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Celso R. Braida Antologia de Ontologia (textos selecionados) Rocca Brayde

Antologia de Ontologia - netmundi.org · contemporânea de ontologia. Nas traduções, todas elas provisórias, como não poderia deixar de ser, procuro antes de tudo explicitar e

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Celso R. Braida

Antologia de Ontologia

( te xtos se lecionados)

Rocca Brayde

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© Celso R. Braida, 2011.

Os textos aqui publicados foram organizados e traduzidos como parte de projetos de pesquisa e ensino no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Antologia de Ontologia(textos selecionados)

organização e traduçãode

Celso R. Braida

ROCCA BRAYDEFlorianópolis

2011

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Sumário

1.Prólogo.......................................................................................3

2.Sobre a própria ideia de um esquema conceitual.......................5

3.Quatro ontologias.....................................................................27

4.Classificação das asserções fundamentais...............................53

5.O modo como é o mundo.........................................................63

6.Filosofia e o conflito entre tendências de vida........................75

7.O pensamento e a estrutura do mundo: Discours d'ontologie..89

8.Identidade e igualdade...........................................................131

9.Além de ser e não-ser.............................................................163

10.Questões sobre a unidade da consciência............................181

11.Apresentação (da Teoria do objeto de A. Meinong)............189

12.Sobre a teoria do objeto.......................................................217

13.Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações..................................................................................................271

14.Sobre a existência em Frege................................................317

15.Prólogo às Leis básicas da Aritmética.................................339

16.Lógica [1897]......................................................................369

17.Diálogo com Pünjer sobre a existência................................403

18.Proposições seminais sobre a Lógica...................................425

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1. Prólogo

Os textos aqui reunidos constituem fontes básicas

utilizadas nos meus cursos de Ontologia e de Filosofia da

Linguagem no Curso de Filosofia da UFSC. A seleção de

textos foi realizada com base nos objetivos de propiciar,

primeiro, a leitura em português de textos fundantes da

filosofia contemporânea e, segundo, oportunizar uma

introdução e uma iniciação nos conceitos e na discussão

contemporânea de ontologia. Nas traduções, todas elas

provisórias, como não poderia deixar de ser, procuro antes

de tudo explicitar e retextualizar os conceitos e as

proposições teóricas, com isso sacrificando muitas vezes a

palavra e a gramática, visto que, embora a tradução de

textos filosóficos não difira da tradução de outros textos, ali

o viés do conceito se sobrepõe ao da palavra.

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2. Sobre a própria ideia de um esquema conceitual

Donald Davidson

Tradução de Celso R. Braida (Ufsc), tendo por base uma primeira versão de Noeli Rahme e Rafael Azize, a partir do original “On the very idea of a conceptual scheme”, in Inquiries into truth and interpretation, Oxford, Clarendon Press, 1984, pp. 183-198.

Filósofos de diversas persuasões têm tendência a falar em esquemas conceituais. Esquemas conceituais, dizem-nos, são modos de organizar a experiência; são sistemas de categorias que dão forma aos dados dos sentidos; são pontos de vista a partir dos quais indivíduos, culturas ou períodos examinam a cena dos acontecimentos. Pode não ser possível a tradução de um esquema para outro e, nesses casos, as crenças, desejos, esperanças e partes de conhecimento que caracterizam uma pessoa não têm uma contrapartida verdadeira para o partidário de outro esquema. A própria realidade é relativa a um esquema: o que é tomado como real num sistema pode não o ser em outro.

Mesmo aqueles pensadores que estão seguros de haver apenas um esquema conceitual estão sob a influência do conceito de esquema; até monoteístas têm religião. E quando alguém se propõe a descrever “o nosso esquema conceitual”, parte do princípio, na sua prática habitual, se o tomamos literalmente, de que possa haver sistemas rivais. O relativismo conceitual é uma

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doutrina inebriante e exótica, ou sê-lo-ia se pudéssemos fazer uma ideia clara dela. A questão, como é tão comum em filosofia, é que é difícil aumentar a inteligibilidade e simultaneamente manter a empolgação. Seja como for, é isto que eu tentarei argumentar.

Somos encorajados a imaginar que compreendemos mudanças conceituais expressivas ou profundos contrastes através de exemplos legítimos de tipo familiar. Por vezes uma ideia – por exemplo a da simultaneidade, tal como definida na teoria da relatividade – é tão importante que, ao agregá-la, um departamento inteiro da ciência assume uma nova configuração. Outras vezes, revisões na lista de sentenças tidas por verdadeiras numa disciplina são tão cruciais a ponto de acharmos que os termos envolvidos tiveram os seus sentidos modificados. Linguagens que se desenvolveram em períodos ou locais distantes podem diferir extensamente quanto aos seus recursos para lidar com esta ou aquela ordem de fenômenos. Pode ser difícil exprimir numa linguagem o que, noutra, se exprime com facilidade, e esta diferença talvez ecoe desigualdades importantes de estilo e valor.

Mas exemplos como estes, impressionantes como eles ocasionalmente são, não são tão extremos a ponto de não poderem as mudanças e contrastes ser descritas usando-se os recursos de uma só linguagem. Whorf, ao querer demonstrar que o Hopi incorpora uma metafísica tão estranha à nossa que o Inglês e o Hopi não podem, nas suas palavras, “ser calibrados”, usa o Inglês para exprimir os conteúdos de exemplos de sentenças do Hopi.1 Kuhn descreve com brilhantismo a forma como as coisas eram antes da revolução utilizando – como não fazê-lo? – o nosso idioma pós-revolucionário.2 Quine guia-nos até à “fase pré-individuativa na evolução do nosso esquema conceitual”3, e Bergson, por sua vez, diz-nos aonde devemos ir se queremos ter

1 B. L. Whorf, “The Punctual and Segmentative Aspects of Verbs in Hopi”.2 T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions.3 W. V. Quine, “Speaking of Objects”, p. 24.

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uma visão de uma montanha que não sofra uma ou outra distorção local de perspectiva.

A metáfora dominante do relativismo conceitual, a dos pontos de vista diferentes, parece trair um paradoxo subjacente. Pontos de vista diferentes fazem sentido, mas apenas se há um sistema co-ordenado comum no qual situá-los; contudo, a existência de um sistema comum desmente a proposta da incomparabilidade drástica. Do que precisamos, ao meu ver, é de uma noção das considerações que traçam os limites para o contraste conceitual. Há suposições extremas que se afundam em paradoxos ou contradições; há exemplos modestos que não temos problema em compreender. O que determina o momento em que passamos do meramente estranho, ou novo, ao absurdo?

Podemos aceitar a doutrina que associa a posse de uma linguagem com a posse de um esquema conceitual. Pode-se supor que a relação seja a seguinte: onde esquemas conceituais diferem, assim também as linguagens. Mas falantes de linguagens diferentes podem partilhar um esquema conceitual na medida em que haja uma forma de traduzir uma linguagem para outra. Estudar os critérios de tradução é, portanto, um modo de se concentrar em critérios de identidade para esquemas conceituais. Se esquemas conceituais não estão associados a linguagens desta maneira, o problema original é desnecessariamente duplicado pois, então, teríamos de imaginar a mente, com as suas categorias ordinárias, a operar com uma linguagem com a sua estrutura organizadora. Nestas circunstâncias, certamente quereríamos perguntar quem é suposto ser o mestre.

Alternativamente, existe a ideia de que qualquer linguagem distorce a realidade, o que implica que apenas sem palavras, se é que, a mente apreende diretamente as coisas tais como realmente são. Isto é conceber a linguagem como um meio inerte (ainda que necessariamente deformador), independente dos agenciamentos humanos que o empregam; uma visão da linguagem que seguramente não pode ser mantida. Contudo, se a mente pode

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lidar com o real sem distorção, a própria mente deve ser desprovida de categorias e conceitos. Esta mente sem traços é familiar a teorias situadas em pontos bastante diversos da paisagem filosófica. Há teorias, por exemplo, que concebem a liberdade como consistindo em decisões tomadas sem nenhuma influência dos desejos, hábitos e disposições do agente; e teorias do conhecimento que sugerem que a mente pode observar a totalidade das suas próprias percepções e idéias. Em ambos os casos, a mente está separada dos traços que a constituem; uma conclusão incontornável a partir de certas linhas de raciocínio, como já disse, mas que deveria sempre nos persuadir a rejeitar as premissas.

Podemos então identificar esquemas conceituais com linguagens, ou melhor, concedendo a possibilidade de que mais de uma linguagem podem expressar o mesmo esquema, com conjuntos de linguagens traduzíveis entre si. As linguagens não serão pensadas como separadas de almas; falar uma linguagem não é um traço que um homem possa perder ao mesmo tempo em que retenha o poder de pensar. Portanto, não há hipótese de que alguém possa assumir um ponto de vista vantajoso para comparar esquemas conceituais, isolando-se temporariamente do seu próprio esquema. Podemos, então, dizer que duas pessoas têm esquemas conceituais diferentes se elas falam linguagens que não logram ser intertraduzíveis?

Na sequência, considero dois tipos de casos cuja ocorrência se pode esperar: falhas completas e parciais de traduzibilidade. Haveria uma falha completa se nenhuma sequência importante de sentenças numa linguagem pudesse ser traduzida para outra; haveria falha parcial se alguma sequência pudesse ser traduzida e outra sequência não pudesse (devo negligenciar possíveis assimetrias). A minha estratégia será argumentar que uma falha completa não faz sentido, e em seguida examinar com mais brevidade casos de falha parcial. Primeiro, então, os alegados casos de falha completa. É tentador tomar um caminho bastante

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curto: nada, dir-se-ia, poderia configurar uma evidência de que alguma forma de atividade não pudesse ser interpretada na nossa linguagem que não fosse, ao mesmo tempo, evidência de que essa forma ou atividade não fosse um comportamento de fala (speech behaviour). Se isto fosse verdade, provavelmente seríamos obrigados a manter que uma forma de atividade que não possa ser interpretada como linguagem na nossa linguagem não é comportamento de fala. Pôr as coisas nestes termos é contudo insatisfatório, já que pouco mais faz do que transformar a traduzibilidade para uma língua familiar num critério de linguisticidade (languagehood). Como autorização, a tese carece do atrativo da auto-evidência; se se trata de uma verdade, como eu penso que é, ela deveria emergir como a conclusão de um argumento.

A credibilidade da posição melhora se refletirmos nas relações íntimas entre linguagem e a atribuição de atitudes tais como crença, desejo e intenção. Por um lado, é evidente que a fala requer uma miríade de intenções e crenças finamente discriminadas. Uma pessoa que assevera que a perseverança mantém a honra limpa deve, por exemplo, representar-se como alguém que acredita que a perseverança mantém a honra limpa, e deve tencionar representar-se como alguém que acredita nisto. Por outro lado, parece improvável que possamos inteligivelmente atribuir atitudes tão complexas como estas a um falante a menos que possamos traduzir as suas palavras nas nossas. Não pode haver dúvida de que a relação entre ser-se capaz de traduzir a linguagem de alguém e ser-se capaz de descrever as suas atitudes é muito próxima. Ainda assim, até que possamos dizer mais coisas acerca do que esta relação é, o processo contra linguagens intraduzíveis permanecerá obscuro.

Considera-se por vezes que a traduzibilidade numa linguagem familiar, por exemplo o Inglês, não pode ser um critério para se identificar a linguisticidade, baseando-se no fato de que a relação de traduzibilidade não é transitiva. A ideia é a de

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que uma linguagem, por exemplo o Saturniano, possa ser traduzível para o Inglês, e de que alguma outra, como o Plutoniano, possa ser traduzível em Saturniano, ao passo que o Plutoniano não é traduzível em Inglês. Um certo número de diferenças traduzíveis podem cumulativamente conduzir a uma intraduzível. Ao imaginar uma sequência de linguagens, cada uma suficientemente próxima da anterior de modo a ser traduzível nela, podemos imaginar uma linguagem de tal forma diferente do Inglês a ponto de opor uma total resistência à sua tradução nesta última. Correspondendo a esta linguagem distante, haveria um sistema de conceitos totalmente estranho ao nosso.

Este exercício não introduz, creio, nenhum elemento novo na discussão. Pois deveríamos ter de perguntar de que maneira teríamos reconhecido que aquilo que o Saturniano estava a fazer era traduzir Plutoniano (ou qualquer outra coisa). O falante saturniano poderia dizer-nos que era isto que ele estava fazendo, ou antes, poderíamos por um momento partir do princípio de que era isto que ele nos estava dizendo. Mas então poderia nos ocorrer de perguntar se nossas traduções do Saturniano são corretas. Segundo Kuhn, cientistas que operam em tradições científicas diferentes (no interior de “paradigmas” diferentes) “trabalham em mundos diferentes”.1 The Bounds of Sense, de Strawson, começa pela observação acerca de “ser possível imaginar tipos de mundos bastante diferentes do mundo tal como nós o conhecemos”.2 Uma vez que há, no máximo, um mundo, estas pluralidades são metafóricas ou apenas imaginárias. No entanto, as metáforas não são de todo as mesmas. Strawson convida-nos a imaginar mundos não-reais (non-actual) possíveis, mundos esses que possam ser descritos, utilizando-se a nossa linguagem atual, através da redistribuição, de variadas formas sistemáticas, de valores de verdade atribuídos às sentenças. A clareza dos contrastes entre mundos depende, neste caso, de se supor que o nosso esquema de conceitos, os nossos recursos

1 T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 134.2 P. Strawson, The Bounds of Sense, p. 15.

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descritivos, permanecem fixos. Kuhn, por outro lado, quer que pensemos em diferentes observadores do mesmo mundo, os quais abordam (come to) esse mundo munidos de sistemas conceituais incomensuráveis. Os muitos mundos imaginados de Strawson são vistos ou ouvidos ou descritos do mesmo ponto de vista; o mundo único de Kuhn é visto de diferentes pontos de vista. Esta é a segunda metáfora na qual gostaríamos de trabalhar. A primeira metáfora requer a distinção, no interior da linguagem, entre conceito e conteúdo: utilizando um sistema fixo de conceitos (palavras com sentidos fixos), descrevemos universos alternativos. Algumas sentenças serão verdadeiras apenas devido aos conceitos ou sentidos envolvidos, outras devido ao estado das coisas no mundo (the way of the world). Ao descrevermos mundos possíveis, trabalhamos apenas com sentenças do segundo tipo.

A segunda metáfora sugere, por outro lado, um dualismo de tipo bastante diverso, um dualismo de um esquema (ou linguagem) total e um conteúdo não interpretado. A adesão ao segundo dualismo, ainda que não seja inconsistente com a adesão ao primeiro, pode apoiar-se em ataques ao primeiro. Eis como isto poderia funcionar.

Abandonar a distinção analítico-sintético como sendo básica para a compreensão da linguagem é abandonar a idéia de que possamos distinguir claramente entre teoria e linguagem. O sentido (meaning), na acepção um tanto frouxa que possamos dar-lhe, é contaminado pela teoria, pelo que é tido como verdadeiro. Feyerabend expressa-o como se segue:

O nosso argumento contra a invariância do sentido é simples e claro. Deriva do fato de que alguns dos princípios envolvidos nas determinações dos sentidos de teorias ou pontos de vista antigos são normalmente inconsistentes com as novas (...) teorias. Ele assinala que é natural resolver esta contradição eliminando os incômodos (...) princípios antigos e substituindo-os por princípios, ou teoremas, de uma nova (...) teoria. E o argumento conclui

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mostrando que este tipo de procedimento também conduzirá à eliminação dos sentidos antigos1

Dir-se-ia que agora dispomos de uma fórmula para produzir esquemas conceituais distintos. Extraímos um esquema novo a partir de um velho quando os falantes de uma linguagem chegam a tomar por verdadeiro um expressivo conjunto de sentenças que eles antes tinham como falsas (e, é claro, vice-versa). Não devemos descrever esta mudança apenas em termos de uma visão de antigas falsidades como verdades, pois uma verdade é uma proposição, e o que os falantes terminam por aceitar, ao aceitar uma sentença como verdadeira, não é a mesma coisa que rejeitaram quando, dantes, tinham a sentença como falsa. Aconteceu uma mudança no sentido da sentença porque esta pertence agora a uma nova linguagem.

Esta imagem acerca de como novos (quiçá melhores) esquemas resultam de uma ciência nova e melhor é, em grande medida, a concepção que nos foi avançada por filósofos da ciência, como Putnam e Feyerabend, e historiadores da ciência, como Kuhn. Uma ideia relacionada a esta emerge da sugestão de alguns outros filósofos de que poderíamos melhorar os conceitos de que dispomos se regulássemos a nossa linguagem segundo a frequência de uma ciência melhorada.

Assim, Quine e Smart, de maneiras um tanto diferentes, admitem com tristeza que os nossos modos atuais de falar tornam impossível uma ciência rigorosa do comportamento. (Wittgenstein e Ryle disseram coisas similares sem nenhum pesar.) A cura é, pensam Quine e Smart, mudarmos a maneira como falamos. Smart advoga (e prevê) tal mudança de molde a por-nos diretamente no caminho científico do materialismo; Quine está mais preocupado em limpar o caminho para uma linguagem puramente extensional. (Talvez eu deva acrescentar que julgo serem os nossos esquema e linguagem atuais melhor compreendidos como extensionais e materialistas.)

1 P. Feyerabend, “Explanation, Reduction, and Empiricism”, p. 82.

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Se seguíssemos este conselho, não creio que a ciência ou o entendimento avançassem, embora a moral talvez. Mas a questão aqui, caso tais mudanças tivessem lugar, é apenas a de termos ou não justificativa para chamá-las de alterações no aparato conceitual básico. Não é difícil perceber a dificuldade de assim o fazermos. Suponha que eu, na minha administração como Ministro da Linguagem Científica, deseje que o novo homem pare de utilizar palavras que refiram, por exemplo, emoções, sentimentos, pensamentos e intenções, e que ele em vez disto passe a falar dos estados e acontecimentos fisiológicos que se supõe serem mais ou menos idênticos ao murmúrio mental. Como posso saber se o meu conselho foi seguido, já que o novo homem fala uma nova linguagem? Tanto quanto eu possa saber, talvez as sentenças novas em folha, embora roubadas à linguagem antiga, na qual elas referem os sinais fisiológicos, desempenhem na sua boca o mesmo papel dos intrincados conceitos mentais antigos. A expressão crucial é: tanto quanto eu possa saber. O que está claro é que a retenção de parte ou da totalidade do antigo vocabulário não oferece, em si mesma, uma base para se determinar se o novo esquema é o mesmo que, ou diferente do velho. Portanto, aquilo que havia soado inicialmente como uma impressionante descoberta – que a verdade é relativa a um esquema conceitual – ainda não mostrou ser mais do que o fato pedestre e familiar de que a verdade de uma sentença é relativa à linguagem (entre outras coisas) à qual pertence. Ao invés de viver em mundos diferentes, os cientistas de Kuhn talvez, assim como as pessoas que necessitam de um dicionário do vernáculo, estejam apenas a palavras de distância.

O abandono da distinção analítico-sintético não se revelou útil ao esclarecimento do que seja o relativismo conceitual. A distinção analítico-sintético é, contudo, explicada em termos de algo que pode servir para reforçar o relativismo conceitual, nomeadamente a idéia de conteúdo empírico. O dualismo do sintético e do analítico é um dualismo de sentenças, algumas das

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quais são verdadeiras (ou falsas) tanto por aquilo que significam quanto pelo seu conteúdo empírico, enquanto que outras são verdadeiras (ou falsas) apenas em virtude do sentido, não possuindo conteúdo empírico. Se abandonamos o dualismo, abandonamos a concepção de sentido que ele implica, mas não temos de abandonar a idéia de conteúdo empírico: podemos sustentar, se quisermos, que todas as sentenças têm conteúdo empírico. O conteúdo empírico, por sua vez, explica-se por referência aos fatos, ao mundo, à experiência, à sensação, à totalidade dos estímulos sensoriais, ou algo similar. Os sentidos (meanings) constituíram para nós maneiras de falarmos de categorias, da estrutura organizadora da linguagem, e assim por diante; mas é possível, como vimos, abandonar os sentidos e a analiticidade e ao mesmo tempo reter a ideia da linguagem como incorporando um esquema conceitual. Assim, no lugar do dualismo do analítico-sintético, temos o dualismo de esquema conceitual e conteúdo empírico. O novo dualismo é a fundação dum empirismo despojado dos dogmas insustentáveis da distinção analítico-sintético e do reducionismo – despojado, pois, da impraticável ideia de que só possamos atribuir conteúdo empírico sentença a sentença.

Gostaria de frisar que não é possível tornar este segundo dualismo, o de esquema e conteúdo, o de sistemas organizadores e algo à espera de ser organizado, inteligível e defensável. Ele próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. O terceiro e talvez o último, pois se o abandonamos não fica claro se resta algo de distinto a ser chamado de empirismo. O dualismo esquema-conteúdo já foi formulado de diversas maneiras. Eis aqui alguns exemplos. O primeiro é o de Whorf, que constitui uma elaboração de um tema do dualismo de Sapir. Diz Whorf que

(...) a linguagem produz uma organização da experiência. Inclinamo-nos a considerar a linguagem uma mera técnica de expressão, e não nos damos conta de que a linguagem é primariamente uma classificação e um arranjo do fluxo da experiência sensória que resultam numa certa ordem do mundo

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(world-order) (...). Em outras palavras, a linguagem faz – de maneira mais crua mas também mais ampla e versátil – o mesmo que a ciência (...). Somos, assim, introduzidos a um novo princípio de relatividade, que sustenta que os observadores não são conduzidos pelas mesmas evidências físicas à mesma representação do universo, a menos que os seus ambientes lingüísticos sejam similares, ou possam ser de algum modo calibrados1

Temos aqui todos os elementos requeridos: a linguagem como a força organizadora, a não distinguir-se claramente da ciência; aquilo que é organizado, referido alternadamente como “experiência”, “o fluxo da experiência sensorial” e “evidência física”; e, finalmente, o fracasso da intertraduzibilidade (‘calibragem’). O fracasso da intertraduzibilidade é condição necessária para a diferença de esquemas conceituais; a relação comum com a experiência ou com a evidência é o que é suposto ajudar-nos a perceber a tese de que o fracasso da tradução é uma questão de linguagens ou esquemas. É essencial, nesta idéia, que haja algo de neutro e comum exterior a todo esquema. Este algo de comum não pode, obviamente, ser o conteúdo (subject matter) de linguagens contrastantes, pois do contrário a tradução seria possível. Assim, escreveu Kuhn recentemente:

Os filósofos já abandonaram a esperança de encontrar uma linguagem do puro dado sensorial (sense-datum) (...) mas muitos dentre eles continuam a partir do princípio de que teorias possam ser comparadas por meio de um vocabulário básico constituído inteiramente por palavras ligadas à natureza de maneiras não problemáticas e, tanto quanto necessário, independentes de teorias (...) Feyerabend e eu argumentamos extensamente no sentido de que não dispomos de um tal vocabulário. Na transição de uma teoria para outra, as palavras têm os seus sentidos e condições de aplicabilidade sutilmente modificados. Embora a maior parte dos signos usados antes e depois de uma revolução sejam os mesmos – e. g. força, massa, elemento, composto, célula

1 B. L. Whorf, “The Punctual and Segmentative Aspects of Verbs in Hopi”, p. 55.

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–, o modo como alguns dentre eles se vinculam à natureza sofreu uma certa mutação. Assim, dizemos que teorias sucessivas são incomensuráveis.1

“Incomensurável” é, como se sabe, o termo de Kuhn e Feyerabend para “não traduzível”. O conteúdo neutro, à espera de ser organizado, é fornecido pela natureza. O próprio Feyerabend sugere que possamos comparar esquemas contrastantes “escolhendo um ponto de vista exterior ao sistema ou à linguagem”. Espera que possamos fazê-lo porque “há ainda a experiência humana como processo que existe de fato”2 independentemente de todos os esquemas.

Os mesmos pensamentos, ou similares, são expressos por Quine em muitas passagens: “A totalidade do nosso dito saber ou crenças (...) é um tecido criado pelo homem que tangencia (impinge) apenas as bordas da experiência”3; “... a ciência total é como um campo de forças cujas fronteiras condiciona a experiência”;4“Como empirista, (...) penso no esquema conceitual da ciência como um instrumento (...) para a previsão da experiência futura à luz da experiência passada”.5 E novamente:

Persistimos em de algum modo fragmentar a realidade numa multiplicidade de objetos identificáveis e discrimináveis (...). Falamos de tal forma inveteradamente de objetos que dizer que o fazemos parece não querer dizer simplesmente nada, pois de que outra forma poderíamos nos exprimir? É difícil dizer de que outra forma poderíamos nos exprimir, não porque o nosso padrão objetificante seja um traço invariável da natureza humana, mas porque no próprio processo de compreender ou traduzir as sentenças alheias estamos destinados a adaptar ao nosso um padrão estranho.6

O teste da diferença continua sendo o fracasso ou a

1 T. S. Kuhn, “Reflections on my Critics”, p. 266-7.2 P. Feyerabend, “Problemas do empirismo”, p. 214.3 W. V. Quine, “Dois dogmas do empirismo”, p. 42.4 Ibidem.5 Ibidem.6 W. V. Quine, “Speaking of Objects”, 1.

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dificuldade da tradução: “ (...) falar daquele meio remoto como sendo radicalmente diferente do nosso é não dizer outra coisa senão que as traduções não se fazem sem dificuldades”.1 Contudo, o embaraço pode ser de tal maneira grande que o estrangeiro tenha um “padrão ainda não imaginado, para além da individuação”.2

A ideia é, portanto, a de que algo é uma linguagem, e está associado a um esquema conceitual, quer o possamos traduzir ou não, se mantém uma certa relação predizendo (organizando, encarando ou adaptando-se a) a experiência (natureza, realidade, estímulos sensoriais). O problema é estabelecer o que seja a relação, e ser mais claro quanto às entidades relacionadas. As imagens e metáforas caem em dois grupos principais: esquemas conceituais (linguagens) quer organizam alguma coisa, quer se adaptam a ela (como em “ele deforma a sua herança científica de forma a acomodar (...) os seus estímulos sensoriais”3). O primeiro grupo contém igualmente sistematizar, fragmentar (o fluxo da experiência); outros exemplos do segundo grupo são predizer, explicar (account for), enfrentar (o tribunal da experiência). Quanto às entidades que são organizadas, ou que o esquema deve acomodar (fit), penso que uma vez mais podemos detectar duas ideias principais: trata-se quer da realidade (o universo, o mundo, a natureza), quer da experiência (a cena presente, irritações da superfície, estímulos sensoriais, dados dos sentidos, o dado).

Não podemos atribuir um sentido claro à noção de organização de um objeto simples (o mundo, a natureza, etc) a menos que entendamos que o objeto consiste em, ou contém, outros objetos. Alguém que se propõe a organizar um guarda-roupas arruma nele as coisas. Se lhe fosse dito que organizasse, não os sapatos e as camisas, mas o guarda-roupas em si, ficaria atrapalhado. Como se poderia organizar o Oceano Pacífico? Estreitando-se as suas costas, talvez, ou realocando as suas ilhas,

1 Ibid., p. 25.2 Ibid., p. 24.3 W. V. Quine, “Two Dogmas of Empiricism”, p. 46.

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ou destruindo os seus peixes. Uma linguagem pode conter predicados simples cujas

extensões não sejam correspondidas (matched) por nenhum predicado simples, ou por quaisquer predicados, nalguma outra linguagem. O que nos permite argumentar neste sentido em casos particulares é uma ontologia comum às duas linguagens, com conceitos que individuam (individuate) os mesmos objetos. Podemos ser claros acerca de falhas de tradução quando elas são suficientemente locais, pois um pano de fundo de tradução geralmente bem-sucedida provê o necessário para que as falhas sejam inteligíveis. Mas tencionávamos jogar uma carta mais ambiciosa: queríamos dar conta do postulado de uma linguagem que não pudéssemos, de todo, traduzir. Ou, para avançarmos o argumento de outra forma, procurávamos o critério de linguisticidade que não dependesse de, ou não implicasse, traduzibilidade para um idioma familiar. Postulo que a imagem da organização do guarda-roupas da natureza não proverá um tal critério.

E quanto ao outro tipo de objeto, a experiência? Poderemos nós pensar numa linguagem que a organize? As dificuldades que recorrem são em grande medida as mesmas. A noção de organização aplica-se apenas a pluralidades. Mas qualquer que seja a pluralidade que julgamos consistir a experiência – eventos como perder um botão ou dar uma topada com o dedo do pé, ter uma sensação de calor ou ouvir um oboé – teremos de individuar segundo princípios familiares.

Uma linguagem que organize tais entidades tem de ser uma linguagem bastante assemelhada à nossa. A experiência (e colegas suas, tais como irritações de superfície, sensações e dados sensoriais) também acarreta um outro problema, mais óbvio, para a ideia de organização. Pois como é que alguma coisa poderia contar como uma linguagem que organizasse apenas experiências, sensações, irritações de superfície ou dados sensoriais? Certamente facas e garfos, carris de ferro e

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montanhas, couves e reinos também precisam de organização. Esta última observação soará, sem dúvida, inapropriada como resposta ao argumento de que um esquema conceitual é uma maneira de se lidar com a experiência sensorial; e concordo que assim seja. Mas o que estava em consideração era a ideia de se organizar a experiência, e não a ideia de se lidar com (ou acomodar, ou fazer face a) a experiência. A resposta vinha a propósito do primeiro conceito, e não do último. Vejamos então se podemos fazer algo melhor com a segunda ideia.

Quando passamos da organização à adaptação, volvemos a nossa atenção do aparato referencial da linguagem – predicados, quantificadores, variáveis e termos singulares – para sentenças inteiras. São sentenças que predizem (ou que são usadas para prever), que esboçam ou lidam com as coisas, que se adaptam aos nossos estímulos sensoriais, que podem ser comparadas ou confrontadas com a evidência. São igualmente sentenças que enfrentam o tribunal da experiência, embora, evidentemente, devam fazê-lo em conjunto. A proposta não é que experiências, dados sensoriais, irritações de superfície ou estímulos sensoriais sejam o único conteúdo da linguagem. Existe, é verdade, a teoria segundo a qual, quando se fala de casas de tijolo na rua Elm, é preciso, no limite, considerar que se está falando de dados sensoriais ou percepções, mas tais maneiras reducionistas de ver não passam de versões extremas, e implausíveis, da posição geral aqui em consideração. A posição geral é a de que a experiência sensorial provê toda a evidência para a aceitação de sentenças (onde sentenças podem incluir teorias inteiras). Uma sentença ou teoria acomoda os nossos estímulos sensoriais, enfrenta com sucesso o tribunal da experiência, prevê experiências futuras, ou apanha o padrão das nossas irritações de superfície, desde que seja sustentada pela evidência.

No curso normal das coisas, uma teoria pode ser sustentada pela evidência disponível e ainda assim ser falsa. Mas o que está em questão aqui não é apenas a atual evidência disponível: é a

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totalidade de possíveis evidências sensoriais passadas, presentes e futuras. Não precisamos deter-nos a refletir sobre o que isto possa significar. O ponto é este: que uma teoria acomode ou dê conta da totalidade das evidências sensoriais possíveis indica que ela é verdadeira. Se uma teoria quantifica objetos físicos, números ou conjuntos, aquilo que ela diz acerca destas entidades é verdadeiro desde que a teoria como um todo se ajuste (fits) à evidência sensorial. Deste ponto de vista, é concebível que tais entidades sejam denominadas de posits. É razoável chamar alguma coisa de um posits se ela puder ser contrastada com algo que não o é. Aqui, este algo é a experiência sensorial – pelo menos a ideia é esta.

O problema é que a noção de ajuste à totalidade da experiência, como a noção de ajuste aos fatos, ou de ser verdadeira para com os fatos, não acrescenta nada de inteligível ao conceito simples de ser verdadeiro. Falar antes de experiência sensorial e não de evidência, ou apenas dos fatos, expressa um ponto de vista acerca da fonte ou da natureza da evidência, mas não acrescenta uma nova entidade ao universo relativamente ao qual os esquemas conceituais serão testados. A totalidade das evidências sensoriais é do que necessitamos, desde que esta seja toda a evidência que existe; e toda a evidência que existe é precisamente o que é necessário para tornar as nossas sentenças e teorias verdadeiras. Nada, contudo, nenhuma coisa, torna sentenças e teorias verdadeiras: nem experiência, nem irritações de superfície, nem o mundo podem tornar uma sentença verdadeira. Que a experiência tome um certo rumo, que a nossa pele seja aquecida ou perfurada, que o universo seja finito, estes fatos, se assim quisermos exprimir-nos, tornam sentenças e teorias verdadeiras. Mas este argumento é melhor construído sem a menção a fatos.

A sentença “A minha pele está quente” é verdadeira se e somente se a minha pele está quente. Aqui não há referência a um

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fato, a um mundo, a uma experiência ou a uma peça de evidência.1 A nossa tentativa de caracterizar linguagens ou esquemas conceituais em termos da noção de ajuste a alguma entidade veio dar, então, na simples ideia de que alguma coisa é um esquema conceitual ou teoria aceitável se é verdadeira. Talvez fosse melhor dizermos largamente verdadeira, de modo a permitir que subscritores de um esquema difiram quanto a detalhes. E o critério para se diferenciar um esquema conceitual do nosso agora fica a ser: largamente verdadeiro mas não traduzível. A questão acerca de ser este um critério útil é apenas a questão do quão bem compreendemos a noção de verdade, tal como aplicada à linguagem, independentemente da noção de tradução. A resposta é, julgo, que de modo algum a compreendemos independentemente.

Reconhecemos que sentenças como “ ‘A neve é branca’ é verdadeira se e somente se a neve é branca” são trivialmente verdadeiras. Contudo, a totalidade dessas sentenças portuguesas determina a extensão do conceito de verdade apenas para o Português. Tarski generalizou esta observação e fez dela um teste de teorias da verdade: de acordo com a Convenção T de Tarski, uma teoria satisfatória da verdade para uma linguagem L deve implicar, para cada sentença s de L, um teorema de forma ‘s é verdadeira se e somente se p’, onde ‘s’ é substituída por uma descrição de s e ‘p’ pela própria s, se L é o Português, e por uma tradução de s em Português se L não é o Português.2 É claro que isto não é uma definição de verdade, e não insinua que haja uma definição ou teoria sequer que se aplique a linguagens em geral. Não obstante, a Convenção T sugere, embora não possa explicitar, uma importante característica comum a todos os conceitos especializados da verdade. Logra fazer isto ao tornar essencial o uso da noção de tradução para uma linguagem que conheçamos. Na medida em que a Convenção T concretiza a

1 Ver ensaio 3 (do livro Inquiries into truth and interpretation).2 A. Tarski, “The Concept of Truth in Formalized Languages”.

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nossa melhor intuição quanto à maneira como é usado o conceito de verdade, não parece haver muita esperança de um teste se um esquema conceitual é radicalmente diferente do nosso se este teste depende da suposição de que nós podemos separar a noção de verdade da noção de tradução.

Nem um estoque fixo de sentidos, nem uma realidade teoricamente neutra, pode dar, então, uma base para comparação de esquemas conceituais. Poderia ser um engano olhar além de tais bases, se por elas nós entendemos alguma coisa comum aos esquemas incomensuráveis. Abandonando esta pesquisa, nós abandonamos a tentativa de dar sentido à metáfora de um só espaço dentro do qual cada esquema tem uma posição e dá um ponto de vista. Eu volto agora a abordagem mais modesta: a ideia de falha parcial em vez de falha total de tradução. Esta introduz a possibilidade de tornar mudanças e contrastes em esquemas conceituais inteligíveis pela referência à uma parte comum. O que nós precisamos é uma teoria da tradução ou interpretação que não faça suposições sobre sentidos, conceitos ou crenças compartilhadas. A interdependência de crença e sentido procede da interdependência de dois aspectos da interpretação do comportamento de fala: a atribuição de crença e a interpretação das sentenças. Nós observamos anteriormente que nós podemos associar esquemas conceituais com linguagens por causa destas dependências. Agora nós podemos colocar o ponto de modo mais preciso. Admitamos que a fala de um homem não possa ser interpretada a não ser por alguém que conheça bem as crenças do falante (e intenções e desejos), e que distinções bem definidas entre crenças são impossíveis sem o entendimento da fala; como então nós podemos interpretar fala ou inteligibilidade para atribuir crenças ou outras atitudes? Claramente nós devemos ter uma teoria que simultaneamente dê conta de atitudes e interprete a fala, e que não assuma nenhuma delas.

Eu sugiro, seguindo Quine, que nós podemos sem circularidade, ou suposições não garantidas, aceitar certas atitudes

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muito gerais sobre sentenças como evidências básicas para uma teoria da interpretação radical. Para o propósito desta discussão ao menos nós podemos basearnos na aceitação como verdadeira, direcionada para sentenças, como sendo a noção crucial. (Uma teoria mais completa iria considerar outras atitudes em relação às sentenças também, tal como desejar como verdadeira, duvidar se é verdadeira, tentar tornar verdadeira, etc..) Atitudes estão de fato envolvidas aqui, mas o fato de que a questão principal não é mal entendida pode ser vista assim: se nós meramente sabemos que alguém considera uma certa sentença verdadeira, nós não sabemos nem o que ele significa com a sentença nem que crença o seu ter por verdadeiro representa. O seu tomar a sentença por verdadeira é assim o vetor de duas forças: o problema da interpretação é abstrair da evidência uma teoria do sentido utilizável e uma teoria da crença aceitável.

O modo como este problema é resolvido pode ser melhor apreciado por exemplos não dramáticos. Se você vê um veleiro navegando e sua companhia diz: 'olhe aquele bote', você pode estar diante de um problema de interpretação. Uma hipótese natural é que seu amigo tenha tomado um veleiro por um bote, e tenha formado uma falsa crença. Mas se a visão dele é boa e seu ponto de observação favorável, é mais provável que ele não use a palavra 'bote' tal como você usa. Nós fazemos este tipo de interpretação espontânea o tempo todo, reinterpretando palavras para preservar uma teoria da crença razoável. Como filósofos nós somos particularmente tolerantes com a distorção sistemática das palavras, e peritos em interpretar o resultado. O processo é aquele de construir uma teoria da crença e sentido viável para sentenças tidas por verdadeiras.

Tais exemplos enfatizam a interpretação de detalhes anômalos contra um pano de fundo de crenças comuns e um método constante de tradução. Mas os princípios envolvidos devem ser os mesmos em casos menos triviais. A questão é esta: se tudo o que nós sabemos é quais sentenças o falante tem por

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verdadeiras, e nós não podemos admitir que sua linguagem é a nossa, então nós não podemos nem começar a interpretação sem saber ou assumir um grande número de coisas sobre as crenças do falante. Uma vez que o conhecimento de crenças vem somente da habilidade para interpretar palavras, a única possibilidade no começo é admitir uma concordância geral com relação às crenças. Nós obtemos uma primeira aproximação para uma teoria acabada pela atribuição de condições de verdade às sentenças de um falante que se realizam (em nossa opinião) precisamente quando o falante toma estas sentenças por verdadeiras. A disciplina é fazer isso tanto quanto possível, levando em consideração a simplicidade, considerando os efeitos do condicionamento social, e é claro nosso conhecimento do senso comum, ou científico, de erros explicáveis.

O método não é desenhado para eliminar discordância, nem poderia; o seu propósito é tornar possíveis discordâncias significativas, e isto depende inteiramente de uma fundação – alguma fundação – na concordância (agreement). A concordância pode ter a forma do compartilhar generalizado de sentenças tidas por verdadeiras pelos falantes 'de uma mesma linguagem', ou concordância em grande parte mediada por uma teoria da verdade planejada por um intérprete para falantes de outra linguagem. Uma vez que a caridade não é uma opção, mas uma condição para se ter uma teoria utilizável, é irrelevante sugerir que nós podemos cair em erro massivo ao utilizá-la. Enquanto nós formos bem sucedidos em estabelecer uma correlação sistemática de sentenças tidas por verdadeiras com sentenças tidas por verdadeiras, não há nenhum erro. A caridade impõe-se a nós; gostemos ou não, se nós queremos compreender os outros, nós devemos tomá-los como corretos na maior parte dos assuntos. Se nós podemos produzir uma teoria que reconcilie caridade e as condições formais para uma teoria, nós fizemos tudo o que pode ser feito para assegurar a comunicação. Nada mais é possível, e nada mais é necessário.

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Nós fazemos o máximo de sentido das palavras e pensamentos dos outros quando interpretamos de uma maneira que otimiza a concordância (isto inclui espaço, como dissemos, para erros explicáveis, isto é, diferenças de opinião). Onde isto afeta a questão do relativismo conceitual? A resposta é, eu penso, que nós devemos dizer quase a mesma coisa sobre diferenças de esquema conceituais que nós dizemos sobre diferenças em crenças: nós aumentamos a claridade e o ponto das declarações de diferenças, seja de esquema ou de opinião, alargando a base da linguagem compartilhada (traduzível) ou da opinião compartilhada. De fato, nenhuma linha clara pode ser traçada entre os casos. Se nós escolhemos traduzir alguma sentença alheia rejeitada por seus falantes, por uma sentença para a qual nós estamos firmemente unidos numa base comunitária, nós podemos chamar isto de uma diferença em esquemas; se nós preferimos acomodar a evidência de outro modo, pode ser mais natural falar de diferença de opinião. Mas, quando os outros pensam diferentemente de nós, nenhum princípio geral, ou apelo à evidência, pode nos forçar a decidir que as diferenças estão em nossas crenças mais do que em nossos conceitos.

Nós devemos concluir, eu penso, que a tentativa de dar um significado sólido para a ideia de relativismo conceitual, e portanto para a idéia de esquemas conceituais, não é melhor quando tratada do ponto de vista de falha parcial de tradução do que quando baseada na falha total. Dada a metodologia fundamental da interpretação subjacente, nós não podemos julgar que os outros têm conceitos ou crenças radicalmente diferentes dos nossos.

Seria equivocado resumir dizendo que nós mostramos como a comunicação é possível entre pessoas que têm esquemas diferentes, um modo que trabalha sem necessidade daquilo que não pode ser, a saber, uma base neutra, ou um sistema comum coordenado. Pois nós não encontramos nenhuma base inteligível a partir da qual se poderia dizer que esquemas são diferentes.

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Seria igualmente errado anunciar a gloriosa novidade de que toda a humanidade – todos os falantes de linguagem, ao menos – compartilha um esquema e uma ontologia comuns.

Pois, se nós não podemos inteligivelmente dizer que os esquemas são diferentes, nós também não podemos inteligivelmente dizer que eles são um. Ao abandonar a dependência em relação a um conceito de realidade não-interpretada, alguma coisa fora de todos os esquemas e da ciência, nós não renunciamos à noção de verdade objetiva – muito pelo contrário. Dado o dogma do dualismo do esquema e da realidade, nós temos relatividade conceitual, e verdade relativa a um esquema. Sem o dogma, esta relatividade cai por terra. Obviamente a verdade das sentenças permanece relativa à linguagem, mas isto é tão objetivo quanto pode ser. Ao abandonar o dualismo do esquema e mundo, nós não abandonamos o mundo, mas restabelecemos o contato imediato com os objetos familiares cujas graças fazem nossas sentenças verdadeiras ou falsas.

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3. Quatro ontologias

Eddy M. Zemach

“Four ontologies”, The Journal of Philosophy, v.LXVII, n.8 (1970): 231-247.]

Neste artigo eu pretendo descrever quatro ontologias, as quais são todas deriváveis de um princípio básico. Eu vou sugerir que ordinariamente nós empregamos, de um modo um tanto confuso, termos que designam entidades reconhecidas por cada uma dessas ontologias. Vou sugerir, além disso, que a ontologia pressuposta, ou implicada, por um grupo de termos ordinariamente usados pode ser muito diferente da ontologia pressuposta, ou implicada, por outro grupo de tais termos. Porém, minha tese não está ligada à análise da linguagem ordinária. A minha alegação principal é que cada uma dessas ontologias é completa e auto-suficiente e que ela não precisa ser usada em conjunção com nenhuma outra. Nossas razões para usar ordinariamente todas essas ontologias (embora algumas delas sejam usadas muito mais frequentemente que as outras) não é que qualquer uma delas seja, em si mesma, deficiente ou defeituosa. As razões são pragmáticas e históricas, e têm a ver com naturalidade, facilidade e simplicidade de expressão, antes que com adequação essencial.

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Todas as ontologias a serem aqui consideradas podem ser chamadas, grosseiramente, “nominalistas”, uma vez que nenhuma delas é capaz de lidar com entidades não-espaço temporais tal como classes, números, universais, ou deuses. Se isto é uma deficiência, então, todas estas ontologias são deveras deficientes. Eu acredito, contudo, embora eu não vá entrar nesse assunto no presente artigo, que nenhuma ontologia deveria ser capaz de acomodar tais entidades platônicas. De qualquer modo, no que se segue eu vou assumir que todas as entidades que uma ontologia deve acomodar são espaço-temporais. O ponto é, contudo, que reconhecer que o domínio da ontologia deve ser o mundo espaço-temporal, não é igual a ter uma ontologia. Um mundo espaço-temporal pode ser “cortado” em entidades separadas de maneiras radicalmente diferentes.

As quatro ontologias que eu discuto resultam da possibilidade de referir a entidades espaço-temporais qua espaço-temporais, isto é, como estendidas no tempo e no espaço. Uma ontologia pode construir suas entidades seja como limitadas ou contínuas no tempo ou no espaço. Uma entidade que é contínua em uma certa dimensão é uma entidade que se considera não ter partes na dimensão em que ela é contínua. Pode-se dizer que ela modifica-se ou que não se modifica nesta dimensão, mas o que se encontra depois nesta dimensão é a inteira entidade como modificada (ou não) e não uma certa parte dela. O oposto é verdadeiro de uma entidade que é limitada. Se uma entidade é limitada em certa dimensão, então os diferentes locais ao longo dessa dimensão contêm suas partes, não a inteira entidade outra vez. É possível que dois diferentes locais nesta dimensão (limitada) contenham, cada um deles, a inteira entidade apenas se também há entre estes dois locais uma distância em uma dimensão na qual a dita entidade é contínua. Pois, se uma certa entidade que é um F encontra-se em um certo local espaço-temporal i e se outro local espaço-temporal j está também F-mente preenchido, então pode-se dizer que é a mesma entidade, x,

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que ocupa, toda ela, ambos i e j, se e apenas se há entre i e j uma distância numa dimensão em os Fs não são limitados. Se, contudo, não nenhuma distância entre i e j numa dimensão em que os Fs são contínuos, então, nós devemos dizer ou que i e j contêm diferentes partes do mesmo F ou então (e.g. no caso que o conceito de ser F impeça que se tenha duas diferentes partes como contidas em i e em j) contêm dois diferentes Fs.

Para definir 'contínuo com respeito a uma certa dimensão', vamos referir à área espaço-temporal inteira ocupada por uma dada entidade a (“em sua vida”, por assim dizer) como A . Agora,

I. Se a é contínua com respeito a uma certa dimensão x, então há várias seções cruzadas de A, perpendiculares a x, tal que cada uma delas contém a como um todo.

