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ANTOLOGIA DE CRÔNICAS – ORG. HERBERTO SALES A Antologia escolar de crônicas reúne 80 crônicas de 10 excelentes cronistas do século XX: Carlos Heitor Cony, Eneida, Joel Silveira, José Cândido de Carvalho, Lêdo Ivo, Maluh de Ouro Preto, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto. Crônica é, por definição, um texto híbrido, pois, não sendo exatamente narrativo, descritivo ou dissertativo, pode ser um mistura. Em geral, a crônica nasce de um fato ou imagem cotidiana. Fora a gênese e o tamanho (curto), que são comuns a esse gênero de texto, a crônica não tem outra definição. Como apresenta liberdade temática formal e estilística, pode ou não contar uma história, ser o relato de uma experiência pessoal, ter humor, fazer crítica social e política. O estilo dos cronistas reunidos para essa antologia permite-nos perceber o que é possível fazer em crônica: reflexões sobre o cotidiano presente e passado, poesia em prosa, textos narrativos, homenagem a pessoas famosas ou anônimas, textos memorialistas, defesa de idéias. Seja qual for o estilo adotado pelo autor, a crônica é um registro entre o poético e o jornalístico, um recorte na passagem do tempo, por isso ao mesmo tempo em que aponta para o cotidiano, deixa entrever o que é eterno na trajetória humana. Levando em conta a seleção dessa antologia, seria interessante analisar dois temas: o registro de outro tempo e do que é sempre eterno. 1-Registros de outro tempo: primeira metade do século XIX – Já que a antologia se compõe de autores que retratam a realidade brasileira anterior ao processo de expansão urbana e industrial, pode-se perceber como era a vida cotidiana e os valores antes da passagem para o Brasil atual: industrializado, urbano, globalizado. Seria interessante observar alguns aspectos do cotidiano, como a moradia, a paisagem, as relações familiares, as diversões, bem como os valores, conceito de beleza etc. 2- O que é sempre eterno – Ainda que a crônica aponte para o momento presente em que foi escrita -, muitas vezes diz respeito aos sentimentos humanos, como saudade, amor, tristeza diante da morte. Para facilitar dividiu-se os tipos de crônicas, levando em conta a abordagem predominante, isto é, como o autor aborda o fato ou a imagem cotidiana. Desse modo, as crônicas dessa antologia tratam de: Reflexões sobre o cotidiano; Poema em prosa; Narrativas; Homenagem a pessoas; Textos memorialistas; Defesa de idéias. Reflexões sobre o cotidiano Em geral, as crônicas partem de um fato ou uma percepção do cotidiano que leva a uma reflexão sobre a vida humana, os relacionamentos, os costumes. Tantos as crônicas de Carlos Heitor Cony quanto as de Eneida estão estruturadas sobre reflexões do cotidiano. No entanto, há uma diferença 1

Antologia de Crônicas Organizado Por Herberto Sales

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Encarte do livro de Crnicas organizado por Herberto Sales

ANTOLOGIA DE CRNICAS ORG. HERBERTO SALESA Antologia escolar de crnicas rene 80 crnicas de 10 excelentes cronistas do sculo XX: Carlos Heitor Cony, Eneida, Joel Silveira, Jos Cndido de Carvalho, Ldo Ivo, Maluh de Ouro Preto, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Srgio Porto.

Crnica , por definio, um texto hbrido, pois, no sendo exatamente narrativo, descritivo ou dissertativo, pode ser um mistura. Em geral, a crnica nasce de um fato ou imagem cotidiana. Fora a gnese e o tamanho (curto), que so comuns a esse gnero de texto, a crnica no tem outra definio. Como apresenta liberdade temtica formal e estilstica, pode ou no contar uma histria, ser o relato de uma experincia pessoal, ter humor, fazer crtica social e poltica.

O estilo dos cronistas reunidos para essa antologia permite-nos perceber o que possvel fazer em crnica: reflexes sobre o cotidiano presente e passado, poesia em prosa, textos narrativos, homenagem a pessoas famosas ou annimas, textos memorialistas, defesa de idias.

Seja qual for o estilo adotado pelo autor, a crnica um registro entre o potico e o jornalstico, um recorte na passagem do tempo, por isso ao mesmo tempo em que aponta para o cotidiano, deixa entrever o que eterno na trajetria humana. Levando em conta a seleo dessa antologia, seria interessante analisar dois temas: o registro de outro tempo e do que sempre eterno.

1-Registros de outro tempo: primeira metade do sculo XIX J que a antologia se compe de autores que retratam a realidade brasileira anterior ao processo de expanso urbana e industrial, pode-se perceber como era a vida cotidiana e os valores antes da passagem para o Brasil atual: industrializado, urbano, globalizado. Seria interessante observar alguns aspectos do cotidiano, como a moradia, a paisagem, as relaes familiares, as diverses, bem como os valores, conceito de beleza etc.

