelecimento e ruptura de contratos. No nível discursivo, os valores que foram assumidos pelo sujeito no nível narrativo são formalizados em percursos temáticos, os quais se revestem de investimentos figurativos.

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Nesse sentido, Barros (2002, p. 68) afirma que:

(...) A disseminação dos temas e a figurativização deles são tarefas do sujeito da enunciação. Assim procedendo, o sujeito da enunciação assegura, graças aos percursos temáticos e figurativos, a coerência semântica do discurso e cria, com a concretização figurativa do conteúdo, efeitos de sentido, sobretudo, de realidade.

No caso do texto analisado, há o tema central da seca nordestina e a consequente migração do povo nordestino em busca de sobrevivência. Para o desenvolvimento do tema, há investimento figurativo em que o valor do objeto “sobrevivência” encontra-se nas figuras da esperança e da metamorfose do ser para sobreviver.

A partir do revestimento figurativo do objeto-valor, o percurso do sujeito é figurativizado. Para tanto, as transformações narrativas tornam-se “alimentar-se de esperança”, “libertar-se da matéria”, “adquirir forças”, “mudar de lugar”, “mudar de forma”, “assumir nova identidade”, “esquecer as origens”, “tornar-se sobrevivente” (ou “tornar-se marginalizado”).

No nível discursivo, as categorias pessoa, tempo e espaço já foram analisadas enquanto projeções da enunciação e podemos verificar que os atores “criançada”, “meninos”, “uns”, “outros”, “essa gente” representam o sujeito que sofre as transformações no nível narrativo. Ressaltamos, ainda, que nesse texto a figurativização vai além, chega ao extremo, passando então à iconização do tema.

Todavia, não são apenas os atores que constroem essa figurativização, pois o espaço é antropomorfizado, e, enquanto figura central, é ele que representa a transformação do sujeito. É o espaço que determina o jogo entre o real e o ficcional

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instaurado no texto, já que ao mesmo tempo em que sugere a realidade por situar o sujeito em um lugar concreto, no plano da ficção, ele passa a representar o estado permansivo de sofrimento e a busca constante de uma solução pelo sujeito, movido pela esperança.

Assim, o espaço é enunciado inicialmente como “o Brejo da Cruz”, que se transforma em “um Brejo da Cruz”. No início, o espaço situa o sujeito em um lugar físico, delimitado, que dá ancoragem ao discurso, já que produz efeito de realidade, pois remete a um lugar concreto, a um referente no mundo.

Todavia, esse espaço vai se transformando ao longo do texto e passa a ser um lugar indeterminado, nem “aqui” nem “lá”, simplesmente “na rodoviária”, que mais uma vez situa a transformação do sujeito em um espaço indefinido, genérico, visto que “rodoviária” denomina um local de partida e de chegada, existente em qualquer centro urbano.

Na sequência, o espaço torna-se “de onde”, uma forma ainda mais abstrata (e genérica) de nomear um lugar, uma vez que “onde” linguisticamente é um pronome geralmente utilizado para designar lugar incerto, não definido.

A última referência feita ao espaço é enunciada como “um Brejo da Cruz”, em que o artigo indefinido “um” contrapõe-se a “o” utilizado inicialmente, o que leva ao subentendido de um lugar genérico em oposição a um lugar específico. Daí podermos concluir que o espaço tornou-se um lugar qualquer, definido pelo estado de transformação do sujeito.

Dessa forma, podemos, então, averiguar, a seguir, a coerência do texto pela reiteração do tema e a recorrência das figuras, o que se denomina isotopia pela teoria semiótica do discurso.

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2.4.4 Isotopia e coerência textual em Brejo da Cruz

Como esse texto apresenta um discurso pluri-isotópico, temos as isotopias figurativas centrais da luz e da metamorfose que lhe asseguram a coerência semântica, assim marcadas no discurso:

a) Luz: “se alimentar de luz”; “alucinados”; “ficando azuis”; “eletrizados”; “cruzam os céus do Brasil”.

b) Metamorfose: “desencarnados”; “assumem formas mil”; “uns”; “outros”; “milhões desses seres / Que se disfarçam tão bem”; “essa gente”; “são jardineiros, guardas-noturnos, casais”; “são passageiros / Bombeiros e babás”.