Vamos referir a cada uma de tais seções de A como B. Nós podemos agora proceder a definição de 'limidada com respeito a uma certa dimensão' do seguinte modo:

II. Se a é limitada com respeito a uma certa dimensão y, então, há várias seções cruzadas de B perpendiculares a y, tal que cada uma delas contém uma parte de a.

Se uma entidade não tem nenhuma dimensão com respeito a qual ela é contínua, então, A=B. Desta entidade pode ser dada a seguinte definição simples (que é mais forte do que pode ser derivado apenas de I e II):

III. Se a é limitada com respeito a todas as suas dimensões, então, cada seção de A contém uma parte de a.

Alguém provavelmente gostaria de ter o inverso desta simples definição como uma definição de uma entidade contínua com respeito a todas as suas dimensões, i.é., algo como

IV'. Se a é contínua com respeito a todas as suas dimensões, então, cada seção de A contém a como um todo.

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Contudo, como nós veremos na seção IV, estad definição é muito estreita. Por conseguinte, nós retornaremos a uma conjunção estrita de I e II para alcançar

IV. Se a é contínua com respeito a todas as suas dimensões, então, há várias seções cruzadas de A, perpendiculares a alguma dimensão de a (x,y,...), tal que há várias seções cruzadas daquelas seções cruzadas, perpendiculares a outras dimensões de x (z,u,...) tal que cada uma delas contém a como um todo.

Uma ontologia esculpe suas entidades seja como limitadas seja como contínuas no espaço e no tempo. Logo, quatro tipos de ontologias: uma ontologia cujas entidades são limitadas no espaço e no tempo, uma ontologia cujas entidades são limitadas no espaço e contínuas no tempo, uma ontologia cujas entidades são limitadas no tempo e contínuas no espaço, e uma ontologia cujas entidades são contínuas no espaço e no tempo.

I.

Entidades limitadas tanto no espaço como tempo podem ser chamadas eventos ou não-continuantes (NCs). Eles entidades definidas por sua extensão espaço-temporal. A entidade cujos limites são dados em todas as quatro dimensões é um evento. Um evento é uma entidade que existe, inteiramente, na área definida por seus limites espaçotemporais, e cada parte dessa área contém uma parte do evento completo. Obviamente, há indefinidamente muitos modos de esculpir o mundo em eventos, alguns dos quais são mais usáveis e interessantes (e.g., para os físicos) e alguns dos quais – a vasta maioria – parecem criar coleções malucas de nenhum interesse. Qualquer região espaço-temporal preenchida é um evento. Uma vez que o termo ‘contínuo’ tem um significado especial nesse artigo, eu vou usar o termo ‘contíguo’ para representar aquilo que normalmente ‘contínuo’ significa, i.e., ser

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ininterrupto e indiviso. Eventos, então, embora absolutamente não-contínuos, podem ter partes contíguas ou não-contíguas. Um evento não dura – ele não pode ser (todo ele) ou em muitos lugares ou em muitos instantes.

Quando filósofos e físicos falam sobre vermes, sobre pontos-eventos, ou sobre cordas-mundo, quando eles descrevem coisas materiais como “processos fracos” e se referem a fatias de entidades, eles estão usando a linguagem desta primeira ontologia. As suas substâncias, i.e., as entidades das quais eles dizem que o mundo é composto, são eventos (Ncs). Os eventos são as únicas substâncias desta ontologia. Apenas eles podem ter nomes próprios genuínos e ser objeto de predicação. Uma descrição do mundo na linguagem desta primeira ontologia é uma descrição de eventos, suas propriedades e relações.

A linguagem desta ontologia é relativamente nova. Embora eu não esteja seguro sobre ela, penso que ela surgiu apenas com Minkowski e seus diagramas espaço-temporais. Não há nenhuma conexão essencial, contudo, entre a ontologia de eventos e a Teoria da relatividade. Newton poderia tê-la usado tão bem como Quine, Goodman, Willians, ou Taylor. O conceito de uma coisa, ou uma substância, como qualquer região ou regiões limitada no espaço e no tempo (e que, por conseguinte, tem partes espaçotemporais e pode ser fatiada tanto espacial como temporalmente) pode ser acomodada por vários sistemas de pensamento. Eu não tenho nada a adicionar às várias provas de que esta ontologia é adequada para descrever o mundo, formular leis da natureza, etc., e uma vez que a maioria dos filósofos contemporâneos não duvida que a linguagem de eventos é ao menos tão adequada como qualquer outra linguagem que poderia ser usada para categorizar a realidade, eu concluirei que a possibilidade da primeira ontologia já está garantida.

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II.

A segunda ontologia é uma que nós mais usamos e que nos advém muito naturalmente. Se não fosse pela primeira ontologia, que mais tarde tornou-se mais e mais entrincheirada em nossa linguagem, nós não teríamos percebido que esta segunda ontologia é apenas uma ontologia particular, baseada num certo modo de lidar com a espaçotemporalidade dos objetos. As entidades que ela reconhece são contínuas no tempo e limitadas no espaço. Nós podemos chamá-las continuantes no tempo (CTs) ou, simplesmente, coisas. Nós normalmente vemos quase a maioria dos objetos com que nós nos deparamos como CT: esta cadeira, minha caneta, meu amigo Richard Roe, a árvore na esquina, a mosca pousada na página. Isto não quer dizer que essas coisas não podem ser re-categorizadas e vistas como eventos. Elas certamente podem ser. ‘Esta cadeira’, e.g., pode ser usada para nomear um NC, e alguns filósofos realmente a usaram deste modo: eles dizem que eles vêem uma fatia temporal da cadeira e sentam em outra fatia temporal dela. Mas, este não é o modo mais comum de usar ‘Esta cadeira’ ou ‘Fido’. Normalmente nós não vemos cadeiras e cães como Ncs. Nós os consideramos como não sendo eventos, mas um tipo de entidade muito diferente, e os nomes que nós damos a eles, em nossa lingugem, obedecem uma gramática que fundamentalmente distinta da gramática de nomes de eventos.

Uma coisa, eu disse, é limitada no espaço. Minha escrivanhia vai da janela até a porta. Ela tem partes espaciais, e pode ser fatiada em duas (no espaço). Com respeito ao tempo, contudo, uma coisa é um continuante. Quando eu olhar para minha escrivanhia amanhã, eu não vou dizer que eu vejo uma nova parte de minha escrivanhia – um novo segmento temporal dela. Não, o que eu diria (falando na linguagem da segunda ontologia) seria que eu agora vejo a escrivanhia outra vez. Note-se: o que eu vejo (de acordo com esta ontologia) não é uma parte ou uma fatia da escrivanhia, mas a escrivanhia inteira. Eu vi a

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escrivanhia ontem, e aqui está ela, outra vez inteira, hoje. Dizer (nesta linguagem) que, falando estritamente, que o que eu tenho hoje é apenas uma parte da escrivanhia, seria ridículo e francamente enganador; isto significaria que eu teria perdido parte da escrivanhia – suas pernas, talvez, ou seu tampo – de tal modo que agora eu não tenho uma escrivanhia completa, mas apenas uma parte. Os conceitos cadeira, casa, meu amigo Roe, etc., que usamos normalmente, não são conceitos de eventos (embora tenha sido garantido que eles podem ser traduzidos na linguagem de eventos). Quando você me apresentou a Richard Roe, você disse, “Por favor, conheça meu amigo Roe.” e tanto eu como você tenderíamos a dizer que o que nós vemos é o Sr. Roe em sua inteireza, e não uma fatia ou parte dele.

O conceito de um CT é o conceito de algo que é definido (limitado) com respeito a sua localização no espaço, mas que não é definido com respeito a sua localização no tempo. A definição de um pin especifica que o que quer que seja um pin tem que ter uma certa forma característica espacial, mas ela não diz nada sobre o tipo de carreira que um pin deve ter – ele pode ser momentâneo ou eterno. Nós podemos tomar duas (idênticas) entidades da forma pin como uma e a mesma apenas se existe uma distância temporal entre suas localizações respectivas. Mas, se elas co-existem, e não há distância temporal entre elas, nós dizemos que elas são dois pins diferentes. A diferença em localização espacial tem, portanto, um papel individuador com respeito a Cts, que está ausente completamente da localização temporal. O fato de que a e b tenham a forma humana e estejam simultaneamente em diferentes lugares é suficiente para decidir que a e b são humanos diferentes; mas o fato de que a e b tenham a forma humana e estejam no mesmo lugar em diferentes instantes não conta nem a favor nem contra eles serem diferentes humanos.

Seria supérfluo, se não ridículo, tentar “defender” aqui a ontologia de coisas. A linguagem ordinária e as linguagens da

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maioria das ciências fornecem provas suficientes de sua efetividade e auto-suficiência. Além disso, foi mostrado por muitos filósofos (de modo mais claro, provavelmente, por Wilfrid Sellars1) que a ontologia e a linguagem de eventos pode ser definida usando-se a linguagem de coisas apenas: em outras palavras, que todo fato que pode ser expresso usando-se nomes de NCs pode em princípio ser expresso usando-se nomes de CTs apenas.

III.

A terceira ontologia é muito pouco usada por nós, e quando ela é usada os seus termos são seguidamente confundidos com aqueles da primeira ontologia. Contudo, termos como “este ruído”, “a revolução industrial”, “o calor”, “a chuva”, “a era Roosevelt”, “a grande fome”, etc., não são usados em geral como nomes de eventos (i.e., de Ncs). Porém, alguns dos usos mais frequentes de termos como “a atual inflação”, “esta onda” ou “Segunda Guerra Mundial” mostram que estes termos algumas vezes servem como nomes de substâncias da terceira variedade, i.e., entidades que são limitadas no tempo mas contínuas no espaço. Nós podemos artificialmente expropriar o termo “processo” para designar estas substâncias, os continuantes no espaço (Css).

A lógica dos processsos constitui uma imagem de espelho muito interessante da lógica das coisas. Uma descrição parcial desta lógica foi dada por Bernard Mayo2, que tentou mostrar que o que ele chamava “evento” (i.e., na terminologia do presente ensaio, processos, ou CSs) são ontologicamente o reverso exato, com respeito ao tempo e ao espaço, de objetos materiais.

1 W. Sellars, “Time and the World Order”, em H. Feigl and Grover Maxwell, eds., “Minnesota Studies in the Philosophy of Science”, vol. III (Minneapolis: University of Mennesot Press, 1962), pp. 527-618.

2 B. Mayo, “Objects, Events and Complementarity”, Philosophical Review, LXX, 3 (jul 1961): 340-361.

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Contudo, a defesa de Mayo da tese do paralelismo entre espaço e tempo é, eu penso, não sistemática, e ela não pode decolar sem fazer várias hipóteses para-mecânicas que estão longe de ser óbvias e que, na discussão seguinte, eu vou tentar evitar. O que eu tento fazer na presente seção não é provar a tese do paralelismo, i.e., que o que pode ser dito sobre o espaço pode ser dito sobre o tempo e vice-versa. (Parece-me que, nesta forma ingênua, a tese é tão ambígua a ponto de ser nem verdadeira nem falsa; ela não tem nenhum sentido preciso no final.) Eu vou tentar, em vez disso, mostrar que sempre o que que que uma ontologia pode fazer com CTs como substâncias básicas, outra ontologia pode fazer com CSs, e fazê-lo do mesmo modo. Por conseguinte, estas duas ontologias seriam formalmente (qua calculi) indistinguíveis uma da outra.

Vamos tomar Fido como nosso exemplo de uma coisa (CT) e a Revolução francesa como um exemplo de um processo (CS), e apontar os seguintes dois pontos de comparação entre eles:

(a) Fido não pode ser ao mesmo tempo em muitos lugares, mas ele pode ser no mesmo lugar em diferentes momentos de tempo. Por contraste, a revolução pode ser ao mesmo tempo em muitos lugares, mas ela não pode ser no mesmo lugar em muitos momentos de tempo.

Este ponto, eu penso, é muito claro. Nós dizemos que a revolução, ou a grande fome, ou esta chuva, ou este ruído, são no lugar x tanto quanto eles são no lugar y. Nossa linguagem parece estabelecer aqui um padrão lógico que é radicalmente diferente do padrão usualmente seguido quando ela trata coisas. Se nos dizem que Jack e John, que não vivem no mesmo lugar, ouviram uma certa explosão (ou vivem sob a ocupação nazista) nós não diríamos normalmente que Jack ouviu parte da explosão e John ouviu outra (ou que Jack viveu sob parte da ocupação nazista enquanto John viveu sob outra parte dela). Dizer isto significaria algo inteiramente diferente, e.g., de John ouviu o início do ruído e

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Jack ouviu apenas o final (e similarmente com a vida durante a ocupação, seu começo e seu final). Desse modo, enquanto Fido deve ser em qualquer tempo em um lugar apenas, um típico CS como a Revolução Francesa pode ser, como um todo, em muitos lugares ao mesmo tempo. Por outro lado, Fido pode ser, como um todo, em muitos momentos de tempo. Ele pode ser em London em 1969 e em New York no ano seguinte. Ele pode também retornar a um lugar que ele habitou antes e assim ser, como um todo, em dois momentos no mesmo lugar. Tudo isso é impossível para um CS. Se a revolução é em Lyon entre 1798 e 1812, então, nós diríamos que em 1798 Lyon presenciou o começo da revolução enquanto em 1812 ela experimentou o seu fim. Agora, sem em 1848 houve outro começo de uma revolução em Lyon, nós normalmente não iríamos dizer que foi a mesma Revolução Francesa que retornou a Lyon, mas antes que outra e nova revolução é agora tomando a cidade. O papel individuador que o espaço exerce com respeito a CTs é exercido pelo tempo com respeito a CSs.

(b) Fido não precisa ter todas as suas partes em cada lugar que ele ocupa, mas tem que ter todas as suas partes no tempo que ele ocupa. Em contraste, a revolução tem que ter todas as suas partes em cada lugar que ela ocupa, mas não precisa ter todas as suas partes em qualquer tempo que ela ocupa.

Isto também é, eu penso, intuitivamente claro. Nós não diríamos que Fido existe no momento t se não fosse o caso que todas as suas partes (cabeça, pernas, pulmão, etc.) existissem no temp t, ocupando, cada uma delas, um lugar diferente no espaço. Por contraste, a revolução francesa pode muito bem existir no tempo t embora nesse tempo algumas de suas partes (e.g. sua degeneração final em uma ditadura imperialista) não existirem ainda em nenhum lugar. Embora seja possível que num certo tempo a revolução deva ter seus diferentes estágios presentes em diferentes cidades, estes segmentos da revolução não necessitam (embora possam) ser todos presentes em diferentes locais num

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dado tempo. Considerando agora o outro lado dessa comparação, é verdade que Fido pode comportar-se de tal modo que um certo lugar que foi previamente ocupado por sua perna traseira esquerda seja mais tarde ocupada por sua perna dianteira direita, e depois por sua cabeça, etc., de tal modo que este lugar terá eventualmente contido todas as partes de Fido. Mas este tipo de comportamento seguramente não é necessário para Fido ser o que ele é e não ocorre com respeito a maioria dos lugares que contêm uma ou outra parte de Fido. A revolução, por outro lado, deve ter cada uma de suas partes presentes exatamente no lugar que ela ocupa, ou então nós não iríamos dizer que esta revolução particular esteve realmente presente naquele lugar. Se uma cidade a experimentou apenas dois dos cinco estágios que caracterizam este processo revolucionário particular (ou esta particular calamidade, ou esta explosão, etc.) nós normalmente iríamos dizer que a experimentou apenas parte da revolução, não a revolução (a explosão, inflação, etc.) como um todo.

A comparação entre um Cs e um CT ficará mais clara se nós explanamos os pontos (a) e (b) acima em oito diferentes proposições, arranjadas em dois grupos. Note-se que a negação de cada uma das proposições A1-A4 é verdadeira de qualquer CS, enquanto a negação de cada proposição B1-B2 é verdadeira de qualquer CT.

A. 1. Em um tempo uma coisa não pode ser como um todo em diferentes lugares.

2. Em diferentes tempos, uma coisa pode ser como um todo em um lugar.

3. Em qualquer tempo, uma coisa deve ter todas suas partes em diferentes lugares.

4. Em todos os tempos, uma coisa não necessita ter todas suas partes em um lugar.

B. 1. Em um lugar, um processo não pode ser como um todo em diferentes tempos.

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2. Em diferentes lugares, um processo pode ser como um todo em um lugar.

3. Em qualquer lugar, um processo deve ter todas suas partes em diferentes tempos.

4. Em todos os lugares, um processo não necessita ter todas suas partes em um tempo.

A estrutura das proposições A1-A4 é idêntica a das proposições B1-B2. O único modo pelo qual elas diferem é que ali onde nós temos “tempo” em A1-A4 está “lugar” em B1-B2, e vice-versa. Isto, finalmente, conduz a uma definição geral de uma entidade limitada com respeito a uma dimensão e contínua com respeito a outra:

V. Com respeito a qualquer entidade a e a qualquer dimensão ou grupos de dimensões x e y, a é contínua com respeito a x e limitada com respeito a y, se e somente se:

1. Em uma posição-x, a não pode ser em muitas posições-y.

2. Em várias posições-x, a pode ser em uma posição-y.

3. Em qualquer posição-x, a deve ter todas suas partes em várias posições-y.

4. Em nenhuma posição-x a deve ter tudas suas partes em uma posição-y.

(onde ‘posição’ deve ser entendida como ‘posição ocupada por a’.) Simbolicamente, estas condições podem ser apresentadas como se segue:

1. □~(a, x, y1 ...yn)

2. ~□~(a, x1 ...xn, y)

3. □(Pa1 ... Pan, x,y1 ...yn)

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4. ~□(Pa1 ... Pan, x1 ...xn,y)

Diferentemente de Cassirer, Whitehead, Bergson, ou Schopenhauer, eu não defendo que a Ontologia de Processos seja a ontologia correta. Mas, eu defendo sim que, se o mundo pode ser visto como a totalidade de coisas, então, ele pode também ser visto como a totalidade de processos. Uma sociedade que prefere a linguagem de CSs iria provavelmente segmentar o mundo em pedaços que difeririam muito das entidades que nós hoje discernimos. Contudo, para provar a auto-suficiência da ontologia de CS não é necessário construir efetivamente uma linguagem de processos. Tudo o que nós temos de fazer é perceber que processos, como coisas, são nada mais do que segmentos dinâmicos de eventos. A auto-suficiência das ontologias I e II logicamente implica a auto-suficiência da ontologia III: se as ontologias I e II são auto-suficientes, então, toda sentença numa linguagem de entidades completamente limitadas pode ser traduzida numa linguagem de entidades parcialmente limitadas. Esta tradutibilidade deve-se a considerações puramente formais, e nada tem a ver com o espaço e o tempo. Não faz nenhuma diferença em que dimensões as entidades parcialmente limitadas são limitadas, e não existe nada que faça as entidades limitadas em qualquer uma das dimensões, ou grupo de dimensões, intrinsecamente mais auto-suficiente do que entidades limitadas em outras dimensões. O ponto é, antes, que uma descrição completa de um ocupante de uma certa área espaçotemporal pode ser dada em uma linguagem cujos substantivos denotam segmentos dinâmicos desse ocupante. Do mesmo modo que nós podemos dizer que Kant nunca deixou Königsberg, nós podemos dizer que certos processos que juntos podem ser chamados ‘Kantiando’ nunca ocorreram antes de 1724 e depois de 1804; assim como dizemos que Kant viveu 80 anos, do mesmo modo podemos dizer que o processo de Kantiar ocorreu numa área de cerca de quatro milhas quadradas, a área de Königsberg. Se é verdade que Kant foi encontrado junto a seu gato, Max, então

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deve ser verdade que Kantiar incluía sendo-encontrado-junto* Maxiar; se Max algumas vezes deitava no tapete, então, seguramente em alguns lugares onde Maxiar ocorreu deu-se a relação de sentar* com um certo tapetear*.1

IV.

Por fim, nós chegamos à quarta ontologia. As substâncias reconhecidas por esta ontologia não são limitadas nem no espaço nem no tempo. Elas são, então, continuantes puros (PCs) ou tipos. Tipos tem sido, por muito tempo, a Cinderela da ontologia. Eles foram considerados como sendo universais, entidades abstratas, formas, classes, ou o que quiser. Por exemplo, expressões como “O pinheiro comum é uma árvore verde” ou “O cão é o melhor amigo do homem” são construídas como se contivessem não nomes das entidades O Pinheiro Comum, O Cão, Homem, etc., mas nomes de classes. Esta interpretação, eu acredito, é contra-intuitiva. O Pinheiro Comum, nós dizemos, é uma árvore verde, e o Homem tem um amigo, o Cão. Mas a classe dos pinheiros nem é uma árvore nem é verde, e a classe dos homens não pode ser amiga da classe dos cães. Uma classe não pode ser persistente ou evasiva, e ainda mais nós dizemos que O Inimigo pode ser ambos. O papagaio pode falar e a letra V tem a forma de uma cunha. Mas, realmente classes falam, ou têm figura e forma?

A abordagem de Frege-Russell dos tipos é ainda menos atraente do que a anterior. Na abordagem deles, expressões contendo nomes de tipos são completamente analisáveis em expressões que incluem apenas variáveis ligadas e termos gerais.

1 Termos da linguagem-coisa não são automaticamente transferíveis para linguagem-processo ou de eventos. “ser encontrado em” ou “sentar-se em” são relações que ocorrem entre duas coisas e não se pode esperar sua ocorrência numa ontologia de eventos ou processos. Ao contrário, o termo-processo correspondente “ser encontrado em*” e “sentar-se em*” podem ser aprendidos, e.g., ostensivamente, em ocasiões similares àquelas em que “ser encontrado em” e “sentar-se em” são aprendidos em nossa sociedade.

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Dada esta análise, “O leão africano é feroz”, e.g., não é uma sentença sujeito-predicado da forma “S é P”. Antes, esta sentença é um modo de expressão “não-perspícuo” do enunciado quantificado “Qualquer coisa que seja um Leão Africano é feroz”. [No jargão do Principia, (x)(Ax ⊃ Fx).] Desse modo, paradoxalmente, o “O” institucional (a expressão é de Langford1) foi vista como um quantificador universal de espécies. Os proponentes dessa visão não perceberam que o que eles ofereceram sob o inócuo título “análise” era de fato uma sugestão de revisão lingüística, uma tentativa de forçar a linguagem na camisa de força de uma e uma única ontologia. Uma vez que Frege, Russell e seus seguidores acreditavam ser impossível construir este uso de “Mulher”, “O pagador de impostos”, ou “O Leão Africano” como nomeando indivíduos genuínos, eles concluiram que a forma de predicação singular (... é ... ) usada com estes termos deveria ser uma aberração!

Existem muitas outras dificuldades com esta redução. (O) Chrisler é um bom carro, embora nem todo Chrysler seja bom. A letra Q ocorre vinte vezes (??) página, mas não é verdade que todas as ocorrências de Q ocorrem vinte (??) vezes nesta página. Guerra e Paz foi concluído por Tolstoi em 1869, mas não é verdade que todos os exemplares de Guerra e Paz foram concluídos por Tolstoy em 1869. O Leão Africano pesa não mais do que 500 libras. O Inimigo tomou o monte 69, mas não é o caso que, para todo x, se x é um inimigo, x tomo o monte 69 (nem, com efeito, é verdade que part do inimigo tomou o monte 69). Eu não vou entrar em detalhes nesses exemplos. Eu estou seguro que com suficiente engenhosidade lógica nós poderíamos analisar todas estas expressões problemáticas (embora cada uma delas requisesse um tipo de diferente de análise), de tal modo que na re-escrição final nós nomeássemos apenas entidades do tipo preferido pelo reducionista – muito provavelmente ou coisas ou

1 C. H. Langford, “The Institucional Use of The”, Philosophy and Phenomenological Research, X, 1 (sept 1949): 115-120.

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eventos. A questão é, todavia, por que nós deveríamos fazer isso? Além disso, , mesmo que haja boas razões para a redução, o reducionista deveria perceber que o que ele está fazendo não é apenas clarificar o sentido de uma expressão obscura; antes, ele está desenhando uma ontologia, todo um modo de esculpir a realidade, que pode por si própria classificar, categorizar e explanar o mundo em que nós vivemos. Verdade é que O Pagador de Impostos, O Leão e their ilk (??) não são coisas; i.e., eles não são CTs. Substratos ou objetos, todavia, eles são – uma vez que tipos, i.e., PCs, são objetos. Eu defendo, então, que tipos como A Letra A, ou A Mulher Americana, são objetos materiais (não entidades abstratas) recorrentes tanto no espaço como no tempo.1 Eles são inteiramente entidades materiais, ou “primárias”, tanto quanto o são os CTs.

Eu tentei argumentar que na linguagem cotidiana nós ordinariamente usamos termos que nomeiam PCs e exibem o peculiar tipo de lógica que típica dessas entidades. Meu único exemplo foi entretanto o uso do “the” institucional, quer 1 O exame mais detalhado e meticuloso da lógica dos tipos que eu tenho conhecimento

encontra-se na dissertação não publicada de John B. Bacon (Yale University, 1965) Being and Existence. Bacon também investiga a concepção de que os tipos são entidades singulares genuínas. Contudo, após um longo exame ele acha a idéia insustentável, e alcança a conclusão que “Frases institucionais não podem ser nomes; tipos não podem ser objetos” (p. 240). O seu argumento principal é a antinomia que, se Homem é um objeto, “você seria eu, uma vez que nós ambos incorporamos Homem. De fato, cada coisa seria todas as demais, uma vez que todas instanciariam a Coisa. Em particular, X é X” (p. 239). Este argumento, contudo, está baseado num erro categorial. ‘Zemach’ e ‘Bacon’ são nomes de coisas, e “Zemach é Bacon” é um falso enunciado na linguagem da ontologia II. O mais próximo que se pode obter, na linguagem de tipos, é “Homem é aqui, e Homem é ali”. Agora, é verdade que Homem é ali louro (na linguagem de CT, Bacon é louro) e aqui negro (novamente, na linguagem de coisas, Zemach é negro). Porém, o fato que Homem é louco ali e não é louro aqui não é mais contraditório, ou problemático, do que o fato que Bacon é louro agora, mas pode não ser louro 10 anos mais tarde. “Bacon é louro e é idêntico com algo não louro” é problemático apenas se falhamos em reconhecer a linguagem de coisas aqui usada e a mal-construimos como um enunciado sobre eventos. Nessa (má-) interpretação, o enunciado feito seria que X (o estágio louro de Bacon) é idêntico com X (o estágio não-louro de Bacon), o que é uma contradição flagrante. O erro de Bacon é, portanto, sua falha em perceber que a linguagem de tipos é uma alternativa a, antes que uma extensão da linguagem de coisas. As incongruidades que podem ser descobertas entre as duas linguagens não descredenciam uma ou outra. Elas apenas demonstram que termos de duas ontologias diferentes não podem sempre ser simplesmente justapostos sem os termos de uma serem ou traduzidos ou reinterpretados nos termos da outra ontologia.

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explicitamente (como em “The Union Jack”) quer implicitamente (como em “Man is mortal”). Mas, este de modo algum é o único exemplo de uso cotidiano de nomes de tipos. O mais comum exemplo de tal uso é o grupo de termos conhecido como nomes de massa, que, eu defendo, comporta-se como nomes de PCs e deveriam ser vistos como tais.1

Historicamente, massas tem sido experimentadas muito melhor (diretamente) do que tipos. Embora o “o” institucional nunca tenha sido reconhecido como um functor de termo singular genuíno, os nomes de massa (‘água’, ‘areia’, ‘comida’, ‘couro’, ‘grama’, etc.) tiveram vários advogados que se recusaram a descartá-los como um fenômeno lingüístico extravagante, como formas plurais degeneradas, ou como nomes de classe, reconhecendo seu valor como termos singulares genuínos. W. V. Quine, e.g., tentou várias vezes2 interpretar os nomes de massa como nomes de indivíduos completos. As suas tentativas, contudo, falharam (um dos resultados estranhos por ele alcançado é que Triangular pode ser, e.g., quadrado), e a razão para isto é que ele identificou mal a natureza (kind) do objeto nomeado por um nome de massa. Para Quine, nomes de massa nomeiam indivíduos dispersos; ‘água’ nomeia a parte aquosa do universo; ‘vermelho’ (ou ‘pigmento-vermelho’) nomeia a parte vermelha do universo. A principal diferença entre água e mamãe é que mamãe é espacialmente contígua enquanto água é espacialmente dispersa (Word and Object, p. 51). Agora, junto com a abordagem geral de Quine, mantém-se a concepção de todo objeto como uma seção quadridimensional do mundo (i.e., em minha terminologia, como um evento). Mas esta abordagem não pode fazer justiça às massas (i.e., aos tipos). A característica distintiva de continuantes é que, com respeito às dimensões em que eles são contínuos ( e no caso 1 Novamente pode-se encontrar em Bacon, op. cit., uma discussão muito proveitosa da relação

entre massas e tipos. A conclusão de Bacon é que massas podem, sim, ser vistas como tipos.2 Mais tardiamente em Word and Object (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1960), pp. 90-110.

Anteriormente em “Speaking of Objects”, em J. A. Fodor and J. J. Katz, eds., The Structure of Language (Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1964, pp. 446-459, e em seu From a Logical Point of View (New York: Harper & Row, 1963), pp. 65-79.

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dos Continuantes Puros com respeito a todas as suas dimensões) se considera que eles estão presentes em sua inteireza em todos os lugares que eles ocupam nesta dimensão.1 Nesse ponto está a principal diferença entre o rio Cayster e Água, entre Mamãe e Vermelho. Não apenas é o caso que Cayster e Mamãe não são dispersos enquanto Água e Vermelho o são. Eu concordo com Quine que este é um ponto inconsequente. A diferença lógica crucial, contudo, é que onde quer que água esteja presente, a água (e não uma certa parte da água) está presente, e que o que quer que seja vermelho é vermelho (e não um segmento de vermelho). Isto não é o caso com o rio Cayster, Mamãe, Fido, ou Londres. Embora nós possamos dizer, quando em Chelsea, “Esta é Londres”, e depois dizer novamente, “Esta é London”, apontando para Piccadilly, nós estamos prontos para admitir que o que nós dissemos é que Londres tem muitas partes, de modo que nós primeiro apontamos para uma parte de Londres e depois para outra parte da mesma cidade. Isto vale para Fido (apontando para suas orelhas e depois para seu rabo, dizendo em ambas as ocasiões “Isto é Fido”), para Mamãe, para Cayster, e para todo outro nome de um CT ou um NC. Por outro lado, se o diretor do Zoo do Bronx diz “Eu vou lhe mostrar agora o urso polar, o leão africano, o gorila, ...,” ele não admitiria prontamente que o que ele nos mostra não é realmente o urso polar, mas tão somente uma parte dele. Se Jones me diz que ele ouviu a Missa Solemnis de Beethoven na noite passada, ele ficaria provavelmente muito ofendido se eu respondesse, “Você quer dizer, naturalmente, que você ouviu uma parte da Missa – você não pode ter ouvido ela inteira!”. Ele protestaria imediatamente que ele realmente ouviu a Missa inteira (i.e., ele não saiu na metade). Se eu insistisse que para ouvir toda a Missa haveria que ouvir todas as suas ocorrências, incluindo as do passado e do futuro, ele provavelmente acreditaria que eu tinha enlouquecido. Agora, se ‘vermelho’ é aprendido como um nome de massa (i.e., ‘pigmento-

1 Esta formulação não é precisa. Ela será corrigida e ampliada depois.

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vermelho’), ele também se comporta de uma maneira similar, e assim também, naturalmente, ‘água’, ‘trigo’, ‘papel’, e todos os outros nomes de massa. Se eu desejo água e você me traz um copo cheio, eu não posso objetar dizendo, “você me trouxe apenas uma parte da água, não a água mesma”; porém, eu faria esta objeção se eu quisesse Fido e você me trouxesse suas orelhas. Quando o geólogo diz que foi encontrado ouro no Alaska, nós não diríamos que isto é impossível uma vez que o ouro é encontrado também na Califórnia. Ouro (não uma parte dele) é encontrado na Califórnia e no Alaska, assim como a Quinta Sinfonia (não uma parte dela) pode ser ouvida na Califórnia e no Alaska também. Os nomes de massa, pois, em nossa linguagem seguem a gramática dos tipos. “O leite é saudável” é, então, uma sentença sujeito-predicado genuína, e assim também “O homem é mortal”; e o que elas referem é o Leite e o Homem, respectivamente.

Uma das mais importantes obras sobre a questão dos nomes de massa encontra-se no Individuals de Strawson,1 onde argumenta-se que uma ontologia de massas (PCs), que não reconhece o conceito de uma coisa, é perfeitamente possível e de fato é absolutamente suficiente para todas as nossas necessidades. Strawson argumenta que

Tudo o que é requerido é a admissão que o conceito de jogo-de-nomear é coerente, a admissão que a abilidade de fazer referências identificadoras a coisas como bolas e patos inclui a abilidade de reconhecer as características correspondentes, enquanto é logicamente possível que se possa reconhecer as características sem possuir os recursos conceituais para a referência identificadora dos particulares correspondentes.

Eu acredito que esta linha de raciocínio é absolutamente válida. Strawson, contudo, insiste em manter o termo honorífico “individual” para aquelas entidades que caem sob termos sortais

1 P. F. Strawson, Individuals (London: Methuen, 1959), pp. 202-213.

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genuínos – i.e., para cães, gatos, casas, e homens – e consistentemente recusa reconhecer algo mais, e.g., as entidades referidas por nomes de massa, como individuais. Nomes de massa e outros nomes-tipo são por ele chamados ‘universais caracteristíca’ ou ‘conceito característica’, e ele deixa de lado a questão acerca do que são as entidades que os “feature concepts” designam, usando apenas o modo formal de linguagem quando discute este nível da linguagem e revertendo para o modo material apenas quando ele alcança o nível onde a “inovação conceitual” da introdução de coisa é finalmente feita. Pode-se responder que o que nomes-tipo (os “feature placing concepts” de Strawson) denotam é simplesmente coisas – gatos, cães, casas, etc. Isto é, que ao usar seja o enunciado de posição de característica ‘gato aqui’ seja a expressão uso-de-característica, ‘isto é um gato’, nós referimos a este gato. A resposta seria verdadeira, mas ela não é a inteira verdade. Ela eleva uma das ontologias ao pedestal de a ontologia, ao imporque sempre que se quer discutir não os modos de referir mas as entidades referidas, deve-se usar os termos de uma ontologia escolhida. Tal decisão pode ser feita, mas ela é claramente arbitrária. Nós poderíamos de modo similar dizer que em ambos ‘gato aqui’ e ‘isto é um gato’ nós referimos a O Gato (a entidade tipo). Strawson, então, fez uma descoberta mas virou explicitamente as costas para ela. Em vez de reconhecer que, uma vez que nós temos várias linguagens ontológicas co-equivantes, deve existir uma pluralidade de tipos de individuais, ele paparicou um deles (CTs), fazendo-se de surdo para as alegações que ele mesmo formulou tão brilhantemente em favor de alguns de seus rivais conceituais (os PCs).

A discussão de Strawson é também de ajuda para responder uma das objeções que pode ser feita a tese da auto-suficiência da linguagem dos tipos. A objeção é que, embora os nomes de tipos possam ser usados com massas uniformes tal como água e madeira, eles não podem fazer o trabalho de sortais como ‘gato’ ou ‘maçã’. “Pois, particulares tal como flocos de neve poderiam

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ser fisicamente fundidos para se ter uma massa particular de neve; mas nós não poderíamos juntar gatos para se ter um gato enorme” (Individuals, p. 205). Porém, como Strawson observou, na medida em que nós usamos apenas a lingugem de tipos, i.e., na medida em que nós dizemos “Neve – mais neve” e “Gato – mais gato”, a analogia é preservada. O monte de neve é “mais neve”, o monte de gato, “mais gato”.

Este ponto, contudo, necessita uma melhor elaboração. A diferença entre tipos e massas parece ser que, com sangue, algodão, pigmento-vermelho, etc., nós podemos apontar para todo lugar que a dita matéria ocupa e veridicamente dizer “Isto é sangue”, “Isto é algodão”, etc., sem ter que qualificar estes enunciados dizendo “Falando estritamente, isto é apenas uma parte de sangue (algodão, etc.)”. Mas, nomes de tipos como “O Gato” (na terminologia de Strawson, ‘gato’ como um universal feature-placing) comporta-se de maneira um pouco diferente. Nós podemos dizer “Este é (O) Gato” apenas quando nós apontamos para a área total ocupada pelo que é chamando na lingaugem da ontologia II um gato singular. Não se pode apontar para a cabeça, dizendo “Gato” e depois para a cauda, dizendo “Mais gato”. Isto pode levar alguém a pensar que os nomes de tipos não são independentes de nomes de coisas. Mas, isto seria incorreto. No caso de ‘sangue’ e ‘água’ ‘suja’, etc. nós também pomos limitações no tamanho da área que pode ser qualificada como contendo a entidade em questão. Uma molécula de H2O não é água, e um corpusculo não é sangue. Isto é, mesmo se o denotata de nomes clássicos de massa não estejam presentes (como um todo) em todo lugar espacial que eles ocupam, se nós não pomos nenhuma restrição no termo ‘todo lugar espacial’. Mas, se nós introduzimos tais restrições, a diferença entre ‘água’ e ‘O Gato’ desaparece. Agora se pode dizer que as entidades denotadas por esses termos estão presentes, como um todo, em todo lugar que eles ocupam – onde o termo ‘todo lugar’ carrega o adendo que este lugar deve ser de certo tamanho mínimo,

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determinado pelo nome-tipo em questão. Pois, o lugar onde a forma gato pode ser encontrar deve ser maior do que o lugar onde a (mais simples) propriedade cevada pode ocorrer, o qual por sua vez é ainda maior do que o lugar onde água pode estar. Se apenas uma cauda de gato é aí, (O) Gato não é aí, e se nós fazemos um monte de gatos, o resultado não seria a referência do nome-tipo ‘(O) Gato’. Mas, por conseguinte, se nós pegamos uma porção de cevada e amontoamos, nós não teríamos nada que seria denominado ‘cevada’(seria farinha).

A interpretação liberal acima da demanda de que um PC esteja inteiramente presente nos lugares que ocupa tem um resultado imediato. De acordo com ela, todos os nomes próprios, que até aqui foram considerados nomes de CTs, podem ser qualificados como nomes de PCs também. Lyndon Baines Johnson poderia ser um tipo, uma vez que, se nós exigimos apenas que Lyndon Baines Jonhson esteja inteiramente presente em cada lugar grande o suficiente para permitir a ocorrência da propriedade complexa (ou a disjunção de propriedades) ser LBJ, então, a pessoa ‘LBJ’ pode também ser qualificada como o tipo O LBJ. O mesme vale para nomes de entidades maiores, e.g., ‘Jerusalém’ ou ‘Uruguai’. A única diferença que poderia ser detectada entre ‘LBJ’ como nomeando um PC e ‘LBJ’ nomeando um CT é a condiçao de singularidade que limita o emprego do segundo uso de ‘LBJ’. Isto é, no notório caso problemático (tornado famoso por pela história de B. O. A. Williams dos dois irmãos que “tornaram-se Guy Fawkes”) de, seja, LBJ desaparecer e duas (ou mais) pessoas, qualificadas igualmente bem para ser, cada uma delas, LBJ showing up, a gramática de ‘LBJ’ como nome-tipo seria em parte ways com ‘LBJ’ como nome-coisa. O nome-tipo seria aplicável a ambos os LBJs; que LBJ (i.e., O LBJ) estaria presente em dois lugares distintos ao mesmo tempo seria completamente não-problemático; conceitualmente, seria similar a descobrir petróleo, ou a Peste bubônica, em um novo local. Contudo, se ‘LBJ’ é usado como um

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nome de coisa nós não seríamos capazes de usá-lo com respeito a ambos os disputantes. Como Williams sugere, nós iríamos provavelmente recusar o seu uso com respeito a ambos, e declarar LBJ perdido ou morto.

A mesma solução é aplicável para problemas filosóficos similares. Muitos termos são sucessivamente usados em circunstâncias normais sem que se tenha que especificar se nós os usamos como nomes-tipo ou como nomes-coisas. Contudo, em casos limites, ou em casos problemáticos especialmente construídos por filosófos, nós parecemos confusos, porque o termo em questão agora tende a se comportar em dois modos diferentes, dependendo se nós o construímos como um nome de PC ou não. Estes problemas abundam especialmente na filosofia da mente e em estética, onde o uso ordinário de um termo não nos dá nenhuma pista acerca de que ontologia é pressuposta pelo uso desse termo. Por exemplo, ‘pensamento’ nomeia um PC, um CS, ou um CT? ‘Mente’ é nome-tipo, um nome-coisa, um nome-processo, ou um nome-evento? Guerra e Paz é um tipo ou uma coisa, e a Eroica é um tipo ou um processo? A linguagem ordinária não nos dá muitas pistas, e seguidamente as pistas que ela dá vão em diferentes direções. O filósofo, por conseguinte, seguidamente cai em armadilhas de falsos problemas quando ele não percebe qual é a ontologia pressuposta em uma dada elocução e qual é a estrutura lógica precisa dessa ontologia. Tome-se, p.ex., o problema da posição ontológica das obras de arte. Muitos filósofos defenderam que as obras de arte não podem ser coisas materiais, porque quando nós discutimos os méritos estéticos ou deméritos de um certo poema, pintura, ou composição musical, nós estamos falando sobre um tipo, que é realizável (ao menos em princípio) em muitos exemplares (tokens). Então, os ditos filósofos concluem que a obra de arte deve ser um universal ou um grupo de universais. Por outro lado, aqueles que acham esta solução muito estranha para se adotar têm tentado defender (não menos estranhamente) que uma

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reprodução exata de uma obra de arte não pode (logicamente) jamais ser feita, ou, alternativamente, que falar sobre os méritos de uma obra de arte, p.ex., a Quinta de Beethoven, é tão somente falar de modo não-perspícuo sobre os méritos de cada performance da dita obra. Contudo, todas essas revisões ontológicas forçadas tornam-se redundantes no minuto que nós percebemos que tipos são objetos materiais perfeitamente legítimos, e que pronunciamentos sobre suas propriedades não necessitam ser construídos como pressupondo Platonismo ou então reduzidos a enunciados sobre coisas.

Obviamente, o filósofo pode recusar-se a aceitar a nossa linguagem ordinária imprecisa, que torna constante o uso de quatro ontologias diferentes. Ele pode, antes, adotar uma linguagem ideal, tentando usar em toda parte a ontologia que ele mais gosta. Em princípio não há nada de errado com esta estratégia, desde que o filósofo que a adota perceba que as frases em Inglês que ela “analisa” na armação ontológica de sua escolha podem também ser diferentemente construídas. Isto é, ele deve lembrar que as resoluções que ele oferece para tais problemas filosóficos podem ser apanhadas por (pelo menos três) outras soluções, que, dada a inteira ontologia que elas pressupõem, pode lidar com aqueles problemas igualmente bem.1

1 Eu quero agradecer a meu amigo Eric Walther pelos vários comentários proveitosos que ele fez sobre uma versão anterior desse artigo.

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4. Classificação das asserções fundamentais

J. Vuillemin

Nécessité ou contingence: l’aporie de Diodore et les systèmes philosophiques; De Minuit, 1984, pp. 275-84.

Reduzida à sua estrutura mais simples, a asserção tem por finalidade comunicar ao outro o saber ou a experiência, naquilo que eles têm de singular, que um sujeito falante possui. Nós nos perguntaremos aqui sobre as formas da predicação singular, procurando classificar as formas fundamentais desta predicação.

Uma asserção singular subsumindo um particular ou indivíduo sob um universal, nós classificamos as formas dessa asserção utilizando dois critérios. O critério sintático, e subordinado, considera os tipos de signos que se usa para construir a asserção. O critério semântico, fundamental, considera as condições de acesso à verdade que os locutores devem dispor para atribuir à asserção o seu valor de verdade.

As palavras ordinárias pelas quais a linguagem faz referência ao mundo são palavras designando universais. Nós denominaremos frase ou enunciado nominal um enunciado singular formado unicamente destas palavras, p.ex.: “A raiz quadrada de dois é um número irracional” ou humilitas virtus. De tais enunciados será dito exprimir a forma da predicação pura. Eles são compostos de um universal, no papel de função, e de um universal, transformado em nome de indivíduo (Raiz quadrada de

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dois, humilitas), no papel de argumento. Em latim, estas duas palavras combinam-se sem terem de ser ligadas pela cópula “é”. Neste enunciado não tem lugar nenhum dos elementos constitutivos do verbo: número, tempo, pessoa, aspecto, modo. Semanticamente, é suficiente que os interlocutores compreendam o código ordinário da linguagem utilizada – isto é, a lista de palavras de universais – para ter acesso às condições de verdade da asserção. O estado de coisas que reflete tal asserção é extranho ao espaço e ao tempo. Os indivíduos que ela classifica em os subsumindo sob o universal não relevam do conteúdo ou do processo da percepção. A ontologia posta em obra pela determinação do domínio de indivíduos é aquele das idéias. É por relação ao que ela tem de extra-sistemático e em modificando a predicação pura pela adição progressiva de determinações novas, particularmente verbais, que se pode falar da percepção. Denominaremos asserção de participação toda asserção que se afasta da predicação pura e trata do mundo sensível.

Distinguiremos duas séries de formas fundamentais de enunciados de participação. A primeira série ou série indicativa tem por objeto comunicar os fenômenos percebidos, sem fazer alusão ao processo da percepção. A segunda série ou série reflexiva recusa, ao contrário, dissociar, na comunicação, o objeto da comunicação do ato pelo qual ele é apreendido.

A primeira forma fundamental da série indicativa é a predicação substancial. Ela difere da predicação pura pelo fato de que a instância do universal não é mais uma idéia, mas um indivíduo sensível.

A sintaxe que permite exprimir as asserções de uma tal forma deve compreender o verbo substantivo é que permite dizer a “essência” do indivíduo e, nesse caso, de o definir, especificando a cláusula mais geral que caracteriza a existência sensível, estranha à predicação pura. Ela compreende igualmente, afim de designar a instância sensível do universal, os nomes próprios, etiquetas adequadas para as substâncias. Do ponto de

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vista semântico, uma vez que esta substância sensível é projetada na duração e que ela é situada no espaço, os interlocutores, que acedem às condições de verdade da predicação substancial, devem poder, não somente identificar o indivíduo subsumido sob o universal, mas ainda o reidentificar, estendendo o universo do discurso para o passado e para o futuro.

Mas, pergunta-se, poderia ser que um universal estranho ao tempo fosse individualizado por uma substância sensível e assim submetido às vicissitudes da localização e da temporalidade? A questão é suscetível de duas respostas. Ou bem, embora seja ela sensível, a substância é suposta incorruptível. Tal é o caso presumido das estrelas e átomos. Nessa suposição, quando se diz que “Júpiter é uma estrela”, o predicado “é uma estrela” se encontra sempre representado por Júpiter. “Sempre” é como que o traço deixado pela eternidade no tempo. Denominaremos elementar este tipo de predicação substancial, porque se admite aí para sujeito indivíduos indestrutíveis, isto é, elementares ou desprovidos de composição. Ou bem os sujeitos-substâncias se corrompem. Quando se diz que Sócrates é um homem, confia-se a Sócrates o poder de representar a humanidade durante um lapso de tempo finito. Este tipo de predicação substancial será dito compósito.