2- O que sempre eterno Ainda que a crnica aponte para o momento presente em que foi escrita -, muitas vezes diz respeito aos sentimentos humanos, como saudade, amor, tristeza diante da morte.

Para facilitar dividiu-se os tipos de crnicas, levando em conta a abordagem predominante, isto , como o autor aborda o fato ou a imagem cotidiana. Desse modo, as crnicas dessa antologia tratam de: Reflexes sobre o cotidiano; Poema em prosa; Narrativas; Homenagem a pessoas; Textos memorialistas; Defesa de idias.Reflexes sobre o cotidiano

Em geral, as crnicas partem de um fato ou uma percepo do cotidiano que leva a uma reflexo sobre a vida humana, os relacionamentos, os costumes.

Tantos as crnicas de Carlos Heitor Cony quanto as de Eneida esto estruturadas sobre reflexes do cotidiano. No entanto, h uma diferena bsica quanto abordagem. Enquanto Cony se volta para o presente em que vive, Eneida volta-se para o passado.

Poema em prosa

Algumas crnicas so verdadeiros poemas, s que escritos em prosa em vez de verso. O carter potico advm no s da linguagem, mas tambm da abordagem: diante de um objeto ou de uma paisagem, o autor busca o novo, o que nem sempre bvio. Como se trata de um gnero hbrido, porm, a crnica potica, s vezes, tende mais para o filosfico e o informativo e, s vezes, mais para o descritivo ou mesmo metalingustico.

As crnicas de Joel Silveira e Ldo Ivo so predominantemente poticas. Alm do estilo do autor, o que se destaca nos dois conjuntos a inteno. No caso de Joel Silveira, a inteno registrar imagens reais ou de sonho despertadas pela paisagem. No caso de Ldo Ivo, o potico se alia ao informativo.

Narrativas: muitas crnicas so narrativas curtas, quase contos, evidentemente sem a mesma densidade psicolgica. Podem ser de humor, de crtica ou mesmo de lembranas do passado. As crnicas de Jos Cndido de Carvalho so causos populares, marcados pelo humor. Algumas de Paulo Mendes Campos tambm so narrativas.

Homenagem a pessoas: Muitas vezes, crnicas so escritas para homenagear pessoas. Ilustres ou annimos, os homenageados so pessoas especiais que merecem um texto sensvel do cronista. A maioria das crnicas de Maluh de Ouro Preto compe homenagens a pessoas comuns. Marques Rebelo tambm homenageia pessoas em algumas de suas crnicas.

Textos memorialistas: resgatar o passado uma forma de contribuir para a compreenso do presente. A crnica pode no apenas descrever os costumes e pessoas de outros tempos, mas tambm levar as pessoas a refletir sobre as perdas e os ganhos com as mudanas. Eneida, Marques Rebelo e Srgio Porto adotam o tom memorialista. Resgatam s vezes tipos populares.

Defesa de idias: numa crnica, podem-se defender idias sobre diversos assuntos, com a vantagem de no ser necessrio rigor na argumentao, podendo-se apelar para razes mais emocionais ou divertida para explicar determinado ponto de vista. o caso de Otto Lara Resende que defende as mulheres na poltica, as crianas ...

Encarte do livro de Crnicas organizado por Herberto Sales

ESTUDO DE ALGUMAS CRNICAS

Carlos Heitor Cony (Rio de Janeiro, 14/03/26)

Mistrio e Fragilidade - Narrado em 1 pessoa expe a relao pai e suas filhas no dia dos pais. O desaparecimento de dinheiro do pai, a desconfiana de um possvel ladro, a descoberta do presente preparado pelas filhas. O mistrio se desfaz ante a fragilidade das pequenas meninas e do frgil amor paterno, o perdo se produz: Essa fragilidade que escora o homem s desnecessrio a que estou me habituando e cuja fortaleza nica e imerecida so dois pequeninos rostos que me beijam e afagam, como somente as crianas afagam e consolam. (pg. 10)

Vendi a Alma Sim, vendi a alma ao demnio no o coro de afirmar ou no coro de afirm-lo, que os gramticas se sirvam. Prometi contar esta edificante passagem de minha no menos edificante biografia e vejo que o assunto salutar e fecundo para o proveito e comoo de vs outros.(p.15) Texto metalingstico narrado em 1 pessoa, traz as lembranas do menino, de forma quase irnica, conta o pacto feito com o demnio, mas no um pacto de sangue (no cometi nenhuma violncia contra minha msera carne). Firmado o pacto, nada aconteceu aps. O narrador no se lembra do porqu do pacto. Ironicamente ele encerra a crnica referindo-se s mulheres e afirma que o corpo dele no est a venda, deve ser apenas contemplado. Ficam apenas o fantasmas do passado dele.Eneida Costa de Morais (Belm PA, 23/10/03 2704/71)