As duas figuras centrais investem os temas esperança e sobrevivência desenvolvidos no texto. A primeira representa a força interna que o migrante nordestino tem para deixar o seu lugar de origem, em busca de um lugar melhor, ao passo que a segunda representa a transformação pela qual esse migrante tem que passar para poder sobreviver em lugar onde é discriminado pelo preconceito que há nesse lugar.

No percurso narrativo, os que não são movidos pela esperança, mas pela saudade (“Uns têm saudade / E dançam maracatus) e pela revolta (“Uns atiram pedra”), não se transformam, ficam à margem da sociedade, tornam-se miseráveis (“passeiam nus”) e não conseguem sobreviver. Esses versos desencadeiam outra isotopia que propicia outra leitura temática: a do preconceito e da revolta, uma vez que os atores figurativizam o grupo marginalizado, os que se revoltaram e, por não aceitarem as novas condições para a sobrevivência, foram levados à condição de miséria, sem o mínimo necessário à sobrevivência.

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Outro verso desencadeador de isotopia é “Balançam nas construções”, em que o verbo “balançar” propõe uma leitura polissêmica e rompe com a figura dos que “são”, isto é, dos que se transformaram, mudaram sua identidade, para sobreviver, assumindo formas diversas para tal. Nesse sentido, “balançam” sugere a leitura “dos que não são”, quer dizer, dos que não se adaptaram, ou ainda, dos que não têm segurança por arriscarem suas vidas devido ao tipo de trabalho que conseguem para sobreviver (a construção civil).

Dessa forma, esse verso sugere também uma leitura intertextual, por meio da qual encontramos textos produzidos pelo mesmo autor, como Construção, assim como Meu guri, Pivete, Geni e o Zepelin, que tratam dos temas cidadania e exclusão social, figurativizando-os em outros atores.

Além dos versos apresentados como desencadeadores de isotopias, o título, que constrói o sentido global do texto, além de sua significação interna, como já fora analisado, em relação à categoria espaço, pode ser construído também por uma leitura intertextual.

Ao averiguarmos, no contexto histórico, a relação do título do texto com outras lexias que se referissem a topônimos, encontramos em Boletim Informativo do discurso socioeconômico a lexia Brejo do Cruz, que designa um lugarejo situado no interior da Paraíba, tendo este recebido esse nome devido ao desbravador do sertão paraibano que fundou o povoado por volta de 1700, cujo nome era Manoel da Cruz Oliveira Ledo, de acordo com dados do SEBRAE/PB (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Paraíba, 1996).

Dessa forma, a construção da lexia Brejo da Cruz dá-se na oposição do artigo definido feminino “a” com o artigo definido masculino “o”, de Brejo do Cruz. Neste, a relação é de situador/situado, em que o uso do artigo masculino marca essa relação,

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ao passo que em Brejo da Cruz o uso do artigo feminino marca a relação de nome e ser caracterizador.

A lexia Brejo da Cruz formaliza-se, na dimensão vocabular, por uma combinatória que se explica interlexicalmente pela articulação “L + G + G + L”.

Analisada isoladamente, o lexema “Brejo”, dentre as várias predicações dadas pelo dicionário, encontra-se “terreno sáfaro, agreste, que só dá urzes, urzal”. Enquanto o lexema “cruz”, no dicionário de Aurélio: “s.f. 1. Antigo instrumento de suplício, constituído por dois madeiros, um atravessado no outro, em que se amarravam ou pregavam os condenados à morte. 2. P. ext. Aflição, pena infortúnio, trabalhos. 3. O madeiro em que foi pregado Jesus Cristo”.

Quanto ao gramema “de” + o gramema “a”; de, no dicionário de Aurélio: “Preposição. Partícula de larguíssimo emprego em português. Usa-se, além de outros casos, nos seguintes: 1. Entre dois substantivos, indicando: a) relação atributiva possessiva que era expressa pelo genitivo latino; b) adjunto adnominal; c) a relação duma denominação especial”. E o gramema “a”, no dicionário: “Art. Def. fem. do art. “o”.