Quando ela é elementar, a predicação substancial varia sobre todos os indivíduos subsumidos sob o universal na classe de equivalência. Em virtude das definições por abstração, pode-se então eliminar todo discurso que parece tratar de uma classe de equivalência e o substituir por um discurso onde não figuram senão os indivíduos providos de uma relação simétrica e transitiva de semelhança exata: assim, no lugar de dizer que duas linhas têm a mesma direção, dir-se-á que elas são paralelas. Reduz-se assim o universal a um papel simplesmente virtual. O que é impossível quando a predicação substancial é compósita. Suponhamos, com efeito, que Sócrates e M. Dupont individualizam a humanidade há séculos de distância. Para que

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nós possamos tratar estes indivíduos como substâncias sujeitos de uma predicação verdadeiramente substancial é necessário que a instanciação da humanidade seja, enquanto tal, exatamente a mesma, nos dois casos. Por conseguinte, a humanidade como espécie deve ser suposta imutável. Certamente ela não existe senão encarnada nos indivíduos transitórios. Mas uma substancialidade de segunda ordem deve ser atribuída a ela, na ausência da qual nós faríamos sossobrar o critério mesmo que permite identificar e reidentificar uma substância “primeira”.

A predicação substancial perderia sua função própria se nós a separássemos de seu correlato, a predicação acidental que constitui um terceiro tipo de asserção fundamental. A percepção coloca o acidente na substância. A linguagem transcreve esta inerência modificando a natureza da instanciação. O predicado essencial individualiza inequivocamente o seu objeto. Os predicados “é uma estrela” e “é um homem” precisamente permitem apreender uma substância pertencente a uma espécie determinada. Por isso Aristóteles qualifica uma tal asserção de “sinônima” em sentido forte. M. Dupont é um homem exatamente no sentido em que Sócrates é um. Ao contrário, mesmo que o enunciado “Este corre” consiga identificar corretamente um indivíduo, a identificação aí não é sem equívoco no que concerne ao modo como o indivíduo “representa” o universal. Pois, um cavalo, um galo, um riacho, uma nuvem, um rumor, são todos ditos correr. Por isso Aristóteles chama “analógica” esta predicação, que ele opõe à predicação sinônima. Para assegurar a univocidade da comunicação, deve-se então colocar a predicação analógica sob a dependência da predicação sinônima. Mesmo quando utiliza-se adjetivos qualificativos que expressam uma qualidade permanente da substância, quando se diz de Sócrates que ele é pequeno ou grande, supõe-se que ele é pequeno ou grande enquanto homem e não à maneira da girafa ou do elefante. Assim, recorre-se implicitamente à predicação substancial para suprir a indeterminação da predicação acidental.

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A sintaxe do acidente exige alguma coisa além da sintaxe da substância. Faz-se necessário, agora, que entrem em jogo o número, o aspecto e os elementos temporais objetivos da conjugação verbal (em francês: aoristo, imperfeito, mais-que-perfeito e prospectivo, com exclusão do presente e dos futuros simples e passado). A semântica do acidente faz surgir, diferentemente da semântica da substância, as modificações de valor de verdade. O enunciado “Sócrates é um homem” conserva invariavelmente o seu valor; ele é sempre verdadeiro. O enunciado “Sócrates corre” é ora verdadeiro ora falso, mas esta modificação do valor de verdade é objetivamente fundada e independente de toda relação ao locutor.

Como a predicação substancial, a predicação acidental se divide, não sem inverter os papéis do elementar e do compósito. É por agregação ou composição, com efeito, que as substâncias elementares tornam-se as instâncias de acidentes universais. Ao contrário, a predicação acidental que convém às substâncias compósitas é elementar. Estas disposições explicam-se dado que a instanciação do acidente se opõe à instanciação da essência por seu caráter transitório e temporal. A asserção “Júpiter está oculto pela Lua” tem uma verdade datada e esta data é completamente estranha à existência presumida sempiterna de Júpiter como estrela. O acidente, nesse caso, requer uma composição ou uma agregação externa. A vida de Sócrates, ao contrário, fixa os limites do tempo durante o qual ele é uma instância de homem. Mas, como esta duração que lhe é dada não afeta a espécie humana ela mesma, ela deve-se a um acidente. A individuação característica da predicação substancial compósita deve então ao acidente as circunstâncias nas quais ela toma lugar. Para um tal sujeito, a acidentalidade e as predicações que lhe correspondem são assim elementares.

A terceira e última classe fundamental da série indicativa é a predicação circunstancial. Do ponto de vista sintático, os enunciados desta forma não somente exploram o resto das

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determinações verbais tais como os tempos indexados por relação ao tempo do locutor (presente, perfeito, futuro simples e composto), mas eles recorrem aos “particulares egocêntricos” ou dêiticos (aqui, agora, este,...) e introduzem as pessoas próprias ao diálogo (eu, tu). A predicação transforma a incidência percebida de dois singulares em tipo enfraquecido de instanciação do universal. Do universal, nós nos contentaremos de afirmar que ele acontece a tal momento e em tal lugar. Quando se diz que choveu em Paris em 14 de julho, nem Paris e nem 14 de Julho podem passar por instâncias da chuva e não se confunde ser em com ser. Em realidade, uma vez localizado por um momento e um lugar, o universal torna-se um evento singular. Este último é que é a verdadeira instância do universal e é uma ontologia de eventos que a predicação circunstancial supõe. Por isso, quando se converte esta predicação em predicação acidental, transformando-se o verbo impessoal em nome e o advérbio em adjetivo, o enunciado “Chove torrencialmente” substitui “Esta chuva é torrencial”, na qual não é um momento ou um lugar, mas uma instância de chuva que torna-se sujeito.

Individualizar, nesse caso, não é instanciar, mas somente localizar o universal. A instância singular não tem, pois, que ser nomeada e sua condição transitória a exclui do universo das substâncias para a colocar no dos eventos. Deve-se poder reidentificar uma mesma substância. Não se reidentifica um mesmo evento. O evento é, como a qualidade e contrariamente à substância, suscetível de graus diferentes de intensidade. Como as qualidades ainda, e contrariamente às substâncias, eventos diferentes toleram, sob certas condições, de acontecer ao mesmo tempo e no mesmo lugar, e esta lei de superposição, que os caracteriza, permite de os decompor em elementos mais simples, o que exclui o tipo de unidade que requerem as substâncias sensíveis. Mas, a localização do evento exige um marco de referência e este não será prático senão for móvel. Em lugar de uma convenção relativamente estável, tal como a fornecida pelo

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nome próprio, a linguagem tem necessidade de uma convenção ajustável que dependa da ocasião. Por isso, ela recorre aos particulares egocêntricos. A semântica da predicação acidental não fixa, portanto, as condições não ambíguas de acesso ao valor de verdade, senão para os protagonistas do diálogo. A materialidade do diálogo fixa a cada vez estas condições e determina, por conseqüência, uma modificação específica dos valores de verdade própria à forma destes enunciados.

Denomina-se proposição uma asserção espontânea e juízo uma asserção refletida. Um juízo se distingue de uma proposição pelo fato de que ele explicita a expressão, isto é, o modo de acesso cognitivo ao estado de coisas, modo este que a proposição faz abstração. A expressão de seu autor coloca sobre o juízo a mesma marca egocêntrica que colocam sobre as proposições dêiticas o marco referencial em função da enunciação. Nos dois casos as asserções perdem a simplicidade lógica característica dos enunciados atômicos. Deve-se referir à origem à indexação espaço-temporal que localiza os indivíduos das proposições dêiticas e esta indexação parece inevitavelmente se analisar em algum quantificador sobre uma variável de tempo e de espaço. Quanto à expressão do modo de acesso cognitivo, ela parece depender da modificação secundária que a reflexão aporta à proposição espontânea e, por conseqüência, de uma reduplicação da linguagem. Estas complexidades não produzem dificuldades, a menos que se suponha que as asserções fundamentais devam ser logicamente e gramaticalmente elementares. Então, haveria que se excluir as proposições dêiticas e os juízos. Mas, propõe-se aqui classificar sistematicamente as asserções, não a partir das formas lógicas ou gramaticais impostas pelas coerções da comunicação, mas a partir das diferenças ontológicas que revelam o recurso a domínios de indivíduos diferentes. Disso segue-se que se possa conhecer proposições da forma: “Há um t tal que f(t)” quando não há, para fundá-la, proposição da forma “f(a)”, onde “a” seria um nome próprio do vocabulário primitivo. Além disso, faz-se

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necessário que se possa conhecer juízos da forma “Eu tive a experiência p”, sem que, para fundá-los, haja proposições da forma “p”.

Os juízos de método constituem a primeira classe da série reflexiva. Eles se opõem às proposições dogmáticas correspondentes ao explicitar as operações das quais depende o valor de verdade do enunciado e que fazem parte integrante do estado de coisas. Juízos de constatação, de reflexão propriamente dita, de construção, supõem uma ação.1 Quando Zenão diz que o

1 Reparte-se os juízos de método em três classes fundamentais distintas, segundo o que neles se exprime seja o estado do conhecimento que produz o estado de coisas ao passar por ele, seja o estado do conhecimento considerado em sua relação com o estado de coisas, mas enquanto ele se encontra refletido por ele sobre ele mesmo, seja enfim a atividade de conhecimento enquanto constitutiva do estado de coisas mesmo. Denomina-se, respectivamente, os juízos representativos dessas classes juízos constatativos, reflexivos (no sentido restrito da palavra) e construtivos. Os juízos constatativos agrupam os diversos procedimentos por meio dos quais se constata um estado de coisas, seja diretamente e ao vivo (verbos de sensação e de percepção), seja diretamente, mas no passado ou no futuro (verbos que exprimem memória e antecipação), seja indiretamente pela interpretação de sinais apropriados a fundamentar a existência do estado de coisas (verbos de opinião, verbos atestando que se está informado de um fato, que se apreendeu um evento, etc.). Os juízos reflexivos manifestam o tipo e a intensidade da reflexão; eles exprimem a certeza, a evidência, a dúvida, etc.. Os juízos construtivos efetuam a construção pela qual o conhecimento produz seu objeto. Trata-se de um tipo de performativo teórico, mas de operações que se fazem em as descrevendo. Como o performativo, o processo de construção pode ser expresso em primeira pessoa (“eu ponho isto”, “eu delineio isto”, “eu adiciono isto e aquilo”) ou ser descrito formalmente em termos de identidade objetiva, como quando se define uma entidade matemática por seu processo de construção (definição “real” em oposição à “definição nominal”).As classes que distinguimos não correspondem, termo a termo, às classes de proposições. Cada um dos três juízos de método pode aplicar seu procedimento de conhecimento a não importa qual indivíduo, a qualquer domínio que lhe pertença. Uma constatação refere-se a existência de uma substância, de um evento, ou mesmo de uma idéia. Cada um deles, entretanto, marca também uma afinidade particular com os indivíduos de um domínio específico e assim provavelmente mostra sua origem. Um constatativo é suficiente para informar que um evento aconteceu ou teve lugar. Ao contrário, embora uma substância não se manifeste senão por seus acidentes que estão nela, ela não se reduz a eles. Para assegurar sua existência mesma, faz-se necessário um estado específico de reflexão que se deve consultar. Quanto às idéias, sua transcendência em relação a todas as imagens sensíveis coloca-as como objeto de uma construção apropriada a revelá-las, na falta da qual se pode rejeitá-las como simples ilusões. Portanto, uma vez que entre os eventos, as substâncias e as idéias, os juízos de método selecionam aqueles e somente aqueles que seu procedimento precisamente permite atingir, pode-se crer que o domínio de indivíduos que os caracteriza seja simplesmente um subconjunto, geralmente apropriado, do domínio de indivíduos das proposições correspondentes. Talvez justificada, esta qualificação não é suficiente. Poderia ser, com efeito, que por enumeração ou com a ajuda de um predicado descritivo estranho à realização do processo cognitivo, chegar-se-ia a delimitar a expressão destes subconjuntos por meio de proposições inteiramente objetivas. Faltaria-nos, então, tudo o que distinguiria o juízo: a

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passo de Aquiles é indefinidamente divisível, nós não temos que compreender que os segmentos decrescentes da divisão existem previamente aos atos de bisegmentação, e é por isso que o filósofo dirá que um tal infinito é em potência. O valor de verdade dos juízos de método dependem, então, não da correspondência entre enunciado e um estado de coisas autônomo, mas da adequação entre o enunciado e a ação, entre o que o sujeito diz e o que ele faz. E a sintaxe dos juízos de método exige do interlocutor, que pretende apreciar o valor de verdade daquilo que lhe é dito, efetue por sua própria conta a operação de construção que lhe propõe o enunciado do outro.

Uma segunda classe de juízos fecha a série reflexiva e a lista das asserções fundamentais. Trata-se dos juízos de aparência. Como substituto das diferentes ocorrências da palavra é, os verbos tais quais aparecer e parecer dão lugar a novas asserções fundamentais. Diz-se, assim, que o sol parece girar ao redor da terra, que a tormenta parece se aproximar, que isto parece uma árvore, que este bastão dentro da água aparece torto, ou, para tomar um exemplo entre as idéias, que o conjunto de todos os conjuntos que contêm a si mesmos parece um conjunto. Estes juízos distinguem-se precisamente das proposições correspondentes, não pelo conteúdo, isto é, por seu domínio de indivíduos, mas pela força que convém dar às cópulas aparecer e parecer. Tal indivíduo dá-se como uma instância do universal, mas, uma vez que ele pode ser em realidade uma outra coisa, retira-se a força de assentimento, modificando-se o engajamento ontológico que a proposição entreteria em relação ao domínio de indivíduos. Esta interpretação, que segue fielmente as sugestões da linguagem, resta muda sobre uma putativa relação à um

ordem das razões que ele produz, específica da análise e sem contrapartida no ser da coisa, a referência aos atos de um je pense, responsável pelo método. Seguramente, da verdade de um tal juízo, se está fundamentado para concluir pela verdade de uma certa proposição que se lhe faz corresponder. Esta implicação não elimina, contudo, a irredutibilidade do juízo, em benefício da proposição. Os domínios de indivíduos que se devem colocar não são, pois, partes dos domínios de eventos, de substâncias e de idéias. Eles são domínios de conhecimentos, atos, reflexões, sínteses produtoras, de um Eu cuja atividade liga-se à passividade do “sujeito” das representações.

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objeto, relação duvidosa, dir-se-ia, pois a aparência é tão comunicável e pública quanto o ser.

Porém, façamos uma violência às formas. Traduzimos o juízo em termos de proposição. Retiremos então da cópula de aparência o que ela tem de específico. Esta especificidade reflui agora sobre o domínio de indivíduos e faz-se necessário examinar o que distingue este último do domínio que lhe corresponde na proposição. A distinção salta aos olhos. Com efeito, é uma e a mesma coisa dizer que o domínio dos indivíduos resta invariável e varia a crença na realidade, ou dizer que a crença na realidade do domínio de indivíduos permanece invariável e substitui-se estes indivíduos pela sua representação para um observador. Uma vez que se pergunta qual é o domínio de indivíduos atribuído, quando se passa do juízo “o sol parece girar ao redor da terra” à proposição correspondente, a noção de observador se impõe. A aparência define, com efeito, a representação do observador terrestre. Vê-se assim que a intervenção do sujeito não impede de nenhum modo a comunicação e a publicidade do juízo.

O valor de verdade dos juízos de aparência depende então de um sujeito, como dependem os dos juízos de método. Mas, não se trata mais, agora, de efetuar uma ação apropriada para instaurar o acesso ao estado de coisas ou o estado de coisas mesmo. A aparência assegura automaticamente a adequação. Ou, mais, ela faz economia. Uma ação produzida não seria senão um estado dado do sujeito, e este estado é ou não apropriado à atualização do verdadeiro. Uma representação passiva é tudo o que ela é. Quando ela firma o assentimento, a aparência não se engana. Quanto aquele que escuta e deve apreciar um tal enunciado de aparência, ele sabe que um tal enunciado é verdadeiro se e somente se o seu interlocutor é sincero em seu dizer, sem ter que por isso compartilhar a crença que este interlocutor lhe comunica.

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5. O modo como é o mundo

Nelson Goodman

Traduzido do original “The way the world is” por Celso R. Braida e Noeli Ramme. GOODMAN, Nelson, 1972. Problems and Projects, Indianápolis and New York, USA: The Bobbs-Merrill Company.

1. Introdução

Filósofos algumas vezes confundem as características do discurso com as características do conteúdo do discurso. Nós dificilmente concluiríamos que o mundo consiste de palavras apenas porque com elas fazemos as descrições verdadeiras, mas, às vezes, supomos que a estrutura do mundo é igual à estrutura da descrição. Esta tendência pode chegar ao ponto do línguomorfismo, quando concebemos o mundo como composto de objetos atômicos correspondendo a nomes próprios determinados e fatos atômicos correspondendo a sentenças atômicas. Uma reductio ad absurdum emerge quando um filósofo ocasional mantém que uma descrição simples pode ser adequada somente se o mundo é simples; ou afirma (e eu tenho ouvido isto ser dito com toda seriedade) que uma descrição coerente seria uma distorção a menos que o mundo fosse coerente. De acordo com essa linha de pensamento, suponho que antes de descrever o

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mundo em inglês deveríamos decidir se ele está escrito em inglês, e deveríamos examinar muito cuidadosamente como ele é soletrado.

Obviamente, o idioma, a pronúncia, a tipografia e a verbosidade de uma descrição não refletem nenhuma característica paralela no mundo. Coerência é uma característica das descrições, não do mundo: a questão importante não é se o mundo é coerente, mas se a nossa explicação dele o é. E o que chamamos de simplicidade do mundo é apenas a simplicidade que somos capazes de alcançar ao descrevê-lo.

Mas confusão do tipo que estou falando é relativamente transparente no nível de sentenças isoladas, e portanto relativamente menos perigosa que o erro de supor que a estrutura de uma descrição sistemática verídica espelha rigorosamente a estrutura do mundo. Uma vez que um sistema tenha termos ou elementos básicos ou primitivos e uma hierarquia gradual construída a partir deles, facilmente chegamos a supor que o mundo deve consistir de elementos atômicos correspondentes colocados juntos de modo similar. Nenhuma teoria defendida em anos recentes por filósofos de primeiro time parece mais obviamente errada do que a teoria pictórica da linguagem. Apesar disso, ainda encontramos filósofos perspicazes recorrendo sob pressão à uma noção de qualidades ou partículas absolutamente simples. E muitos daqueles que evitam pensar o mundo como divisível de modo único em elementos absolutos ainda supõem comumente que significados resolvem isto de modo único, e assim aceitam o absolutismo escondido envolvido na manutenção da distinção entre proposições analíticas e sintéticas.

Contudo, neste artigo, não estou preocupado com nenhum destes problemas mais específicos que somente mencionei acima, mas com uma questão mais geral. Tenho enfatizado os perigos de confundir certas características do discurso com as características do mundo. Este é um tema recorrente para mim, mas não é mesmo meu principal interesse aqui. O que eu quero discutir é

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um sentimento desconfortável que me aparece sempre que advirto contra a confusão em questão. Posso ouvir o anti-intelectualista, o místico- meu arquiinimigo- dizendo algo como isto: "Sim, isso é exatamente o que eu venho lhe dizendo sempre. Todas as nossas descrições são pobres paródias. Ciência, linguagem, filosofia, percepção- nenhuma dessas jamais pode revelar fielmente o mundo como ele é. Todas fazem abstrações ou convencionalizações de um tipo ou de outro, todas filtram o mundo através da mente, através dos conceitos, através dos sentidos, através da linguagem; e todos estes meios de filtragem de algum modo distorcem o mundo. Não é apenas que cada um fornece uma verdade parcial, mas que cada um introduz uma distorção própria. Nunca alcançamos mesmo em parte um retrato realmente fiel do modo como o mundo é.”

Aqui fala o bergsoniano, o obscurantista, aparente repetindo minhas próprias palavras e perguntando, com efeito, “Qual é a diferença entre nós? Não podemos ser amigos?” Antes de desejar admitir que a filosofia deve fazer alianças tão estranhas, devo fazer um esforço para formular nossas diferenças. Mas começarei discutindo algumas questões preliminares relacionadas a este problema.

2. O Modo Como o Mundo é Dado

Talvez possamos lançar alguma luz sobre o modo como o mundo é dado examinando o modo como ele nos é dado na experiência. A questão do dado tem um som ligeiramente rançoso nestes dias. Mesmo filósofos mais austeros tornaram-se um pouco auto-conscientes acerca da futilidade de seus debates sobre o dado e tiveram a graça de refrasear o tema em termos de “elementos base” ou “sentenças protocolares”. Mas, de um modo ou de outro, seguimos um bom conselho dedicando-nos aos elementos originais, básicos e simples, a partir dos quais todo conhecimento é construído. Conhecer é tacitamente concebido

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como um processamento de material bruto em um produto acabado; e uma compreensão do conhecimento supõe requerer que nós descubramos o que é esse material bruto.

À primeira vista, isto parece muito fácil. Carnap desejava que os elementos básicos do seu sistema no Aufbau chegassem o mais próximo possível daquilo que é epistemologicamente primário. Para chegar a isto, diz ele, devemos retirar da experiência ordinária tudo que resulta de alguma análise a qual tenhamos submetido o que recebemos inicialmente. Isto significa eliminar todas as divisões entre limites espaciais ou qualitativos, de tal modo que nossos elementos sejam grandes pedaços, cada um contendo tudo da nossa experiência em determinado momento. Mas, dizer isto é fazer divisões temporais artificiais; e o dado real, Carnap infere, não consiste desses grandes pedaços, mas de um único fluxo.

Porém, este modo de abordar o dado assume que os processos de conhecimento são todos processos de análise. Outros filósofos supõem, ao contrário, que os processos são todos processos de síntese, e que o dado consiste então de partículas mínimas que tem que ser combinadas umas com as outras no conhecimento. Ainda, outros pensadores mantém que ambas estas vias são muito extremas, e que o mundo é dado em peças mais familiares de tamanho médio, às quais tanto a análise quanto a síntese são aplicadas. Assim, com vistas à metafísica do dado, encontramos duplicado o monismo, o dualismo e o pluralismo intermediário. Mas, qual visão do dado é a correta?

Olhemos mais de perto a questão. Os vários pontos de vista não diferem sobre o que é contido no dado, ou sobre o que é encontrado ali. Uma certa apresentação visual, todos concordam, contém certas cores, lugares, desenhos, etc.; ela contém ao menos as partículas perceptíveis e é um todo. A questão não é se o dado é um só pedaço indiferenciado ou contém muitas partes pequenas; ele é um todo composto de tais partes. O problema não é o quê é dado, mas como ele é dado. Ele é dado como um único

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todo ou ele é dado como muitas pequenas partículas? Isto captura o problema preciso – e ao mesmo tempo revela sua vacuidade. Pois eu penso que nenhum sentido pode ser dado à frase “dado como”. Que uma experiência seja dada em várias partes certamente não significa que estas partes sejam apresentadas separadamente; nem pode significar que estas partes são separadas uma das outras por linhas perceptíveis de demarcação. Pois, se tais linhas de demarcação estão lá, elas estão dentro do dado, para qualquer visão do dado. O mais próximo que nós podemos chegar para dar um sentido à questão de que mundo é dado como seria dizer que isto resolve-se na questão de se o material em questão é apreendido com um tipo de sentimento de completude ou um sentimento de fragmentação. Chegar próximo a encontrar um significado para dado como não é chegar suficientemente próximo para fazer um juízo.

Assim, receio que não obtemos nenhuma luz sobre o modo como o mundo é perguntando pelo modo como ele é dado. Pois a questão sobre o modo como ele é dado evapora-se no ar.

3. O Modo como o Mundo é para Ser Visto

Talvez possamos avançar perguntando como o mundo é melhor visto. Se podemos, com alguma confiança, graduar modos de ver ou retratar o mundo de acordo com seus graus de realismo, de ausência de distorção, de fidelidade em representar o modo como o mundo é, então, seguramente podemos, fazendo uma inversão destes, aprender alguma coisa sobre o modo como o mundo é.

Precisamos considerar as nossas idéias sobre figuras apenas por um momento para reconhecer isto como uma abordagem encorajadora. Pois avaliamos figuras muito facilmente de acordo com seu grau aproximado de realismo. A figura mais realista é aquela mais semelhante à uma fotografia colorida; e figuras

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tornam-se progressivamente menos realistas, e mais convencionalizadas ou abstratas, na medida em que se afastam daquele padrão. O modo como vemos melhor o mundo, o acesso figurativo mais próximo ao modo como o mundo é, é modo como a câmera o vê. Esta versão do problema é simples, direta, e aceita geralmente. Mas, em filosofia, como em qualquer outro lugar, toda linha prateada envolve uma grande nuvem negra - e esta visão descrita tem tudo a seu favor, exceto que ela é, eu penso, inteiramente errada.

Se tomo uma fotografia de um homem com seus pés na minha direção, os pés poderão parecer tão grandes como seu torso. Este é o modo como normalmente ou apropriadamente vejo o homem? Se é, porque então chamamos tal foto de distorcida? Se não, então não posso mais alegar tomar a visão fotográfica do mundo como meu padrão de fidelidade.

O fato é que esta fotografia 'distorcida' chama nossa atenção para algo sobre ver que tínhamos ignorado. Exatamente na medida em que ela difere de uma representação 'realística' ordinária, ela revela novos fatos e possibilidades na experiência visual. Porém, a fotografia 'distorcida' é um exemplo muito trivial de algo muito mais geral e importante. A 'distorção' da fotografia é comparável com a distorção dos novos ou não-familiares estilos de pintura. Qual é o retrato mais fiel de um homem- um feito por Holbein ou por Manet ou um de Sharaku ou de Dürer ou de Cézanne ou de um feito por Picasso? Cada diferente modo de pintar representa um modo de ver; cada um faz suas seleções, suas ênfases; cada um usa seu próprio vocabulário de convencionalização. E precisamos apenas olhar a fundo nas pinturas de tais artistas para ver o mundo também do mesmo modo. Pois ver é uma atividade e modo como a executamos depende em grande parte do nosso treinamento. Eu lembro J. B. Neumann dizendo que quando ele viu pela primeira vez faces de uma audiência cinematográfica no brilho refletido na tela ele primeira vez compreendeu como um escultor africano via faces.

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O que percebemos como as figuras mais realistas são meras figuras do tipo pelas quais a maioria de nós foi, infelizmente, educada. Um africano ou um japonês iria certamente fazer uma escolha diferente quando solicitado a selecionar figuras que mais proximamente reproduzem o que ele vê. Nossa resistência para novos ou exóticos modos de pintura deriva da nossa normal resistência letárgica ao retreinamento; e, por outro lado, há a excitação na aquisição de novas capacidades. Assim, a descoberta da arte africana mexeu com os pintores franceses e eles aprenderam novos modos de ver e pintar. O que é menos admitido é que a descoberta da arte européia é excitante para o escultor africano pelas mesmas razões; ela mostra para ele um novo modo de ver, e ele, também, modifica seu trabalho respectivamente. Infelizmente, enquanto a absorção européia do estilo africano geralmente resulta em um avanço artístico, a adoção africana do estilo europeu em geral sempre leva à deterioração artística. Mas isso é por razões acidentais. A primeira é que a deterioração social dos africanos é geralmente simultânea com a introdução da arte européia. A segunda razão é ainda mais intrigante: que enquanto o artista francês foi influenciado pelo melhor da arte africana, o africano foi sem dúvida alimentado com arte de calendário de modelos. Tivesse ele visto escultura grega ou medieval ao invés disso, o resultado poderia ter sido radicalmente diferente. Mas eu estou fazendo digressões.

O resultado de tudo isso é que nós não podemos chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando sobre o melhor ou mais fiel, ou mais realístico modo de vê-lo ou representá-lo. Pois os modos de ver e figurar são muitos e variados; alguns são fortes, efetivos, úteis, intrigantes ou sensíveis; outros são fracos, cômicos, desanimados, banais ou confusos. Porém, mesmo se todos os últimos fossem excluídos, ainda assim nenhum dos outros pode fazer uma boa defesa de ser o modo de ver ou pintar o mundo do modo como o mundo é.

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4. O Modo como o Mundo deve ser Descrito

Chegamos agora à uma versão mais familiar da questão acerca do modo como o mundo é. Como o mundo deve ser descrito? Aquilo que nós chamamos uma versão verdadeira representa fielmente o mundo?

A maioria de nós tem tinindo nos ouvidos a afirmação de Tarski que "está chovendo" é verdadeira se e somente se está chovendo, bem como sua observação (que eu penso ser errônea, mas que está fora do ponto aqui) que a aceitação dessa fórmula implica na aceitação de uma teoria da verdade como correspondência. Este modo de por a questão encoraja uma tendência natural de pensar a verdade em termos de espelhar ou reproduzir fielmente; e nós temos um ligeiro choque quando nos acontece perceber o fato óbvio que a sentença "está chovendo" é tão diferente quanto possível da tempestade. Esta disparidade é a mesma tanto para uma descrição falsa quanto para uma descrição verdadeira. Felizmente, assim nós não precisamos aqui nos preocuparmos com o difícil problema técnico da natureza da verdade; nós podemos restringir nossa atenção às descrições tidas como verdadeiras. O que devemos encarar é o fato de que mesmo as descrições mais verdadeiras não chegam perto de reproduzir fielmente o modo como o mundo é.

Uma descrição sistemática do mundo, como eu salientei antes é mais vulnerável a esta pressão; pois ela tem primitivos explícitos, rotas de construção, etc., nenhuma destas características pertencem ao mundo descrito. Alguns filósofos objetam, contudo, que se descrições sistemáticas introduzem uma ordem arbitrariamente artificial, então nós deveríamos fazer nossas descrições de um modo assistemático para torná-las mais conformes ao mundo. Agora, a assunção tácita aqui é que os quesitos nos quais uma descrição é insatisfatória são justamente aqueles em relação aos quais ela falha em ser uma figuração fiel; e o objetivo tácito é alcançar uma descrição que tanto quanto

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é possível nos dá uma semelhança viva. Mas o objetivo é ilusório. Por que nós temos visto que o modo mais realista de representar acaba num mero tipo de convencionalização. Em pintura, as seleções, as ênfases, as convenções são diferentes mas não menos peculiares ao veículo, e não menos variáveis, que aquelas da linguagem. A idéia de fazer descrições verbais se aproximarem de pinturas figurativas perde seu ponto quando entendemos que tornar uma descrição uma figuração o mais fiel possível conduziria a nada mais do que trocar umas convenções por outras.

Portanto, nem o modo como o mundo é dado, nem nenhum modo de ver ou figurar ou descrever nos conduz ao modo como o mundo é.

5. O Modo como o Mundo é

Agora chegamos à questão: qual, então, é o modo como o mundo é? Estou eu ameaçado com a amizade dos meus inimigos? Parece que sim, pois eu justamente cheguei à conclusão do místico de que não existe representação do modo como o mundo é. Mas, se na superfície nosso acordo parece ter sido reforçado, uma segunda mirada mostrará como ele foi solapado pelo que nós estivemos dizendo.

A acusação de que uma dada descrição verdadeira distorce ou é infiel ao mundo tem importância em termos de alguma gradação de acordo com fidelidade, ou em termos de uma diferença em graus de fidelidade entre descrições verdadeiras e boas pinturas. Mas se nós dizemos que todas as descrições verdadeiras e boas pinturas são igualmente infiéis, então de que exemplo ou padrão de fidelidade relativa nós estamos falando? Nós não temos mais diante de nós nenhuma noção clara do que a fidelidade deveria ser. Assim eu rejeito a idéia de que existe algum teste de realismo ou fidelidade juntamente com testes de

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boa pintura e verdade descritiva. Há muitas descrições verdadeiras igualmente diferentes e verdadeiras do mundo, e sua verdade é o único padrão de sua fidelidade. E quando nós dizemos delas que todas elas envolvem convencionalizações, nós estamos dizendo que nenhuma destas descrições diferentes é exclusivamente verdadeira, pois as outras também são verdadeiras. Nenhuma delas nos diz o modo como o mundo é, mas cada uma delas nos diz um modo como o mundo é.

Se eu fosse perguntado qual é o alimento para o homem. Eu deveria responder "nenhum". Pois existem muitos alimentos. E se me perguntarem qual é o modo como o mundo é, eu devo igualmente responder "nenhum". Pois o mundo é de vários modos. O místico mantém que há algum modo como o mundo é e que este modo não é capturado por nenhuma descrição. Para mim não existe nenhum modo que seja o modo como o mundo é; e assim obviamente nenhuma descrição o pode capturar. Mas, há muitos modos como o mundo é, e toda descrição verdadeira captura um deles. A diferença entre o meu amigo e eu é, em suma, a enorme diferença entre o absolutismo e o relativismo.

Desde que o místico está preocupado com o modo como o mundo é e ele que o modo não pode ser expresso, sua última resposta à questão sobre o modo como o mundo é deve ser, como ele reconhece, o silêncio. Como eu estou mais preocupado com os modos como o mundo é, minha resposta deve ser construir uma ou mais descrições. A resposta à questão "Qual é o modo como o mundo é? Quais são os modos como o mundo é?" não é o emudecimento, mas uma tagarelice.

6. Pós-escrito

No começo deste artigo, falei da falsidade óbvia da teoria pictórica da linguagem. Eu declarei muito presumidamente que uma descrição não figura o que ela descreve, ou mesmo

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representa a estrutura do que ela descreve. A objeção devastadora contra a teoria pictórica da linguagem era que uma descrição não pode representar ou espelhar realmente o modo como o mundo é. Porém, ainda observamos que uma pintura também não faz isso. Comecei abandonando uma teoria pictórica da linguagem e acabei adotando uma teoria lingüística das pinturas. Eu rejeitei a teoria pictórica da linguagem pela razão de que a estrutura de uma descrição não se conforma à estrutura do mundo. Mas então eu concluí que não existe tal coisa como a estrutura do mundo com relação a qual algo poderia ou não estar conforme. Você pode dizer que a teoria pictórica da linguagem é tão falsa e tão verdadeira quanto a teoria pictórica da pintura; ou em outras palavras, que o que é falso não é a teoria pictórica da linguagem mas uma certa noção absolutista com relação à pintura e à linguagem. Talvez eventualmente eu possa aprender que o que parece mais obviamente falso algumas vezes não o é.

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6. Filosofia e o conflito entre tendências de vida

Dieter Henrich

“Philosophy and the conflict between tendências de vida” in: D. Henrich, Konzepte; Frankfut A. M., Suhrkamp, 1987.

Introdução

A seguinte sequência de teses procura esboçar uma concepção para a compreensão da origem do ideal de harmonia na vida humana e a natureza da dificuldade que emerge inevitavelmente com ela. Ela concentra-se sobre a estrutura da “vida consciente”, a vida do indivídio, e sobre a dinâmica que surge de aspectos de sua constituição básica. Apenas no final emergirão visões sobre a vida social e sua história. Referências serão feitas do início ao fim aos problemas e teoremas de filósofos modernos que se preocuparam com a compreensão das fundações conceituais necessárias para compreender processos de desenvolvimento.

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1. Concepções de unidade como harmonia

Nós temos que distinguir pelo menos três diferentes noções de unidade que podem ser usadas na definição do conceito de harmonia.

A. Unidade como compreensividade“Aspectos” ou “momentos” parciais têm que ser mantidos e

concebidos dentro de uma forma unitária de coordenação e interação tal como ordem social ou o sistema de necessidades e o exercício de talentos. Tal unidade se estabiliza para seus componentes por meio de moderação e modificação. Unidade deste tipo varia em graus dependendo da extensão das modificações mútuas de seus componentes. Nesse sentido, unidade do tipo A são capazes de dar origem a graus de harmonia. O processo de aumento da unidade, contudo, é essencialmente um processo que os componentes como tais sofrem. A unidade mesma não é afetada por um dinamismo. Antes, ela permanece um ideal estático – seu paradigma é a natureza como um “sistema cósmico”.

B. Unidade como complexidadeDe acordo com esta segunda noção, unidade é ela mesma

essencialmente também um ideal com respeito a multiplicação e expansão de seus componentes. Quanto mais componentes uma forma unitária permite e mais independente, surgimento imodificado desses componentes ela permite, tanto mais a unidade é realizada em seu interior e em virtude dela. Harmonia, então, torna-se livre interação. Seus graus são indicados pelo grau de complexidade não-antagônica. Mas, nesse caso a noção de unidade mesma é associada com a noção de mudança dinâmica: as formas unitárias enquanto tais diferem pela medida da modificação do número, tipo e graus de independência dos componentes. O seu paradigma é obra de arte (clássica).

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C. Unidade como a resolução final de conflitoEsta unidade é essencialmente um resultado. Ela é defindia

com respeito a elementos que podem ser modificados ou integrados nem em um sentido direto nem no mesmo nível em que eles se originaram e desebrocharam. Se eles fossem se modificar mutuamente um ao outro ou procurassem um equilíbrio através de interação, eles se destruíriam um ao outro. Então, eles têm que desenvolver antagonisticamente até um ponto onde ou eles transformam a si mesmos em uma forma diferente que lhes permite ser compatíveis ou eles revelam sua dependÊncia sobre uma unidade subjacente que é operante dentro deles. Esta unidade pode também se tornar realizada ou manifesta ou através da explicitação do conflito mesmo ou então junto com a explicitação do conflito. Unidade neste sentido é uma correlação de opostos no primeiro nível e reconciliação no final ou no segundo nível. O seu paradigma é o insight (histórica e filosófica).

2. Vida consciente e unidade como reconciliaçãoUm tratamento completo da estrutura da vida consciente

requer o emprego da noão de unidade do tipo C. Definir e determinar sua condição e sua origem é uma das preocupações da filosofia. Nossa vida é tal que tendências conflituosas (princípios ativos) de conduta e orientação emergem dela e ganham força persuasiva igualmente justificadas. Analisar a vida emt ermos destes conflitos foi uma possibilidade descoberta pela filosofia pós-kantiana. Ela mostrou também que cada uma dessas tendências tende a gerar uma descrição do mundo humano em que uma vida que é dominada e orientada por uma tendência particular pode ser concebida como estando em casa e em paz dentro dele. Estas descrições ou visões de mundo estão, portanto, engajadas no mesmo conflito e excluem uma às outras tão completamente como as tendências elas mesmas.

Uma primeira análise da vida consciente empregando este arcabouço é a distinção do filósofo-poeta Holderlin entre (1) o

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esforço pela infinita auto-perfeição, (2) a dedicação da vida à aparência da beleza e (3) a vida vivida a partir da ciência da base comum de todo ser.

Tendências como estas não redutíveis uma as outras. Elas são igualmente primordiais e intrinsecamente estabilizadas em virtude de uma visão de mundo metafísica. Elas podem ser reconciliadas apenas através de uma intuição (insight) de segundo nível em sua origem, a inevitabilidade de seu conflito e a probabilidade de que irá encontrar qualquer vida que tentar permanecer cegamente fiel à orientação de uma das tendências uma vez que ela seja adotada. A imagem do mundo que eventualmente torna-se estável através dessa intuição é essencialmente um resultado – ele é uma “recoleção” da história da vida consciente através do curso de suas tendências e, logo, uma intuição na natureza, fonte e significância de processos antogônicos.

3. A origem do conflito na auto-descrição

Pode-se compreender a multiplicidade de tendências bem como porque o conflito entre elas não pode ser resolvido no mesmo nível em que eles se originam por meio de uma análise elementar da constituição da própria vida consciente. Pois, nós temos que conceber nós mesmos (o referente de um pronome da primeira pessoa) em um duplo modo: nós somos (1) entidades no interior de um mundo e entre outros do mesmo tipo (pessoas) e (2) pontos de vistas e âncoras de referência em relação a todas as coisas e qualquer mundo (sujeitos). É impossível reduzir uma dessas facetas a outra. Ambas, antes, pressupõem a sua oposta, embora elas também tendam a subsumi-la sob sua respectiva dominância. Desde o início de nossa vida consciente nós somos torturados entre auto-descrições conflituosas que estão associadas com estes aspectos primários de eudade.

Dentro desse conflito outros conflitos ganham forma. Um

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deles é o antagonismo entre estados definidos de nossa vida no mundo. Se nós experienciamos um mundo particular de um modo que permite uma afirmação derradeira e definitiva do curso de nossa vida, nós podemos conceber tal estado como felicidade. Mas, nós nunca sabemos com segurança em que consiste a felicidade e nós podemos sempre suspeitar que todo mundo imaginável é basicamente incompatível com a constituição de nossa vida. Nessa perspectiva, qualquer estado definitivo de nossa vida poderia ser somente uma negação definitiva dela da parte da constituição do mundo. Boa sorte é, então, nada senão uma feliz fuga de nossa condição genuína, e o nihilismo, embora possivelmente apenas latente, a única resposta experiencial apropriada para o que nós de outro modo poderíamos tomar por um destino significativo.

Ainda outro conflito emerge no contexto de normas. Vidas conscientes devem ser levadas e, assim, são essencialmente sujeitas à normas. Mas, uma norma não pode ser experienciada como válida exceto sob a luz do que pode ser chamado “condições-de-aceitação”. E estas, por sua vez, novamente consistem parcialmente em auto-descrições do agente. Dependendo ou da prevalência de noções da pessoa ou do sujeito ou de várias tentativas de integração desses dois aspectos, normas conflituosas – tal como prudência, irmandade ou direitos universais – tornam-se centrais. Se claridade sobre suas condições e alcance deve ser mais do que simplesmente sobre fatos psicológicos e históricos, uma imagem compreensiva de ambas a constituição e a fonte da vida consciente tem que ser alcançada. Ela novamente deve ser baseada sobre uma noção de unidade do tipo C.

4. A rejeição do fundacionalismo e o desenvol-vimentismo

Embora dificilmente mais do que um esboço mínimo e esquemático, o tratamento precedente da origem do conflito na

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vida consciente tem implicações filosóficas. O seu método é o da análise transcendental. Mas, o resultado da análise descobre uma constituição que é essencialmente insuficiente para acomodar e reconciliar as tendências da vida consciente que se originam dela. Além disso, nós não podemos pensar estas tendências como tendo a capacidade de se reconciliarem automaticamente por seu desenvolvimento intrínseco.

Consequentemente, nós necessitamos partir de concepções mais poderosas da filosofia contemporânea – da confiança de Heidegger e de Wittgenstein na firmeza e compreensividade da dimensão primária do nossa compreensão bem como da crença de Hegel e Marx na ultimacy de um processo linear da origem à reconciliação que caracteriza realidade e experiência.

Estas duas concepções, embora opostas sob um aspecto, ainda compartilham a característica da uni-dimensionalidade: o fundacionalismo concebe conflito e irritação em termo de um abandono (possivelmente inevitável) de uma origem auto-contida, seja ela concebida como o evento de abertura de um mundo à luz de uma experiência do “ser” (Heidegger) ou como o funcionamento de linguagens no interior de instituições da vida cotidiana (Wittgenstein). A harmonia está na origem, reconciliação é retorno.

O desenvolvimentismo concebe o conflito como essencialmente transitório. Ele dissolve-se na medida em que o processo avança através dos conflitos. A harmonia emerge no final; reconciliação é chegada ao objetivo.

Mas, contrário a estas doutrinas, a estrutura fundamental da vida é tal que ela dá origem à tendências que são irrenconciliáveis no nível em que eles são operantes. E não há razão para se assumir que estas tendências irão se fundir através de sua lógica desenvolvimental intrínseca. Consequentemente, uma concepção que permanece capaz de envisaging e justificar uma perspectiva de unidade harmônica deve se fiar na coordenação e cooperação de pelo menos dois princípios que são ambos princípios-

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unidades, mas diferem em condição e função. A harmonia resulta com a intuição da origem; a reconciliação é então uma conclusão, o resultado de uma reflexão consciente sobre o conflito e sua origem.

5. A situação da MetafísicaA origem é unitária e a emergência de várias tendências de

vida não é acidental e, a despeito de seu conflito, tem uma ordem interna. Isto explana o fato de que o propecto por harmonia e reconciliação emerge nas raízes da vida consciente. Mas, para estabelecer uma harmonia que nem seja forçada nem ilusória é diferente. Isto requer pelo menos que a origem possa ser compreendida de um modo que não está disponível dentro das dismensões de usa análise primária (a transcendental). Portanto, o processo enquanto tal, que emerge da constituição da vida consciente, direciona-se e extrapola ele mesmo em cada estágio de seu desenvolvimento para uma compreensão invertida de si e, logo, também da natureza e da significância de sua origem. Deixe-me dizer algumas palavras sobre o que é significado com “compreensão invertida”.

Uma tal compreensão é organizada, antes de tudo, em torno de um princípio-unidade que não coincide com a unidade intrínsecamente múltipla da proópria vida consciente, embora ele deva ser capaz de compreendê-la. Nós podemos plausivelmente assumir que a vidad consciente concebe uma tal unidade e, portanto, uma resposta última para si tão logo ela emerja.

Nós temos que tratar, em segundo lugar, dos recursos conceituais que estão disponíveis na vida consciente para apreender e desenvolver a noção de tal unidade. A unidade pessoal/subjetiva está entrelaçada /interwoven com esquemas conceituais que são essencialmente aristotélicos – com mundos de substância, eventos e tipos de relações em que eles existem e ocorrem. Mundos como esses são mundos que a pessoa/subjeito

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concebe, mas não mundos cujas noções podem compreender e dar conta da pessoa/sujeito e das tendências de sua vida. Porém, nenhuma ontologia supramundana é acessível por meio de algum tipo de intuição intelectual. A vida consciente é orientada para um princípio de unidade em função de seu indispensável /prospecto de reconcialição. Mas, este princípio de unidade tem que se tornar operatório através de um processo de reestruturação das ontologias daqueles mundos com os quais a vida consciente está entrelaçada nos vários estágios de seu desenvolvimento. A metafísica é, pois, onipresente na vida, mas também por sua própria natureza revisionária.

A natureza revisionária (ou “espectulativa”) da metafísica é, contrariamente a opinião comum, um pré-requisito para ela ser adotada e realmente tida como verdade num estágio da vida consciente.

Terceiro, a metafísica revisionária é interpretação da vida consciente da parte da vida consciente. De modo algum ela é a descoberta de um reino supramundano que nós poderíamos conceber como o domínio em que nós temos que nos transformar. O que provoca modificações é o nossa compreensão de nós mesmos e de nossa condição. Pois, o mundo real em que nós vivemos aparece em uma nova luz uma vez que ele é submetido a uma nova descrição. Em virtude dessa nova descrição a constituição da vida consciente e seu curso torna-se /encompassado no interior de uma concepção unitária do que há que é tornada possível por meio de uma ontologia reestruturada.

Com este passo torna-se compreensível em que sentido a metafísica funciona como uma compreensão “invertida” da vida consciente. Tal metafísica desdobra-se em quatro estágios: (1) análise da constituição da vida consciente em correlação com o mundo “natural”, (2) a projeção de um princípio de unidade que é apropriado para acomodar cursos de vida consciente e mundos simultaneamente, (3) uma reestruturação de ontologias naturais e depois uma interpretação atual da vida consciente em seus

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mundos, (4) adoção do princípio de unidade do estágio (2) como a origem real do inteiro progresso de interpretação invertida e, então, como o ideal que dá à vida consciente a sua orientação.