Demasiadamente texto com traos metalingsticos Quem conta um conto, acrescenta um ponto, diz o ditado. No caso presente no precisaremos acrescentar nada, tantos os pontos existentes: Anbal Vicente foi preso porque marido de cinco mulheres e noivo de mais de uma dezena de jovens. (pg.25) Um golpe, um crime de um sedutor est sendo contado, com traos de ironias Assinava Ouro Branco, pois era de ouro que precisava Anbal. Muito ouro pra bem viver...O narrador de 3 pessoa conduz a histria como um observador, ao final trava uma conversa com o leitor: Aqui para ns, digam, Vicente, mesmo roubando suas enamoradas, no lhes ter dado alguma felicidade? (p.27)

Joel Silveira (23/09/18)

As palavras narrada em 1 pessoa, um texto metalingstico reflete sobre o ofcio de escrever de forma potica. Assim policiado, o ofcio de escrever se transforma num tormento, como o exerccio de um aprendiz (pg. 56)

Cogumelos texto em 1 pessoa. Cogumelos metaforiza os edifcios. Compara os prdios com a natureza Um carvalho no nasce e cresce to depressa; nem uma amendoeira. Quem nasce assim, quase da noite para o dia, so os cogumelos, a grama rala que aflora entre as pedras, talvez as boninas. (pg. 57) A crnica demonstra a apreenso do narrador que no gosta e no confia nos edifcios, apesar de morar em um deles.

Jos Cndido de Carvalho (05/08/14)

A carta histria de Setembrino Fac, major, que depois de um acidente uma chifrada de boi no ficou bom das idias. s vezes mandava passar a farda para votar em Floriano Peixoto, morto h 8 anos. Outras andava pelas ruas, dava duas voltas em torno da igreja e voltava. Com a chegada de Felisberto, capito-delegado, um sujeito que amedronta a todas, um fato inusitado ocorreu. Setembrino saiu, como todos os dias, mas desta vez no fez o mesmo percurso. Foi atrs de Felisberto e deu-lhe um murro mandando-o abandonar a cidade, este fugiu apavorado. Depois disso, o major escreveu uma verbosa carta ao Marechal Floriano Peixoto.

Ldo Ivo (18/02/24)

O estribo prateado o narrador conduz a crnica potica e metaforicamente. O personagem sai de uma situao financeira precria ao ganhar no jogo do bicho. Desejou realizar seu sonho ser um piauiense de quatrocentos anos. Saiu a procura de mveis antigos, os quais s conseguiu no Rio de Janeiro. Depois da casa montada a nica coisa que o agradava mesmo era o estribo prateado, com que seu tatarav, indmito Joo da Silva, arreou o seu cavalo branco, ao desbravar o Piau.(pg.86)Maluh de Ouro Preto (02/03/22)

Felicidade Inicia como um conto de fadas: Era uma vez uma senhora que desde menina tinha uma vontade enorme de possuir um desses copos antigos, todos trabalhados a ouro e salpicados de florinhas multicolores que trazem desenhada em letras finas a palavra Felicidade. (pg. 107) Com elementos de 1 pessoa a narradora utiliza traos metalingsticos.Um dia ela descobre na Casa Rola, um local em desordem, o to desejado copo, entretanto no pode lev-lo porque o proprietrio da loja queria muito pela raridade. Decepcionada volta para casa e pra de pensar no copo, at que um dia um incndio destri a Casa Rola. Ela, ento, passando pelo local descobre que uma loja vendia os restos do incndio e l encontrou o copo, por uma ninharia o comprou. Em casa, constatou que havia uma rachadura no copo bem sobre a palavra felicidade. A senhora guardou o copo assim mesmo, conserva-o com carinho e teme que possa quebrar-se de vez. Mas sempre que perto dela se fala em felicidade, se existe ou no, se questo de sorte ou luta, recompensa ou acaso, se dura ou efmera, e se qualquer um pode obt-la, a senhora de minha histria no diz nada, e suspira pensando no copo. (p. 108)

Otto Lara Resende (01/05/22)No h vaga Intertextualiza com a histria bblica do nascimento de Cristo. O Menino-Deus veio ao mundo num quadro de extrema humildade e despojamento. Um pobre carpinteiro sai com sua mulher de Nazar e viaja primitivamente at Belm... (p. 147) Aps contar essa passagem do nascimento o cronista se remete ao ano de 1966 e falta do Natal, da comemorao da data e do esquecimento do fato: Num mundo dominado pelo sentimento do lucro e da competio, como entender a mensagem e o mistrio que se desprendem da humildade da gruta de Belm? A crnica uma reflexo do mundo capitalista que esquece o lado espiritual; a vaga que no havia para Cristo, que nasce em um estbulo, ainda existe hoje. Mas o texto termina com uma reflexo sobre a esperana: Algo mais forte, porm, me diz que, contra toda evidncia e contra todas as portas fechadas, no fundo do corao humano subsiste a Esperana. E dela que fala o Natal. (pg. 148)3