Portanto, a lexia é composta por “Brejo” que, metaforicamente, refere-se a um lugar que oferece escassas condições de sobrevivência, e por “cruz”, que constitui um sinal de martírio, de sofrimento, de acordo com a crença cristã, de forma a construir uma ressemantização para a lexia. Ambos lexemas estão ligados pela preposição “de”, que estabelece a relação de nome e adjunto adnominal. Todavia, o artigo definido feminino “a” é que define a caracterização do lugar, acrescentando-lhe o adjunto adnominal, que se formaliza por uma locução adjetiva (da cruz).

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Nesse sentido, como já fora explicitado, além do conteúdo construído internamente no texto, houve a construção intertextual do sentido, uma vez que na oposição do “o” ao “a”, o elemento “cruz” foi ressemantizado pelo enunciador do texto, a fim de representar linguisticamente o que semanticamente contém o texto.

Assim, pudemos observar a coerência das isotopias, no nível do discurso, que assegurou a argumentação relativa ao tema proposto pelo texto Brejo da Cruz, conforme fora exposto nesse item.

Passemos, então, para as estruturas fundamentais do texto, que, por serem mais abstratas, deixamos para serem analisadas no final do percurso, visto que as estruturas narrativa e discursiva possibilitaram a apreensão delas, embora a teoria semiótica proponha que seja a primeira etapa do percurso gerativo do sentido.

2.5 Estruturas fundamentais em Brejo da Cruz

Ao utilizarmos a representação das estruturas fundamentais do texto pelo quadrado semiótico, podemos visualizar as seguintes relações mínimas:

Morte

Não vidaNão morte

Vida

Podemos dizer que o denominador comum que abarca o sentido mais genérico do texto Brejo da Cruz é o da vida versus morte, em que se encontram dois percursos paralelos, um que euforiza a vida e torna a morte disfórica e outro

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que, ao contrário, euforiza a morte e disforiza a vida. Assim, as estruturas fundamentais determinadas pelas categorias tímicas nesse texto podem ser representadas da seguinte forma:

Vida Não vida Morte

(Morte Não morte Vida)

Para o desenvolvimento dessa relação mínima, outras categorias semânticas se desenvolvem no texto, tais como:

Desesperança

Não esperançaNão desesperança

Esperança

Ou ainda:

Multiformidade

Não uniformidadeNão multiformidade

Uniformidade

Ou também:

Indigência

Não cidadaniaNão indigência

Cidadania

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Além de:

Aqui

Não LáNão aqui

São essas categorias semânticas do nível fundamental que orientam as relações para a narratividade, em que encontramos as transformações do sujeito em Brejo da Cruz, bem como a construção argumentativa no nível do discurso já analisados anteriormente.

Bibliografia básica

BARROS, Diana Luz P. de. “Estudos do discurso”. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística II: princípios de análise. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007, p.187-218.

ORLANDI, Eni. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005.

ORLANDI, ENI P. “Análise de discurso”. In: ORLANDI, E. P.; LAGAZZI, R. S. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas, Pontes, 2006, p.11-31.

Bibliografia complementar

AUSTIN, John L. How to do things with words. London: Oxford University Press, 1962.

BAKHTIN, Michail. El método formal en los estudios literários: introducción crítica a una poética sociológica. Trad. Tatiana Bubnova. Madrid: Alianza Editora, 1994.

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________________. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem.13. ed.Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2007.

___________________________. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

__________________________. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002.

BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2003.

BRANDÃO, Helena N. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Trad. Brasileira. Campinas: Pontes, 1987.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido. Petrópolis: Vozes, 1975.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. La enunciación de la subjetividad en el lenguaje. 3. ed. Trad. Castelhano de Gladys Anfora y Emma Gregores. Argentina: EDICIAL, 1980.

KOCH, Ingedore Grunfield Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: Pontes e Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997.

ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. São Paulo: Pontes, 2003.

SEARLE, J. R. Speech Acts. London: Cambrigde University Press, 1969.

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