Esta noção de estrutura metafísica é, seguramente, básica e geral. Ela evita atribuir conteúdos específicos para o princípio de unidade e não especifica os detalhes de nenhuma possível ontologia revisionária capaz de acomodar a vida consciente. Porém, ela não é sem conteúdo signicativo. Pois, ela captura a motivação por detrás da metafísica genuína e a dinâmica através da qual ela evolui e ganha força. E esta motivação é racional uma vez que uma metafísica é uma reação à incompreensibilidade de nossa condição em todo primeiro nível de interpretação. Além disso, a dinâmica de seu desenvolvimento é também racional, até e incluindo a eventual incorporação de seus resultados na vida consciente. Logo, a metafísica surge e se completa na própria vida consciente. Por esta razão, ela não pode facilmente ser rejeitada como uma forma de sublimação ou ideologia (o materialismo sério é também uma metafísica no sentido acima delineado). Mas, a sua origem, desenvolvimento e culminação faz e mantém-na como um componente indispensável em qualquer análise profunda da vida consciente enquanto tal. A seguidamente presumida incompatibilidade entre o que tem sido chamada “análise existencial”, de um lado, e o pensamento racional e metafísico, por outro, desaparece.

6. Em que consiste a harmoniaNós podemos agora enunciar com mais detalhe o que está

envolvido na harmonia para uma vida cuja real natureza dá origem a conflitos entre tendências divergentes de orientação e conduta que estão a princípio igualmente justificadas. Tornou-se claro porque o princípio de unidade que é requerido para conceitualizar um panorama do conflito entre tendências de vida tem que ser do tipo C. Nenhuma chegada a uma “consonância”

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entre as tendências conflitantes deve ser esperada. A vida que nos toca com seus giros e surpreendentes reorientações não pode possivelmente englobar tudo o que é legítimo ou alcançar um relacionamento harmonioso com todas as orientações que ela mesma incapaz de adotar e atualizar. Neste sentido a harmonia como um estado atual e especialmente como um estado universal sempre será apenas imposta e nunca livremente alcançada. Porém, isto não torna a harmonia em seu sentido próprio um ideal vazio e fútil ou mesmo danoso. Enquanto ideal ele simplesmente não pode ser abandonado. Porém, o ideal pode se tornar atual apenas através de uma intuição da “totalidade da vida” que é ela mesma antogonicamente organizada. Mas, por que uma tal intuição é atingível, o antogonismo toma lugar entre partes cuja legitimidade pode ser reconhecida pelos pontos de vista em conflito, dado que a sua origem na e sua contruibuição para o desenvolvimento da vida consciente já tenha sido reconhecido e compreendido.

Se a harmonia depende de um reconhecimento mútuo que por sua vez depende de uma intuição de uma origem comum, o domínio primário onde a harmonia pode ocorrer é a própria vida consciente, na medida em que ela é capaz de e depende da perspectiva de uma resposta final e última às suas dificuldades. Nós podemos chegar à conclusão que “harmonia” possivelmente não é o melhor termo a ser utilizado nesse contexto. A intuição mencionada é a intuição de uma constituição harmônica de um mundo que por sua vez dá origem a conflitos. Esta intuição nos permite perceber a paz no meio da luta. E pode ser preferível referir a este estado de intuição da harmonia do mundo como “estar em paz” ou ter alcançado a “clareza final” em vez de simplesmente um estado de harmonia.

7. Sistemas sociais e compromissoAs reflexões precedentes podem nos perturbar como sendo

implausíveis por que elas enfatizam a auto-orientação de

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indivíduos isolados. Mas, duas aplicações em relação a sistemas sociais sugerem a si mesmas imediatamente.

(A) A vida consciente tem uma complexidade interna essencial. Ela tende a se realizar em sociedades complexas. Afirmar esta alegação não implica negar que explanações em termos de produção material, divisão do trabalho, diferenciação funcional de sistemas, etc., são dispensáveis para uma compreensão adequada do desenvolvimento cultural. Mas, eles não são suficientes poruqe tais sistemas não são auto-suficientes e a explanação nesses termos é, portanto, metodologicamente obscura. Embora eles possam em algum sentido explanar a necessidade de geração de sistemas simbólicos tal como as religiões, eles não podem explanar sua possibilidade e acima de tudo a credibilidade universal. Para este propósito nós devemos primeiro compreender a ligação interna entre vida consciente e orientação metafísica.

(B) Sociedades complexas baseiam-se em uma capacidade de auto-limitação e “compromisso” da parte de seus membros e sub-sistemas. Mas, se o compromisso não é sustentado por uma visão de muno que lhe fornece um lugar e um conteúdo positivo e significância, então, ele deve ser experienciado como uma invevitabilidade cega que deve ser limitado ao mínimo e não respeitado por ele mesmo. O compromisso, então, torna-se um /stalemate desafortunado e /hopefully transitório dentro da realidade primária e única legítima, a saber, a luta pela supremacia. O compromisso sem um conteúdo positivo nesse sentido é cego enquanto que o inverso conteúdo sem a possibilidade de ser adotado dentro dos conflitos da vida consciente permanece irreal e portanto vazio (Cf. o dictum de Kant sobre conceito e intuição).

A profunda diferença entre compromissos que pressupõem a incompatibilidade entre orientações igualmente primordiais e modificações mútuas que pressupõem o oposto não deveriam, portanto, ser menosprezada. O primeiro pertence à unidade do

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tipo C, o último à unidade do tipo A. Mas, unidade de acordo como o tipo C é unidade real também e possivelmente (como, p.ex., Hegel pensava) uma unidade “mais profunda” do que qualquer uma que é disponível dentro das fronteiras do tipo A. Não se trata absolutamente de unidade funcional da interação social. A interação social mesma, ao contrário, está baseada e, logo, tornada possível, não camuflada e distorcida, por uma metafísica implícita e onipresente, uma metafísica que por sua vez ganha estrutura de um conceito de unidade do tipo C.

8. Cultura e estiloComplexidade e compromisso não são suficientes para

constituir uma cultura. Uma cultura é, ao menos, um modo de coordenação e de dar forma à todas as manifestações da vida consciente dentro de um dado domínio de interação. Como se pode compreender a cultura se a vida consciente diverge por causa de sua própria constituição em direções fundamentalmente incompatíveis? A verdadeira noção de cultura e sua importância universal nos compromete com o emprego exclusivo do conceito de unidade do tipo A?

Pode ser possível compreender o fato da cultura se nós percebermos que a vida consciente é governada por dois diferentemente formados, mas também correlacionados princípios de unidade, um instanciado na origem da vida consciente, o outro disponível para a conclusão que aquela origem sempre projeta diante de si. A origem tem a sua unidade no conjunto de tendências de vida igualmente justificadas e no fato de que elas são a atualização da vida consciente, a despeito de seu antogonismo. A segunda unidade é estabelecida através da introdução da primeira unidade em uma visão de mundo na qual a vida consciente pode estar ela própria “em casa”. O modo como estas duas unidades são integradas e assim constituem uma resposta última da vida consciente para a sua condição sempre depende de como a própria vida consciente avança e experiencia

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sua viabilidade e sua significância através de conflito e reconciliação. Por isso, uma cultura nunca é uma estrutura estática, mas, antes um processo continuamente repetido.

Mas, antes que o processo comece os dois princípios de unidade já estão estabelecidos e à vista. Eles guiam e permeiam a vida consciente através de todos os estágios de seu desenvolvimento. Por esta razão a vida consciente é desde o início capaz de antecipar os modos pelos quais uma reconciliação pode ter lugar, um acabamento que ela está essencialmente desejando e comprometida com.

Estilos delineiam a resolução do problema que a vida consciente tem que resolver durante o seu curso. Culturas são essencialmente tais estilos. Eles não podem absorver todas as possibilidades da vida consciente. E onde quer que vivam humanos, eles são, ao menos implicitamente, cientes de que diferentes tipos de respostas são possíveis. Tais respostas diferem de todas as possibilidades fornecidas pela sua própria cultura, embora elas irão normalmente ser concebidas tanto como inacessíveis e quanto impróprias. Mas, seres humanos também dependem de uma cultura. Pois, culturas fornecem um modo efetivo e provavelmente indispensável de averiguação de possibilidades de alcançar uma conclusão estável para o curso da vida que está estruturado pela efetividade recíproca dos dois princípios de unidade e do conflito entre as tendências de vida.

Estilos e obras de arte são correlatos. Seria equivocado pensá-los como um acabamento da própria vida. A sua constituição é tal que eles antecipam estruturalmente a reconciliação. E isto implica que eles não incorporam, mas, antes ficam longe de qualquer resposta desejada e alcançada pela experiência vivida. Mas, eles também asseguram a sua possibilidade e eles abrem caminhos para uma solução que uma comunidade de vidas conscientes não pode ignorar, mas, antes deve explorar em primeiro lugar.

Porém, nem estruturas antropológicas profundas nem

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estruturas políticas maduras podem ser acomodadas por meio de categorias estéticas. Mas, nós podemos ver porque uma sociedade que não pode mais dar origem a um estilo e a uma arte que apreende a experiência que foi delivrada dentro dela aprofunda a dificuldade humana. Ela não destrói a possibilidade de que a vida consciente propere. Mas, ela torna imensamente difícil esta properidade e assim ameaça a vida consciente com um colapso na facticidade cega. (A civilização mundial que está em emergência até agora tornou familiar precisamente este perigo.) Nem é ela também desprovida de estilo ou desprovida da potencialidade para chegar a um estilo por si mesma. Mas, no momento nós observamos que o poder antecipador da cultura está diminuindo e que a própria cultura foi afetada pela insegurança que acompanha a vida consciente em seu curso entre suas tendências conflituosas. Pois, a cultura pode ter chegado perto da verdade, mas, pelo mesmo movimento mais distante de sua anterior forma e efetividade. Mais do que tudo a vida consciente necessita de coragem e claridade.

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7. O pensamento e a estrutura do mundo: Discours d'ontologie

Hector-Neri Castañeda

“Thinking and the Structure of the World”, Philosophia 4, 1 (1974).

Il faut donc considérer ce que c'est que d'estre attribué véritablement à un certain sujet. (Leibniz, Discours de métaphysique, viii.)

Este artigo formula um sistema básico de ontologia que tem várias qualidades interessantes: (1) ele é sugerido muito fortemente pelas considerações mais ingênuas e simples de certas perplexidades envolvendo estados psicológicos: (2) o sistema faz justiça a intuições aparentemente conflitantes que têm sido debatidas por muitos filósofos; (3) o sistema separa o a priori de elementos empíricos do mundo de modo muito elegante e claro; (4) além disso, o sistema concentra todos os elementos empíricos do mundo em dois predicados diádicos irredutíveis; (5) por esta razão o sistema parece ser uma elegante formulação de uma concepção do mundo que foi iniciada por Platão, foi visualizada por Leibniz, direcionada por Frege, e ao menos em parte, defendida por Meinong. O sistema parece, por conseguinte, ter o

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valor histórico-filosófico de iluminar a longa e importante tradição abstracionista e racionalista. Eu sugiro o seu desenvolvimento com uma discussão inicial de um problema muito discutido atualmente. Isto pretende homenagear aqueles grandes metafísicos em sugerindo quão contemporâneas são as suas intuições para esse problema, mesmo que suas soluções não sejam adotadas.

Entre outras coisas, o sistema realiza o seguinte: (i) provê uma abordagem dos objetos possíveis; (ii) provê uma abordagem da predicação; (iii) fornece uma análise dos particulares ordinários; (iv) preserva as características fundamentais da identidade, a saber, a identidade dos indiscerníveis; (v) evita o representacionalismo; (vi) elimina a dicotomia sentido-referência, ao fazer, por assim dizer, o sentido de um termo singular o seu referente; (vii) explica a conexão fundamental entre actualidade, concretude, e existência; (viii) caracteriza a objetivação de indivíduos impossíveis pelo pensamento; (ix) provê uma abordagem fácil da identidade transmundana, para aqueles que gostam da assim chamada semântica dos mundos possíveis; (x) produz uma abordagem da identidade transitória para entidades fictícias; (xi) fornece um novo fundamento para a assimilação de dados sensíveis e objetos físicos.

1. Dados ontológicos e problemas

1.1 A tríade FregeanaComo é bem conhecido, Frege ficava perplexo com a

aparente verdade de três proposições como essas:

(1) Tom acredita que a estrela da manhã é Vênus.

(2) Tom não acredita que a estrela da tarde é Vênus.

(3) A estrela da manhã = a estrela da tarde.

Ele não podia entender como uma coisa a e uma coisa b podem ser realmente idênticas e ainda assim diferirem em alguma

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propriedade, por exemplo, a propriedade de ser tomada por Tom como sendo Vênus. Frege insistiu corretamente, como Quine o fez em anos recentes, que a indiscernibilidade dos idênticos é a parte central do conceito de identidade. Como é bem conhecido, Frege tentou resolver a perplexidade da tríade (1) – (3) defendendo que os termos 'estrela da manhã' e 'estrela da tarde' são ambíguos, tendo em (3) um sentido e um referente, e outro de cada em (2), ou (1), respectivamente. Eu proponho não seguir os detalhes de sua teoria nesse ponto.

Há, contudo, uma solução ingênua para a perplexidade de Frege. Tomar (1) e (2) como prova de que (3) é falsa se '=' é para ser tomada como significando identidade literal. Por um lado, (3) é verdadeira se ela é uma proposição sobre uma relação mais fraca do que identidade. Nessa solução ingênua, as proposições de Frege (1) e (2) estabelecem que a estrela da manhã e a estrela da tarde são realmente diferentes entidades. Obviamente, a identidade é governada pelo princípio de Leibniz da indiscernibilidade dos idênticos. O que quer que seja genuinamente idêntico com a estrela da manhã é também tido por Tom como sendo Vênus, se (1) é verdadeira.

Esta solução ingênua foi considerada rapidamente por Quine em seu curto ensaio, “The problem of interpreting modal logic”1, para o caso de outra tríade similarmente perplexadora:

(4) É necessário que a estrela da manhã seja a estrela da manhã.

(5) Não é necessário que a estrela da manhã seja a estrela da tarde.

(6) A estrela da manhã é a estrela da tarde.

Quine sugeriu, aparentemente mordendo a língua (?), que a consistência de (4) – (6) poderia ser explanada tomando-se o 'é' da sentença (6), não como expressando a boa e honesta identidade, mas uma relação mais fraca, para a qual ele propôs o nome 'congruência'. Ele usou a letra 'C' para representar

1 W. V. O. Quine, “The problem of interpreting modal logic”, The Journal of Symbolic Logic 12 (1947): 43-48.

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perspicuamente o 'é' de (6). O objetivo de Quine era, aparentemente, desacreditar a lógica modal interpretada, em mostrando como ela envolve o repúdio de objetos materiais na melhor interpretação.

Pode-se protestar, contudo, que a concepção de que a estrela da manhã e a estrela da tarde não são genuinamente idênticas não implica o repúdio de objetos materiais. É a estrela da tarde material que não é genuinamente idêntica, um filósofo poderia sustentar, com a estrela da manhã material, mesmo que elas sejam congruentes e, se você quiser, sejam os mesmo objeto material. Mas, nós não queremos prosseguir com essa discussão agora.

1.2 O argumento de Quine contra as entidade intensionais

Mais tarde Quine foi capaz de fazer um ataque mais forte, tanto contra a lógica modal como contra a quantificação em contextos de crença, do que sua acusação de repúdio a objetos materiais. Ele descobriu um argumento persuasivo para mostrar que a introdução de entidades intensionais como valores das variáveis de quantificação não resolvia as perplexidades originais. Este argumento Quine reiterou várias vezes. Uma das primeiras versões aparece em From a Logical Point of View1:

[if] A é qualquer objeto intensional, seja um atributo, e 'p' esteja por uma sentença arbitrariamente verdadeira, claramente

(35) A = (ix) [p . (x = A)].

Ora, se a sentença verdadeira representada por 'p' não é analítica, então, nem (35) é, e os seus lados não são mais intersubstituíveis em contextos modais do que 'A estrela da manhã' e 'A estrela da tarde', ou '9' e 'o número de planetas'. (p. 153)

Quine está falando sobre contextos modais como (4) – (5), mas o seu ponto é aplicável à tríade de Frege. Seja A a estrela da

1 W. V. O. Quine, From a Logical Point of View (New York: Harper & Row, 1963), p. 153.

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manhã, e 'p' esteja por qualquer proposição sobre a qual Tom não tem absolutamente nenhuma ideia. A identidade (35) deve requerer que Tom acredite que (x) [p . (x = A)] é idêntica à estrela da manhã, mas uma vez que Tom não tem nenhuma ideia do que 'p' representa, não é o caso que ele acredita nesta identidade.

Obviamente, o argumento de Quine deve ser lido como negando que (35) seja verdadeira se '=' expressa identidade genuína. Mas, para defender isto deve-se explicar porque isto é assim, e isto requer uma teoria tanto sobre o que um indivíduo é exatamente como sobre o que é para um indivíduo ter propriedades. Em suma, a solução ingênua para o enigma de Frege tem que ser sofisticada: Não há realmente nenhuma solução ingênua sem uma teoria da predicação e da individualidade: Mas, antes de embarcar na formação de uma tal teoria, vamos considerar outros enigmas que parecem requerer uma solução muito semelhante à solução ingênua sugerida para a perplexidade de Frege. Uma solução comum a todos seria definitivamente superior, ao ser sistemática e não ad hoc.

1.3 O enigma de GeachEm “Intentional Identity”1, Geach levantou um lindo

problema. Ele o apresentou por meio de um exemplo sobre bruxas, que por não existirem tornam o enigma de certo modo mais dramático, mas também confundiu alguns críticos por sugerir a eles que o enigma pertencia às entidades fictícias. Uma ilustração pedestre é esta:

(7) John acredita que há um homem na porta, e Paul acredita que ele (aquele homem) é um ladrão.

(8) Mas, não há nenhum homem na porta.

O problema é precisamente o quantificador existencial 'há

1 P. T. Geach, “Intentional Identity”, The Journal of Philosophy 64 (1967): 627-32.

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um homem', que em (7) aparece no escopo de “John acredita' e ainda liga a ocorrência da variável de quantificação 'ele [aquele homem]' que aparece no escopo de 'Paul acredita'.

Claramente, o quantificador 'há um homem' não pode ser colocado no começo de (7) e lhe ser dado (7) inteira como seu escopo, se aquele quantificador é suposto variar sobre pessoas existentes. Fazer isto iria conflitar com (8). Então, nós temos o problema de Geach de identificar a entidade que é o objeto das crenças de John e Paul. Este problema permanece mesmo se o problema sobre o escopo do quantificador desaparecesse.

Uma solução ingênua é esta: Tomar o quantificador 'há um homem' como variando não apenas sobre objetos existentes, mas também sobre objetos não-existentes possíveis. Esta solução é como aquela discutida na seção 1 no sentido de que ela introduz objetos não-materiais em nosso inventário ontológico. Se, no caso da tríade de Frege, nós tomamos a estrela da manhã como um objeto existente (material), que é o mesmo quer ele exista ou não, nós podemos tomar os objetos possíveis requeridos para a solução do problema de Geach para constituir o mesmo domínio de objetos requerido para a solução da perplexidade de Frege.

1.4 Objetos impossíveisNós falamos de objetos possíveis. Mas, nós devemos contar

também com objetos impossíveis. O problema de Geach não precisa ser apenas o criado por dois homens pensando em um homem possível. Ele pode surgir quando dois homens pensam sobre objetos impossíveis.

(9) John acredita que há um quadrado redondo azul e Paul pensa que ele é oco.

Seguramente, todos os tipos de solução suportadas por suas teorias correspondentes da predicação e da individuação podem ser construídas. O ponto aqui é que uma vez que se adota o caminho das entidades intensionais para os enigmas de Frege e

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Geach, se deve naturalmente ir além nesse caminho e considerar os objetos impossíveis meinongianos.

1.5 Referências de atitudes cruzadasO problema levantado por Geach envolve dois pensadores.

Mas, o problema é mais geral. Ele aparece também no caso de uma pessoa que tem várias atitudes diferentes em relação a uma entidade e suas atitudes formam parte de uma mente ou consciência unitária. Considere, por exemplo,

(10) Benjamin acredita que há uma fonte da vida e ele espera beber dela.

O quantificador 'há (uma fonte da vida)' tem que ser o operador dominante de tal modo que ele possa ligar as referências à mesma entidade tanto no interior do escopo de 'acredita' como no escopo de 'espera'. Assim, parece que nós nos comprometemos com a introdução de objetos inexistentes outra vez como valores de variáveis de quantificação. Claramente, tais objetos inexistentes podem muito bem ser impossíveis, objetos auto-contraditórios.

1.6 Realidade e pensamentoO pensamento é orientado para o mundo, e seguidamente é

bem sucedido em atingir uma coisa real. Um problema central é a natureza e a estrutura desse sucesso. Em particular, nós devemos explicar como a mesma entidade que existe no mundo é exatamente aquilo sobre o que é um episódio de pensamento.

1.7 ExistênciaO pensamento é orientado para o mundo, para os existentes

no mundo: pensar em um objeto e pensá-lo como existente parecem ser a mesma coisa. Todavia, de algum modo, o pensamento é impérvio à existência. O pensamento está muito

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confortável tanto na contemplação do existente quanto na contemplação do não-existente. Assim, a existência parece ser tanto uma característica diferenciadora que alguns, mas não todos, objetos de pensamento possuem, como uma não-característica de todo incapaz de diferenciar um objeto de outro. Em termos tradicionais, a existência não é um predicado real; com efeito, ela não é um predicado lógico ou formal, pois existência, isto é, a existência de coisas materiais, mentais e eventos, é precisamente o cerne mais recôndito da contingência.

1.8 O problema fundamentalA natureza da existência é um problema mais sério. Mas,

subjacente a ele há o problema da constituição de um objeto. A unidade de uma coisa e sua posse de propriedades é o problema primário da filosofia. Consiste a unidade de uma coisa em um substrato subjacente? Ou alguma outra coisa? Como as propriedades compõem uma coisa? Estas questões incluem como um caso especial o modo como a existência entra nos objetos ou como a existência advém aos objetos. O problema fundamental é, portanto, o problema da mais elementar (e trivial) conexão estrutural entre as categorias básicas do mundo: Coisa, Propriedade, Predicação, Existência, Identidade, e Pensamento. Trata-se do problema da conexão entre o Pensamento e a Estrutura Fundamental do Mundo que aparece para a consciência ou que o pensamento mesmo cria. Qual desses disjuntos é o caso pertence a um discours de métaphysique, e vai além de nossa presente consideração ontológica (isto é, ontológico-fenomenológica). (A ontologia fenomenológica é anterior epistemo-logicamente à ontologia metafísica.)

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2. A ontologia abstracta: apresentação informal

2.1 Átomos ontológicosNo bom e velho estilo platônico, a concepção abstracta do

mundo toma as propriedades por elas mesmas, isto é, separadas de particulares, como sendo os últimos componentes do mundo. Há uma questão verbal quanto a serem os quantificadores propriedades. Para evitar isso, vamos dizer que os últimos componentes do mundo são Formas, e estas se dividem em propriedades e operadores. As primeiras são hierarquizadas em monádicas, diádicas, triádicas, ..., em suma, propriedades n-ádicas para qualquer número natural n.

Entre os operadores estão aqueles que operam sobre propriedades gerando propriedades complexas. Alguns, como quantificadores não-vazios, rebaixam o nível n-ádico de propriedades. Outros, como conectivos lógicos, elevam o nível de uma propriedade. Indivíduos são operadores que rebaixam o nível de uma propriedade, também. (Formalmente, o mecanismo mais elementar de composição de propriedade pode ser ordenadamente descrito por sistemas de quantificação que usam operadores em vez de variáveis, como, por exemplo, em “Variables explained away”1 de Quine.

Por conveniência, nós usaremos variáveis de quantificação. Ontologicamente, nós podemos considerar a introdução de variáveis, permitam-nos chamar variabilização, como operações que transformam propriedades abstractas em funções proposicionais que são propriedades concretas que entram na composição de indivíduos.

2.2 IndivíduosHá um operador, vamos representá-lo com colchetes, que

opera sobre entidades e forma conjuntos. Os conjuntos primários

1 W. V. O. Quine,“Variables explained away”, Selected Logic Papers (New York, Random House, 1966).

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são compostos de propriedades concretas. Conjuntos são indivíduos abstractos.

Outro operador, vamos representá-lo por c, opera sobre conjuntos de propriedades monádicas (ou funções proposicionais), simples ou complexos, e gera indivíduos concretos. A partir de agora 'indivíduo' significa indivíduo concreto. Estes são, grosseiramente, sentidos fregeanos de descrições definidas. Por exemplo, o quadrado redondo é o indivíduo c{ser quadrado e redondo}. O indivíduo composto das propriedades redondeza e quadratidade é c{ser redondo, ser quadrado}. Eles são diferentes porque os conjuntos de propriedades que os compõem são diferentes: o primeiro é conjunto unitário, o último é um par. Há, obviamente, uma conexão íntima entre eles, e nós a discutiremos na seção 2.6.

Suponha que, como parece ser o caso, que o quadrado redondo era o objeto impossível favorito de Meinong. Isto quer dizer, considere o indivíduo c{ser o objeto impossível favorito de Meinong}. Este é, obviamente, um indivíduo bem diferente de c{ser redondo e quadrado}. Então, a ocorrência em itálico da palavra 'era' na primeira sentença desse parágrafo não expressa identidade genuína. Nós devemos falar mais sobre identidade no que se segue.

2.3 Predicação meinonguianaUm indivíduo é em um sentido óbvio uma penca de

propriedades. A maioria deles são pencas finitas. Claramente, para qualquer propriedade F-dade que se considere, o Fer é F, e necessariamente, se “é” tem o sentido de composição ontológica. Assim, a alegação persistente de Meinong de que “o Fer é F” é analiticamente, ou logicamente, verdadeira, é correta no sentido primário de “é”.

Denominemos a predicação primária de Predicação meinongiana, e vamos representá-la por expressões da forma “a(F)”, onde o 'a' denota um indivíduo e 'F' uma propriedade.

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Assim, a proposição expressa por uma sentença dessa forma é verdadeira se e somente se a propriedade denotada por 'F' é elemento do conjunto de propriedades que constituem o indivíduo denotado por 'a'.

Muitos de nós estamos inclinados a pensar que o Monte Everest nem possui a propriedade de ser um número par nem possui a propriedade de não-ser um número par, mesmo que as duas propriedades pareçam ser mutuamente excludentes. Esta inclinação é na sua base uma intuição da predicação meinongiana primária. Evidentemente, para qualquer propriedade F-dade que nós consideremos, muitos indivíduos concretos não a incluem em seus conjuntos de propriedades constitutivos nem a sua negação não-F-dade.

Nós também temos uma inclinação a dizer que para qualquer propriedade F-dade, algo ou tem F-dade ou tem não-F-dade. Esta inclinação é a intuição de que em nosso confronto com o mundo nós também usamos uma outra concepção de predicação. Nós a discutiremos abaixo na seção 2.5.

2.4 IdentidadeA identidade genuína é concebida como normalmente ela o

é. Trata-se de uma relação diádica muito especial, que é reflexiva e é governada pela Lei de Leibniz da indiscernibilidade dos idênticos. Em suma, nós temos os seguintes dois princípios ontológicos:

Id. 1. x = x

Id. 2a. (x = x) ≡ (x (F) = y (F))

Fazer parte de um fato não é, obviamente, uma propriedade. Mas, a identidade requer a indiscernibilidade fática dos idênticos. Tome-se ' [a]' como expressando um fato, simples ou complexo, do qual o indivíduo denotado por 'a' faz parte, e ' [a/b]' o mesmo fato com o indivíduo

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denotado por 'b' entrando nas posições no lugar do indivíduo denotado por 'a'. Desse modo, nós temos a lei:

Id. 2b. (x = y) ⊃ ( [x] ≡ [x | y])

2.5 AtualidadeA atualidade, que advém a indivíduos concretos, é

mais misteriosa. Ela é o último ato, em sentido aristotélico, que contrasta ato com potencialidade, e está interamente fora do domínio dos abstracta. (Note-se que, como Platão observou, o domínio dos abstracta é tão confortável para a mente que ele parece seu habitat natural. A atualidade deve, obviamente, ser pelo menos apreensível obscura e parcialmente. De outro modo, não haveria nem mesmo uma referência ao mundo real. A atualidade tem que ser pensável, e isto significa que há uma Forma, um tipo de propriedade, sob a qual ela é concebível. Isto sugere outra forma de predicação, conectando um indivíduo concreto com outras propriedades, as quais não o constituem. Agora, a caracterização prévia de um indivíduo torna um indivíduo limitado, determinado exatamente por um conjunto de propriedades que pode ser finito e, logo, nem mesmo seja fechado sob implicação lógica. Pois, a atualidade deve não somente conectar um indivíduo a outras propriedades nele não inclusas, mas deve conectá-los de um modo externo. Além disso, este modo externo tem que preservar a total individualidade de cada indivíduo, a saber, a indiscernibilidade requerida pela auto-identidade, isto é, pela Lei de Leibniz.

Bem, todas essas considerações vagas ganham corpo na tese de que entre as propriedades há uma relação diádica, a qual eu denomino consubstanciação ou co-atualidade. Esta é a única relação que conecta diferentes indivíduos concretos, e faz com que ambos existam.

Vamos representar consubstanciação com o símbolo 'C*'.

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(O asterisco vem depois da letra 'C' para indicar que nós estamos lidando com uma relação a posteriori ou contingente. O fato de que há apenas um asterisco indica que esta é a fundamental, a relação contingente número um: em um mundo desprovido de pensamento ela seria a única). Assim, se 'a' denota a estrela da manhã e 'b' a estrela da tarde, o que ordinariamente é dito pela sentença “A estrela da manhã é a estrela da tarde”, ou pela sentença “A estrela da manhã é a mesma que a estrela da tarde”, pode ser mais precisamente colocada como o fato que

C* (a, b).

Para explanar melhor a natureza da consubstanciação vamos analisar alguns enunciados ordinários. Considere

(11) O diretor é calvo.

Em geral uma pessoa ao fazer um enunciado por meio da sentença (11) não quer asserir o enunciado meinongiano

(11a) O diretor (calvície).

Em geral, uma tal pessoa estaria querendo asserir que o diretor existe e tem calvície, e não como uma propriedade ontológica constitutiva, mas como uma propriedade contingente. Assim, o seu enunciado seria dessa forma:

(11b) Há um indivíduo y tal que: tanto C* (y, o diretor) e y (calvície).

Considere agora a proposição relacional:

(12) O diretor beijou a professora de arte.

Novamente, há as proposições meinongianas triviais a priori, que são palpavelmente falsas:

(12a) O diretor (beijou-a-professora-de-arte-dade);

(12b) A Professora de arte (sendo-beijada-pelo-diretor-dade);

(12c) (12a) & (12b).

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Mas, em geral, quem usa a sentença (12) para fazer um enunciado na vida prática quer expressar alguma informação não-trivial como esta:

(12d) Há um indivíduo y e há um indivíduo z tal que: C* (y, o diretor) & C* (z, a professora de arte) & y (beijando-a-professora-de-arte-dade) & z (sendo-beijada-pelo-diretor-dade).

A consubstanciação é uma relação de equivalência dentro do atual. Ela conglomera infinidades de indivíduos. Assim, a antiga ideia platônica de que atualidade é comunidade recebe aqui a sua mais clara expressão.

2.5.1 ExistênciaNa presente concepção ontológica, a existência é analisada

como auto-consubstanciação. Assim, nós podemos introduzir a abreviação linguística:

Def. X existe = def. C* (x, x)

Nós também temos a lei, ou axioma:

C*.1. C*(x, x) ⊃ C*(x, x)

2.5.2 Consubstanciação: propriedades de equivalênciaPorque a consubstanciação é uma propriedade de

equivalência dentro do domínio dos existentes, com efeito, a mais importante das propriedades de equivalência do ponto de vista da contingência do mundo, a palavra “é” a expressa. Assim, ao lado de C*.1, nós temos as leis:

C*.2 C*(x, y) ⊃ C*(y, x)

C*.3 (C*(x, y) & C*(y,z)) ⊃ C*(x, z)

2.5.3 Consubstanciação: propriedades de atualidadeA consubstanciação é governada pela lei de consistência,

isto é, que apenas conjuntos de propriedades logicamente

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compatíveis determinam indivíduos concretos actualizáveis.

C*.4a C* (x, x) ⊃ (x(F) ⊃ ~ x (~F))

C*.4b C* (x, x) ⊃ (x(~F) ⊃ ~ x (F))

Para simplificar o enunciado das próximas leis de consubstanciação, vamos introduzir uma convenção simples:

Convenção. Uma expressão da forma “a[ϕ]” é uma abreviação de uma expressão com o operador 'c' prefixado a uma expressão da união do conjunto de propriedades constitutivas do indivíduo denotado pelo sinal a e o conjunto unitário cujo membro é a propriedade denotada pelo símbolo ϕ. Por exemplo, se a é c{Redondo, Quadrado}, a[Dourado] é c{Redondo, Quadrado, Dourado}.

Eu me referirei ao indivíduo denotado por uma expressão da forma “a[ϕ]” como a ϕ-protracção do indivíduo denotado por a.

O caráter comunicizador da atualidade é exposto pelas seguintes leis:

A lei da contiguidade:

C*.5. C* (x, y) ⊃ (y(F) ⊃ C*(x,x [F]))

A lei da completude:

C*.6. C* (x, x) ⊃ C*(x,x [F]) ∨ C*(x,x[~F]))

A lei de fechamento lógico:

C*.7. C* (x, x) ⊃ C*(x,x [F1]) & ... & C* (x,x[Fn]) ⊃ C* (x,x[G ])), dado que “F1 & ... & Fn ⊃ G )” é um teorema na lógica quantificacional padrão.

A Lei de Fechamento C*.7 é, obviamente, apenas a mais geral e fundamental lei de fechamento que há. Leis da natureza são casos específicos da lei de fechamento. O padrão da lei é o

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mesmo em toda parte. Tudo o que nós necessitamos é a ressalva de que uma certa fórmula seja um teorema em algum sistema de leis da natureza, em vez de ser um teorema em lógica quantificacional.

2.5.4 Consubstanciação: unicidadeUm dos erros de Meinong foi confundir o objeto

incompleto o Círculo com a propriedade circularidade. A última está presente em todo círculo existente, mas o primeiro não. A entidade o Círculo é c{Círculo}, isto é, o indivíduo que é apenas um círculo. Logo, se o Círculo existe, há apenas uma penca de consubstanciação da qual a circularidade faz parte. Então, nós temos a lei:

C*.8. C*(x,x) ⊃ (∀y) (C*(y,y) & (∀y) (x(F)) ⊃ y(F) ⊃ C*(x,y))

Se x existe, então, qualquer existente que tenha meinongianamente todas as propriedades que x tem meinongianamente é consubstanciado com x.

2.5.5 Consubstanciação: compossibilidadeAlgumas relações requerem que se um relatum existe

também existam outros. Se o Diretor beija a Professora de Arte, a Professora de Arte existe e é em realidade beijada pelo Diretor. Por outro lado, se o Diretor procura pela professora de Arte de seus sonhos, esta última não precisa existir. Logo, para algumas relações, 'u' e 'y' sendo variáveis ligadas pelo indivíduo ou implícito em 'x' e 'yi':

S. C*.9. C* (x,x[Ry1, ..., yi, u, yi+1, ..., yn] ⊃ C* ( yi , yi[R y1, ..., y,x, yi+1, ..., yn], para todo i= 1, ..., n.

Esta lei combina a redução de relações a qualidades feita por Leibniz com os e-atributos de Nino Cochiarella, isto é,

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atributos que implicam existência.1

2.6 Objetificação ou consociaçãoIndivíduos concretos são objetos de pensamento e, como

tais, eles estão todos em pé de igualdade, sejam eles impossíveis, meramente possíveis, ou atuais. Obviamente, alguns indivíduos raramente são pensados, e alguns provavelmente nunca serão pensados. Aqueles que são pensados entram em uma vinculação empírica com uma mente. E esta relação requer análise. A primeira coisa a notar acerca da objetificação de um indivíduo é que, como Meinong observou, pensar de um indivíduo (um objeto em sua terminologia) é conferir ao indivíduo algum tipo de existência, mesmo se o objeto é não-existente, alas!, mesmo se ele é impossível. Então, objetificação é como atualidade, mas ela não é atualidade. Logo, objetificação tem que ser analisada como envolvendo uma relação diádica empírica especial, simbolizada por 'C**', onde a letra 'C' indica novamente a comunidade de ser, e o duplo asterisco indica o caráter secundário da comunidade em questão, e sua posposição ao 'C' indica a natureza a posteriori da comunidade. Vamos chamar esta relação co-objetificação ou consociação. Considere a sentença:

(13) Meinong costumava pensar no quadrado redondo.

Uma análise ontológica parcial do que (13) expressa é revelado por:

(13a) Há um indivíduo x, tal que: x(ser pensado por Meinong) & C** (x, c {ser quadrado e redondo}).

Naturalmente, (13a) não analisa o modo em que o indivíduo Meinong entra naquilo que (13) expressa. À luz de nossa discussão da atualidade, presumivelmente outra parte de (13) é:

1 N. Cocchiarella, “Some remarks on second-order logic with existence attributes”, Noûs 2 (1968): 165-75.

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(13b) Há um indivíduo y tal que: y (pensar no quadrado redondo) & C* (y, Meinong).

Eu submeto que (13) é simplesmente uma abreviação de

(13c) Há indivíduos x e y tal que: x(ser pensado por Meinong) & y(pensar de c {ser quadrado e redondo}) & C* (y, Meinong) & C** (x, c {ser quadrado e redondo}).

Um entendimento completo de (13c) e (13) requer uma compreensão do papel do nome próprio 'Meinong'. Na seção II.13 nós dizemos alguma coisa sobre o papel dos nomes próprios.

Usando uma mistura de linguagem ordinária e notação introduzida acima na seção II.5.3, nós podemos abreviar (13c) do seguinte modo:

(13c') C* (Meinong, Meinong [pensar no quadrado redondo]) & C** (o quadrado redondo, o quadrado redondo [sendo pensado por Meinong]).

A consociação é como a consubstanciação, não apenas por ser uma relação diádica externa genuína, mas também por ser uma relação de equivalência dentro de seu domínio. Assim, nós temos as leis:

C**.1. C** (x,y) ⊃ C** (x,x)

C**.2. C** (x,y) ⊃ C** (y,x)

Por outro lado, consociação não é consubstanciação. Ela não tem os aspectos consistência, fechamento, contiguidade, e completude.

2.7. ConflaçãoAo lado da identidade genuína ou auto-igualdade,

caracterizada na seção II.4, há uma outra importante relação a priori. Ela é como a identidade, uma vez que ela lida com os constituintes internos de um indivíduo. Mas, ela tem caráter de

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algum modo externo, sendo um mecanismo genuíno de uma comunidade pervasiva e a priori de ser. Eu a chamo conflação, e a represento com o símbolo '*C'. Ela é, como a identidade, uma relação irrestrita de equivalência:

*C.1. *C(x,x)

*C.2. *C(x,y) ⊃ *C(y,x)

*C.3. (*C(x,y) & *C(y,z)) ⊃ *C(y,z))

A lei da internalidade que governa a conflação é esta:*C.4. *C (c{..., F, ..., G}, c{..., F & G, ... }).

As leis *C.4 e *C.1 juntas justificam a alegação trivial que o homem que matou ambos Napoleão e César é o mesmo que a entidade que sozinha tem apenas as seguintes propriedades: primeiro, é um homem; segundo, matou Napoleão; e terceiro, matou César.

A seguinte lei pode ser chamada de “propriedade da auto-identidade de conflação”:

*C.5. *C(x, c{x = −})

que é *C(x, cy{x = y}), em uma notação com variáveis em vez de operadores.

A lei *C.5 estabelece a conflação de cada indivíduo com o indivíduo constituído pela propriedade de ser idêntico com o primeiro. Obviamente, os dois indivíduos são diferentes, uma vez que eles têm diferentes propriedades como constituintes. A sua comunidade é, contudo, trivial e profunda; isto é, eles conflaem.

A lei *C.6 é o mais óbvio caso da lei geral da conflação de auto-congruentes:

*C.6 *C(x, c{C(x, −)}), ou *C(x, cy{C(x, y)})

onde 'C' é ou '*C', 'C*' ou 'C**' ou '=' ou, noutros casos, alguma outra relação de congruência que constitui a comunidade de ser.

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Esta lei mostra parte da redundância das relações de congruência ontológica. Outra parte de tal redundância é capturada pela lei:

*C.7. *C(x,x[ser C com x]),

onde 'C' é como em *C.6.

2.8. Existência outra vezO caso especial da lei *C.6, envolvendo a relação *C, é

digna de menção especial. Ele está no centro das disputas perenes sobre se a existência é um predicado (isto é, uma propriedade) ou não. Na presente teoria ontológica este problema recebe uma resposta “sim e não”.

Por um lado, a existência é uma propriedade, uma vez que ela é concebida por meio da propriedade Forma C*. Ela é uma propriedade componencial, uma vez que ela é o caso monádico especial de C* operado pela Reflexividade.

Por outro lado, a existência não é uma propriedade, uma vez que é a contingência do mundo subjacente à propriedade C*, mas restando de outro modo insondável para além da jurisdição da mente como o alvo do pensamento. Parte dessa insondabilidade da existência é capturada pela lei C*.6, da completude da co-atualidade. Ainda assim, a existência tem que ser de algum modo dócil e acessível à mente que não deve ficar perseguindo-a com o desespero do fracasso. Essa docilidade parcial da existência é capturada pelas outras leis da co-atualidade, especialmente as leis de consistência e de fechamento. (São estas leis impostas pela mente mesma a uma realidade subjacente de algum modo complacente?)

A existência é misteriosa. Ela é rica e complexa como se mostra pelas suas leis; ela é o que, no final, a totalidade daquilo sobre o que é o pensamento e o agir. Ainda assim ela parece redundante e vazia. Como Kant dizia, “o real contém não mais do

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que o meramente possível”1. Mais especificamente, para qualquer propriedade F-dade, o Fer existente é o mesmo que o Fer. No exemplo que interessava a Meinong, o quadrado redondo existente é o mesmo que o quadrado redondo. (Eu não estou seguro que Meinong concordaria suficientemente rápido com esta igualdade em sua disputa com Russell). Esta igualdade, i. é., a redundância fundamental da propriedade da existência, é parcialmente capturada pelas leis especiais:

*C.6 *C(x, cy{C* (x, y)})

*C.7 *C(x, x[ser C* com x])

Uma abordagem alternativa, que eu acho tentadora, é revisar a noção de indivíduo e requerer que C* seja um membro do conjunto de propriedades constitutivas de um indivíduo. Isto tornaria a existência mais claramente redundante.

2.9 O debate Meinong-Russell sobre a existênciaPode não ser impróprio fazer alguns comentários sobre a

disputa Meinong-Russell acerca do quadrado redondo existente. Lembre-se que Meinong asseverava tanto que o quadrado redondo é redondo quanto que ele é quadrado. Russell argumentou que o princípio de Meinong de que o Fer é F conduz a contradições. O primeiro argumento de Russell era que é uma contradição dizer que o quadrado redondo é ambos redondo e quadrado. O seu segundo argumento era que, por aquele princípio, o quadrado redondo existente, que nós sabemos não existir, é existente; logo, nós temos outra contradição. As réplicas de Meinong foram as seguintes: (1) a lei de contradição aplica-se apenas ao real, não ao mero possível ou ao impossível; (2) há uma diferença entre dizer (a) o quadrado redondo existente é existente, e (b) o quadrado redondo existente existe.2

1 I. Kant, Critique of Pure Reason, A599.2 Para um resumo da disputa e referências bibliográficas veja R. Chisholm, “Editor's

Introduction”, Realism and the Background of Phenomenology (Glencoe, Ill.: The Free Press, 1960), p. 9s.

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No ponto (1) a presente teoria ontológica fica do lado de Russell nessa questão: a lei de contradição deve valer em todo o domínio da verdade. Mas, ela concede um ponto a Meinong: ela reconhece objetos impossíveis. No ponto (2) Russell contentou-se em dizer que ele não via nenhuma diferença entre (a) e (b). Contudo, a presente teoria ontológica pode formular a diferença e conceder um ponto para Meinong. A sentença

(14) O quadrado redondo existente é existente

pode naturalmente ser entendida como expressando uma proposição sobre uma predicação meinongiana, de tal modo que ela devesse ser analisada como:

(14a) o quadrado redondo existente (ser auto-consubstanciado).

Obviamente, a sentença (14) pode ser interpretada também como expressando uma proposição diferente, a saber, uma que naturalmente seria expressável pela sentença (15) abaixo:

(15) O (existente) quadrado redondo existe.

Esta sentença expressa uma proposição sobre atualidade, de modo que ela deve ser reformulada como

(15a) C* (o (existente) quadrado redondo, o (existente) quadrado redondo).

Nós podemos eliminar a palavra 'existente' entre parêntesis, movendo-se de (15) para (15a), em virtude da lei *C.7. De qualquer modo, Meinong parece estar certo em insistir na distinção entre duas interpretações naturais de (14) e (15). Se nossa exegese de sua alegação estiver correta, a saber, que ele entendia (14) como (14a) e (15) como (15a), então, ele está certo em manter que aquilo que (14) expressa é verdadeiro enquanto que aquilo que (15) expressa é falso.

Meinong não explanou a sua alegação sobre a diferença entre (14) e (15) como a diferença entre (14a) e (15a). Ele falou de um aspecto modal no pensamento da proposição expressa por (15). Mas esta é uma doutrina obscura.

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2.10. Objetos materiais ordinários e contagemNa teoria ontológica aqui desenvolvida, os indivíduos

concretos a que nossas descrições definidas referem são os mesmos quer eles existam quer não. Nossos indivíduos concretos são entidades materiais quando eles são realizados (actualized). Desse modo, o termo 'a presente Rainha da Inglaterra' refere-se ao indivíduo constituído pela propriedade presente-Rainha-da-Inglaterra-dade, ou a função proposicional de ser a presente Rainha da Inglaterra. Aquele termo não se refere, ao menos não em seu uso ou significado primário ou básico, ao indivíduo esposa do presente Duque de Edinburgh. Nem o termo 'a presente Rainha da Inglaterra' refere-se em seu uso ou significado primário ao conjunto de todos aqueles indivíduos concretos consubstanciados com a esposa do presente Duque de Edinburgh. Obviamente, este conjunto de indivíduos está consubstanciado com o conjunto de indivíduos consubstanciados com a presente Rainha da Inglaterra. Mas, o termo 'a presente Rainha da Inglaterra' nem mesmo refere-se, em seu uso ou significado primário, a este último conjunto.

Todavia, há ocasiões em que um proferimento do termo 'a presente Rainha da Inglaterra' pode talvez se referir ao conjunto de indivíduos concretos consubstanciados com a presente Rainha da Inglaterra. Se ele realmente existe, tal uso do termo é derivado e depende de seu uso primário e básico. Claramente, o uso de um termo 't' como abreviação para uma expressão da forma 'o conjunto de indivíduos concretos consubstanciados com t' pode ser entendido apenas sob a suposição de que o uso de 't' na descrição não abreviada é tanto compreensível quanto diferente de seu uso abreviado. De qualquer modo, quando nós contamos “A (presente) Rainha da Inglaterra, o Rei da Dinamarca, o Imperador do Japão, a Duquesa de Tuscany, o Ditador da Nicarágua, ...,” parece que nós estamos contando o conjunto de indivíduos consubstanciados com os indivíduos listados.

Deve-se enfatizar que a teoria que nós estamos expondo

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não identifica objetos materiais com os conjuntos de indivíduos mutuamente consubstanciados. Conjuntos são sempre indivíduos abstractos. Assim, quantificação sobre os nossos indivíduos concretos é quantificação sobre objetos materiais, e quantificação sobre conjuntos de indivíduos concretos mutuamente consubstanciados não é quantificação sobre objetos materiais.

Um objeto material ordinário é em seu cerne um agregado de propriedades, ou funções proposicionais. Com efeito, nós podemos dizer que um objeto ordinário, material ou não, é uma penca (bundle) de propriedades, incluindo propriedades relacionais, para sublinhar o fato de que ele não é um mero agregado ou conjunto de propriedades: o conjunto deve ser operacionalizado pelo operador de concretização c. Além disso, um indivíduo ordinário real, material ou não, é ele mesmo enfeixado, isto é, consubstanciado com uma infinidade de outros indivíduos.

Portanto, a presente teoria ontológica está em parte ao lado dos teóricos das feixes-de-universais, mas em parte com aqueles teóricos que identificam feixes com conjuntos. Aparentemente nossa teoria também difere das teorias padrão dos feixes em sua concepção de feixidade. Nossa teoria também difere da teoria proposta por Platão no Fédon1 de que um objeto ordinário é um conjunto de particulares que exemplificam apenas uma propriedade. Ela também difere da teoria em geral atribuída a Stout de que um objeto ordinário é uma aglomeração de propriedades particularizadas. (Eu seguidamente perco a distinção entre uma propriedade particularizada e um particular simples ou perfeito que exemplifica apenas uma propriedade.)

2.11 Indivíduos leibnizianosA partir das leis da contiguidade e da consistência que

governam a consubstanciação, segue-se que cada indivíduo, seja

1 Veja-se H.-N. Castañeda, “Plato's Phaedo theory of relations”, Journal of Philosophical Logic 1 (1972): 467-80.

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Fer, que existe determina um conjunto de sequências de indivíduos mutuamente consubstanciados que culmina em um indivíduo infinito, isto é, um indivíduo que é constituído por um conjunto consistente maximal de propriedades. Tais indivíduos infinitos eu denomino indivíduos concretos leibnizianos. Naturalmente, eles estão para além da apreensão de mentes finitas. Para apreender um indivíduo leibniziano deve-se ser capaz de contemplar o conjunto de propriedades in propria persona, com todos os seus membros numa visão completa. Como Leibniz notou, tais indivíduos (que ele denominou conceitos completos, por razões que estão além da presente consideração) são objetos ajustados para um entendimento divino.

Como Leibniz também notou, dado que um indivíduo leibniziano contém em seu conjunto constitutivo de propriedades todas as suas relações com todos os outros indivíduos, cada indivíduo leibniziano contém em seu interior a história completa de um mundo possível. Quaisquer dois indivíduos leibnizianos espelham um ao outro. Um indivíduo leibniziano pode pertencer apenas a um mundo possível.

Indivíduos leibnizianos estão completamente fora do nosso alcance. Bem, sim, eles estão fora do nosso alcance direto. Mas eles são indiretamente acessíveis: eles são indicáveis. Uma vez que conjuntos de propriedades constituem o cerne de indivíduos concretos, eles são indivíduos quase-leibnizianos disponíveis para nós. Estes são os indivíduos cujo cerne é uma propriedade da forma ter todas as propriedades de um certo indivíduo leibniziano. Tais indivíduos quase-leibnizianos devem forçosamente existir e ser consubstanciados com os indivíduos leibnizianos reais. Por exemplo, considere o indivíduo a presente Rainha da Inglaterra. Ela é consubstanciada com a presente Rainha da Inglaterra casada, com a presente Rainha da Inglaterra que é casada e tem um marido vivo e teve dois filhos que estão vivos de tal modo que um deles é consubstanciado com (se você

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quiser, é o mesmo que) o Príncipe de Wales, e ... . A sequência termina com o indivíduo leibniziano. Eu não posso apresentá-lo aqui ou em qualquer lugar. Mas, o quase-leibniziano c{ser a culminação leibniziana da sequência de indivíduos mutuamente consubstanciados que começa com a presente Rainha da Inglaterra} é consubstanciado com o indivíduo leibniziano no final dessa sequência de indivíduos.

Indivíduos quase-leibnizianos são muito baratos e obscuros. Mas, eles são a nossa única conexão com indivíduos leibnizianos. Eles nos asseguram uma orientação em nossa formidável tarefa de aumentar nossa familiaridade com correntes de indivíduos finitos mutuamente consubstanciados.

Nós dissemos acima que quando nós estamos engajados na assim chamada contagem de objetos materiais nós parecemos estar contando conjuntos de indivíduos mutuamente consubstanciados. Obviamente, nós estamos. Mas, nós estamos também contando indivíduos leibnizianos tanto quanto quase-leibnizianos. Pois, quando nós contamos “A Rainha da Inglaterra, o Rei de Nairobi, o Presidente da Venezuela, o Ditador de Portugal, ...” nós podemos tomar cada uma dessas descrições definidas como sendo usada num sentido especial como abreviação para descrições referindo indivíduos quase-leibnizianos. Isto é perfeitamente adequado. O que se deve ter em mente é que este uso abreviado, novamente, deve ser derivado e pressupor o uso primário de referir a um indivíduo tendo exatamente a propriedade mencionada – meinongianamente.

Muitos indivíduos leibnizianos são indivíduos materiais. Logo, se nós aceitamos que há um espaço tempo absoluto no qual indivíduos consubstanciam-se, nós podemos pensar que nossa ontologia contradiz o princípio da impenetrabilidade da matéria. Obviamente, não há tal contradição. Este princípio tem que ser analisado em termos de indivíduos. O que ele diz é que uma região R do espaço não pode ser ocupada em um dado tempo t por indivíduos materiais que não são mutuamente

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consubstanciados. Mas, um indivíduo leibniziano, os indivíduos finitos consubstanciados com ele, e os indivíduos quase-leibnizianos consubstanciados com ambos, pode, e deve, ocupar a mesma região de espaço no mesmo tempo.

Objetos existentes pertencem a semi-treliças de consubstanciação, no vértice dessas semi-treliças subjazem indivíduos leibnizianos.

2.12. Tempo e consubstanciaçãoNão há espaço aqui para discutir tempo e espaço. Há nessa

junção duas concepções para explorar. Uma é internalizar tempo e espaço em cada feixe de indivíduos consubstanciados. Outra é tratá-los como uma armação absoluta dentro da qual a existência se desdobra. (Eles mesmos não existem em qualquer caso). Em tal concepção o enfeixamento de feixes consubstanciados ao longo de um vetor espaço-temporal deve ser visto como outra relação contingente genuína: a transubstanciação de feixes de consubstanciação.

2.13. Nomes própriosHá várias teorias sobre como nomes próprios referem a

indivíduos e como eles se relacionam com descrições definidas. Muitas das teorias existentes são construídas na base da não-diferenciação entre a referência pura ou estrita de um nome, isto é, a referência feita pelo falante, e a referência feita pelos ouvintes de um nome. Obviamente, nomes não referem a nada por eles mesmos. Também é óbvio que o mero emparelhar nomes e entidades, algumas vezes chamado de funções semânticas ou interpretações sobre um conjunto de nomes, não induz nenhuma força referencial nos nomes. As referências expressas por um nome são referências feitas por um pensador que usa o nome.

A concepção que eu acho congenial é esta. (i) sentenças contendo nomes de indivíduos não expressam proposições (fatos, ou estados de coisas), mas funções proposicionais. (ii) Um nome

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tem o papel lógico de uma variável livre de quantificação, indicando a posição de um elemento que ele deixa inexpresso. (iii) Um nome também tem o papel lógico de expressar que o elemento inexpresso é um indivíduo quase-leibniziano. (iv) Um nome próprio tem um papel causal intencional, a saber, que a percepção do nome causará no ouvinte a apreensão de uma proposição que converge com a proposição na mente do falante. Por convergência eu aqui quero dizer que a proposição P na mente do falante e a proposição P' na mente de um ouvinte, no caso que a causalidade pretendida do nome seja bem sucedida, tem como componentes as mesmas operações lógicas, a mesma cópula e comunidade de relações, e difira no máximo por ter diferentes indivíduos, mas estes indivíduos sejam consubstanciados, ou consociados, ou conflatados, dependendo de qual tipo de proposição o falante tenha em mente. Em suma, P pode ser obtida de P' pela substituição de algumas ocorrências de indivíduos por ocorrências de indivíduos congruentes apropriados, e o ser apropriado da congruência ontológica é determinada pelas intenções de comunicação do falante.

Quando eu penso em Leibniz, eu estou pensando em um ou mais indivíduos finitos, por exemplo, o autor de Discours de métaphysique, ou o inventor da notação padrão para o cálculo diferencial, ou o homem que se engajou com Clarke numa correspondência sobre tempo e espaço. Em diferentes momentos eu indubitavelmente penso em diferentes indivíduos dentro do mesmo conjunto de indivíduos mutuamente consubstanciados. Quando eu digo “Leibniz foi diplomata habilidoso” eu não estou revelando para minha audiência o indivíduo que é o sujeito da proposição que eu estou pensando. Minhas palavras revelam a função proposicional “C*(x,x[ser um diplomata habilidoso])”. Esperançosamente, minha audiência seria composta de pessoas que possuem o nome 'Leibniz' em sua linguagem. Mas, ter um nome na própria linguagem não é nada mais do que ser parte de uma rede causal tal que a própria percepção do nome causa em

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circunstâncias normais a apreensão de uma proposição tendo como componente um certo indivíduo. Então, se minha audiência adquiriu o nome, isto é, sofreu um re-arranjamento apropriado de capacidades tal que possui o mecanismo para reagir ao meu proferimento tendo pensamentos sobre indivíduos congruentes com aquele em que eu estou pensando, eu fui bem sucedido em comunicar por meio do uso do nome. Meu ouvinte irá, então, pensar duas proposições, justamente como eu faço. Ele pensa a proposição “C*(o autor da Monadologie, o autor da Monadologie [ser um diplomata habilidoso])”. E, acreditando que tal autor existiu, ele também pensa a proposição quase-leibniziana “C*(o indivíduo leibniziano no qual culmina o autor da Monadologie, o autor da Monadologie [ser um diplomata habilidoso]).

Nesta concepção, nomes próprios referem sim, a saber, a qualquer indivíduo que o falante está referindo quando ele usa o nome. Igualmente, uma vez que variáveis de quantificação são essencialmente mecanismos de referência, pode-se dizer que nomes próprios têm um papel primariamente ou essencialmente referencial. Um nome próprio tem, por um lado, um sentido geral, a saber, um certo indivíduo leibniziano no qual uma certa corrente ontológica de consubstanciação culmina. Este aspecto do significado dos nomes igualmente acrescenta-se ao aumento de seu papel referencial. Em referindo a um indivíduo quase-leibniziano eles apontam, por assim dizer, para o indivíduo leibniziano que subjaz a todos os indivíduos que o falante ou o ouvinte está referindo durante o ato de comunicação. Contudo, é crucial ligar a ideia de que sentenças da forma “Nome s” não expressam uma proposição: o que elas expressam não é nem verdadeiro nem falso: não há proposições tendo como componente especial indivíduo não completamente especificado por descrições a que o nome refere.

2.14. ProposiçõesNa presente concepção, proposições são exatamente o que

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em geral é chamado estado de coisas. Nós não precisamos de uma dualidade representacionalista entre estados de coisas e intermediários diante-da-mente. Nós somos realistas epistemológicos: os conteúdos do pensamento são estados de coisas. Além disso, fatos são proposições verdadeiras.

2.15. ConceitosOs indivíduos da presente concepção são indivíduos

genuínos, e não os assim chamados conceitos individuais. Nós pensamos em indivíduos tendo-os diante da mente. Não há sentidos fregeanos ou conceitos carnapianos mediando entre os indivíduos pensados e o pensamento. O pensamento é sempre direto em sua referência a objetos, sempre bem sucedido em atingir um objeto, sempre transparente em seu conteúdo, sempre translúcido em sua referência. Pensar na Rainha da Inglaterra é apreender a Rainha da Inglaterra (isto é, ter a Rainha da Inglaterra diante da própria mente) em pessoa, quer ela exista ou não. Esta tese realista é a única que se ajusta a concepção de existência, claramente contemplada por Kant, de acordo com a qual a existência não adiciona nada ao conteúdo do que é pensado.

2.16. A distinção sentido-referência de FregeanosComo é bem conhecido, Frege postulou dois tipos de

entidades, sentidos e referentes, parte sob a pressão do representacionalismo, mas parte sob a pressão das assim chamadas descrições sem denotação. Como você lembra, sua concepção do significado de uma descrição definida D atribui a D duas séries de entidades: seus referentes e seus sentidos. Se D aparece em uma sentença S subordinada em construções de n oratio obliqua, então, D tem em S como referente e como sentido o n-tuplo referente e o n-tuplo sentido, respectivamente, das precedentes séries. Frege simplifica sua ontologia identificando o n-tuplo referente com seu (n+ 1)-tuplo sentido, para n maior que 1. Ao contrário, na presente concepção ontológica, todas estas

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“entidades” são expurgadas. Posto inexatamente, na presente concepção o referente de uma descrição definida D é seu sentido fregeano. Mas, isto é inexato, uma vez que os sentidos fregeanos são necessariamente não-materiais, e eles se relacionam com seus referentes por meio de alguma coisa como instanciação, quando as descrições de que eles são referentes denotam. Em nossa concepção, se uma descrição definida D denota, então o que ela denota tanto existe como é, como Kant diria, genuinamente idêntico com o indivíduo que D refere em qualquer caso.

Na presente concepção, na sentença

(16) Meu amigo chegou, mas enquanto Jones acredita que meu amigo chegou, Marta não acredita que Jones acredita que ele chegou.

A cláusula 'ele chegou' tem exatamente o mesmo sentido nas três ocorrências. Do mesmo modo, as duas ocorrências do termo 'meu amigo' e a ocorrência do pronome 'ele' referem todas a um certo indivíduo, o indivíduo finito c{ser meu amigo, }, onde é uma tripla ordenada de um indivíduo concreto, um lugar, e um tempo.1 Sem dúvida, qualquer um que use (16) assertoricamente irá assumir que tal indivíduo é consubstanciado com uma infinidade de indivíduos. Mas, em qualquer caso, o nexo predicativo entre esse indivíduo e a propriedade de ter chegado é a mesma em (16) inteira.2

A presente concepção ontológica, por conseguinte, restaura (ou preserva) a unidade da oratio recta e da oratio obliqua.

1 Para a discussão da referência indexical que pode ser acomodada à presente concepção ontológica, veja-se H.-N. Castañeda, “Indicators and quasi-indicators”, American Philosophical Quartely 4 (1967): 85-100; “On the phenomeno-logic of the I”, Proceedings XIVth International Congress of Philosophy (Vienna: Herder, 1968), vol. 3, 260-66; and “On the Logic of attributions of self-knowledge to others”, The Journal of Philosophy 65 (1968): 439-56.

2 Para uma consciência clara do problema da cópula em oratio obliqua, quando se introduzem os assim chamados conceitos individuais como os referentes de descrições definidas em oratio obliqua, veja-se W. Sellars, “Some problems about belief”, em D. Davidson and J. Hintikka (eds.) Words and objections: Essays on the work of W. V. O. Quine (Dordrecht: D. Reidel, 1969), p. 193.

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2.17. Proposições existenciais negativasA presente concepção ontológica, por tratar a existência

como uma relação externa aos particulares concretos, fornece uma solução simples para o problema das proposições existenciais negativas. Nesta concepção, uma descrição definida não tem um significado diferente, em sentenças atribuindo uma forma ou cor para a entidade que ela refere, do significado que ela tem em sentenças negando a existência de tal entidade. Assim, considere:

(17) O homem mais alto de Brasília gosta de morangos.

E

(18) O homem mais alto de Brasília não existe.

Em ambos os casos a descrição definida 'O homem mais alto de Brasília' refere-se a uma e a mesma entidade, a saber, o óbvio: o homem mais alto de Brasília, quer ele exista ou não. As duas sentenças são, em seu sentido mais natural, parcialmente analisáveis assim:

(17a) C*(o homem mais alto de Brasília, o homem mais alto de Brasília[gostar de morangos])

(18a) Não é o caso que C*(o homem mais alto de Brasília, o homem mais alto de Brasília).

Portanto, a presente concepção mantém a concretude dos indivíduos ordinários e mantém a unidade de pensamento e fala sobre existência: a negação e a afirmação de existência são ambas sobre a mesma entidade.

2.18. Generalização singularNa presente teoria pode-se generalizar a partir de

indivíduos, quer eles ocorram em proposições sobre estados psicológicos ou não. Assim,

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(19) Anthony acredita que o espião mais velho é um espião

implica a proposição generalizada singularmente

(20) Há [não, obviamente, existe no sentido de auto-consubstanciação] um indivíduo concreto x tal que Anthony acredita que x é o espião mais velho.

Tanto (19) como (20) são sentenças ambíguas, dependendo se o “é” predicando a propriedade de ser espião é pensado no sentido de cópula meinongiana primária, ou no sentido de consubstanciação. Mas, esta ambiguidade não afeta a validade da passagem de (19) para (20), supondo que a mesma cópula é usada em ambos os casos.

Sleigh e Kaplan objetaram ambos contra uma passagem de (19) e

(21) O espião mais velho existe.

para

(22) (∃x) (Anthony acredita que x é um espião).

Aqui o quantificador (∃x) é um quantificador singular existencial.1

Na presente teoria a intuição original de Quine de que (19) e (21) implicam (22) é restituída. E esta implicação vale, não obstante a cópula expressa pelo “é” antes de “um espião”. Logo, a implicação de (22) por (19) e (21) envolve dois casos:

(I) (19a) e (21) implicam (22a):

(19a) Anthony acredita que o espião mais velho (ser um espião)

(21) C*(o mais velho espião, o mais velho espião)

(22a) Há um indivíduo x tal que: C*(x,x) e Anthony acredita que x [ser um espião]).

1 Veja-se Robert C. Sleigh, “On quantifying into epistemic contexts”, Noûs 1 (1967): 28; e David Kaplan, “Quantifying In”, em D. Davidson and J. Hintikka (eds.) Words and objections: Essays on the work of W. V. O. Quine (Dordrecht: D. Reidel, 1969), p. 220. Veja-se também W. V. O. Quine, “Reply to Sellars”, ibid, pp. 337Ss, e Quine, “Reply to Kaplan”, ibid, pp. 341ss. Nestas réplicas Quine aceita a alegação de invalidade feitas por Sleigh e Kaplan.

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(II) (19a) e (21) implicam (22b):(19b) Anthony acredita que C*(o espião mais velho, o espião mais

velho [ser um espião])

(22b) Há um indivíduo x tal que: C*(x,x) e Anthony acredita que C*(x,x[ser um espião]).

Como ficam então os argumentos de Sleigh e Kaplan? Por uma coisa, os seus argumentos parecem ser montados em termos de quantificadores que tem como valores estranhas entidades que parecem ser um cruzamento entre indivíduos leibnizianos e conjuntos de indivíduos auto-consubstanciados. Eles iriam os denominar provavelmente “indivíduos ordinários”. Mas, o leitor das seções precedentes irá sem dúvida achá-los misteriosos. Não é fácil determinar qual é exatamente a sua constituição interna. Por outra, Sleigh e Kaplan parecem pensar que quantificar em contextos psicológicos deve atribuir aos sujeitos capacidades especiais de identificação. Esta ideia foi promovida em uma base ampla por Hintikka, com efeito, esta ideia é uma das mais fundamentais subjacentes a seu sistema de lógica epistêmica e doxocástica em seu Knowledge and Belief,1 bem como em seus escritos posteriores nesse tópico. Hintikka argumentou com força que a lógica da quantificação em contextos epistêmicos é precisamente a lógica do conhecer-quem. Todavia, parece-me que se deve resistir a esta ideia. Naturalmente, esta ideia tem um importante grão de verdade em sua base. Este grão de verdade é isto: há uma diferença crucial de sentido entre

(23) Anthony acredita que existe alguém que é um espião

e(24) Existe alguém que Anthony acredita ser um espião.

Como Quine diz, (24) veicula certa “informação urgente” que não é veiculada por (23). Mas, qual é esta informação? A diferença gritante em informação entre (23) e (24) é a indeterminação de (23) e a determinidade de (24).

1 J. Hintikka, Knowledge and Belief (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962).

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Evidentemente, (23) atribui a Anthony uma crença sobre ninguém em particular, enquanto que (24) atribui a ele uma crença sobre uma pessoa particular. Fica-se tentado a tornar o significado de (23) e (24) mais explícito em desenvolvendo-as como segue:

(23a) Anthony acredita que existe alguém, seja ele quem for, que é um espião

(24a) Existe alguém, a saber ..., que Anthony acredita ser um espião.

A frase “seja ele quem for” em (23a) sugere que de acordo com (23a) Anthony não precisa ter uma resposta para a questão “Quem é esta pessoa?”. Por contraste, se é levado a pensar que (24a) e (24) devem, forçosamente, diferir de (23) e (23a), requerendo-se que Anthony tenha uma resposta àquela questão. Se é assim, Anthony deve, então, se (24) é verdadeira, ter algum modo de identificar o espião em questão.

Eu penso que alguma coisa como esta sedução exerceu o seu poder. Todavia, eu proponho resistir a ela a qualquer custo. Eu irei resistir a ela mesmo se a concepção ontológica que eu venho desenvolvendo não possa ser defendida em última instância. Sem dúvida, (24) tem algo a ver com identificação. Mas, não se trata de identificação por Anthony, mas possível identificação por aquele que assere (24). Note-se que a cláusula 'a saber' está fora do escopo do operador de crença 'Anthony acredita que'. Todavia, ainda se pode aduzir, a indeterminação de (23) que contrasta com a determinidade de (24) tem a ver, não com o falante, mas com Anthony. Isto é verdade. Mas, este contraste não é nada senão o seguinte:

(A) Cada proposição normalmente expressável com (24) implica que há uma proposição verdadeira da forma “Anthony acredita que é um espião” para qualquer termo singular substituindo ''.

(B) Nenhuma proposição normalmente expressável com (23) implica que haja uma proposição da forma “Anthony acredita que é um espião” para qualquer termo singular substituindo ''.

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2.19. Conhecer-quem e identificação do sujeitoEm Inglês nós atribuímos a capacidade de identificar um

indivíduo por meio da locução 'conhecer-quem'. Sem dúvida, esta locução está conectada com 'conhecimento'. Mas, ela é mais complicada. Não me parece que conhecer-que pertence ao nível proposicional e que conhecer-quem ao quantificacional. Parece evidente que há um nível quantificacional de conhecer-que. Não há tempo para entrar num exame da concepção que equaciona quantificação-em com a posse por um sujeito de capacidade de identificação. Eu vou simplesmente esboçar o que me parece uma teoria satisfatória de conhecer-quem.

Conhecer-quem requer uma concepção relativizada de conhecimento-que. Esta é uma relativização a um conjunto de procedimentos de identificação. Vamos usar a letra 'w' para representar conjuntos de procedimentos de identificação, e vamos escrever 'Sabew' para denotar conhecimento-que relativizado a algum de tais conjuntos w. Então, parte da análise de conhecer-quem é isto:

(K.C*) X sabew quem o é = Há uma propriedade -dade tal que -dade pertence a w e X sabe que C*(o , o [-dade]).

(K.C*) representa a análise da parte mais empírica e ordinária do conhecer-quem. Há outras partes e elas podem ser obtidas de (K.C*) por substituição de 'C*' por um signo de alguma outra congruência ontológica.

2.20 Entidades ficcionaisEntidades ficcionais tem sido sempre um problema. Eu

costumava pensar que o melhor tratamento delas consistia em supor que para cada história há um operador intencional, como Pensa-se que, o qual seria implicitamente enunciado em enunciados sobre personagens de ficção. Desse modo, por exemplo, a sentença

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(25) Don Quijote gozou suas desventuras

é verdadeira e deve, nessa concepção, ser entendida como abreviação de

(26) Em Don Quijote, Don Quijote gozou suas desventuras.

Em assumindo um operador de história (story) implícito, pode-se rejeitar, por um lado, a implicação de que existe um homem que é Don Quijote, e pode-se, por outro, defender que todas as palavras em (25) tem seu significado ordinário. Este segundo ponto é importante, porque alguns de nós não querem aceitar que a verdade de (25), com seu não comprometimento existencial, requeira que nela 'gozar de suas desventuras' tenha um significado especial.

Indubitavelmente, há operadores de história, como em (26). Mas, esta análise de (25) não é suficiente para elucidar proposições sobre personagens de ficção. Por uma coisa, há histórias ficcionais sobre pessoas e coisas reais. Por outra, há enunciados que se referem a personagens através de diferentes histórias. Por exemplo:

(27) Don Juan tornou-se mais humano e sensível nas obras dos escritores alemães do que ele era nas peças espanholas sobre ele.

Aqui nós precisamos de um indivíduo, que, embora não-existente, seja o sujeito de várias histórias, e que permanece de algum modo o mesmo enquanto sofre todo o tipo de mudanças. Nós temos, por conseguinte, no caso de ficção, um problema análogo ao discutido acima nas seções 1.3-1.5.

A abordagem em termos de operadores de história está, contudo, correta em explicitar que histórias são criações da mente, de tal modo que uma história é simplesmente um conjunto de proposições contempladas por um criador de histórias. Logo, a conexão entre as proposições que constituem uma história não é senão a conexão criada pelo pensamento, e a unidade de um personagem ficcional é, por conseguinte, nada senão a unidade de

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uma corrente de consociações. Uma vez criada por um autor, uma corrente de consociações constituidora de um certo personagem ficcional torna-se disponível para examinação pública em uma peça escrita ou na memória de um contador de histórias. Logo, (25) acima, que depende de (26) para sua verdade, é

(25a) C**(Don Quijote, Don Quijote [gozar suas desventuras]).

Claramente, o original Don Quijote é apenas a corrente de consociações criada por Miguel de Cervantes, mas ele ganhou outros elos de consociação em diferentes autores e críticos. Don Quijote mesmo, como qualquer outro persistente herói fictício, desenvolve-se ao longo de Don Quijote: entre outras coisas, ele torna-se mais tolerante e mais sensível a outras dimensões da natureza humana, além daquelas de ser um inimigo, ser um amigo, ser objeto de injúria ou proteção. Este desenvolvimento não pode ser, naturalmente, transubstanciação, mas é algo semelhante. Nós podemos chamá-lo transconsociação. Este é o fenômeno descrito em (27) acima.

É importante prestar atenção no fato de que atitudes proposicionais e atos, quer sejam ou não massivos o suficiente para constituir a criação de uma história, envolvem consociação (e transconsociação), e não consubstanciação (ou transubstanciação). Considere (19) e (21) acima outra vez:

(19) Tom acredita que o espião mais velho é um espião;

(21) O espião mais velho existe.

Considere a propriedade de ser tal que Tom acredita que ele é um espião, isto é, a propriedade Tom acredita que u é um espião. Indubitavelmente esta propriedade é possuída pelo espião mais velho. Mas, esta posse não é, obviamente, de predicação meinongiana. Mas, ela também não é consubstanciação: ela é consociação. Logo, (19) e (21) falham em implicar, juntos ou separadas, que C* (o espião mais velho, o espião mais velho [Tom acredita que u é um espião]). Elas implicam juntas, e (19)

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por si mesma, que

(28) C**(o espião mais velho, o espião mais velho [Tom acredita que u é um espião]).

Lembre-se que consociação não é governada pelas leis de fechamento ou consistência ou transitividade.

3. Propriedades: um vislumbre metafísicoNós assumimos que propriedades são os blocos de montar

do mundo e da armação de possíveis e impossíveis objetos que o sustentam. Ao lado dos filósofos com inclinação nominalista, esta assunção central tem sido questionada por outros filósofos também pertencentes à tradição abstracionista. Eles pensam que as propriedades ordinárias são muito concretas, que as propriedades que nós encontramos no mundo são de fato complexos de algum componente mais básico do mundo. Eles podem mesmo adicionar a tese kantianesca de que as propriedades que nós encontramos são o produto da interação da mente e da Realidade, e que outras Mentes iriam encontrar, ou atualmente encontram, análises para as nossas propriedades. Outros mantêm que não há átomos absolutos, de tal modo que qualquer “átomo metafísico” que uma criatura possa encontrar, no seu nível de penetração, outra criatura pode tomá-los como sendo complexos.

Nós não podemos discutir estas teses aqui. (Nós não estamos fazendo metafísica aqui, apenas ontologia fenomenológica.) Mas, nós podemos observar que a estrutura do mundo desenvolvida na Parte II¥ é compatível com a tese de que as propriedades assumidas ali são complexos de micro-entidades metafísicas. Além disso, o mesmo tipo de análise poderia aplicar-se à propriedades de tal modo que elas se tornassem conjuntos especiais de proto-propriedades, e o mesmo para estas. Do mesmo modo, nossas treliças de consubstanciação e correntes de

¥ N. T. O autor está se referindo à Parte II do Livro Thinking, Language & experience.

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consociação podem também formar entidades mais complexas. Portanto, o esquema ontológico da seção 2 deste texto é compatível com a tese metafísica de que, dado o tipo de mente que nós temos, nós zeramos em um certo nível de complexidade metafísica numa hierarquia de ser que é infinita em todas as direções.

Nós também deixamos em aberto se a estrutura ontológica desenvolvida acima é uma mera imagem, um modo de imaginar, que é quando muito um produto derivado estéril e epifenomenal em meio da interação do exercício humano de sua complexa capacidade de lançar ruídos uns para os outros. Esta é uma metafísica nominalista liberal o suficiente para reconhecer o fato da consciência.

O sistema da Parte II entrelaça as intuições das grandes figuras históricas mencionadas na Parte I ou na Parte II. Naturalmente, a assunção fundamental do sistema, a saber, seu Platonismo, tem sido firmemente questionada ao longo da história da filosofia por Nominalista e Materialistas (ou Fisicalistas). Nós não podemos aqui nos engajar num ataque ao Nominalismo. Esta é uma questão perene, e talvez ela não seja passível de uma solução total. Talvez, nós estejamos condenados a ver os dois tipos de natureza metafísica sempre lutando uma com a outra em uma dialética histórica auto-anulável por meio da qual clarificações e desenvolvimentos dos dois tipos de concepção devem acontecer. Talvez, neste caso o progresso filosófico consista em ver mais claramente e mais de cada uma das duas principais concepções do mundo.

4. ConclusãoO esquema ontológico exposto na seção 2 deste texto

conforma-se aos dados apresentados na seção 1. Ele soluciona os enigmas discutidos ali bem como os problemas mencionados na seção 2 mesma. O leitor pode assegurar-se por si mesmo que isto

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é assim. [Posteriormente indivíduos concretos foram chamados perfis individuais.]

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8. Identidade e igualdade

Hector-Neri Castañeda

“Identity and Sameness”, Philosophia, v5, n1-2 (1975): 121-150.

No entity without identity (W. Quine)

... na medida em que nós lidamos apenas com os assim chamados contextos extensionais, nós podemos ter a ilusão de que nós estamos intelectualmente manipulando propriedades neutras (e particulares). Contudo, tão logo nós nos movemos para o nível do discurso sobre relações cognitivas e linguísticas, nós precisamos encarar o fato de que nos encontramos em predicações parcialmente egocêntricas de propriedades (e particulares). (“Indicadores e quase-indicadores”).

Como todos sabem, identidade e igualdade são dois dos

mais pervasivos e mais fundamentais aspectos dos objetos do mundo e mesmo fora do mundo. Sem os conceitos de identidade e igualdade, uma criatura não pode pensar e não tem, por conseguinte, nenhum mundo para confrontar. Não espanta, então, que reflexão na identidade e na igualdade termina, seguida e rapidamente, em confusão e enigma.

A maioria dos problemas e enigmas que cercam a identidade e a igualdade foram ultimamente discutidos abundantemente nos jornais profissionais e em livros. Meu propósito aqui é tentar resolver estes problemas e enigmas por

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meio de uma virada copernicana em nossa concepção de indivíduos e de identidade e igualdade. A abordagem padrão, ptolomaica, trata a identidade do ponto de vista de uma consciência senhorial que inspecciona o mundo em sua espantosa totalidade. Eu proponho, ao contrário, tomar-se tanto a nossa dependência do mundo como a nossa finitude muito seriamente. Nós somos criaturas imersas no mundo, em um pequeno canto do mundo; nós podemos perceber apenas uma pequena seção transversal desse canto; nós podemos ver apenas aspectos parciais dos objetos do mundo, e nós podemos vê-los apenas pouco a pouco, circulando ao redor dos objetos no mundo. (O mundo é o cerne daquilo que Sellars chama a Imagem Manifesta. Ele é o fundamento do universo que é o tema de pesquisa da ciência.)

O principal resultado da investigação é a separação da identidade em relação a outras três relações de igualdade que são usualmente predicadas de indivíduos pela locução “é o mesmo que” e “é idêntico a”. Uma vez que não há identidade ou igualdade sem as correspondentes entidades, a destilação dos membros da família da identidade nos leva a algumas distinções e teses ontológicas básicas. Estas são discutidas em detalhe em “Thinking and the Structure of the World”.1 Assim, o presente artigo é uma introdução a este ensaio.2

I. IdentidadeIdentidade é a relação reflexiva par excellence, e esta é a

fonte do primeiro enigma que ela cria.3 A identidade exaure-se na sua reflexividade. Identidade não é realmente senão auto-identidade.4 Isto é espantoso. Pois, enquanto a fala acerca da identidade, sem qualificações, soa instingante, a fala acerca de

1 H.-N. Castañeda, “Thinking and the Structure of the World”, Philosophia, 4, 1974, 3-40.2 Outra introdução ao “Thinking and the Structure of the World”, do entreponto do problema da

individuação, é “Individuation and Non-Identity: A new look”, American Philosophical Quarterly (forhtcoming). Haverá outras introduções. “Existence” será apresentado no encontro do Grupo de Discussão de Ontologia, em 24 de abril de 1975.

3 Cf. para isso a primeira página do “Sobre o sentido e a referência” de Frege.4 Para modificar uma frase de meu amigo Donald Nute.

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auto-identidade é inevitavelmente enfadonha e banal. Porém, eu não vou adentrar-me nesse enigma. Ele receberá sua clarificação no devido tempo. Aqui nós devemos começar com a importante e crucial verdade acerca da identidade. Esta é a assim chamada Lei de Leibniz da indiscernibilidade dos idênticos, a saber:

(LL) Se x é idêntico a y, então, tudo o que é verdadeiro de x é verdadeiro de y e tudo o que é verdadeiro de y é verdadeiro de x.

A maioria das dificuldades ou enigmas acerca da identidade tem a ver com (LL). Acontece que pode haver casos em que um objeto ordinário x seja naturalmente tido como idêntico a um objeto ordinário y e ainda assim parece que algo verdadeiro de x não é verdadeiro de y. Tais casos são referidos seguidamente como situações descritas em contextos intensionais. É importante, contudo, manter em mente que a Lei de Leibniz acima, isto é, (LL) acima, não é um princípio de substituição de expressões por outras expressões em contextos sentenciais ou frasais: ela é uma lei sobre entidade e suas propriedades, e se o-que-é-verdadeiro de uma entidade não necessita ser uma propriedade, (LL) é também sobre estruturas de características de entidades não-linguísticas e não-propriedade.

Desde que os fenômenos mentais são filosoficamente mais intrigantes, o mais importante tipo de contexto intensional é aquele ilustrado por proposições mentais (ou sentenças, se você quiser). Estas são as proposições (ou sentenças) cruciais que melhor revelam a necessidade de nossa virada copernicana. Então, para focalizar nossa atenção, considere um caso simples de crença, tal como apresentado por Sófocles em sua Édipo Rei:

(1) Antes da peste Édipo acreditava que o Rei de Tebas estava morto.

(2) O rei de Tebas e o pai de Édipo eram o mesmo.

Então,(3) Antes da peste Édipo acreditava que o pai de Édipo1

1 Eu coloco aqui 'Édipo' ao invés de 'seu (próprio)', porque as sentenças 'Édipo acreditava que o

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estava morto.

Além disso,(4) Não é o caso que antes da peste Édipo acreditava que o pai de Édipo5 estava morto.

Como se sabe, certamente desde Frege, se a igualdade de (2) é a identidade estrita, então, por (LL), tudo o que é verdadeiro do rei de Tebas é também verdadeiro do pai de Édipo. Por (1), parece ser verdadeiro do rei de Tebas que antes da peste Édipo acreditava que ele estava morto; logo, isto deveria ser verdadeiro do pai de Édipo; isto parece ser o que (3) diz. Mas, (3) conflita com a verdade crucial de (4) em Édipo Rei. Este conflito é parte da opacidade referencial, como Quine a chama, dos contextos de crença.

Há três tipos de solução formal para este enigma: (a) tomar os contextos referencialmente opacos como criando exceções à Lei de Leibniz; (b) assumir que sentenças incompletas como “Édipo acreditava que ____ estava morto” não expressam propriedades, ou algo verdadeiro, de entidades referidas por meio de expressões que ocupam a posição “___”; (c) adotar o ponto de vista de que (2) é falsa, de tal modo que o rei de Tebas não seja realmente idêntico ao pai de Édipo. Em qualquer caso nós devemos desenvolver uma abordagem ou teoria geral.

A solução (a) não é realmente uma solução para o problema representado por (1)-(4), a menos que as condições para a limitação de (LL) sejam completamente especificadas. E esta é para mim a verdadeira dificuldade desta abordagem. A identidade é caracterizada pela Lei de Leibniz. Então, adotar o curso (a) equivale a dizer que as locuções “é idêntico com” e “é igual a”,

pai de Édipo estava morto' e 'Édipo acreditava que seu (próprio) pai estava morto' expressam em seu sentido normal diferentes proposições. Razões para esta contenção veja-se “On the Phenomeno-logic of the I”, Proceedings of the XIVth International Congress of Philosophy, (1968), vol. III: 260-266; “On the Attributions of Self-Knowledge to Others”, The Journal of Philosophy, 65 (1968): 439-456; “Indicators and Quasi-Indicators”, American Philosophical Quarterly, 4 (1967): 85-100; e “He': A study in the Logic of self-consciousness”, Ratio, 8(1968): 130-157.

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bem como qualquer outra que pareceria expressar identidade, realmente não expressam identidade. Assim, a alternativa (a) colapsa em uma versão da alternativa (c), com a decisão terminológica de continuar a usar as palavras “identidade” e “é idêntico com” -- mas referindo-se agora a alguma relação diferente da identidade. Claramente uma teoria de uma tal relação deve ser desenvolvida. Mas, há a ameaça de um sério problema. Há a ameaça de ao alijar a Lei de Leibniz se alije junto a identidade. Uma vez que não há entidade sem a sua identidade, alijar a identidade implica em alijar o mundo com todos os seus objetos. Então, me parece, qualquer teoria relevante que desenvolva a alternativa (a) terá que reinstituir a identidade e com a ela a Lei de Leibniz. Qualquer de tais teorias relevantes, então, seria uma teoria que iria acabar por ser uma teoria que desenvolve a alternativa (c).

A alternativa (b) parece mais promissora. Ela cria o sério problema de explanar o que uma propriedade é e como sentenças incompletas as expressam. Mas, estes problemas aparecem para toda concepção em todo caso. O que necessita uma abordagem cuidadosa é a situação específica. Édipo tem um estado de crença cujo “conteúdo” é uma proposição, ou um estado de coisas, que envolve seu pai, mas sob (b) este pai não pode ser parte ou parcela daquela proposição ou estado de coisas, nem pode ser ele envolvido na crença de Édipo acerca dele! Isto sugere que o estado de crença não conecta com entidades acerca de que são as crenças – ao menos não em um modo direto e originalmente natural. Esta não é certamente uma objeção a alternativa (b), a menos que nós queiramos logo de início algum “contato” direto entre crer e seus objetos, ou algum envolvimento do último com o primeiro. Mas, isto é uma barreira séria.

A alternativa (c) considera o rei de Tebas anterior a Édipo como uma entidade diferente de o pai de Édipo. Claramente, então, estas duas entidades não podem ser objeto ordinário dotado com muitas e infinitas propriedades, especialmente relações, que

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nós seguidamente referimos, ou aludimos, ou assim pensamos, quando nós usamos locuções “O rei de Tebas anterior a Édipo” e “O pai de Édipo”. Nós podemos dizer que o rei de Tebas anterior a Édipo, que é diferente de o pai de Édipo, e este, também, são diferentes perfis (guises)¥ do objeto ordinário que nós normalmente temos em mente. Eles são diferentes possíveis “aparências” de um e o mesmo particular – onde “aparência” não significa aparência visual, mas apresentação à mente, seja à sensibilidade seja ao intelecto. Esta é uma solução ao enigma de Frege sobre (1) – (4). Os dois perfis o pai de Édipo e o rei de Tebas anterior a Édipo são diferentes, e seja lá o que for que Édipo faça, ele não pode sair de seu embaraço: sempre que ele pensa no objeto ordinário que nós estamos discutindo, ele apenas o pode fazer em tendo diante de sua mente uma “aparência”, um perfil daquele objeto. Desse modo, quando nós consideramos o estado mental de alguém, que envolve o pensamento, nós estamos ipso facto considerando um sistema de perfis. Os estados mentais cognitivos são, pois, prismas metafísicos que refractam objetos ordinários em espectros de perfis ontológicos.

A abordagem precedente que desenvolve a alternativa (c) é essencialmente de Frege. Algo como o que eu denominei perfis (ontológicos) ele chamou sentidos. Mas, ele não esclareceu a conexão entre um objeto ordinário e um correspondente conjunto de sentidos. Eu proponho desenvolver mais a alternativa (c).

Uma mente, então, uma mente finita não pode encontrar, em conexão com cada objeto ordinário, a não ser um sistema de perfis. Agora nós temos uma escolha teorética. Nós podemos postular os perfis como intermediários entre uma mente e os objetos ordinários. Ou nós podemos, ansiosos por não separar a conexão direta entre a mente e seu mundo, construir objetos ordinários como sistemas de perfis com os quais nós em cada caso temos de lidar. Frege, parece, adotou a visão intermediária;

¥ N. T. A palavra inglesa “guise” pode ser traduzida literalmente pela palavra “guisa” do vernáculo. Todavia, optei pela palavra “perfil” tendo em vista o conceito que Castañeda está instaurando e também o fato de “guisa” estar em franco desuso.

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eu proponho desenvolver e explorar a não-intermediária, a visão realista. Esta é uma espécie de tipo generalizado de fenomenalismo não-só-dados-dos-sentidos.

A visão intermediária tem um dualismo que eu acho embaraçoso em razão de sua arrogância ptolomaica. Nessa visão uma expressão referencial singular como “o pai de Édipo” refere quando eu a utilizo in oratio recta a um objeto ordinário infinitamente dotado de muitas propriedades; mas, quando eu a uso in oratio obliqua ela refere a um sentido, o qual alguém mais tem, ou pode ter, em mente ou diante de sua mente. Para ilustrar, considere meu proferimento de

(5) O pai de Édipo morreu, mas Jocasta pensa que o pai de Édipo está vivo.

A primeira ocorrência de “O pai de Édipo” expressa, na visão intermediária, o meu pensamento de um certo objeto ordinário real, enquanto a segunda expressa o sentido que Jocasta tem diante de sua mente. Mas, seguramente eu não sou melhor do que Jocasta é em questões de visão. Minha atribuição de pensamento a ela torna transparente que ela lida com sentidos, ou perfis, eu deveria dizer (desde que eu agora estou me movendo em direção da visão realista). Mas eu também lido com perfis – Eu “revolvo” em torno de perfis. A visão fregeana dá à parte da oratio recta uma posição olímpica ou ptolomaica. Entretanto, o fato é que eu sou um self finito e empírico em meio a um vasto mundo, e eu tenho que tatear nele o meu caminho do mesmo modo que os demais que eu encontro nesse mundo. Parece que uma compreensão correta da estrutura ontológica do mundo em que nós mesmos nos encontramos é alcançada ao envolvermo-nos na humildade copernicana de tratar nossas referências em oratio recta como referências, também, a perfis (guise), desse modo restaurando a unidade de oratio obliqua e oratio recta.

A minha virada copernicana na concepção de indivíduos, envolve, então, dois passos: Primeiro, eu reconheço com Frege que a atribuição de atos de pensamento ou estados de crença a

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outros (i.é., mentes finitas) envolve situar tais outros no sério emaranhado de perfis; isto é, os seus atos proposicionais e atitudes lidam diretamente e primariamente com perfis, os quais são assumidos como conjuntamente pertencentes a algum indivíduo complexo inalcançável in toto. Segundo, eu reconheço que eu mesmo sou parte da comunidade de mentes finitas e estou, por conseguinte, inescapavelmente no centro do mesmo emaranhado de perfis. Nós lidamos com perfis ontológicos diretamente e assumimos que eles pertencem juntos a um indivíduo complexo que nós assumimos ser um tipo de limite assintótico de nossos esforços epistêmicos. Nossos enunciados em oratio recta são o que eles parecem ser: enunciados sobre perfis, mas, subjazendo a eles está a nossa tácita suposição de que eles são elementos em estruturas assintóticas. Então, estas estruturas são referidas secundariamente quando nós referimos primariamente a perfis que nós tomamos como existentes. Porém, isto é também verdadeiro dos outros, e nós lhes atribuímos também esta referência secundária. Nossos enunciados em oratio recta estão, por assim dizer, para levar a idéia de Frege um pouco adiante, apenas aparentemente fora do escopo de um prefixo psicológico. Eles estão implicitamente embutidos no escopo da oratio obliqua de um Eu penso (como Kant já notara antes, em 1781). Nossas referências em oratio recta são, então, realmente referência em oratio obliqua e, portanto, mesmo em uma concepção como a de Frege, elas referem a sentidos e não àqueles indivíduos infinitamente multidotados de propriedades que são em sua concepção as referências denotadas em oratio recta. Ontologicamente falando, não há oratio recta genuína. Então, meus perfis estão, grosseiramente, como os sentidos primários de Frege, sob um escopo de subordinação implícita à representação Eu penso de Kant. Este Eu é um eu empírico finito, não um infinito e transcendente intellectus agens cujo eu penso é redundante, isto é, para quem há referência em oratio recta genuína. Ele é transcendental, tendo em vista que a despeito de

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quantos Eu penso alguém é consciente na corrente da auto-consciência, a última ou mais abrangente consciência tem a unidade de um Eu penso que permanece fora da corrente em questão.

Em suma, a abordagem do tipo (c) proposta aqui como uma solução para o enigma de Frege, ilustrado em (1)-(4) acima, contém as seguintes teses:

1. Os indivíduos com infinitas propriedades que nós assumimos como sendo membros, elementos ou componentes diretos do mundo, a partir de agora denominados objetos do mundo, são compostos de infinitamente muitos indivíduos finitos, denominados aqui perfis ontológicos.

2. Perfis são as unidades de individuação utilizáveis por mentes (finitas): eles são os objetos primários de referência e, portanto, de percepção e crença.

3. Perfis são exatamente o que as expressões referenciais da forma “O F” referem, ou seja, “O homem próximo a porta (no momento)”, “A Rainha da Inglaterra em 1973”.

4. Os objetos do mundo são objetos secundários de referência; quando alguém pensa em tal-e-tal tomando-o como existente, primariamente ele refere ao tal-e-tal (perfil) e secundariamente à postulada estrutura infinita de perfis que supostamente inclui (contém ou envolve) o tal-e-tal. (Isto é uma inversão de Frege, e tem a consequência de extirpar a sua hierarquia infinita de sentidos; então, aqui está uma razão, entre outras, de porque os seus sentidos não são a mesma coisa que meus perfis ontológicos. Veja-se também a parte IV abaixo.

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5. Expressões referenciais da forma “O F” têm a mesma referência tanto em oratio recta como em oratia obliqua.

6. Construções em oratio recta são construções implicitamente subordinadas a um “Eu penso aqui e agora”.

7. Nós referimos explicitamente a objetos do mundo por meio de quantificadores.

8. Os termos referenciais singulares da forma “O F” não são analisáveis, como proposto por Bertrand Russell, como sentenças incompletas “Há apenas um F e ele (é ...)”. As razões principais são: (i) o termo refere primariamente a um perfil, enquanto que a sentença não refere a ele absolutamente; (ii) o termo tem referência secundária, implícita, a um objeto do mundo, enquanto que a sentença tem uma referência explícita a um tal objeto.

9. Nosso conhecimento empírico é conhecimento das conexões entre perfis ontológicos, e ele é guiado pela postulação de objetos do mundo como assintotas.

10. A identidade, naturalmente, é como sempre exaustivamente e totalmente reflexiva e consiste na assim chamada Lei de Leibniz.

II Um argumento de Quine

Perfis ontológicos são entidades intensionais. Eles são as unidades de individualidade envolvidas no lidar consciente de uma mente finita com particulares. Eles são as unidades tanto da identidade de indivíduos atuais como de identidades de crenças. Eles mantêm intacta a força da Lei de Leibniz. Algo muito

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semelhante aos perfis ontológicos foi discutido por Quine, com o propósito de descredenciá-lo. Ele formulou um argumento premente para mostrar que a introdução de entidades intensionais não resolve o problema da substitutividade de identidade, ou o problema da quantificação, em contextos modais ou de crença.1 Incumbe a nós, então, parar e considerar a relação desse argumento com nossos perfis ontológicos.

Vamos aplicar o argumento de Quine no nosso exemplo. Do Édipo Rei de Sófocles nós temos:

(1) Antes da peste Édipo acreditava que o rei anterior de Tebas estava morto.

(4) Não é o caso que antes da peste Édipo acreditava que o pai de Édipo estava morto.

Nós tomamos (1) e (4) para estabelecer que:(2') (Perfil) o anterior rei de Tebas ≠ (Perfil) o pai de Édipo.

Agora, aplicando o seu argumento geral, Quine iria interpelar-nos para considerar algum termo tal como:

(T) O único perfil individual x tal que x é idêntico ao pai de Édipo e que é o caso que a axiomatização do cálculo proposicional de Whitehead-Russell é completo.

Claramente, Édipo não sabia nada sobre provas de completude. Logo, Édipo não poderia acreditar, nem acreditou que o perfil (T) refere ao (perfil) pai de Édipo. E este perfil é aquilo, obviamente de acordo com Quine, que (T) refere. Logo, Quine concluiria, a identidade entre (os perfis) o pai de Édipo e (o perfil) (T) não era uma crença de Édipo, e nós voltamos outra vez ao ponto inicial, a saber, com uma identidade que não permite a substituição de idênticos.

Este é um argumento poderoso. Considere-se a expressão que (T) representa. Realmente parece que ela apenas pode referir-

1 Veja-se, e.g., W. V. O. Quine, From a Logical Point of View (New York: Harper and Row Publishers, 1963), pp. 152s.

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se ao pai de Édipo, uma vez que a axiomatização do cálculo proposicional de Whitehead-Russell é de fato completa. O cálculo básico de quantificação com descrições definidas tem como um teorema a fórmula “p → x = ιy (y = x & p)”, que é em geral lida como “Se p, então, x = a única coisa que é idêntica com x e é o caso que p.” Quine está simplesmente aplicando este teorema para perfis e outras entidades intensionais. Agora, o intensionalista rejeita este teorema, se “=” significa identidade genuína: embora o teorema possa ainda valer para uma relação de congruência mais fraca.6a O intensionalista alega que aquele teorema entra em conflito com a Lei de Leibniz quando se trata de proposições psicológicas. Logo, o uso de Quine desse teorema não o impressiona: trata-se de novo da mesma posição objetada. O intensionalista inteiramente consistente apenas irá repetir o seu movimento original acerca do pai de Édipo e o rei anterior de Tebas. Claro, como Quine diria:

(4) Não é o caso que Édipo acreditava que (T) era seu pai.

Mas, certamente,(a) Édipo acreditava que o pai de Édipo era seu pai.

O intensionalista tem que, por consistência, repetir este movimento quando confrontado com o argumento de Quine. Então, o argumento de Quine não mostra que o intensionalista está envolvido em uma contradição, ou em um projeto auto-solapador. A força do argumento de Quine não está no que ele diz, mas na exposição da necessidade de uma elucidação profunda da noção de perfil ontológico. Pois, a iteração do intensionalista de seu movimento não pode ser a solução do problema. Ele tem que providenciar uma abordagem dos perfis e da predicação para produzir uma elucidação do seu movimento. Tal abordagem eu a desenvolvi em “O pensamento e a estrutura

6a A relação de congruência que Russell e Quine tinham em mente é consubstanciação, a qual é discutida em IV.3. Veja-se, para a discussão de “=” e a análise das descrições definidas de Russell, “Existence” mencionado na nota 2 acima.

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do mundo”. A abordagem envolve dois tipos de predicação: predicação interna e externa. As relações de identidade e de igualdade discutidas nesse artigo são todas instâncias de predicação externa.

III Algumas dificuldades para os perfis ontológicosNós vimos como o enigma de Frege sobre as crenças de

Édipo concernentes ao pai de Édipo e o seu predecessor como rei de Tebas recebe uma solução ao se tomar as entidades que são objeto das crenças de Édipo, acima reportadas, como sendo diferentes. Eles são perfis, nós dissemos, de uma entidade complexa a que as crenças de Édipo referem de um modo secundário. A solução nesse estágio é apenas local, embora o problema da estrutura de crença e pensamento seja em si mesmo um problema difícil. Não obstante isso, se há outras motivações para a adoção dos perfis ontológicos, então a solução acima para o enigma de Frege sobre as crenças ganharia em importância. Ela não seria uma mera solução ad hoc, mas uma que mostraria uma unidade interna sob um certo modo de ver o mundo. Este é o caso. Há outras pressões para o reconhecimento dos perfis ontológicos e seu papel crucial. Eu proponho discutir algumas delas rapidamente nesta seção do artigo.

1. Identidade contingente. Considere a alegação feita pelo proferimento do enunciado precedente de “identidade”:

(2) O rei de Tebas anterior a Édipo era o mesmo que o pai de Édipo.

Se (2) é uma alegação, i.é., um registro informativo, ele diz algo que de início não é reconhecido como verdadeiro. Nós podemos estar pensando no rei de Tebas que precedeu Édipo, e nós podemos estar pensando no pai de Édipo. Nós podemos brincar com a ideia de que eles podem ser o mesmo e examinar esta ideia sem tomar (2) por verdadeira. Entretanto, se pensar no

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pai de Édipo é pensar em um indivíduo infinitamente dotado de propriedades por completo, por assim dizer, então, se a igualdade em questão é a identidade genuína, seria factível ver a infinita verdade de (2). Parece, então, que quando nós pensamos (2) nós pensamos primariamente no perfil finito o rei de Tebas que precedeu Édipo, e apenas derivativamente, no indivíduo infinitamente dotado de propriedades que de algum modo envolve este perfil. E nós, também, do mesmo modo pensamos primariamente o perfil o pai de Édipo e secundariamente, com o fundo de nossa mente, por assim dizer, pensamos naquele misterioso objeto que subjaz atrás de seus perfis. Grosseiramente, então, o que a verdade da proposição expressa pela sentença (2) importa é a verdade de que os dois perfis mencionados pertencem, de modo apropriado, ao objeto infinitamente dotado de propriedades que é referido apenas de modo secundário.

O precedente provê a racional e a correção para a descrição de Quine da situação:

Efetivamente os enunciados de identidade que são verdadeiros e não vazios (i.é., contingentes) consistem de (i.é., são expressos por sentenças compostas de) termos singulares diferentes que referem (secundariamente, eu acrescentaria) a mesma coisa.1

Claro, não é a presença física de diferentes termos singulares que importa. A informatividade do enunciado consiste em equacionar dois diferentes itens para o pensamento – mesmo se as duas ocorrências do termo singular sejam fisicamente indistinguíveis – exceto na posição espaço-temporal. Enunciados (ou proposições) são unidades de informação: então, um enunciado não-vazio é toto coelo diferente de um que seja vazio.

A análise ontológica precedente da proposição (2) é muito semelhante a de Frege. A diferença está em que os nossos perfis ontológicos não são exatamente os seus sentidos individuais. O ponto que eu estou enfatizando é que mesmo que a sentença (2) esteja em oratio recta, a análise ontológica da proposição que ela

1 W. V. O. Quine, Word and Object (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1960), p. 117.

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expressa a toma em oratio obliqua. A sentença (2) está em oratio recta apenas porque ela está subordinada a um “eu penso” implícito¥. O comentário no parágrafo precedente foi precisamente a discussão desse “eu penso”. Agora, uma vez que se perceba que a oratio recta é apenas um caso especial de oratio obliqua, nós ganhamos tanto a unidade das duas construções quanto aceitamos o impacto de nosso embaraço copernicano.

Em suma, por conseguinte, a perplexidade da informatividade que se encontra em enunciados sobre identidades contingentes é simplesmente o resultado do caráter implícito da obliquidade da oratio recta. Uma vez que esta obliquidade seja explicitada, então, nós podemos ver que nós estamos lidando primariamente com perfis ontológicos e secundariamente com objetos infinitamente dotados de propriedades. Percebe-se também que a assim chamada identidade contingente não é a estrita ou identidade genuína.

2. O “é” de composição. Considere:(6) A bola de gude azul na caixa é idêntica à peça de vidro azul na caixa.

Um pouco de reflexão revela que a bola de gude, com a qual Johnny brinca e o vidro com o qual ele brinca ao mesmo tempo, em um ato de brincar perceptualmente indistinguível, são realmente entidades diferentes. Isto é, eles não são idênticos genuinamente, no sentido fundamental de identidade em que a identidade é caracterizada pela Lei de Leibniz. Ao menos por uma coisa, a bola de gude pode ser destruída ao ser derretida em uma chama muito quente, enquanto que o vidro permanece incólume exceto por perder sua forma. Alguns filósofos aceitam que a bola de gude e a peça de vidro são genuinamente entidades diferentes. Mas, outros estão inclinados, segundo uma certa tradição aristotélica, a tratar o vidro como particular e o resto como

¥ N. T.: Esta frase certamente está errada. Ela deveria dizer que a sentença (2) está em “oratio obliqua”.

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propriedades: ser uma bola de gude, ser usada em jogos por Johnny, etc.

Em outras situações, contudo, alguns filósofos estão mais inclinados a distinguir o indivíduo que é a peça de vidro, seja esférica ou não, de outros indivíduos. Considere, por exemplo:

(7) A peça de vidro que é a bola de gude azul de Johnny era no ano passado a menor estátua de Sócrates.

Neste caso, a menor estátua de Sócrates do ano passado parece ser não apenas uma propriedade de uma peça de vidro, mas um particular legítimo. Ela tem certamente uma grande independência em relação a, e de algum modo mais estabilidade do que, a peça de vidro mesma. De fato (de acordo com a história que eu estou recontando), seis meses atrás aquela estátua perdeu um braço, que foi inteiramente estilhaçado ao cair no chão; os cacos de vidro foram perdidos e outro braço, feito de um vidro diferente, foi anexado à estátua que, em todos os momentos, permaneceu a menor estátua de Sócrates. A estátua perdeu outras partes sucessivamente e, finalmente, somente neste ano a menor estátua de Sócrates e o vidro que é a bola de gude de Johnny foram separados completamente um do outro. Por causa dessa interessante história, alguns filósofos falam da sentença (7) como tendo o “é” (“era”) de composição ou de consistência. Esta é uma boa terminologia até um certo ponto. Ela sugere uma concepção de acordo com a qual a menor estátua de Sócrates do ano passado é um particular mais importante ou básico do que a peça de vidro na qual ela está incorporada. Pois, claramente, a relação consistir de e sua conversa compor não são simétricas. A peça de vidro compôs por um momento no ano passado a menor estátua de Sócrates, e a estátua consistia da peça de vidro, mas não vice-versa.1

1 David Wiggins em sua bela e estimulante monografia Identity and Spatio-temporal Continuity (Oxford: Basil Blackwell, 1967), fala do “é” constitutivo que aparece em sentenças como 'John Doe é uma certa coleção de células' e 'O Cornish Riviera Express é uma certa coleção de vagões e locomotiva'. Eu suponho que a relação de constituição que ele tem em mente é assimétrica. Eu aceito as razões de Wiggins para distinguir o “é” de composição do “é” de identidade. Elas depreendem-se de sua aderência direta a lei de Leibniz como caracterizando

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Presumivelmente, as duas entidades, a menor estátua de Sócrates do ano passado e a peça de vidro que é a bola de gude de Johnny não estão relacionadas apenas nesta relação assimétrica agora discutida, mas elas são elas mesmas entidades infinitas, isto é, entidades que possuem uma infinidade de propriedades, algumas das quais são ocasionalmente conhecidas por nós. Então, estes dois particulares relacionados por composição não são perfis ontológicos tal como estes foram caracterizados na Parte I acima. Estas duas entidades que estão relacionadas por composição parecem-me misteriosas e instáveis. Isto é assim, novamente, por causa de seu caráter inexaurível, de tal modo que contextos de crença e de pensamento terão que quebrá-los em seus próprios perfis ontológicos. Entretanto, é esclarecedor demorar-se neles independentemente de como eles são afetados pelo pensamento.

Ambas, a peça de vidro que compunha o ano passado a menor estátua de Sócrates e a estátua ela mesma, são objetos materiais? A peça de vidro parece ser claramente um objeto físico, material. Por outro lado, a nossa inclinação primária a pensar que a estátua também é um objeto material tem que ser testada, uma vez que nós assumimos que ela não é genuinamente idêntica com o material que a compõe. Uma vez que esta distinção é feita parece que se retirou o aspecto material da estátua. A estátua parece ser uma estrutura geral que pode ser incorporada em diferentes materiais. Seguramente, que se quer distinguir a estátua do mero padrão geométrico abstrato que é também de certo modo parte dela, e esta distinção pode ser feita, entre outras coisas, em se insistindo que a estátua, como um particular, tem que ter uma incorporação, enquanto que a sua forma geométrica é, entretanto, uma entidade abstrata cuja incorporação não é crucial, ou não crucial do mesmo modo. Então, pode-se dizer que a estátua é um objeto material na medida em que ela somente pode existir em seu presente pedaço

identidade.

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de vidro ou em algum outro material. Mas, dizer isto é dizer que ela é material em um sentido derivado com respeito ao modo em que o vidro que a compõe é material. Não há dificuldade nenhuma aí. Os problemas estão na especificação da diferença entre o modo como várias coisas são materiais, e o modo como a estátua difere da forma geométrica, etc.. Até que isso seja feito, nós temos algum mistério acerca das entidades que entram na relação de composição.

Entidades relacionadas por composição são instáveis, eu disse. Eu queria dizer que nós temos que distinguir outras entidades em composição. Obviamente, o inteiro objeto ordinário que é o compósito da convergência da menor estátua de Sócrates do ano passado e da peça de vidro que era a bola de gude azul de Johnny não é a mera composição desses dois particulares. O mesmo princípio que levou à “descoberta” de que estavam escondidas naquele objeto duas entidades relacionadas por composição leva a “descobertas” similares. Considere, por exemplo, as seguintes outras verdades sobre aquele objeto:

(8) A menor estátua de Sócrates do ano passado era (o mesmo que) o último presente de Paul para Mary.

(9) A peça de vidro que era a bola de gude azul de Johnny é (o mesmo que) o brinquedo que Peter comprou dois anos atrás;

(10) A menor estátua de Sócrates do ano passado era (o mesmo que) o objeto no canto esquerdo da escrivaninha de Johnny.

Considere-se (8). O último presente de Paul para Mary também tem uma história própria, primeiro foi a menor estátua de Sócrates, depois foi uma estátua quebrada e emendada; mais tarde, ele não era mais a menor estátua de Sócrates (porque este ano uma menor foi moldada); por uma série de alterações ele se tornou um peso de papel na forma de um elefante, apenas em parte composto de vidro. Nós temos, então, o importante

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particular o último presente de Paul para Mary preservado na existência através de uma variegada carreira devida à profunda afeição de Mary pelo recém falecido Paul. Considere (9) agora. O brinquedo que Peter comprou dois anos atrás foi primeiro a bola de gude azul de Johnny, em uma peça indivísivel no começo, depois uma bola de gude emendada com goma de colar. Então, ele quebrou outra vez e parte dele foi substituída por um pedaço de vidro verde, e lentamente ele tornou-se um gude tricolor, feito de diferentes vidros; e agora ele é uma esfera grosseira que Johnny aprecia como o brinquedo que Peter comprou dois anos atrás. Examine-se (10). O objeto no canto esquerdo da escrivaninha de Johnny também teve uma história fascinante, especialmente porque em alguns momentos ele pareceu ter desaparecido no ar para logo depois retornar novamente, seguidamente sob uma forma e tamanho muito diferentes. Dois anos atrás ele era a famosa bola de gude azul de Johnny. Uma noite, seis meses depois, Mary derrubou a bola de gude, e plá, o objeto no canto esquerdo de escrivaninha de Johnny desapareceu. Mary colocou o gude de volta na escrivaninha, desse modo criando a reconvergência do gude azul e do objeto no canto esquerdo da escrivaninha de Johnny. E assim por diante.

Isto é espantoso. A bola de gude e a menor estátua de Sócrates, mencionadas na sentença (7), eram ambas compostas, em diferentes tempos, do mesmo pedaço de vidro. Mas, a estátua compunha o último presente de Paul para Mary, ou era o inverso?

Pareceria que o particular mais abstrato é composto do menos abstrato. Se isto é conjugado com o princípio aristotélico de que a realidade básica é concreta, nós podemos ser levados facilmente a conceber que os particulares últimos e fundamentais são pedaços de uma matéria prima aristotélica, ou substratos simples.

3. O “é” teorético. Há outros tipos de casos que têm sido

utilizados para motivar a introdução do sentido de composição do

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verbo “ser”. Há proposições que conectam teorias científicas (e propostas) com a experiência ordinária. Um exemplo é:

(11) Água é H2O, isto é, uma peça de água é um complexo de moléculas feitas de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.

Isto é seguidamente tomado como uma redução filosófica da água a hidrogênio e oxigênio, onde pela palavra “filosófica” se quer expressar que em algum sentido o que foi reduzido não existe, ou realmente não existe. Não há tempo ou espaço para discutir esta tese ontológica importante. O meu ponto aqui é simplesmente que alguns filósofos que não acreditam em eliminação ontológica por meio de proposições que correlacionam, ou equacionam, entidades observáveis com entidades não-observáveis, ou científicas, vêem enunciados como (11) sob uma ótica diferente. Tais filósofos são em geral empiristas e querem defender a primazia da experiência. Eles interpretam (11) como estabelecendo uma convergência de porções de água com complexos de moléculas H2O. Esta convergência é mais ou menos como a convergência entre a menor estátua de Sócrates do ano passado e a peça de vidro que era a bola de gude azul de Johnny. Novamente, a relação de composição que “é” expressa em (11) é assimétrica. Água é composta de, ou consiste de, moléculas de H2O, mas não o inverso. Aqui a assimetria em questão é suportada pelas enormes considerações científicas que estabelecem uma dependência e uma ordem entre observação e teoria. Isto torna a assimetria mais restritiva, e nós não somos imediatamente autorizados a generalizar a racional para este “é” de consistência de modo a gerar imediatamente uma enorme multiplicidade de entidades relacionadas por composição, como nós fizemos acima com a bola de gude azul de Johnny e suas entidades convergentes.

O resultado é, em qualquer caso, significativo. Na interpretação precedente de (11), nós quebramos uma porção ordinária de água em dois particulares: a água ordinária

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observável e sua análise química. O último pode ser ela mesma quebrada na estrutura química e um sistema de partículas atômicas, e o último pode também ser analisado ainda mais. O resultado é que cada objeto ordinário do mundo é realmente uma hierarquia de estruturas de entidades teoréticas ou científicas.

4. Entidades-sob-descrição. Grande parte da literatura recente acerca de tópicos que envolvem alguma opacidade referencial, como explanação e causalidade, e acerca de tópicos que não a envolvem, como obrigação8a, está cheia de tentativas no que parece ser ou uma limitação da Lei de Leibniz ou um tipo de intermediário Fregeano. Eu estou falando sobre muitas discussões em que os autores falam de muitas entidades misteriosas como objetos sob descrições ou objetos qua isto ou aquilo. Seguidamente os filósofos que introduzem as expressões em itálico não param para examinar que tipo de criaturas eles estão considerando. A discussão corre do seguinte modo: de Jones sob uma certa descrição D algum F é verdadeiro, o qual não é verdadeiro de Jones sob outra descrição D'. Então, Jones-sob-D é diferente de Jones-sob-D'. logo, Jones-sob-D não é idêntico a Jones simpliciter. Mais, muitos desses filósofos continuam e dizem que não há realmente Jones-sob-D, mas apenas Jones – então, parece que no final das contas é Jones simpliciter, e não Jones-sob-D, que é F. Obviamente, nem toda discussão de entidades sob descrições é problemática. Alguns autores usam esta terminologia como um modo rápido de referir a propriedades de indivíduos que estão envolvidos em certas conexões. Seguidamente, contudo, os autores estão pressionando em direção aos perfis (guises); mas, nesses dias de fisicalismo, behaviorismo, e nominalismo, a maioria das pessoas não está disposta a ser apanhada vendendo outras entidades que não objetos materiais, ou partículas micro-físicas. O meu ponto aqui é simplesmente

8a Para uma discussão detalhada da extensionalidade da obrigação, veja-se H.N. Castañeda, Intentions and Actions, and Philosophical Foundations of Institutions (Dordrecht: Reidel Publishing Co. 1975), 7, §15-16 e 8, §5.

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este. Nós não podemos manter uma conversa literal sobre objetos-sob-descrições e produzir iluminação filosófica – a menos que nós percebamos que objetos-sob-descrição são, primeiro, não objetos físicos ordinários, mas, segundo, são ou sentidos (em uma concepção fregeana intermediária) ou perfis (em uma ontologia realista) ou algo desse tipo. Eu devo avisar que o reconhecimento de entidades abstratas e de, por assim dizer, entidades micro-metafísicas como perfis, não precisa ser temido. Deve-se ser humilde o bastante para deixar o mundo ter todas as entidades que nossa experiência encontra nele.

Em suma, perfis ontológicos como constituintes dos objetos ordinários são um modo em que nós podemos converter a conversa literal provisória de objetos-sob-descrição e de quase-objetos. Considere, por exemplo, as seguintes proposições causais, que são verdadeiras de Richard Nixon-sob-a-descrição 'Vice-presidente dos Estados Unidos em 1955':

(12) As atividades do Comitê para a reeleição do Presidente causaram (que) o Vice-presidente de 1955 dos Estados Unidos se tornasse (o mesmo que) o Presidente dos Estados Unidos em 1973.

(13) As atividades do Comitê para a reeleição do Presidente não causaram (que) o Vice-presidente dos Estados Unidos em 1955 se tornasse (o mesmo que) o Vice-presidente dos Estados Unidos em 1955.

Aqui nós temos evidências de que se pode interpretar, em uníssono com a abordagem copernicana da Parte I, como se estabelecendo que o Vice-presidente dos Estados Unidos de 1955 não é literalmente ou genuinamente idêntico ao Presidente dos Estados Unidos em 1973. Em geral, a causalidade, parece, é uma conexão envolvendo perfis ontológicos. Em particular, em tornar-se o F, o F é um perfil.

5. Referência demonstrativa. Uma das mais importantes áreas de discurso em que se faz necessário falar de qua-

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indivíduos é a referência demonstrativa. Sob esta rubrica estão inclusos os tempos verbais e a distinção entre as assim chamadas três pessoas gramaticais. Habitualmente estes mecanismos não são chamados descritivos, de tal modo que não se lê que a referência em primeira pessoa é referência sob a descrição da primeira pessoa.

A irredutibilidade dos demonstrativos ou referências dêiticas (indexical) a referências não-dêiticas torna claro que tais referências são primariamente referências a perfis. Eu não vou discutir isto aqui, pois eu já tratei desse assunto em detalhe em outro lugar.1 Eu quero mencionar apenas que nossas próprias auto-referências são fundamentalmente referências em primeira pessoa. Nós pensamos a nós mesmos antes de tudo como um Eu e derivadamente como tendo as propriedades de nossos corpos. Sem considerar o quanto eu possa perder minha conexão com o mundo e meu lugar histórico nele, por esquecer meu passado e onde e o que eu sou, eu ainda me tenho como o sujeito que eu quero identificar com respeito a seu passado, presente e futuro, o sujeito cuja situação cósmica eu quero reencontrar. Normalmente, obviamente, eu sei o suficiente sobre minha situação cósmica para seguir minhas rotinas diárias e gozar ou dar curso às minhas relações habituais. Mas, a estrutura de crenças e conhecimento deve ser compreendida como uma rede de crenças sobre a convergência de alguns de meus perfis em primeira pessoa e alguns de meus perfis em terceira pessoa. Para mim, eu sou primariamente e incontornavelmente o que aparece para mim em primeira pessoa – isto é, uma penca de perfis em primeira pessoa, convergentes entre si e convergentes com o perfil nuclear e focal: eu-agora-aqui. Nos artigos mencionados na nota 5, eu argumentei que a compreensão da referência dêitica, a compreensão da

1 Minha discussão geral da referência indexadora aparece em “Indicators and Quasi-Indicators”. Os outros artigos mencionados na nota 5 acima lidam com a referência de primeira-pessoa, sua irredutibilidade e as peculiaridades de nossa atribuição dela a outros. “On the Phenomeno-logic of the I” é um artigo introdutório. Uma introdução complementar para “Indicators and Quasi-Indicators” é “Omniscience and Indexical Reference”, The Journal of Philosophy, 64 (1967): 203-210, no qual eu discuto o indicador 'agora' e o quase-indicador 'então'.

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estrutura do mundo no qual nós nos encontramos, e a compreensão de nosso lugar cósmico e nossas relações com outros egos (selves) ou pessoas, requer o reconhecimento de que propriedades ordinárias envolvem uma dimensão perspéctica. Desde que os indivíduos são completamente determinados por suas propriedades, aqueles artigos contêm a concepção de que indivíduos ordinários são, como indivíduos que aparecem para nós no mesmo mundo, realmente um sistema de indivíduos perspécticos. Estes são o que eu nesse artigo estou chamando perfis ontológicos. Então, os indivíduos qua egos, qua pessoas das quais se fala, qua objetos de referência demonstrativa, ou qua objetos especificados por descrição, dêitica ou não, daqueles artigos, são todos perfis ontológicos ou conjuntos de perfis ontológicos.

6. Raciocínio prático. O pensamento contemplativo requer que nós distingamos perfis ontológicos, incluindo nossos perfis em primeira pessoa. Mas, alguém poderia pensar que a ciência nos diz tudo o que há para saber sobre o mundo, e uma vez que a ciência não tem lugar para referência dêitica e ela não respeita o nosso lugar central no mundo como nós o experimentamos, pode-se ter a ilusão de que perfis não são necessários. Bem, talvez eles não sejam necessários para um grande segmento da atividade científica, mas eles são necessários se nós quisermos conectar teorias científicas com nossa experiência que suporta essas teorias. Entretanto, eu não planejo argumentar em favor disto, que é um tema muito vasto, aqui.

Nesse ponto eu apenas insisto que a nossa compreensão completa do mundo requer que nós compreendamos o nosso papel no mundo como agentes. Eu quero dizer o nosso papel como agentes racionais no sentido fundamental em que nós possuímos a capacidade de raciocínio prático. Esta é a capacidade que nós temos de adotar intenções, tomar decisões e de agir a partir da contemplação de nossas intenções. Esta última,

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dimensão crucial de nosso raciocínio prático, é um pensamento causal cuja causalidade é interna: nosso raciocínio é sistematicamente capacitado a deslanchar nossos mecanismos de ação de tal modo a estar ao menos em prontidão para realizar a ação que é pensada naquele mesmo raciocínio. Agora, eu não posso entrar nesse tópico aqui.1 O meu ponto é que este raciocínio é um raciocínio em primeira pessoa. Ele é um pensamento relacionado ao perfil ontológico nuclear de primeira pessoa, eu-aqui-agora. Isto significa dizer, o meu pensamento em algum tempo t, de alguma intenção ou proposição “eu devo A”, tem o poder de causalidade interna. Intenções são justamente conteúdos de pensamentos em primeira pessoa.

7. A unificação ontológica dos perfis. Em suma, há várias motivações para se distinguir diferentes componentes ou elementos ontológicos, que são particulares, nos objetos ordinários que nós cremos compor o mundo. Há outras motivações além dessas que eu discuti brevemente. Por exemplo, há segmentos (slices) temporais de objetos. Em qualquer caso, a minha alegação geral é que os componentes, ou particulares simples, introduzidos por qualquer de tais motivações são melhor concebidos como os perfis ontológicos discutidos na Parte I acima. O meu argumento é que todas estas fragmentações dos particulares ordinários do mundo são na base fundadas em considerações epistemológicas. Isto é, todas essas fragmentações dependem da introdução de atitudes proposicionais, com sua característica finitude. Portanto, nós temos apenas um e o mesmo

1 Para o esboço da estrutura meta-psicológica da conexão entre pensamento prático e ação, veja-se “Purpose, Action, and Ought: An Integrated Theory of Action”, apresentado no Oberlin Philosophy Colloquium e a ser publicado em um volume contendo os trabalhos lá apresentados. Artigos importantes nesse tópico, lidando com juízos de dever, em vez de intenções, são: David Falk, “'Ought' and 'Motivation'” e Wilfrid Sellars, “Obligation and Motivation”, ambos em W. Sellars e J. Hospers, eds., Readings in Ethical Theory (New York, Appleton-Century-Crifts, Inc., 1st ed. 1952, 492-510 e 511-517, respectivamente. Para o perfil de primeira pessoa envolvido em intenções veja-se H.N. Castañeda, “Intention and the Structure of Intending” Journal of Philosophy, 68 (1971): 453-466, and “Intentions and Intending”, American Philosophy Quarterly 9 (1972): 139-149. Veja-se o livro mencionado na nota 8a, capts. 10 e 6, e as seções ali indicadas.

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fenômeno subjacente: a finitude das operações mentais requer a fragmentação de um suposto particular massivamente dotado de propriedades em particulares menores que a mente pode manipular. Em todos os casos de fragmentação nós estamos lidando, portanto, com um aspecto de nosso embaraço epistemológico copernicano. Isto é óbvio no caso das identidades contingentes, como nós já apontamos. É também latente no caso de identidades teoréticas:

Considere-se novamente a dualidade da proposição mista científica:

(11) Água é H2O.

Os filósofos que alegam que a sentença (11) tem, não um “é” literal de redução e eliminação, mas um “é” de correspondência teorética, estão, ao alegar isso, enfatizando o contraste entre observação e teoria. Mas, este contraste é o contraste entre o que um homem pode saber (crer, pensar) como experimentador e o que ele pode saber (crer, pensar) como teórico científico. Os aspectos interessantes de (11) são tanto a sua implícita subordinação ao verbo de conhecimento (crença, ou pensamento), na base, uma subordinação a um “eu penso”, e, por causa disso, a sua implícita (embora parcial) adoção de uma concepção copernicana, antes que uma ptolomaica, de objetos.

Eu proponho que nós não paremos na metade do caminho, mas avancemos até o completo reconhecimento tanto de nosso embaraço copernicano e, por causa dele, da primazia de nossa referência a perfis ontológicos, os quais são, portanto, os átomos ontológicos de individualidade. A iluminação ontológica (se alguma) a ser provida pela proposta de fragmentação parcial dos objetos ordinários massivos do mundo será produzida apenas na contemplação da abordagem unitária completa do mundo da perspectiva copernicana.

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IV A família da igualdadeNós discutimos os perfis ontológicos, e advogamos que eles

tanto são as unidades fundamentais, ao menos na medida do que concerne a mentes (finitas), quanto que eles compõem os objetos ordinários do mundo infinitamente dotados de propriedades. Isto implica uma sugestão e um problema. Implicitamente há a sugestão de que a identidade genuína é trivial e no caso dos perfis ontológicos é trivialmente apreensível mesmo para mentes finitas. Esta sugestão conforma-se ao fato crucial de que a identidade genuína é exaurida pela reflexividade. O problema é: Como os perfis ontológicos constituem os misteriosos objetos infinitamente dotados de propriedades? Parte da resposta a esta questão consiste na formulação das leis fundamentais da constituição dos objetos ordinários. E outra parte da resposta consiste no contraste entre esta relação de constituição e cada uma das outras relações da família Igualdade (Sameness), isto é, relações que são naturalmente expressas pela locução 'é o mesmo que'.

A família Igualdade inclui pelo menos os seguintes membros:

I. Identidade;II. Conflação;III. Consubstanciação;IV. Consociação;V. Transubstanciação.

1. Identidade é caracterizada pela lei de Leibniz e pela absoluta e total reflexidade.

2. Conflação, que eu represento por '*C', para indicar por pré-fixação do asterisco ao 'C' que ela vale prior,

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independentemente da contingência do mundo, é ilustrada pelos exemplos seguintes:

(14) *C (o homem que pesa 120 kg e ama ouvir óperas de Mozart, o homem que ama ouvir óperas de Mozart e pesa 120 kg).

(15) *C (o livro que ninguém lê, o livro que ou tem capa vermelha e ninguém lê ou que ninguém lê).

Perfis conflacionados são, por assim dizer, logicamente equivalentes, isto é, são caracterizados por propriedades logicamente equivalentes. Há uma área de indeterminação que será deixada aqui não resolvida, a saber: o que precisamente conta como equivalência lógica. Seguramente, equivalência lógica é determinada por leis proposicionais e quantificacionais, mas eu vou deixar em aberto o que são exatamente essas leis, por exemplo, intuicionistas ou clássicas. Leis de modalidades devem ser incluídas. Mas, nós talvez tenhamos que decidir traçar uma linha precisa um tanto arbitrária para separar, além da modalidade, o lógico do não-lógico. Isto pode resultar em termos de reconhecer outras relações não-contingentes, ao lado da identidade e da conflação, no interior da família Igualdade, na qual todos os membros apenas podem ser predicados externamente dos perfis.

3. Consubstanciação. Esta é a relação contingente primária e eu a represento com 'C*'. Com efeito, ao lado da contingência da consociação, toda a contingência do mundo em qualquer tempo determinado está concentrada na consubstanciação. Esta é, grosseiramente, o estar junto de perfis existentes que constituem os objetos ordinários infinitamente dotados de propriedades. Etimologicamente, a palavra é excelente: dois perfis são consubstanciados se e somente se eles formam a mesma substância. Consubstanciação é a relação que une a estrela da manhã e a estrela da tarde. É a relação que une uma porção de água e uma certa estrutura de moléculas de hidrogênio e de

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oxigênio. Em geral, quaisquer dois indivíduos que, como costuma-se dizer, são contingentemente idênticos num dado tempo, são consubstanciados. Posto de modo inexato, todas as assim chamadas identidades contingentes que se aplicam sincronicamente, antes que diacronicamente, são ou casos de consubstanciação ou casos de consociação.

Perfis não necessitam estar consubstanciados com nada para manter a sua posição como objetos de crença e como possíveis membros do mundo. Claramente, o rei da França de 1973 tem permanecido, e irá permanecer, distante não consubstanciado. Um perfil existe se e somente se ele está consubstanciado com outro perfil. Mas, se é assim, ele é consubstanciado consigo mesmo. Logo, existência é simplesmente auto-consubstanciação – e existência é comunidade.

As leis fundamentais da consubstanciação são: (1) reflexividade em seu domínio; (2) simetria; (3) transitividade; (4) consistência; (5) fechamento lógico, e (6) fechamento nomológico. As primeiras três leis são claras. Mas, note-se como a consubstanciação, sendo simétrica, difere da relação de composição ou consistência que nós mencionamos na Parte II, § 2. A quarta lei diz que os perfis caracterizados por conjuntos logicamente inconsistentes de propriedades não podem existir, i. é., não podem ser consubstanciados. A quinta lei é uma versão do terceiro excluído que requer que um perfil se consubstancie com um perfil caracterizado pela propriedade P ou pela propriedade não-P. A sexta lei é o esquema para a consubstanciação de um perfil com perfis caracterizados por certas propriedades envolvidas em leis da natureza de um certo modo. Detalhes destas leis aparecem em “Thinking and the Structure of the World”.

O grande problema é, naturalmente, o de prover uma abordagem da estrutura interna dos perfis ontológicos. Parte do problema é elucidar suas relações com conjuntos de propriedades que os caracterizam. Novamente, isto é enfrentado em “Thinking

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and the Structure of the World” e a visão lá exposta é depois defendida em “Individuation and Non-Identity: A New Look”. Resumidamente, a idéia é que o conjunto de propriedades que caracterizam um perfil é o cerne (core) desse perfil. Um desenvolvimento importante disto é a formulação de uma teoria da predicação externa, de acordo com a qual proposições singulares contingentes da forma “a é F” são analisadas como proposições sobre consubstanciação. Seja a[F] o que eu chamo de protracção-F de a, isto é, o perfil cujo conjunto cerne de propriedades é a união do conjunto cerne de a e F. Então, a proposição contingente expressa por uma sentença da forma

(16) a é F

tem a seguinte forma lógica profunda, i. é., ontológica:(16a) C* (a,a[F]).

Os fatos empíricos de percepção são da forma (16a). Ver que a caneta na minha mão é amarela é justamente ver que C*(a caneta na minha mão, a caneta na minha mão [amarelo]). A consubstanciação é perceptível.

4. Consociação. Esta é uma relação empírica, mas ela é secundária. Eu a represento com 'C**', para indicar sua natureza secundária contingente a posteriori. Ela ocorre entre perfis que uma mente colocou junto como formando um indivíduo maior, seguidamente em desconsiderando a sua existência. Logo, ela se dá entre Hamlet, o príncipe da Dinamarca e o amado de Ofélia. Mas, ela também se dá entre certos perfis psicológicos e perfis pensados na consubstanciação de tais perfis psicológicos. Por exemplo, ela se dá entre Dom Quixote e o personagem favorito de Cervantes, e entre o quadrado redondo e o objeto impossível discutido por Meinong e atacado por Russell.

A Consociação é claramente contingente e qualquer um pode unir quaisquer dois objetos não-existentes com ela. No caso de indivíduos impossíveis, a consociação é o único contato contingente que eles podem ter com o mundo empírico, por um

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lado, e com outros perfis, por outro. Consociação está na fundação ontológica da literatura. Mas, a mesma consociação relaciona tanto pensamentos de perfis existentes como de não-existentes. A relação da mente com indivíduos é indiferente à existência.

5. Transubstanciação. Esta é a relação que seguidamente é expressa em alegações sobre identidades contingentes diacrônicas. Trata-se do que seguidamente é chamado de “gen-identity”. Enquanto a consubstanciação junta sujeitos (subjects) infinitamente dotados de propriedades, a transubstanciação junta os seguimentos (slices) integrando-os em enormes entidades espaço-temporais misteriosas com uma história.

V Epílogo

Há muitos problemas em aberto para completar o esboço de nosso sistema ontológico copernicano. Eu explanei como um objeto infinitamente dotado de propriedades é composto de perfis tomados conjuntamente por conflação, consubstanciação e transubstanciação. Mas, há mais por dizer. As leis de consubstanciação tornam cada um dos objetos infinitamente dotados de propriedades uma semi-treliça (semi-lattice) de consubstanciação cujo ápice são infinitos indivíduos leibnizianos que espelham o inteiro universo. Mas, para isto o leitor deve ir ao “Thinking and the Structure of the World”.1

Eu não vou formular aqui um modelo formal conjuntista para o precedente sistema de perfis e objetos infinitamente dotados de propriedades. A razão principal é que o modelo conjuntista é apenas isso: um modelo, e o que eu quero é precisamente elucidar os próprios conceitos que o modelo toma como primitivos. Entre esses estão os conceitos de indivíduo e

1 Cf. nota 1, acima.

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mundo possível. Como filósofos nós temos que ir mais fundo, ou mais além da estrutura modelada, para elucidação dos primitivos. O que eu discuti nas páginas precedentes é uma tentativa de tal elucidação. Em vez de fazer uma assunção cega de um dado domínio de indivíduos, eu argumentei que os perfis ontológicos são as “partículas” micro-ontológicas que nós encontramos em nosso mundo. Em vez de postular uma função conjuntista que toma como valores indivíduos infinitamente dotados de propriedades e perfis como argumentos, eu providenciei uma abordagem intencional de como os últimos entram, não como argumentos para valores-de-função, mas como constituintes dos primeiros. Eu detalhei, depois, as relações que unem os perfis conjuntamente em um objeto ordinário do mundo. Em vez de postular misteriosos mundos possíveis, eu tomo mundos possíveis como ou conjuntos maximais consistentes de indivíduos infinitamente dotados de propriedades ou como conjuntos maximais consistentes de estados de coisas (ou proposições). E assim por diante.

A modelagem conjuntista é de muito valor para estabelecer consistência e técnica para testar implicação. Mas, ela não pode fazer o trabalho ontológico. Felizmente é fácil construir um modelo para as principais distinções desse escrito.

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9. Além de ser e não-ser*

Roderick M. Chisholm

“Beyond being and nonbeing”, em R. M Chisholm, Brentano and Meinong Studies, Amsterdam, Rodopi, 1982, pp. 53-67.]

“... das Universum in der Gesamtheit des Wirklichen noch lange nicht erschöpf ist.”

Meinong

Meinong escreveu: “há objetos dos quais é verdade que não há tais objetos”1. Mas, ele estava bem consciente de que este enunciado de sua doutrina do Aussersein era desnecessariamente paradoxal. Outros enunciados são: “O não real” não é “um mero nada” e “Os objetos enquanto tais ... estão 'além de ser e não-ser'”2. Talvez o mais claro enunciado foi proposto pelo discípulo

* Eu quero expressar minhas dívidas para com o último Dr. Rudolf Kindinger. Certas partes desse artigo foram adaptadas de meu “Jenseits von Sein und Nichtsein”, Dichtung und Deutung: Gedächtisschrift für Hans M. Wolff, editado por Karl S. Guthke, Bern-Munich: Francke Verlag 1961.

1 A. Meinong, “Über Gegenstandstheorie”, Gesammelte Abhandlungen, Leipzig: Johann Ambrosius Barth 1929, Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- und Verlagsanstalt 1971, vol. II, p. 490. Esta obra apareceu primeiramente em 1904, na coletânea Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Leipzig: Johann Ambrosius Barth, editada por Meinong. Ela foi traduzida como “The theory of Objects”, em Realism and the Background of Phenomenology, Glencoe, III., The Free Press 1960, editda por R. M. Chisholm; a citação acima aparece na página 83.

2 Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp. 486, 494; tradução inglesa em Realism and the Background of Phenomenology, pp. 79, 86.

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de Meinong, Ernst Mally: “Sosein is independent of Sein.”1. Nós poderíamos parafrasear o enunciado de Mally dizendo: “Um objeto pode ter um conjunto de caracteristicas quer ele exista ou não, quer ele tenha ou não qualquer outro tipo de ser”.

Supõe-se comumente que esta doutrina do Aussersein é absurda e que sejam quais forem as razões que Meinong possa ter tido para afirmá-la, elas foram demolidas pela teoria das descrições de Russell. Eu acredito, contudo, que esta suposição é falsa. Eu vou tentar aqui expor a doutrina em sua forma mais extrema e, então, considerarei o que pode ser dito em seu favor.

I.

As teses fundamentais da teoria dos objetos de Meinong são (1) que há objetos que não existem e (2) que objetos tais que não há tais objetos são, mesmo assim, constituídos de algum ou outro modo e, desse modo, podem ser feitos sujeitos de predicações verdadeiras. A segunda destas duas teses é a doutrina do Aussersein. A primeira tese, como Meinong diz, é familiar à metafísica tradicional. Mas, a metafísica tradicional, ele acrescenta, tinha “um pré-juízo em favor do atual”2. Embora ela tivesse uma consideração própria para “objetos ideais”, aquelas coisas que meramente subsistem (bestehen) e não existem, ela negligenciou aquelas coisas que absolutamente não têm ser. Por isso, a necessidade de uma teoria dos objetos mais abrangente.

Entre os princípios característicos da teoria dos objetos estão os seguintes.

Objetos, alguns existem e outros não existem. Assim, cavalos são incluídos entre os objetos que existem, e unicórnios e montanhas de ouro são incluídos entre os objetos que não

1 “Untersuchungen zur Gegenstandstheorie des Messens”, em Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, pp. 51-120; a citação pode ser encontrada na página 127.

2 Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p.485; tradução inglesa, p. 78.

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existem.

Dos objetos que não existem, de alguns se pode dizer ainda que são, ou que subsistem, e de outros não se pode dizer que são absolutamente.

Assim, se existência é pensada como implicando um locus espaço-temporal, então, há certos objetos ideais que não existem. Entre esses estão as propriedades ou atributos e os objetos da matemática, assim como os estados de coisas (que Meinong denomina “Objektive”). Desde que há cavalos, por exemplo, há também o ser de cavalos, o ser do ser de cavalos, o não-ser do não-ser de cavalos, e o ser do não-ser do não ser-ser de cavalos. E, desde que não há unicórnios, há, portanto, o não-ser de unicórnios, o ser do não-ser de unicórnios, o não-ser do ser de unicórnios, e o não-ser do não-ser de unicórnios.1

Porém, embora de todo objeto se possa corretamente dizer ser alguma coisa ou outra, não é o caso que de todo objeto se pode corretamente dizer ser.2 Unicórnios, montanhas de ouro, e quadrados redondos não podem ser ditos ser absolutamente. Tudo, porém, é um objeto, quer exista ou não, ou tenha qualquer outro tipo de ser, e mesmo também quer ele seja pensável ou não. (O que é impensável, afinal, ao menos tem a propriedade de ser impensável.) E todo objeto, claramente, tem as características que ele tem, quer ele tenha ou não qualquer tipo de ser. Esta última é a proposição que Mally expressou dizendo que o Sosein de um objeto é independente de seu Sein.

A teoria do Aussersein, por conseguinte, deve ser distinguida tanto do platonismo, no sentido em que este termo é atualmente interpretado, como do reismo, ou concretismo, de Brentano e Kotarbinski. Pois, do platonista pode-se dizer que ele

1 Veja Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp. 486-8; tradução inglesa, pp. 79-80. O enunciado mais completo da teoria de Meinong dos estados de coisas, ou Objektive, pode ser encontrada no Capítulo III (“Das Objektiv”) de Über Annahmen, Segunda Edição, Leipzig: Joann Ambrosius Barth 1910.

2 “Jeder Gegenstand ist etwas, aber nicht jedes Etwas ist”. Mally, op. cit., p. 126.

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raciocina assim: “(P) Certos objetos que não existem tem certas propriedades; mas (Q) um objeto tem proprieades se e somente se ele é real; logo, (R) há objetos reais que não existem.” O reista, por outro lado, raciocina de não-R e Q para não-P; isto é, ele toma como suas premissas a segunda premissa de Platão e a contraditória da conclusão de Platão e, então, deriva a contraditória da primeira premissa de Platão. Mas, Meinong, como Platão e diferentemente dos reistas, aceita P tanto quanto R; diferentemente tanto de Platão como dos reistas, ele rejeita Q; e, então, ele deriva a conclusão que é inaceitável tanto para o platonista como para o reista, a saber, “(S) A totalidade dos objetos extende-se para muito além dos confins daquilo que é meramente real.”1

Uma vez que esta conclusão é aceita, um número de distinções interessantes pode ser feito. Estas parecem ser peculiares à teoria dos objetos de Meinong.

Assim, objetos podem ser subdivididos naqueles que são possíveis e naqueles que são impossíveis. (Nós devemos notar, incidentalmente, que dizer de um objeto que ele é sosmente um objeto possível não é dizer dele que ele é apenas possivelmente um objeto. Pois, objetos possíveis, tanto quanto objetos impossíveis, são objetos.) Objetos possíveis, diferentemente de objetos impossíveis, têm Soseins não-contraditórios. Montanhas de outro, por exemplo, embora não tenham nenhum tipo de ser, podem ser objetos possíveis; pois, o Sosein de uma montanha de ouro necessariamente não obstrui seu Sein. Mas, algumas montanhas de ouro são objetos impossíveis – por exemplo, aquelas que são tanto douradas quanto não-douradas, e aquelas que são tanto redondas quanto quadradas. Um objeto impossível é, pois, um objeto com um Sosein contraditório – um Sosein que

1 Compare com a citação no início desse artigo; a citação é da obra póstuma de Meinong Zur Grundlegung der allgemeinen Wettheorie, Graz: Leuscher & Lubensky 1923, editada por Ernst Mally, p. 158; Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt 1968, vol. III, p. 638.

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obstrui o Sein de seu objeto.1

Soseins, também, são objetos e, por conseguinte, todo Sosein tem um Sosein. Um objeto que não é ele mesmo um Sosein é um objeto impossível se ele tem um Sosein contraditório. Pode um Sosein, também, ser um objeto impossível? A resposta de Mally para esta questão é um parágrafo notável que pode ser assim parafraseado:

“Como qualquer outro objeto, um Sosein é um objeto impossível se ele tem um Sosein que obstrui seu Sein; isto é, um Sosein é um objeto impossível se o seu próprio Sosein é contraditório. Um Sosein teria um Sosein contraditório se ele tivesse a propriedade de ser o Sosein de um objeto que não tem aquele Sosein. A circularidade de um quadrado possível é, assim, um Sosein impossível. Pois,a circularidade de um quadrado possível tem ela mesma um Sosein contraditório: aquele de ser a circularidade de algo que não é circular. Mas, um Sosein impossível não é o mesmo que um Sosein contraditório. A circularidade de um quadrado possível deve ser distinguida da circularidade (e quadracidade) de um quadrado redondo; a primeira é um Sosein impossível, mas a última não é. A circularidade de um quadrado redondo é um Sosein contraditório, mas não um Sosein impossível. O que é impossível é que haja um objeto que é ambos redondo e quadrado. Mas, não é impossível que um quadrado redondo seja ambos redondo e quadrado. Mais ainda, é necessário que um quadrado redondo seja ambos redondo e quadrado.”2

Objetos podem ser também classificados como sendo ou

1 Uma vez que nós apreendemos a natureza de um objeto impossível, de acordo com Meinong, nós nos tornamos cientes da “necessidade de seu não-ser”. Meinong não usa a expressão “objeto necessário”, mas ele diz, com respeito aos objetos abstratos, que uma vez que nós apreendemos sua natureza, nós nos tornamos cientes “da necessidade de seu ser”. Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, Leipzig: R. Voitländer Verlag, 1970, p. 76.

2 Parafraseado de Ernst Mally, op. cit., pp. 128-9. Eu traduzi “Viereck” por “quadrado”, adicionei itálico, e escrevi “quadrado possível” em dois lugares onde Mally escreveu apenas “Viereck”.

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completos ou incompletos. Ali onde um objeto impossível é um objeto com um Sosein que viola a lei de não-contradição, um objeto incompleto é um que tem um Sosein que viola a lei do terceiro excluído. Dos quadrados redondos que foram considerados acima, não pode ser nem verdadeiro nem falso dizer de um dos considerados por Você que ele é maior do que um dos que foram considerados por mim.1

De todos os objetos, o mais pobremente favorecido parece ser o que Meinong denominou objetos defectivos. Com efeito, eles são tão pouco favorecidos que Meinong parece estar em dúvida se eles são objetos afinal. Se eu desejo que o seu desejo seja realizado, então, o objeto de meu desejo é qualquer coisa que por ventura você deseje. E, se, sem eu saber, seu desejo é que meu desejo se realize, então, o objeto de seu desejo é o que eu por ventura deseje. Mas, este objeto, nas circunstâncias imaginadas, pareceria ter muito pouco Sosein para além de ser nosso objeto mútuo. Meinong percebeu, incidentalmente, que este conceito de objeto defectivo poderia ser usado para esclarecer os paradoxos lógicos.2

É um erro, portanto, expressar a doutrina do Aussersein dizendo que, de acordo com Meinong, tais objetos como montanhas de ouro e quadrados redondos têm um tipo de ser diferente de existência e subsistência. O ponto de Meinong é que eles não têm absolutamente nenhum tipo de ser. Eles são “objetos apátridas”, nem mesmo encontráveis no céu de Platão.3

1 Sobre objetos imcompletos, veja o texto de Meinong Über Möglichkeit und Wahrscheinlichkeit, Leipzig: Johann Ambrosius Barth 1915, pp. 179-80, e também Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, pp. 118-123.

2 Meinong discute objetos defectivos em Über emotionale Präsentation, Vienna: Alfred Hölder, 1917, pp. 10-26; Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- und Verlagsanstalt 1971, vol. III, pp. 294-310.

3 Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, seção I (“Heimatlose Gegenstände”), p. 8 ss. Em Introduction to Mathematical Philosophy, London: George Allen & Unwin, Ltd. 1919, Russell disse que, de acordo com Meinong, tais objetos como a montanha de ouro e o quadrado redondo “devbem ter algum tipo de ser lógico” (p. 169). Mas, em “On Denoting” e em seus escritos anteriores sobre Meinong, ele não comete este erro.

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Por que assumir, então, que um objeto possa ter um Sosein e ainda assim nenhum Sein – que um objeto possa ter um conjunto de características e ainda assim absolutamente nenhum tipo de ser?

II.

O caso imediato para esta doutrina do Aussersein está no fato que há muitas verdade que parecem, ao menos, pertencer a objetos que são tais que não há tais objetos. É razoável assumir que este caso imediato poderia ser enfraquecido se nós mostrássemos, com respeito a estas verdades, que elas não precisam ser construídas como pertencendo a tais objetos apátridas. É razoável também assumir, eu penso, que o caso de Meinong seria fortalecido caso nós fôssemos incapazes de mostrar, com respeito a qualquer dessas verdades, que ela não precisa ser construída como pertencendo a tais objetos.

Há pelo menos cinco grupos de tais verdades que tem sido isolados na literatura recente. (Os grupos não são mutuamente exclusivos e eles podem não ser exaustivos.) Pois, pareceria haver ao menos cinco diferentes tipos de coisas que nós podemos dizer de um objeto que não existe ou não tem nenhum outro tipo de ser: (1) nós podemos dizer que o objeto não existe; (2) nós podemos dizer que o objeto é sem implicar ou que ele existe ou que ele não existe; (3) nós podemos notar que expressões em nossa linguagem são usadas para referir a este objeto; (4) nós podemos dizer que o objeto está envolvido em mito ou ficção e que, sendo assim envolvido, ele está ricamente dotado de atributos; ou (5) nós podemos dizer que a atitude intencional de alguém está dirigida para tal objeto.

O melhor caso de Meinong, eu penso, está no grupo final – com aquelas verdades que parecem pertencer aos objetos inexistentes de nossas atitudes intencionais. Mas, consideremos

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todos eles sob uma luz tão favorável quanto seja possível.

(1) Exemplos do primeiro grupo são “Coisas que são tanto redondas como quadradas não existem” e “Unicórnios não existem”. Podemos parafrasear estes de tal modo que possa ser mostrado que eles não envolvem nenhuma referência a objetos inexistentes? O primeiro exemplo apresenta menos problemas do que o segundo, mas, é dubitável que nós possamos parafraseá-los de um modo que satisfaria Meinong.

A paráfrase óbvia de “Coisas que são tanto redondas como quadradas não existem” seria “Tudo o que existe é tal que não é redondo e quadrado”. Mas, Meinong iria dizer, onde o termo-sujeito da paráfrase pode ser tomado como referindo a qualquer item da realidade que se escolha, o termo-sujeito do original pretende referir a “o que não existe e absolutamente não é, por conseguinte, um item da realidade”.1

A paráfrase óbvia de “Unicórnios não existem” seria “Tudo o que existe é tal que ele não é um unicórnio”. Mas, isto, Meinong poderia dizer, deixa-nos com uma referência a objetos inexistentes. Dizer de uma coisa que ela não é um unicórnio é dizer dela que ela não é idêntica com nenhum unicórnio é relacioná-la com objetos que não existem.

Por isso, nós poderíamos querer substituir “um unicórnio” em “Tudo o que existe é tal que ele não é um unicórnio”, por certos predicados. Mas, que predicados, e como nós vamos dicidir? Vamos supor (para simplificar um pouco) que nós estamos satisfeitos com “mono-cornado” e “equino”. Então, nós parafraseamos “Unicórnios não existem” como “Tudo o que existe é tal que ele não é mono-cornado e equino”. Meinong poderia agora repetir a objeção que ele fez contra nossa tentativa

1 Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, p. 38. As observações de Meinong estão direcionadas para a distinção entre “Fantasmas não existem (Gespenster existieren nicht)” e “Nenhuma coisa real é fantasma (Kein Wirkliches ist Gespenst)”. Compare-se com Richard L. Cartwright, “Negative Existentials”, Journal of Philosophy, v. LVII (1960), pp. 629-639.

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de parafrasear o primeiro exemplo acima. E ele poderia adicionar ainda uma outra.

Como nós escolhemos os predicados particulares “mono-cornado” e “equino”? Nós os escolhemos, Meinong diria, porque nós conhecemos, a priori, que todos e somente unicórnios são ambos mono-cornados e equinos. E este enunciado a priori - “Todos e somente unicórnios são equinos e mono-cornados” - é um em que, outra vez, nós temos um termo-sujeito que refere, ou pretende referir, a objetos inexistentes. Este enunciado, contudo, pertence ao segundo grupo e não ao primeiro.

(2) Meinong escreve: “se alguém julga que uma máquina perpetuum mobile não existe, então, é claro que o objeto cuja existência ele está negando deve ter certas propriedades e também certas propriedades características. De outro modo, o juízo que o objeto não existe nem teria sentido nem justificação”.1 Aplicando uma observação similar ao nosso exemplo anterior, nós podemos dizer, do juízo que unicórnios não existem, que ele pressupõe que unicórnios são tanto mono-cornados como equinos. “Unicórnios são tanto mono-cornados como equinos” pode ser também expresso como “Toda coisa existente é tal que ser ela fosse um unicórnio, então, ela seria equina e mono-cornada”. Mas, a presença de “um unicórnio” na última sentença, como nós observamos, permite a Meinong dizer que a sentença sim nos diz algo sobre unicórnios – a saber, que se qualquer coisa existente fosse idêntica com qualquer um deles, então, esta coisa seria tanto equina como mono-cornada.2

Estas verdades sobre objetos inexistentes que são pressupostas, sempre que nós dizemos de algo que ele não existe,

1 Über Annahmen, p. 79.2 Confundindo uso e menção, pode-se tentar transpor “Unicórnios são mono-cornados e

equinos” em um enunciado que menciona apenas palavras. (Um tal enunciado como “A palavra ‘unicórnio’ refere a coisas que são mono-cornados e equinos” pertence ao nosso terceiro grupo, abaixo).

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são a priori, de acordo com Meinong. Muito do que nós conhecemos sobre objetos, diz ele, é portanto “daseinfrei”.1

Há alguns enunciados a priori, de acordo com Meinong, em que objetos inexistentes são isolados por meio de descrições definidas. “Não apenas é a muito noticiada montanha de ouro feita de ouro, mas o quadrado redondo é tão seguramente redondo quanto ele é quadrado.”2 O que diremos de “A montanha de ouro é de ouro”? De acordo com a teoria das descrições de Russell, algumas sentenças da forma “A coisa que é F é G” podem ser parafraseadas em sentenças da seguinte forma: “Existe um x tal que x é F e x é G”, e para todo (existente) y, se y é F, então, y é idêntico a x.” Portanto, se nós parafraseamos “A montanha de ouro é de ouro” desse modo, nós teríamos: “Existe um x tal que x é de ouro e x é uma montanha, e x é de ouro, e, para todo (existente) y, se y é tanto de ouro como uma montanha, então, y é idêntico a x. A sentença resultante pareceria referi apenas a objetos que existem. Mas, é ela uma paráfrase adequada?

“A montanha de ouro é de ouro”, de acordo com Meinong, é verdadeira. Mas, a paráfrase de Russell implica “Existe um x tal que x é tanto de ouro como uma montanha” e é portanto falsa. Como pode um falso enunciado ser uma paráfrase adequada de

1 Uma parte considerável da obra de Meinong Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, é dedicada a “Daseinsfreiheit” e “Apriorität”.

2 Tradução inglesa da Teoria dos objetos, página 82; Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp. 490. Russell disse que se “O quadrado redondo é redondo” é verdadeiro, então, “O quadrado redondo existente é existente” é também verdadeiro; e o último enunciado, argumentou ele, implica que existe um quadrado redondo; veja sua resenha de Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Mind, vol. XIV (1905), pp. 530-538, esp. p. 533. Meinong respondeu que “existente” não é um predicado, não um “Soseinsbestimmung”, e portanto ele deveria ter dito que “O quadrado redondo existente é existente” é falso. Infelizmente, contudo, ele tentou esboçar uma distinção entre “é existente” e “existe” e então disse que embora o quandrado redondo existente é existente ele não existe. Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, pp. 16-19. Revisando a última obra, Russell replicou: “Eu devo confessar que eu não vejo nenhuma diferença entre existir e ser existente; e além disso eu não tenho mais nada a dizer”, Mind, vol. XVI (1907), pp. 436-439. Meinong também tem dificuldades com “O quadrado redondo possível é possível”; veja-se Über Möglichkeit und Wahrscheinlichkeit, pp. 277-289. O que ele deveria ter dito, penso eu, é que “possível” não é um predicado, não uma “Soseinsbestimmung”, e portanto que “O quadrado redondo possível é possível” é falso.

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um verdadeiro?

Russell, naturalmente, diria que Meinong está errado em insistir que “A montanha de ouro é de ouro” é verdadeira. Mas, como nós iremos decidir que tem razão sem já responder a questão que está envolvida?

(3) Enunciados semânticos podem sugerir outro tipo de referência a objetos que não existem ou a objetos tais que não há tais objetos. Por exemplo, “A palavra 'Einhorn' em Alemão designa unicórnios”; ou “A palavra 'Einhorn' em Alemão pretende designar unicórnios”; ou “A palavra 'Einhorn' em Alemão é usada ostensivamente para designar unicórnios”. E analogamente para a palavra “unicórnio” e seu uso em Português. Mas, Meinong diria – corretamente, me parece – que enunciados semânticos são realmente uma subclasse de enunciados intencionais, enunciados sobre atitudes psicológicas e seus objetos, e por conseguinte que eles pertencem ao nosso quinto grupo abaixo. Dizer que “Einhorn” é usada para designar unicórnios, de acordo com Meinong, é dizer que “Einhorn” é usada para expressar os pensamentos e outras atitudes intencionais que tomam unicórnios como seu objeto.1

(4) Enunciados sobre objetos de ficção e mitologia são algumas vezes tomados como casos paradigmáticos de enunciados sobre objetos inexistentes. Exemplos são “Sam Weller foi servo de Mr. Pickwick” e “Sam Weller era um personagem fictício que realmente não existiu”. Mas, se eu não estou enganado, estes pertencem aos nossos enunciados intencionais, abaixo. Pois, o primeiro exemplo, como ele ordinariamente seria usado, pertence a um dos objetos de uma certa história (se nós tomamos “história” no sentido mais largo da palavra). Mas, dizer de uma coisa que ela é um objeto de uma certa história é dizer ou que alguém contou uma história sobre aquela coisa ou que alguém pensou acerca de uma história sobre aquela coisa. E dizer

1 Veja Über Annahmen, 2.ed., p. 26.

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que alguém contou uma história, ou que alguém pensou numa história, é fazer um enunciado intencional. Quando nós dizemos “Sam Weller era um personagem fictício que realmente não existiu”, nós não estamos apenas fazendo um enunciado intencional, sobre um objeto da história de alguém, mas, nós estamos também fazendo um enunciado que pertence ao nosso primeiro grupo acima – um enunciado dizendo que o objeto não existe. Enunciados sobre objetos de mitologia são análogos, exceto que pode ser necessário adicionar, novamente intencionalmente, que a história em questão é uma em que alguém acredita.

(5) O melhor caso de Meinong, então, parece estar com aqueles enunciados intencionais legítimos que parecem pertencer a objetos que não existem. Eu vou distinguir quatro tipos de tais enunciados.

O primeiro tipo é exemplificado por

(a) João teme um fantasma.

Aqui, nós parecemos ter uma afirmação direta de uma relação entre João e um objeto inexistente. Pertence à essência de uma atitude intencional, de acordo com Meinong, que ela pode, pois, “ter” um objeto “mesmo que este objeto não exista”.1 Poderíamos parafrasear nosso enunciado (a) de modo tal que o resultado pudesser ser lido como não envolvendo essa aparente referência a um objeto inexistente? Tanto quanto eu sou capaz de ver, nós não podemos. (Verdade é que, obviamente, filósofos seguidamente inventam novos termos e então professam ser capazes de expressar o que é dito em tais enunciados como “João teme um fantasma” em seu próprio vocabulário técnico. Mas, quando eles tentam nos comunicar o que seus termos técnicos supostamente significam, então, eles, também, referem a objetos inexistentes tais como unicórnios).

1 Veja Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p. 383.

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Diz-se, às vezes, que Meinong não compreendia apropriadamente o uso de palavras em contextos intencionais – ou, em termos de nosso exemplo, que ele não compreendia apropriadamente o uso das expressões “um fantasma” em sentenças como “João teme um fantasma”. Ele erradamente supunha, sugere-se, que a palavra “fantasma” tem um uso referencial em “João teme um fantasma”. Mas, qual é realmente o erro que Meinong cometia? Ele não cometeu o erro de supor que a palavra “fantasma” em “João teme um fantasma” é usada para referir a algo que existe ou a algo que é real. Teria esta palavra um certo uso não-referencial nessa sentença e Meinong não se deu conta desse uso? Mas, qual é este uso não-referencial – diferente daquele de ser usado para nos dizer que João teme um fantasma? Eu conheço quatro sugestões positivas, mas todas elas parecem deixar Meinong imperturbado. Nesse sentido, foi dito (i) que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, é usada, não para descrever o objeto que João teme, mas, apenas para contribuir para a descrição do próprio João. Esta foi essencialmente a sugestão de Brentano.1 Mas, realmente como “fantasma” contribui aqui para a descrição de João? Ela não está sendo usada para nos dizer que João é um fantasma, ou que o pensamento de João é um fantasma, pois estas coisas são falsas, mas “João teme um fantasma”, nós podemos supor, é verdadeira. Seguramente, o único modo pelo qual a palavra contrigui aqui para a descrição de João é em nos dizendo que objeto é que ele teme. Foi sugerido também (ii) que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, funciona apenas como parte de um expressão mais longa, “teme um fantasma”, e que o seu uso em tal contexto não tem nenhuma conexão com o uso que ela tem em sentenças como “Existe um fantasma”. (Compare-se o uso de “unicorn” em “The Emperor decorated his tunic ornately”.) Que esta sugestão é falsa, contudo, pode ser visto em notando-se que “João teme um fantasma” e “O temor de João está dirigido

1 Veja Franz Brentano, The True and the Evident, London: Routledge Kegan Paul, 1966, Eng. ed. Por R. M. Chisholm, pp. 68-69.

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apenas para coisas que realmente existem” implicam juntas “Há um fantasma”. Também foi sugerido (iii) que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, é usada para referir ao que em outros usos constituiria o sentido ou conotação de “fantasma”.1 Nesse caso, “João teme um fantasma” seria construída como nos dizendo que há uma certa relação entre João e um certo conjunto de atributos ou propriedades. Mas, que atributos ou propriedades, e que relação? O próprio João pode nos lembrar nesse ponto que o que ele teme é um certo concretum e não um conjunto de atributos ou propriedades. Foi sugerido (iv) que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, está sendo usada no “modo material” para referir a si mesma.2 Mas, João, obviamente, pode não temer a palavra “fantasma”. Para dizer o que sobre João e a palavra “fantasma”, então, “João teme um fantasma” estaria sendo usada?

O segundo tipo de enunciados intencionais é exemplificado por

(b) A montanha que eu estou pensando é de ouro.

Para prover um contexto para um tal enunciado, nós imaginamos um jogo em que os participantes têm que contemplar uma montanha, tal como se poderia encontrar em Atlântida, e então são levados a descrever a montanha que eles contemplaram. O exemplo de Meinong, “A montanha de ouro é de ouro”, do nosso segundo tipo acima, bem pode nos deixar mudos, mas seguramente “A montanha que eu estou pensando é de ouro” pode expressar uma proposição verdadeira.

A teoria das descrições de Russell não nos proporciona um

1 Esta interpretação pode ser sugerida pelo texto de Frege “Über Sinn und Bedeutung”, Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, vol. C (1892), pp. 25-50; traduzido como “On Sense and Nomination”, em Readings in Philosophical Analysis, New York: Appleton-Century-Crofts, Inc. 1949, editado por H. Feigl e W. Sellars, pp. 85-102.

2 Carnap uma vez sugeriu que “Charles pensa (assere, acredita, admira-se com) A”, onde “A” é pensado como sendo a abreviação de alguma sentença, poderia ser traduzida como “Charles pensa ‘A’”; The Logical Syntax of Language, New York: Harcourt, Brace and Company 1937, p. 248.

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modo de parafrasear o enunciado, pois, outra vez, o procedimento de Russell nos proporcionaria um enunciado que é falso (“Existe um x tal que x é uma montanha que eu estou pensando e x é de ouro, e para todo y, se y é uma montanha que eu estou pensando, então, y é idêntica a x”).1

Os participantes do jogo que nós imaginamos bem podem comparar montanhas: “A montanha que você está pensando difere em aspectos importantes da montanha que eu estou pensando”. Nós também podemos dizer que o objeto inexistente da atitude intencional de alguém é idêntico ao objeto inexistente da atitude intencional de outro? Eu penso que nós podemos seguidamente assumir que isto é o caso. Tais enunciados de identidade nos proporcionam um terceiro exemplo de um enunciado intencional meinonguiano. Pois, nós podemos ser agnósticos e ainda assim afirmar

(c) Todos os maometanos adoram o mesmo Deus.

Mas, eu penso que este exemplo é mais problemático do que os outros. Se o enunciado em questão fosse verdadeiro, nós poderíamos dizer de dois maometanos quaisquers que o Deus que

1 Em “On Denoting” Russell disse que “a objeção principal” aos objetos não existentes de Meinong “é que tais objetos, reconhecidamente, são aptos a infringir a lei de contradição”; veja B. Russell, Logic and Knowledge, London: George Allen and Unwin 1956, p. 45. Pois, o quadrado redondo em que eu estou pensando pode um objeto que tanto redondo quanto não-redondo. A réplica de Meinong foi que a lei de contradição (na forma, “Para qualquer atributo F, não existe nada que exemplifique F e também não exemplifique F”) aplica-se somente ao que é real ou possível; dificilmente alguém poderia esperar que ela se aplicasse a objetos impossíveis tais como o quadrado redondo. Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, p. 16. Pode-se também argumentar que certos objetos possíveis pareceriam infringir outras leis lógicas. Suponha que Jones, que erradamente acredita que F. D. R. foi a assassinado, nos diz que o homem em que ele está pensando agora é o assassino de F. D. R.; do enunciado verdadeiro de Jones segue-se que o homem em que ele está pensando assassinou F. D. R.; mas, para qualquer x e y, se x assassinou y, então, y foi assassinado por x; então, F. D. R. foi assassinado – e por um objeto não existente! Veja James Mish’alani, “Though and Object”, The Philosophical Review, vol. LXXI (1962), pp. 185-201. A réplica de Meinong poderia ser: o enunciado “Para qualquer x e y, se x assassinou y, então, y foi assassinado por x” é verdadeiro apenas se nossas variáveis variam sobre objetos que existem; e, mais genericamente, do fato que é uma parte do Sosein de um objeto não existente x que x está em uma certa relação R com um objeto existente y, não se segue que é uma parte do Sosein de y nem que y está relacionado pela relação conversa de R a x nem que x relacione-se por R a y.

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é adorado por um é idêntico ao adorado pelo outro. Mas, realmente nós podemos dizer isso, se, como nós também estamos inclinados a dizer, “O Deus que é adorado pelos maometanos não existe”? Nós não deveríamos dizer, no máximo, que para dois maometanos quaisquer, x e y, o Deus que x adora é muito parecido com o Deus que y adora?1 (E, em vez de dizer “O Deus que é adorado pelos maometanos não existe”, nós poderíamos nos expressar mais precisamente em dizendo “Todo maometano é tal que o Deus que ele adora não existe”.) Mas, para os propósitos de Meinong, obviamente, é suficiente dizer que um objeto inexistente é “muito parecido” a outro.

Se nós nunca podemos estar seguros de que o objeto inexistente para o qual as atitudes intencionais de alguém estão direcionadas é idêntico ao objeto inexistente para o qual as atitudes intencionais de outro estão direcionadas, nós podemos estar seguros, ocasionalmente, de que o objeto inexistente para o qual as atitudes intencionais de alguém estão direcionadas é idêntico a outro objeto inexistente para o qual as atitudes intencionais desse mesmo alguém estão direcionadas. Assim, nós podemos dizer de um crente obsessivo:

(d) A coisa que ele mais teme é a mesma coisa que ele mais ama.

Qualquer teoria adequada das emoções pareceria implicar

1 P. T. Geach cita este exemplo: “Hob pensa que uma bruxa adoeceu a égua de Bob, e Nob suspeita que ela (a mesma bruxa) matou a porca de Cob”; em “Intentional Identity”, Journal of Philosophy, vol. LXIV (1967), pp. 627-632. Há uma certa ambiguidade neste exemplo, pois ele pode ser tomado como implicando seja que o objeto do pensamento de Hob é idêntico ao objeto da suspeita de Nob, ou apenas que Nob pensa que ele é. Tomando-o no primeiro sentido, como nós poderíamos alguma vez pensar que ele é verdadeiro? Hob pode assegurar-nos que ele pensa existir uma e uma única bruxa que adeceu a égua de Bob e que ele também pensa que esta bruxa é FGH, e ... (onde ‘F’, ‘G’ e ‘H’ podem ser pensadas como abreviações de certos predicados); e Nob pode assegurar-nos que ele, também, pensa existir uma e uma única bruxa que adoeceu a égua de Bob e que ele também pensa que esta bruxa é FGH, e ..., e também, talvez, que ele, Nob, pensa que esta bruxa é a mesma que Hob acredita ter adoecido a égua de Bob. Mas, nosso enunciado desses fatos não implica que o objeto do pensamento de Bob é idêntico ao objeto da suspeita de Nob. E, dado que não existe nenhuma bruxa, é difícil pensar alguma coisa que nós poderíamos aprender de Hob e Nob que iria implicar isso.

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que um homem pode ter a qualquer tempo particular uma grande variedade de atitudes e sentimentos direcionados para um único objeto – mesmo que o objeto não exista.1

O último exemplo nos lembra do que Meinong observou em uma conexão um pouco diferente - “nós também podemos contar o que não existe”.2 Pois, um homem pode ser capaz de dizer verazmente “Eu temo exatamente três pessoas” e todas as três pessoas serem objetos que não existem.

Tais enunciados intencionais, então, são os que proporcionam os melhores casos possíveis para a doutrina do Aussersein de Meinong. Eu penso que deve ser concedido a Meinong que não há nenhum modo de parafrasear qualquer um deles de tal modo que nós saberíamos tanto (i) que é adequado para a sentença que se pretende parafrasear, quanto (ii) que a paráfrase não contém termos referindo ostensivamente a objetos que não existem. Sem dúvida muitos filósofos estão pré-judicados contra a doutrina de Meinong por causa do fato da teoria das descrições de Russell, bem como pela teoria da quantificação no modo como ela é interpretada nos Principia Mathematica, não ser adequada aos enunciados com os quais Meinong está lidando. Mas, este fato, Meinong poderia dizer, não significa que os enunciados em questão são suspeitos. Apenas significa que tal lógica, tal como ela é geralmente interpretada, não é adequada aos fenômenos intencionais.

1 Pois a teoria de Meinong do valor está baseada nessa suposição; veja Zur Grundlegung der allgemeinen Werththeorie, Parte II (“Die Wert-erlebnisse”).

2 “The Theory of Objects”, tradução inglesa, p. 79; Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p. 487.

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10. Questões sobre a unidade da consciência

Roderick M Chisholm

“Questions about the unity of consciousness”, em Theorie der Subjektivität, hrsg. von K. Cramer, H. F. Fulda, R.-P. Horstmann e U. Pothast; Suhrkamp, 1990, pp. 95-101.

A conscienciosidade de um sujeito

Hume disse, no Tratado da Natureza Humana, que “quando eu entro mais intimamente naquilo que eu chamo eu-mesmo, eu sempre tropeço numa outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer”.1 Este não foi um começo muito bom, pois o que Hume disse deve ser corrigido em muitos aspectos.

(1) Ele não encontra amor ou ódio, dor ou prazer; tais entidades são objetos abstratos – propriedades ou atributos. Se ele não achasse que ele amava ou odiava, que ele tinha dor ou prazer, então ele acharia ao menos que algo amava ou odiava e que alguma coisa tinha dor ou prazer. Como disse Leibniz, de um exemplo diferente, “o que chega a nossa mente é antes o concretum concebido como sábio, quente, brilhante, do que abstractions ou qualidades tais como sabedoria, calor, luz, etc.,

1 Tratado da Natureza Humana, livro I, parte IV, sec. VI, “Da identidade pessoal”.

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que são muito mais difíceis de apreender.”1 Nós podemos ser tentados a colocar as coisas tal como Russell o fez uma vez: “... o dado quando nós somos conscientes de experimentar um objeto O é o fato 'algo está familiarizado com O'. O sujeito aparece aqui, não em sua capacidade individual, mas como uma 'variável aparente'; assim tal fato pode ser um dado a despeito da incapacidade de familiarização com o sujeito”.2 Se nós paramos aqui, nós diríamos que o que Hume encontrou foi alguém amando, alguém odiando, alguém com dor, alguém com prazer. Esse modo de colocar as coisas abre a questão de que a experiência de Hume envolvia vários sujeitos.

(2) Elizabeth Anscombe perguntou: “Como, sempre, alguém pode justificar a suposição, se é uma suposição, que existe apenas um pensar que é esse pensar desse pensamento que eu estou pensando, apenas um pensador? Como eu sei que 'eu' não é dez pensadores pensando em uníssono?”3 Não poderia haver, por exemplo, uma pessoa que está fazendo o que eu chamo o meu ver e uma segunda pessoa que está fazendo o que eu chamo o meu ouvir? Lembremos o que Brentano disse sobre a unidade da consciência no seu Psicologia de um ponto de vista empírico:

Quando alguém pensa sobre e deseja algo, ou quando ele pensa sobre vários objetos ao mesmo tempo, ele está consciente não apenas de diferentes atividades, mas também de sua simultaneidade. Quando alguém ouve uma melodia ele reconhece que tem a apresentação de uma nota como ocorrendo agora e de outras notas como tendo já ocorrido. Quando uma pessoa é consciente de ver e ouvir, ela é também consciente que está fazendo ambos ao mesmo tempo. Agora, se nós colocamos a percepção de ver em uma coisa e a percepção de ouvir em outra, em quais dessas coisas nós encontramos a percepção de sua simultaneidade? obviamente, em nenhuma delas. Claro é, antes, que a cognição interna de uma e a cognição interna de outra deve

1 Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, livro II, cap. XXIII, sec. I.2 “Sobre a natureza da familiaridade”, The Monist, v. 24 (1914): 435-453, p. 441.3 “A primeira pessoa”, p. 58.

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pertencer à mesma unidade real.1

“Como eu sei que 'eu' não é dez pensadores pensando em uníssono?” O fato da unidade da consciência nos dá uma peça de informação que é relevante: se houvesse dez pensadores pensando em uníssono, então eu saberia, com respeito a cada um desses pensadores que ele estava pensando. Um desses pensadores, pelo menos, teria um acesso privilegiado aos outros.

(3) Agora vamos considerar um outro princípio ao qual Brentano apela.

É certo que nenhum de nós nem nenhum outro ser que apreende algo com evidência direta como um fato pode ter alguma coisa que não a si mesmo como objeto de seu conhecimento. (...) Para clarificar isso deixe-me enfatizar que não é suficiente para o conhecimento fatual direto que aquilo que é conhecido seja idêntico com o conhecedor. Nós devemos, portanto, conhecer que aquilo que é conhecido é idêntico como o conhecedor.2

De acordo com o primeiro ponto de Brentano, se houvesse dez pensadores “pensando em mim”, então eu saberia diretamente, com respeito a cada um deles, que ele estava pensando e eu também saberia o que ele estava pensando. E de acordo com o seu segundo ponto, se eu sei diretamente com respeito a algo, que ele está pensando, então eu sou esse algo. E isso é como eu sei, com respeito aos pensadores que eu encontro pensando em mim, que existe apenas um deles e que eu sou esse pensador.3

Portanto, há maneiras pelas quais a proposição de Hume deveria ser modificada.

Mas novos estudos em psicologia e fisiologia colocaram em questão a tese da unidade da consciência.

1 Psicologia de um ponto de vista empírico, p. 226.2 “Consciência sensorial e noética”, p. 6.3 Brentano conclui, por conseguinte, que a proposta de interpretação do cogito cartesiano de

Lichtenberg como “Algo pensa em mim” é uma “melhoria agravadora”.

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Consciência e o fenômeno do cérebro bipartidoA descoberta nos anos quarenta do século passado de certos

fenômenos cerebrais inesperados – fenômenos que resultam do corte da conexão entre os dois hemisférios do cérebro – levou alguns a colocar em questão a tese da unidade da consciência.1

No tratamento de certas desordens cerebrais, o órgão que conecta os hemisférios direito e esquerdo do cérebro é cortado.2 O resultado é que os dois hemisférios perdem a sua comunicação normal um com o outro. O assim chamado “fenômeno do cérebro bipartido” aparece quando um tal paciente é submetido a certos experimentos. Um tipo de experimento é esse. O paciente é submetido a certos estímulos sensíveis que afetam o hemisfério direito e a certos outros estímulos que afetam o hemisfério esquerdo. Isso é feito rapidamente de tal modo que cada um dos dois conjuntos de estímulos afeta apenas um hemisfério e não o outro. Assim, se os estímulos envolvidos são visuais, o experimento é realizado de tal modo a prevenir a possibilidade de movimentos dos olhos (assegurando assim que cada conjunto de estímulos atue apenas sobre um dos dois hemisférios). O resultado de tais estímulos são exemplos do assim chamado “fenômeno do cérebro bipartido”.

Vamos considerar um experimento visual típico.O paciente é colocado numa posição tal que normalmente

uma pessoa que está nessa posição veria ambos um anel e uma chave.3 Ela veria um anel em virtude da estimulação daquelas partes de seu olho esquerdo que afetam o hemisfério direito; e ela veria uma chave em virtude da estimulação daquelas partes do seu olho direito que afetam o hemisfério esquerdo. Mas o paciente, quando perguntado, relata que ele viu um anel e nega

1 Um sumário útil dos dados relevantes foi providenciado por Thomas Nagel, em Brain Bisection and the Unity of consciousness, que primeiramente apareceu em Synthese, v. XXII (1971), e foi re-impresso em John Perry (ed.), Personal Identity, University of California Press, 1975, pp. 227-245.

2 O órgão é chamado “corpus callosum” e a operação em questão uma “comissurotomia”.3 Comparar C. F. Marks: Commissurotomy Consciousness and Unity of Mind (Bradford Books,

1980).

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que ele viu uma chave. Logo, pareceria que ele estava no estado de consciência que seria normalmente produzido pelo efeito sobre o hemisfério direito (ver um anel) e que ele não estava no estado de consciência que seria normalmente produzido pelo efeito sobre o hemisfério esquerdo (ver uma chave). Ainda haveria outra evidência sugerindo que o sujeito sim vê uma chave e logo que o efeito sobre o hemisfério esquerdo é acompanhado pelo tipo de consciência que normalmente o acompanha. Por exemplo, quando perguntado se pode alcançar a chave que ele viu ele a apanha e não o anel.1 Pareceria, então, que quando o hemisfério direito faz o trabalho então o paciente tem uma consciência normal do objeto relevante. Mas quando o hemisfério esquerdo faz o trabalho, nenhuma consciência é relatada. E ainda assim pode haver comportamento conectado com o que seria normalmente associado com a consciência do objeto relevante.

Os três momentos do fenômeno pode agora ser resumidos assim:

(a) “Você vê um anel?”, “Sim”.(b) “Você vê uma chave?”, “Não”.(c) “Pegue a chave que você viu.” O paciente apanha a

chave.

O que não é esperado é a ocorrência concomitante desses três momentos.

O fenômeno pode ser interpretado de tal modo que eles sejam inconsistentes com a tese da unidade da consciência. Mas, eles não precisam ser tomados desse modo.

Vamos agora considerar os possíveis tipos de explanação.

1 “O que é iluminado para a metade direita do campo visual, ou sentido como não-visto pela mão direita, pode ser relatado verbalmente. O que é iluminado para a metade esquerda do campo ou sentido pela mão esquerda não pode ser relatado, embora se a palavra “chapéu” é iluminada para o esquerdo, a mão esquerda irá encontrar um chapéu num grupo de objetos ocultos se é dito para a pessoa para apanhar o que ela está vendo. Ao mesmo tempo ela irá insistir verbalmente que ela não via nada.” Nagel, em Perry, op. cit., p. 231.

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(I) Uma possível resposta seria que a tese da unidade da consciência é aqui falsificada. Em tal caso, nós deveríamos dizer do paciente que (i) ele vê um anel, (ii) ele vê uma chave, (iii) ele considera a questão de se ele vê ambos um anel e uma chave, e (iv) ele conclui que ele não vê ambos um anel e uma chave.

(II) A segunda possível resposta tem a ver com nossa interpretação do segundo momento do fenômeno – nossa interpretação do fato que o paciente diz que ele não vê uma chave. O problema, nós podemos dizer, tem a ver com um sistema defeituoso de resposta – com a inabilidade ou indisposição de relatar aquelas experiências conscientes que são condicionadas pelo hemisfério esquerdo. Esse modo de considerar o assunto é consistente com a tese da unidade da consciência. Muitos investigadores irão salientar que ela não é muito plausível. A questão é, contudo, se ela é menos plausível que suas alternativas.

(III) De acordo com a terceira hipótese, o paciente é consciente de ver um anel e alguém (algo) outro que não o paciente é consciente de ver uma chave. Esta hipótese é algumas vezes tomada como implicando que o paciente tem “duas mentes”.1 Pressupõe-se, aparentemente, que há uma distinção entre uma “mente” e uma “pessoa” – que a mente e não a pessoa é o sujeito de experiência. Mas qual razão existe para supor que em adição à pessoa e seu corpo há tal coisa como sua mente?

Uma interpretação alternativa dessa terceira hipótese seria dizer que existem duas pessoas compartilhando o mesmo corpo. (Esta possibilidade sugeriu para alguns que se o cérebro de alguém poderia ser propriamente e permanentemente bipartido, então alguém poderia “tornar-se duas pessoas”.) Há dois casos a

1 A interpretação “duas mentes” do fenômeno do cérebro bipartido é sugerida por R. Pucceti, em Brain Bisection and Personal Identity, British journal for the Philosophy of Science, v. 24 (1973), 330-355. Comparar com L. W. DeWitt, Consciousness, Mind and Self, mesmo jornal, v. 26 (1975), 41-47, e com B. Rose, The split brain concept, Scientific Forum, v. 12, 30-33. O último artigo é um panorama geral.

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serem distinguidos aqui. Nós podemos concluir que a segunda pessoa entra em cena apenas depois da operação. Ou nós podemos concluir que a segunda pessoa está lá nos casos normais – uma pessoa fazendo uma parte da percepção e a outra pessoa fazendo a outra.

Estaria essa interpretação multiplicando pessoas para além da necessidade?

(IV) De acordo com uma quarta hipótese, o paciente é consciente de ver um anel, enquanto o ver uma chave é objeto de consciência mas não objeto de nenhuma consciência do sujeito. Mas o que significa dizer que uma coisa x pode ser um objeto de consciência sem que exista uma coisa y tal que y é consciente de x?

(V) De acordo com a hipótese final, o paciente é consciente de ver um anel e não há nenhuma consciência de ver uma chave. Isto é inconsistente com aquela teoria filosófica que diz, de certos tipos de respostas ou certos tipos de fenômenos cerebrais, que tais fenômenos são sempre acompanhados por estados de consciência de um certo tipo. Ela pode ser tomada como confirmando uma abordagem “epifenomenalista” de estados de consciência – ou de certos estados de consciência. Isso significa dizer, ela pode ser tomada como confirmando a teoria de acordo com a qual tais estados sobrevêm sobre os estados fisiológicos sem que eles mesmos exerçam nenhum papel causal no comportamento. Pois, se a teoria é verdadeira, então o fato de que não há nenhuma consciência de ver uma chave não afeta o ajustamento do paciente à presença da chave.

Portanto, não é a segunda hipótese a que é a menos implausível? Se é assim, não existe nenhuma necessidade de rejeitar a tese da unidade da consciência.

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11. Apresentação (da Teoria do objeto de A. Meinong)

Jean-François Courtine

“Présentation” in A. Meinong, Théorie de l’objet et Présentation personnelle; trad. J.-F. Courtine et M. de Launay; Paris, J. Vrin, 1999. pp13-39)

(...)

II.

O ser tão pouco “é” quanto o nada. Mas, dão-se ambos. (M. Heidegger)

A história da problemática da objetalidade é longa e complexa, pois, em um sentido ela se abre por uma pista platônica, fechada logo depois de ter sido aberta: o Sofista pode bem ser considerado como o primeiro grande tratado de ontologia, depois do Poema de Parmênides. Nesse diálogo – sub-intitulado (mesmo que se saiba que estes títulos são escolásticos e tardios): u@u@- aparece uma passagem geralmente pouco notada, sobre a qual P. Aubenque chama a atenção em seu seminário do Centre Léon Robin: o estrangeiro pergunta (237 A), quando se trata do ou, mais prudentemente, deste nome, deste grupo de paralavras

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, se se pode dizer, enunciar, proferir ()? Perguntado de outro modo: a que se aplica, sobre o que remete () este nome? Seguramente não sobre o que é, ao ente (). Mas, então, a quê? @? “A que, a qual objeto?”, traduz com uma segurança sonâmbula M. Diès. A que e como qualificar a atribuição deste “nome”: ?

Consideremos a resposta, mais erudita do que ingênua, do interlocutor Teeteto: talvez ao . Se não é , pois que se trata justamente do não-ser, talvez seja: que aplica-se o , a atribuição referencial? Mas, o estrangeiro fecha logo a via, encontrada, de uma teoria do objeto:

É claro ainda para nós (...) que este vocábulo “qualquer” (), é ao ser que nossas expressões se aplicam (). Formulá-lo isoladamente, com efeito, nu, desprovido de tudo o que é, é impossível, não é verdade?

O argumento platônico é aqui o seguinte: dizer qualquer coisa(), é sempre na verdade dizer “um” (). O é, assim, ele mesmo necessariamente @u@1 E dizer um é dizer também o outro (Cf. 238 B): para nós, o número em seu conjunto, é do ser: u@.

Ora, é este interdito platônico da “tino-logia”2 que será,

1 Cf. também Parmênides, 132 B-C: “Nesse caso, teria replicado Parmênides, cada um desses pensamentos é um pensamento uno, mas pensamento de nada? – Não, impossível, responde Sócrates. Então, pensamento de um objeto? – Seguramente, - Que é ou que não é? – Que é!” (trad. Diès).

2 Cf. Pierre Aubenque, “Une occasion manquée: la genèse avortée de la distinction entre l”étant” et le quelque chose””, Études sur le Sophiste de Platon, publicado sob a direção de P. Aubenque e M. Narcy, Bibliopolis, Naples, 1991, p365-85. Além desta “ocasião perdida”, a história da “tino-logia” resta por ser escrita: ela deve ser orientar não mais sobre Platão e Aristóteles, mas sobre a doutrina estóica das categorias, do e do , como sobre a distinção do u e do u, sobre a doutrina do dictum propositionis em Abélard, e do complexe significable em Grégoire de Rimini, passando pelo estudo dos seres de razão, das ficções e dos impossibilia (Quimera e bode-cervo). Cf. sobre este último aspecto a brilhante perspectivação de Sten Ebbesen, “The Chimera’s Diary”, em The Logic of Being, op.cit, p115-143, e tos trabalhos muito documentados de John P. Doyle, notadamente:

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precisamente, e que deverá ser levantado bem mais tarde na escola de Brentano, pelo fato precisamente que o ensinamento de Brentano renovará a questão do objeto ou da objetalidade, ou simplesmente a abrirá novamente. Pode parecer paradoxal ver se desenvolver na escola de Brentano uma disciplina nova chamada a tomar o lugar da ontologia, se lembramos o aristotelismo constantemente afirmado e afixado por Brentano: depois de sua dissertação de 1863 até as notas póstumas Sobre Aristóteles, publicadas em 1986 por R. George. Porém, é mesmo Brentano, desde antes de sua Psicologia de um ponto de vista empírico, que contribuiu para abrir em nova roupagem a questão do objeto e da objetalidade. Desde seus primeiros trabalhos consagrados a Aristóteles (a tese de habilitação de 1863, Dos múltiplos sentidos do ser em Aristóteles, e a obra de 1867 sobre a Psicologia de Aristóteles), Brentano redescobre, com efeito, aquilo que se denomina a estrutura intencional de toda consciência, ou mais exatamente a “inexistência intencional” do objeto, característica de toda representação, na medida em que esta constitui, por outro lado, o traço fundamental de todos os fenômenos psíquicos. Por isso mesmo, Brentano lega a sua escola ou aos seus discípulos um problema enorme, o do estatuto deste objeto ou de sua “objetidade” específica. Relembremos a passagem de Aristóteles sobre a qual se apóia Brentano: uu@(Metafísica, 9, 1074 b35). (N.T. “Evidentemente, o conhecimento e a percepção têm sempre algo como seu objeto”)

O que significa dizer, agora positivamente, tratando-se do

“Another God, Chimerae, Goat-Staggs, and Man-Lions: a seventeenth-century debate about impossible objcts”, em Review of Metaphysics, v.48, n4, 1995, p771-808. – Este desideratum evocado ligeiramente, deve-se ter em muito maior conta a observação de Kenneth J. Perszyk e de sua aobrdagem: “ ... seria interessante ter um estudo detalhado da história da noção de objetos não-existentes, mas eu estou seguro de que isto seria a culminação do trabalho de uma vida se bem feito...; Deve-se estar ciente dos perigos que esperam aquele que penetra nas águas turbulentas entre a Scylla da ignorância da história da filosofia e a Charybis das formulações simplistas dessa história”, em Nonesistent Objects: Meinong and Contemporary Philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1993, p68.

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intelecto ou do u@, que o intelecto (ou o entendimento) não é ele mesmo em realidade nada, nada senão o objeto que ele conhece. Se ele é em potência (u) todas as coisas (u, Da Alma III, 431 b 21), ele não é senão o que ele pensa e não poderia se referir a si mesmo ou se conhecer na ausência de seu “objeto”. O mesmo se dá com a análise aristotélica da percepção (), ao menos segundo o modo como Brentano a compreende (Da Alma, 425 b 23 sg.): a presença física de uma qualidade no órgão sensorial (a mão tocando que pode ser fria ou quente) deve ser cuidadosamente distinguida da atualização objetiva de tal ou tal qualidade ou de sua forma sensível tal qual ela reside objetiva no sentido ou no sentir (uu).

Nós queremos agora defender a idéia de que a Teoria do objeto, abordada ou desenvolvida mais ou menos completamente por Kasimir Twardowski, Alexius Meinong, Ernst Mally et Edmund Husserl, é uma consequência da caracterização de Brentano da intencionalidade e do problema, legado desta vez por Bernard Bolzano, das representações sem objeto1; a questão agora é de saber em que medida esta teoria do objeto não faz senão o papel de substituta da ontologia moderna (clássica-moderna), tal qual ela encontra sua primeira sistematização com Suárez e se desenvolve até Kant2.

Porém, para começar: que quer a teoria do objeto? E porque houve a necessidade de uma teoria geral do objeto na escola de Brentano?

A tese brentaniana fundamental da intencionalidade da

1 Bolzano, Wissenschaftslehre, I, §66: “Vorstellung, die einen oder mehrere Gegenstände haben, nenne ich gegenständliche oder Gegenstandsvorstellungen; solche dagegen, die keinen ihnen entsprechenden Gegenstand habem, gegenstandlos”. Em realidade, este parágrafo é ininteligível sem as definições dos §48-50, eles mesmos tão cheios de dificuldades que mereceriam uma explicação detalhada que nós não podemos entrar aqui.

2 Nós tivemos a ocasião de esboçar este ponto na conclusão de nosso Suárez et le système de la métaphysique, Paris, PUF, 1990. – Sobre a radicalidade da ruptura kantiana com a escolástica tardia e a neo-escolástica, vide Jocelyn Benoist, “Sur une prétendue ontologie kantienne: Kant e la néoscolastique”, em Kant et la pensée moderne: alternatives critiques, texto apresentado por Ch. Ramond, Bordeaux, Presses Universitaires de Bordeaux, 1996, p 137-163.

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consciência, a tese da in-existência intencional do objeto, é que torna necessária a elaboração de uma tal teoria. Com efeito, se os fenômenos psíquicos são aqueles que contêm intencionalmente neles um objeto, abstração feita do ponto de saber o que é realmente a existência do objeto, no mundo, ou fora da consciência, e se há representações sem objetos no sentido real e mundano da objetividade referencial, a questão de saber como fixar essencialmente e entitativamente este “objeto” se põe naturalmente. O horizonte brentaniano e sua tese fundamental: todo ato mental é uma representação (Vorstellung), ou é fundado sobre uma representação, permanece determinante em Twardowski e em Meinong.

Em sua Psychologie, Brentano expôs nestes termos a divisão das atividades psíquicas:

Deve-se distinguir a partir de seu modo de relação com o objeto três classes principais de atividades psíquicas: (...) nós damos à primeira o nome de representação, à segunda o nome de juízo (Urteil), e à terceira o nome de movimento afetivo (Gemütsbewegung), interesse (Interesse), amor (Liebe).1

A primeira classe é que joga o papel central ao olhos de Brentano:

Nós falamos de representação cada vez que um objeto nos aparece (wo immer uns etwas erscheint). Quando nós vemos qualquer coisa, nós nos representamos uma cor; quando nós ouvimos qualquer coisa, nós nos representamos um som; quando nós imaginamos qualquer coisa, nós nos representamos uma imagem. Empregando a palavra com esta significação geral, nós pudemos dizer que a atividade psíquica não pode jamais se relacionar a qualquer coisa que não seja objeto de representação (was nicht vorgesstellt werde).2

Esta mesma tese tinha sido firmemente afirmada no livro II (Cap. I):

Segundo nosso uso do termo “representar”, ser representado equivale à aparecer.

1 Livro II, cap.6, éd. º Kraus (Meiner, 1971), t.II, p33; trad. Fr. M. de Gandillac, Paris, Aubier 1944, p203.

2 Ibid. p34. [- Nota de crb: Courtine perverte o sentido do texto de Brentano ao inserir o termo “objeto” ali onde não há nenhum correspondente na frase do autor...]

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(...)

Por fenômenos psíquicos nós entendemos as representações assim como todos os fenômenos que repousam sobre as representações. (...) A representação não constitui apenas o fundamento do juízo, mas também do desejo e de todo outro ato psíquico. Nada pode ser julgado, mais, nada além disso pode ser desejado, nada pode ser esperado ou temido que não tenha sido representado.1

É neste contexto que a obra de K. Twardowski (Zur lehre von Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen)2 adquire toda a sua importância para a elaboração da Teoria do objeto. O alcance da obra de Twardowski se deve, por uma parte, à elucidação que ela fornece da doutrina brentaniana da intencionalidade ou da inexistência intencional, tal qual ela é formulada na Psicologia de um ponto de vista empírico de 18743 e, de outra parte, ao seu pano de fundo histórico que reconduz, até Bolzano e à doutrina das representações sem objetos, à escolástica aristotélica, via Suárez.

Certamente seria equivocado procurar uma filiação muito estreita entre Twardowski e Meinong, mas o que nós queremos sugerir aqui é que a teoria dos objetos de Meinong responde às dificuldades levantadas e tematicamente explicitadas por Twardowski4. A doutrina brentaniana da representação, mesmo que ela esteja orientada essencialmente para um objeto (Gegenstand) constitui, com efeito, o ponto de partida da análise de Twardowski que procura então distinguir as diferentes acepções de objeto intencional:

1 Ed. Cit. t. I, éd. Kraus, p112; trad.fr, p94.2 Viena, 1894. Reimpressa com uma introdução de R. Haller, Viena-Munich, Philsophia Verlag,

1982; tradução francesa de Jacques English, em Husserl-Twardowski, Sur les objets intentionnels 1893-1901, Paris, Vrin, 1993, p85-200.

3 Sobre a doutrina brentaniana e seu horizonte aristotélico, vid. J.-F. Courtine: “L’aristotélisme de Franz Brentano”, em Recherches phénoménologiques, n27-28, 1998, p7-50.

4 Para um resumo geral da obra, nós podemos indicar as notáveis apresentações de Jan Sebestik: “Twardowski entre Bolzano et Husserl: la théorie de la représentation”, em Grammaire, sujet et signification, Cahiers de philosophie ancienne et du langage, Paris, L’Harmattan, 1994, p61-85, e de J. Benoist: “A l’origine de la phénoménologie: au-delá de la représentation”, Critique, juin-juillet 1995, p480-506.

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... faz-se necessário distinguir o objeto sobre o qual (worauf) se dirige, por assim dizer, nosso representar do objeto imanente ou do conteúdo da representação.1

Twardowski cita a Logique de A. Höfler, publicada em colaboração com Meinong (Viena, 1890), que já indicava a ambiguidade dos termos “Gegenstand” e “Objekt”. O Gegenstand pode ser entendido literalmente como “o que se põe diante”, “o que subsiste por si” (dasjenige an sich Bestehende), e sobre o qual se dirige nossa representação ou nosso juízo, e o Ojbekt pode ser entendido como uma “imagem”, uma “quase-imagem”, ou melhor, um signo (Zeichen) do Gegenstand que é aí o “real” (Das Reale) ao qual reenvia a imagem. Esta entidade intermediária pode de direito ser caracterizada como o conteúdo (Inhalt) da representação: “diferenciando do que está diante ou do objeto tido como independente do pensamento, denomina-se também o conteúdo de uma representação e de um juízo (...) objeto imanente ou intencional...”2.

Resguardando-se de ver nessas linhas qualquer antecipação que seja da teoria desenvolvida por Meinong, notemos apenas os elementos doutrinais, ou melhor, os termos da questão: distinguir do objeto imanente, que reenvia à representação, um Gegenstand que tem sua consistência própria, seu “em si” e sobretudo seu modo de doação irredutível; Meinong retornará a este ponto que constitui certamente uma das dificuldades maiores da doutrina: a independência do objeto.

Para Twardowski, trata-se também, em seu tratado de 1894, de distinguir o ato de representar (ou de julgar), o objeto imanente ou intencional e o Gegenstand, como o que se põe diante, como o que não é justamente objeto imanente (immanentes Objekt) – distinção que se torna urgente e problemática quando o objeto representado não é precisamente um objeto que nós dizemos real ou existente, quando se tem que considerar, ainda uma vez, “representações sem objeto”

1 Twardowski, op.cit., p4, trad. p88.2 Op. Cit, p4, tr. Fr. (modificada), p88.

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(gegenstandlose Vorstellungen) (§5).

Bolzano – escreve Twardowski – ensina que há representações sem objetos (gegenstandslose Vorstellungen), isto é, representações que são desprovidas de objeto (Gegenstand). Se alguém (...) assegura achar absurdo sustentar que uma representação não tenha nenhum objeto (Gegenstand) e, portanto, nada representar (und also nichts vorstellen), isto se deve unicamente a que ele confunde o conteúdo da representação (Inhalt der Vorstellung), que certamente ecoa em cada representação, com o objeto da representação (Gegenstand der Vorstellung). E como exemplo de tais representações “sem objeto”, Bolzano cita as representações: nada, quadrado redondo, virtude verde, montanha de ouro.1

A distinção é clara, ao menos numa primeira aproximação: cada representação comporta necessariamente um representado, no sentido de conteúdo da representação, mas a cada representação não corresponde necessariamente um objeto, no sentido de algo que se põe diante e que, transcende o ato, que seria o visado como sua referência pelo conteúdo representado. É tentador dizer-se que a Gegenstandstheorie elabora-se contra a possibilidade desta dissociação: toda representação tem um objeto (Gegenstand – termo que se permite entender também como o que tem sua consistência em si mesmo, que se apresenta ou se dá ao ato de representar), que este objeto exista ou não, que este objeto corresponda ou não a qualquer coisa real, possível ou impossível (a montanha, a montanha de ouro ou o quadrado redondo).

Tudo se passa – veremos – como se Meinong recusasse a dissociação operada por Bolzano entre o que pertence por essência à toda representação (jeder Vorstellung zukommt) e o que não lhe pertence necessariamente: encontrar (treffen) um objeto. Recusa esta que implica, evidentemente, e isto será uma aposta da Gegenstandstheorie, dar um outro sentido ao Gegenstand, ao objeto agora estranho ao ser ou “fora do ser” (ausserseiend), para além da alternativa do ser e do não-ser. Dar um outro sentido é,

1 Op. Cit. p20; trad. fr. (modificada), p105. A referência remete à Wissenschaftslehre, §67.

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sem dúvida, desenvolver uma outra sintaxe, isto é, não mais considerar o objeto (Gegenstand), assim como o fazia Kerry, citado por Twardowski1, como o que pode ou não “cair sob uma representação”, ser subsumido sob uma representação (unter diese Vorstellung kein Gegenstand fallen könne). Se podemos aqui falar de uma outra gramática do objeto, é no sentido que a representação tem por essência seu objeto, seu vis-à-vis, e que importa estabelecer este ponto antes da questão de saber se este vis-à-vis é ou não exemplificado ou instanciado no domínio do que é real, do que houve ou do que possivelmente será. Um tal vis-à-vis, para retomar um dos exemplos de Bolzano, não é justamente nada (nichts): é sempre qualquer coisa (etwas, qualquer coisa: aliquid, isto é, também non-nihil), trate-se de uma virtude verde ou de bode-cervo.

O que Twardowski distingue aqui claramente, e este ponto será ainda decisivo para Meinong, é a natureza das questões: saber se uma representação, a qual pertence sempre um conteúdo, tem ou não um objeto; e a questão de saber se o objeto desta representação existe ou não, se ele é possível ou impossível porque intrinsecamente contraditório. Twardowski põe também qualquer coisa como uma figura elementar da distinção do ser e do ser-tal (Sosein):

Uma montanha de ouro, por exemplo, tem entre outras a propriedade de ser espacialmente estendida, de ser composta de ouro, de ser maior ou menor que outras montanhas. Estas propriedades e esta relação de grandeza frente a outras montanhas não se repetem claramente no conteúdo da representação. Pois, este não é espacialmente estendido, nem de ouro, e também não é possível que sobre ele se apliquem enunciados sobre relações de grandeza. E, mesmo se a montanha de ouro não existe, atribui-se a ela, na medida em que ela é objeto de uma representação, estas propriedades e se a coloca em relação com outros objetos de representação, talvez tão pouco existentes como ela. E isto é igualmente válido para os objetos aos quais se confere determinações contraditórias umas com as outras.2

1 Op. cit. p21.2 Op. cit. p30-31; trad. 116.

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Seja ainda a mesma análise, agora abordada no que concerne às funções distintas do nome (Kundgebung, Bedeutung, Nennung): o nome pode manifestar qualquer coisa, dar uma informação sobre o que se passa no espírito daquele que se representa x ou y, por exemplo, um quadrado com ângulos agudos; ele pode também “significar” e ele significa sempre qualquer coisa (se se trata de um nome e não apenas de um flatus vocis: “Blituri” ou ), mesmo um conteúdo feito de propriedades contraditórias e, enfim, ele nomeia qualquer coisa (etwas), esta “coisa”, mesmo que ela seja reconhecida como contraditória, isto é, desprovida de toda existência real ou possível em virtude dos elementos incompatíveis. É este último etwas, o qual corresponde ao “nomeado”, que Meinong considera, sob o título de Gegenstand, diferente por princípio do conteúdo representado. Do que é recusado a existência, se tratanto de um quadrado com ângulos agudos, não é evidentemente do conteúdo da representação, mas o nomeado, a saber o sujeito de tais propriedades – sujeito entendido aqui como Träger dieser Eigenschaften1. Às representações sem objeto não falta portanto o objeto (não há não-objetivo), mas a elas pode faltar o sujeito, do suporte ou suposto suscetível de dar o ser ou melhor de sustentar no ser tais determinações; elas podem ser “anhypostáticas” ou “anhypárxicas”.

A nuance aqui é decisiva – e é ela que abre o campo para a Gegenstandstheorie, no sentido forte – entre a tese segundo a qual os objetos de certas representações não existem e a tese de que certas representações não têm objeto, pois que sob estas representações não caem nenhum objeto. E aí também, Twardowski percebe perfeitamente a aposta dessa distinção: uma tal distinção, objeta-se, poderia bem confundir a divisão entre a existência e a não-existência; o objeto inexistente de uma representação, porque seu conteúdo comporta marcas características contraditórias, existe entretanto a título de objeto

1 Op. cit. p24; trad. p109.

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representado. Que é desta segunda figura do existir? O que é um objeto representado? Qual é o seu estatuto ontológico ou meta-ontológico? Quantas questões legadas a Meinong pelo ensaio de 1894! Questões esssencialmente ligadas que convém acentuar a expressão: “vorgestellter Gegenstand”: “vorgestellter Gegenstand” (e se racai então nas interpretações triviais do ens rationis) ou “vorgestellter Gegenstand”, e o ponto agora é o de determinar o estatuto desta Gegenständlichkeit estranha ao ser, extra-ontológica ou, literalmente, fora do ser (ausserseiend).

Ao sugerir aqui que as formulações de Twardowski podem ter contribuído de maneira decisiva para a posição da questão do objeto, e para a elaboração da Teoria do objeto, deve-se acrescentar logo que Twardowski barrou esta via, ao interpretar em sentido clássico psicológico o ser-representado ou o objeto representado:

À existência efetiva de um objeto, tal qual ela forma o conteúdo de um juízo de reconhecimento, se opõe a existência fenomenal, intencional deste objeto: ela consiste apenas e unicamente no tornar-se representado (in dem Vorgestelltwerden).1

A conclusão do §5 merece de ser citada um pouco mais longamente, pois, testemunho desta mesma ambiguidade que nós estamos indicando, ela é atravessada igualmente por este duplo gesto de abertura e de fechamento:

A expessão “representação sem objeto” é tal que ela contém uma contradição interna. Pois, não há representação que não representa qualquer coisa em tanto que objeto; não pode haver semelhante representação. Há, ao contrário, muito numerosas representações cujo objeto não existe (dagegen gibt es viele Vorstellungen, deren Gegenstand nicht existirt) e isto, ou porque este objeto reune determinações contraditórias umas com as outras e, portanto, não pode existir, ou porque de fato ela não tem um. Mas, mesmo nesse caso, um objeto é representado, de tal maneira que se pode bem falar de representações cujos objetos não existem, mas não de

1 Op. cit. p25; trad. p110.

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representações que seriam sem objeto, às quais não corresponderia nenhum objeto.1

O que sobressai nesta passagem, é ainda a importância, para a elaboração triádica da intencionalidade brentaniana (ato, conteúdo, objeto), da hipótese formulada por Bolzano das representações sem objeto, mas aparece ao mesmo tempo que a análise aqui esboçada por Twardowski permanece enleada por uma indeterminação singular: com efeito, o que é o representar que deve sempre e essencialmente representar qualquer coisa enquanto objeto (etwas als Gegenstand)? E o que é da representatividade deste objeto? Deste objeto que pode não existir, porque ele é contraditório, ou deste objeto que não existe de fato (es tatsächlich nicht gibt), como a montanha de ouro. Como, do lado do objeto, pensar a articulação entre o objeto representado que não existe e o objeto que não responde ou não corresponde à representação? É no mesmo sentido de representação e de representatividade que se fala de uma representação cujo objeto não existe e de uma representação a qual não corresponde nenhum objeto, uma vez que agora se mantém, como o faz Twardowski, a distinção real entre conteúdo e objeto, e também que está em questão a representação sem objeto?

Portanto, a conclusão do §7 pode, parece-me, contribuir para definir precisamente uma ciência geral do objeto, entendido como “qualquer coisa” (etwas, ). Se a definição é afinada, deixando-se de lado tudo o que não pertence ao cerne do definiendum, do ente, chega-se ao etwas:

Alles was ist, ist ein Gegenstand möglichen Vorstellens: alles was ist, ist etwas.2

1 Op. cit. p29; trad. p114.2 Op. Cit, p37; trad. p123: “tudo o que é, é um objeto de representação possível, tudo o que é, é

algo”.

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Pode-se agora satisfazer a exigência kantiana de estabelecer como o conceito mais elevado para toda filosofia transcendental, para além da divisão entre o possível e o impossível, o “conceito de um objeto geral”1 ou ao menos este de qualquer coisa:

Alles, was im weitesten Sinne “etwas” ist, heisst zunächst mit Beziehung auf ein vorstellendes Subject, dann aber auch abgesehen von dieser Beziehung “Gegenstand”.2

O que é que faz do etwas um objeto, abstração feita de toda relação com um sujeito representante? A questão permanece aberta aqui ou legada à Gegenstandstheorie. Mas, sobretudo, o que é que nesse §7 do ensaio de Twardowski, ao rebater a doutrina do objeto sobre a metafísica, encerra esta na ontologia ao interditá-la a consideração do Aussersein? Ao reconduzir de maneira genérica a questão do objeto a seu horizonte medieval, Twardowski compartilha ainda com seus autores de referência o que Alain de Libera caracterizou tão bem como uma “interrogação ontológica direcionada a objetos”3.

Pois, o gesto mesmo de Twardowski, quando ele tenta derivar – no horizonte de um estudo que, não esqueçamos, permanece psicológico4 - a teoria do objeto da representação da ontologia aristotélica, acrescida da convertibilidade aviceniana do ens e da res, fecha resolutamente a via à tinologia: esta mesma que Meinong esforça-se para relançar sob o título da Gegenstandstheorie e Husserl, diferentemente, sob o título de ontologia formal5.

1 Kritik der reinen Vernunft, A 290/ B 346.2 Twardowski, op. Cit., p.40, trad. P 125: “tudo o que é “qualquer coisa” no sentido mais

amplo, denomina-se agora por relação a um sujeito representante, mas também depois independentementee desta relação, “objeto”. – Segunda versão do princípio de independência.

3 Alain de Libera, “Subsistance et existence: Porphyre et Meinong”, em Revue de Métaphysique et de Morale (2), 1997, p167-192; p191.

4 É o subtítulo da obra de 1894.5 Nesse sentido, Jens Cavallin tem razão ao invocar a teoria dos objetos da representação, tal

como ela é apresentada por Twardowski em 1894, como uma “insurgência ontológica” (Content and Object. Husserl, Twardowski and Psyclologism, Dissertação de doutorado, Dept. de Philosofia, Univ. of Stockholm, 1990, p30 sq.). – Sobre a relação Husserl-Meinong, ver J. Benoist: “Husserl, Meinong et la question de l’objet”, em Phénoménologie, sémantique,

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Retomemos, para finalizar este o ponto, as principais etapas do percurso dedutivo de Twardowski, quando este percurso, que deveremos poder comentar historicamente em detalhe, abandona o terreno da “discussão psicológica” pelo da metafísica:

É do ponto de vista metafísico também que os objetos da representação foram tratados até a época mais recente. Ao designá-los como , entia, revela-se a via que conduz a eles. Mas, que o aristotélico, sob a forma que a filosofia medieval lhe deu como ens, não é senão o objeto da representação, o que o pode mostrar é o fato que todas as teses que foram estabelecidas acerca do ens (...) valem do objeto da representação.

1. O objeto é qualquer coisa diferente do existente; a muitos objetos, além de sua objetividade (Gegenständlichkeit), além de suas propriedades intrínsecas (Beschaffenheit), ao ser representado (que é o sentido próprio da palavra essentia), acresce-se ainda também a existência, a outros não. Tanto o que existe (ens habens actualen existentiam) é um objeto quanto o que apenas poderia existir (ens possible); melhor, mesmo o que não pode jamais existir, mas que pode apenas ser representado (ens rationis) é um objeto; em suma, tudo o que não é nada, mas em um sentido qualquer é “qualquer coisa” (alles, was nicht nichts, sondern in irgend einem Sinne “etwas” ist, ist ein Gegenstand). De fato, a maior parte dos escolásticos tinham aliquid por sinônimo de ens, e isto por oposição aos que concebiam o primeiro como um atributo do segundo.

2. O objeto é summum genus. O que os escolásticos expressavam com esta proposição é que o conceito de ens não é um conceito genérico, mas um conceito transcendental, pois ele transcende todos os gêneros (omnia genera transcendit).

(...)

5. Se o objeto das representações, dos juízos e dos sentimentos não é senão o ens aristotélico-escolástico, a metafísica deveria poder agora ser definida como a ciência dos objetos em geral, a palavra tomada no sentido indicado. (...) A venerável definição da metafísica: a ciência do ente como tal, encontra aqui seu sentido plenamente circunscrito.1

ontologie. Husserl et la tradition logique autrichienne, Paris, PUF, 1997, p169-98.1 Twardowski, p37-39; trad. fr. (modificada), p123-25.

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Não resta mais nada senão tirar as consequências desta convergência e nomear com o seu verdadeiro nome “teoria do objeto” o que até então foi erradamente batisado metafísica pela tradição. E o gesto aristotélico de generalização ou de universalização que, na Metafísica 1, permitiu distinguir de um lado a ciência que tem em vista u (universal) o @, e de outro todas as outras ciências regionais ou especiais que apenas têm em vista os entes , segundo uma ótica determinada e sobrevalorando uma “parte”, este gesto pode aqui ser expressamente repetido, radicalizado e ampliado por Twardowski:

Aquilo de que se ocupam as ciências particulares, certamente não é senão os objetos de nossas representações (...), mas não se trata senão de um grupo de objetos, limitado de uma maneira mais estreita ou mais larga, formado pelo contexto natural ou referido a um fim determinado. – (Ao contrário), uma ciência que põe no círculo de suas considerações todos os objetos, tanto aqueles que são físicos, orgânicos e inorgânicos, quanto aqueles que são psíquicos, aqueles que são reais e também aqueles que não existem, e procura as leis que os objetos em geral obedecem – e não apenas um grupo determinado dentre eles – eis o que é a metafísica. (...) Este é o sentido da venerável definição segundo a qual a metafísica é ciência do ente enquanto ente...1.

A teoria do objeto será a substituta da metafísica ou, mais precisamente, da ontologia, mesmo se a substituta aqui invocada por Twardowski está seguramente ainda muito desgastada e embrionária em relação ao desenvolvimento complexo e sutil da Gegenstandstheorie (1904) onde Meinong procura com muito mais precisão distinguir teoria do objeto e ontologia, e a situar a ontologia mesma, de tradição aristotélica, como um setor delimitado em relação a uma consideração muito mais compreensiva do Gegenstand e de seus modos2.

1 Op. cit. p39.2 Sur la théorie de l’objet, p [520-521]: “Aquilo que, em relação a um objeto, pode ser

conhecido a partir de sua natureza mesma, logo, a priori, pertence à teoria do objeto. Isto quer dizer que se trata do ser-tal do “dado”, mas também de seu ser, uma vez que este último possa ser conhecido a partir do ser-tal. Ao contrário, o que não pode ser estabelecido, a propósito

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A indecisão última da análise de Twardowski sobressai claramente na conclusão do §7 de seu tratado: a referência às doutrinas escolásticas e à metafísica aristotélica estava destinada a delimitar o sentido do termo objeto, que desemboca no qualquer coisa (etwas), do qual não se sabe qual é o estatuto, nem se ele depende de um sujeito constituinte:

O objeto pode ser descrito aproximadamente da seguinte maneira: tudo o que se torna representado por uma representação, reconhecido ou recusado por um juízo, desejado ou rejeitado por uma atividade afetiva, nós o nomeamos objeto (Gegenstand). Os objetos são reais ou não reais; eles são possíveis ou impossíveis; eles existem ou não existem. A todos é comum o fato que eles podem ser ou são objeto (Objekt) (não (objeto) intencional!) de atos psíquicos, que sua designação na linguagem é um nome (...), e que, considerados como família (Gattung), eles formam o summum genus que encontra na linguagem sua expressão usual com o “qualquer coisa” (etwas). Tudo o que é “qualquer coisa” no sentido mais largo, se chama então, por relação com um sujeito que se representa, mas também depois independentemente desta relação, “objeto” (Gegenstand).1

Com efeito, mais resolutamente ainda que Twardowski em seu opúsculo de 1894, Alexius Meinong retoma por sua própria conta o projeto de um tratamento teórico do objeto como tal (theoretische Behandlung des Gegenstandes als solchen), por meio de um gesto de generalização e de estensão para além da esfera, julgada muito estreita, porque muito ligada por um pré-juízo da efetividade, da ontologia. A Gegenstandstheorie à la Meinong será, com efeito, muito mais que em Twardowski,

dos objetos, senão a posteriori, pertence, pressupondo-se uma generalização suficiente, à metafísica: é o caráter a posteriori dos conhecimentos que evita que os limites da realidade efetiva não sejam então transgredidos. Há, pois, simplesmente, duas ciências que são as mais gerais, uma ciência a priori que concerne a tudo o que é dado, e uma ciência a posteriori que não retém do dado para analisar senão o que precisamente pode entrar na consideração de um conhecimento empírico, isto é, o conjunto da realidade efetiva: esta última disciplina é a metafísica, a primeira é a teoria do objeto”.

1 Op. cit., p40; trad. fr. p125. Passagem que seguramente chamou a atenção de Meinong. Como observa justamente K. J. Perszyk, Nonexistent Ojbects, p220 (nota 40): “Much of the later bulk of Meinong’s rumination in Über Gegenstandstheorie on the place of his theory of objects and whether it is metaphysics echoes the last pages of Twardowski ch. 7”.

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precisamente contradistinguida da metafísica, da ontologia e da lógica pura.

Certamente, em Meinong, em razão de seu ponto de partida brentaniano1, a extensão e a generalização em questão também correspondem à pré-compreensão do objeto como objeto do conhecimento; o Gegenstand deve, por conseguinte, ser entendido como “Gegenstand des Erkennens”. Todo conhecimento é sempre conhecimento de um objeto e, se há necessidade de um teoria geral do objeto, é conforme esta mesma lógica da reduplicação que caracterizava a metafísica aristotélica como ciência que tem em vista o ser enquanto ser:@:

Uma ciência do objeto do conhecer, isto implicaria outra coisa além da exigência de fazer com que o que é já conhecido a título de objeto do conhecimento torne-se novamente o objeto do conhecimento?

De encontro ao que sugeriu Twardowski, mas partindo também ele da caracterização brentaniana dos fenômenos psíquicos como “Gerichtetsein auf etwas”, importa para Meinong, se se quer engajar em uma ciência do objeto, de a contradistinguir da metafísica que não é tão abrangente para englobar o tratamento geral do “reiner Gegenstand”2. Tradicionalmente, a metafísica tem, sem dúvida alguma, a ver com o conjunto do que existe, mas o conjunto do que existe, mesmo que se inclua nele o que existiu e o que existirá, é infinitamente pequeno comparado ao conjunto dos Erkenntnisgegenstände3. A teoria do objeto deve,

1 Cf. Über Annahmen, GA., IV, p225 e p233; Über Gegenstände höherer Ordnung, §2, GA, II, p381sq.; Über Gegenstandstheorie, p{483-84]: “ninguém desejaria ignorar que é tão extraordinariamente frequente que o processo psíquico se ache acompanhado desta propriedade de “ser orientado para qualquer coisa” que se está bem perto de ver nisso um aspecto característico que distingue o que pertence ao psíquico do que não é da ordem do psíquico”.

2 Teoria do objeto, p [486].3 A distinção entre teoria do objeto e metafísica recobre também aquela entre a priori e a

posteriori (Teoria do objeto, p [520-521]. A metafísica é assim limitada ao que é real, ao que existe, existiu ou existirá. A dificuldade aqui é evidentemente a de compreender o que é este ser-dado que define de maneira mais vasta a teoria do objeto: o objeto como tal, em sua indiferença ao ser e ao não-ser, é dado! Pode-se também distinguir entre a metafísica

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por exemplo, integrar os objetos ideais que têm uma certa “consistência”, ou melhor, subsistência (bestehen), mas que não existem, que não são nada de efetivo, como o número, a igualdade, a diferença, etc..1 Meinong evita assim o erro ou o equívoco de Twardowski que procurava determinar o Gegenstand como summum genus: querer definir formalmente o objeto não tem sentido, observa ele, pois lhe falta tanto o genus como a differentia, se é verdade que tudo é objeto (alles ist Gegenstand)2. O que repetirá seu discípulo Ernst Mally:

O conceito de objeto compreende cada e toda coisa, sem considerar se ela existe ou se, falando absolutamente, ela é.

Importa, então, de proceder um alargamento da esfera do objeto para além mesmo do ser e do não-ser: é a radicalidade deste alargamento que faz toda a importância da teoria meinongiana do objeto, cuja aposta última é a de romper com a ontologia de tradição aristotélica. Sem entrar aqui nos detalhes labirínticos das análises de Meinong, relembremos somente que elas se desenvolvem pelo fio condutor desta fórmula provocativa:

Es gibt Gegenstände, von denen gilt, dass es dergleichen Gegenstände nicht gibt.3

Para desenredar o que a fórmula tem de paradoxal, importa distinguir as modalidades diferentes do “es gibt” que manifestam sem dúvida a mais extrema extenuação imaginável do dar-se ou da apresentação:

- o existieren para os objetos ditos reais, atuais ou efetivos;- o bestehen para os objetivos (Objektive, Sachverhalt);

existencial (Daseinsmetaphysik) e a metafísica (teoria do objeto) livre do ser (daseinsfreie Metaphysik).

1 Pode-se lastimar, com F. Nef, que J. English, em sua preciosa tradução de Twardowski, não tenha mantido a unidade lexical do bestehen, Bestand (op. cit. p201sq.: “Sur les verbes désignant l’existence: SEIN, EXISTIEREN, BESTEHEN, ES GIBT, VORLIEGEN”).

2 Selbsdarstellung, p [12].3 “Há objetos dos quais é verdadeiro dizer que não há tais objetos”, Teoria do objeto, p[490].

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- o Sosein para as entidades não reais, mas possíveis, do tipo montanha de ouro, a propósito das quais é sempre permitido de determinar o ser-tal, independentemente do ser (Sein);

- o Aussersein para as entidades contraditórias, do tipo círculo quadrado, que não são puramente ou simplesmente nada, mas que conservam nelas um último resto de posição.

Meinong tenta uma exploração, forçando estas distinções, sistemática de tipos de objetos até então negligenciadas: Objekte, Objektive1, Dignitative, Desiderative. As relações mesmas serão vistas a título de “objeto de ordem superior” e as objetividades matemáticas (o número, a figura geométrica, etc.) pertencerão também à teoria geral do objeto.

Se a metafísica (ao menos na tradição aristotélica dominante) se limitou ao que existe efetivamente, cabe à teoria do objeto colocar em plena luz a independência do Sosein em relação ao Sein e de estender até o Aussersein do objeto puro (objeto enquanto tal), em sua indiferença em relação ao ser, para além do ser e do não-ser2. O princípio da independência do ser-tal se entende agora no sentido do fato de que um objeto comporte propriedades não implicar que este objeto ele mesmo seja, isto é,

1 O objectivo (Das Ojbektive) é análogo, para a suposição ou o juízo, ao que é o objeto (Gegenstand) para a representação. Sobre a escolha desse termo por Meinong, vid. Über Annahmen, §14, GA., IV, p97-105.

2 O Aussersein estava destinado a resolver o “paradoxo”, como se pode ver claramente na bela passagem da segunda edição, revista, de Über Annahmen, GA, IV, p79-80: “... nossa apreensão (Ergreifen) encontra nos objetos qualquer coisa de pré-dado (etwas vorgegeben), sem que se entenda como decidir a questão de seu ser ou não-ser. Nesse sentido, “há” também objetos que não são, o que eu procurei designar através da expressão – obviamente como eu temia um pouco bárbara, mas difícil de melhorar – “fora-do-ser do objeto puro”. Este termo responde ao esforço para interpretar o estranho “es gibt” (há) que não parece poder ser retirado dos objetos, mesmos os mais estranhos ao ser (seinsfremdeste Gegenstände) e, sem ter que recorrer ainda a um terceiro tipo de ser além da existência e da subsistência. Mais, depois que eu tive o sentimento mais de uma vez muito claro de que este esforço não poderia alcançar a positividade específica (eigentümliche Positivität) que reside, parece-me, no caráter pré-dado (Vorgegebenheit) de todo objeto concebível e apreensível a princípio. Considerando isso, eu devo mencionar expressamente a eventualidade que ainda possa haver, fora do existir e do subsistir, um terceiro, que ninguém nomeia mais ser, e que, finalmente, deveria unicamente ser caracterizado como qualquer coisa de aparentado ao ser (etwas Seinsartiges) no sentido mais amplo do termo. O que resta ainda por decidir, é precisamente a questão de saber se o Aussersein (fora-do-ser) ele mesmo é uma determinação ontológica (Seinsbestimmung) ou se ele indica simplesmente a falta de uma tal determinação.”

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exista extra mentem ou extra causas. Mas, uma tal versão do princípio de independência não é suficiente para caracterizar a posição aqui defendida por Meinong, pois desse modo ela nos reconduziria simplesmente à concepção escolástica, pré-kantiana, da realitas1. A independência que Meinong indica aqui é ainda aquela que é própria ao objeto por relação ao espírito e a sua visada. O objeto, considerado no que não mais deve ser nomeado seu ser, senão em um sentido largo e impróprio2, é apreendido, mas não constituído: importa aqui entender literalmente os termos que Meinong utiliza (erfassen, Erfassung) e que são justamente destinados a salientar esta dimensão de receptividade ou de passividade do ato teórico da apreensão. O objeto – e este é um ponto certamente central de oposição a Husserl – não é constituído, ele não tem mais o estatuto clássico de ser objetivo, sempre em última instância regrado sobre a res extra-mental e distinguido do ens rationis3. Se não é possível dar, nas formas, uma definição de objeto, a etimologia – como nota Meinong, em uma passagem evidentemente dirigida a Husserl – pode ao menos nos ajudar: com efeito, o Gegenstehen (estar diante) remete ao vivido que apreende o objeto (deveria dizer-se o obstante?), vivido que não seria visado como constitutivo de qualquer maneira que seja4. O mais notável é naturalmente aqui o fato que Meinong insiste nesta anterioridade do objeto como tal independentemente da questão de saber se se trata de um objeto, que se diria trivialmente real, a uma idealidade, ou a um ser de razão, em seu estatuto de fictum, figmentum:

1 Cf. J.-F. Courtine, Historisches Wörterbuch der Philosophie, éd. J. Ritter- K. Gründer, s.v. “Realitas”, Schwabe & Co. Verlag, Bâle, 1992, t. VIII, coll. 178-185.

2 Meinong não se priva de utilizar a palavra “Sein” tomada neste sentido amplo, o que, mesmo quando a acepção é tematizada, periga sempre de reconduzir a doutrina do objeto aos quadros de uma ontologia clássica. Cf., por exemplo, Selbstdarstellung, p [17]: “o ser, tomado no sentido mais amplo, que se tem diante de si em cada objetivo, revela-se seja como ser em sentido estrito (segundo o paradigma: “A é”), seja como ser-tal (“A é B”), seja como ser-com (implicação, “Se A, então B”)”.

3 Cf. Suárez, Disputationes Metaphysicae (Opera omnia, éd. C. Berton, t.XXV-XXVI, Paris, 1866, DM., XLIV, sect. 3, nn.1sq.).

4 Selbstdarstellung, p [12].

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Face à apreensão (dem Erfassen gegenüber), seu objeto (Gegenstand) é a cada vez o que é logicamente anterior, mesmo quando este objeto segue cronologicamente a apreensão. Isto porque a apreensão não pode jamais criar seu objeto, nem sequer modificá-lo, mas simplesmente o selecionar de qualquer maneira, ao extraí-lo da multiplicidade do que é préviamente dado (ao menos como estranho ao ser).1

Certamente é permitido permanecer um momento pensativo diante desta tese de uma apreensão que levanta seus objetos a partir da multiplicidade e da variedade infinita de um pré-dado (Vorgegebenes), ele mesmo fora-do-ser (ausserseiend): o bode-cervo, o outro deus ou o gato de Alice, resta que, como bem notou K. J. Perszyk, é ela que torna “interessante” a teoria do objeto. O princípio de independência do ser-tal não encontra sua verdadeira importância senão quando ele se aplica não apenas aos objetos possíveis, mas também aos impossibilia, uma vez que o ser-tal de um objeto não é afetado por seu não-ser (Nichtsein), ou melhor, que o não-ente (Nichtseiendes) procure, ao julgar que o apreende, seu não-ser:

Se eu digo “o azul não existe”, eu não penso senão o azul e não em um exemplar de azul ou nas qualidades e possibidades que ele poderia apresentar. É como se o azul devesse ter o ser em primeiro lugar, antes que se possa levantar a questão de seu ser e de seu não ser. (...) O azul, ou não importa qual outro objeto, é de qualquer maneira dado previamente à nossa decisão sobre seu ser e ele é dado de um modo que não prejulga seu não-ser. (...) Para se estar autorizado a afirmar que um certo objeto dado não é, parece que há que compreender o objeto, de qualquer maneira previamente, para falar de seu não-ser ou, mais precisamente, para sustentar ou negar a atribuição do não-ser a este objeto.2

Com efeito, se eu devo , por exemplo, a propósito de um objeto (“dado”), julgar que ele não é, faz-se necessário que eu possa, por conseguinte, apreender uma primeira vez o objeto para poder predicar dele o não-ser, ou mais exatamente lhe o imputar

1 Selbstdarstellung, p [43]. Cf. também Über Annahmen, GA., IV, p272-73.2 Gegenstandstheorie, p [491].

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ou lhe o denegar1. Faz-se necessário, logo, introduzir ainda um nível ou uma acepção de “ser”, além da existência e da subsistência; aquele que foi nomeado por Meinong “quase-ser”, depois “para além do ser e do não-ser” (o que convém ao objeto puro) ou ainda exterior ao ser, fora-do-ser. O ser é exterior ao objeto puro, diferentemente do ser-tal: “o que não é de maneira nenhuma exterior ao objeto e constitui a verdadeira essência, reside em seu ser-tal que adere ao objeto, quer ele seja ou não seja”.

Sem dúvida deve-se manter presente no espírito esta dimensão de doação ou de ser dado ou pré-dado2, se se quer interpretar rigorosamente o dito paradoxo de Meinong:

Es gibt Gegenstände, von denen gilt, dass es dergleichen Gegenstände nicht gibt,

cuja tradução só é evidente aparentemente. Dir-se-á: “Há objetos dos quais é verdadeiro dizer que não há tais objetos”, perdendo-se assim completamente o jogo sutil entre o primeiro “geben”, o “gelten” e o segundo “geben”. Comecemos pelo gelten, relembrando, no presente contexto, as distinções de Lotze (de quem Marty foi aluno):

Nós chamamos efetiva uma coisa que é, por oposição a uma outra que não é; efetivo também um acontecimento que teve lugar ou há tido lugar, por oposição a um outro que não acontece; efetiva uma relação que subsiste, por oposição àquela que não subsiste; enfim, nós nomeamos efetivamente verdadeira uma proposição que vale, por oposição àquela cuja validade é ainda duvidosa....3

1 É a terminologia introduzida por Brentano em sua análise (anti-aristotélica) do juízo: Anerkennen – Verwerfen, que substitui em seguida o par Zuerkennen – Absprechen. Cf. em particular Die Lehre vom richtigen Urteil, éd. F. Mayer-Hillebrand, Bern, Francke Verlag, 1956. §27, sq.. Cf. também Psychologie vom empirischen Standpunkt II, p194-96.

2 Cf. infra, p (29)?.3 H. Lotze, Logik, l.III, p511. (reimpressão da edição de G. Misch, por G. Gabriel, Hamboug,

Meiner, 1989): “... wirklich nennen wir ein Ding, welches ist, im Gegensatz zu einem andern, welches nicht ist; wirklich auch ein Ereigniss, welches geschieht, oder geschehen ist, im Gegensatz zu dem, welches nicht geschieht; wirklich ein Verhältniss, welches besteht, im

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O “gelten” aqui, entendido como uma espécie de efetividade, corresponde à acepção do ser (@) que se diz veritativo1.

Heinrich Rickert notou de sua parte, em uma perspectiva ainda largamente definitória:

... atualmente, eu nomeio ente tudo o que “há” em geral ou tudo o que se deixa pensar como “qualquer coisa” e, por conseguinte, o valer, o sentido, o valor, o dever-ser. (...) Nós tomamos, portanto, o “ente em geral” pelo conceito que subsume tudo o que é pensável...2

Inútil multiplicar as citações, vê-se claramente em que horizonte problemático se situa a decisão terminológica e doutrinária de Meinong: o gelten corresponde à acepção veritativa do ser: “é verdadeiro que...”; “é o caso”; “é assim”. O último “es gibt” pode ser entendido segundo a acepção mais larga e mais comum de ser: “há objetos para os quais, é o caso: tais objetos não são, não existem”. O elemento verdadeiramente problemático na formulação paradoxal de Meinong é o primeiro “es gibt” que o “há” português restitui muito mal, ou o inglês “there is”. Com efeito, com este “es gibt” nós estamos em presença de uma figura certamente elementar, extenuada até não mais poder, e reduzida quase à nada (mas justamente não a nada) da doação ou do ser dado. Longe de nós, naturalmente, a idéia ridícula de aproximar do “es gibt” meinonguiano o “es gibt” heidegeriano, tal qual ele aparece bem antes das últimas variações de Zeit und Sein no Sein und Zeit, para indicar, ademais entre aspas que deveriam ser interpretadas, que o Ser não é, mas que há o Ser3; resta que, no quadro estrito da teoria do objeto, a regra

Gegensatze zu dem, welches nicht besteht; endlich wirklich wahr nennen wir einen Satz, welcher gilt, im Gegensatz zu dem, dessen Geltung noch fraglich ist.”

1 Cf. Ch. Kahn, The verb “be” in ancient Greek, Dordrecht, Reidel, 1973, cap. VII.2 Rickert, Der Gegenstand der Erkenntnis, Tübingen, 19153, p264: “... ich nenne jetzt alles

“seiend”, was es überhaupt “gibt”, oder was sich als “etwas” denken lässt, also auch das Gelten, den Sinn, den Wert und das Sollen. (...) Wir haben also zunächst “Seiendes überhaupt” als den Begriff, unter den alles Denkbare fällt”.

3 Seria necessário ainda se interrogar sobre o primeiro curso friburgense de 1919 (Ga. 56-57, Zur Bestimmung der Philosophie) e sobre sua análise do “es gibt”, que começa por uma

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última -–o que se impõe a priori como a última instância -, é bem este dado: os objetos para os quais vale que eles não são, que os objeto assim constituídos, no seu ser-tal, não os há; eles não seriam ser, ou melhor, o ser (das Sein) não seria seu ser atribuído em um juízo nem a título de propriedade, nem a título de acidente. Este dado irredutível ou este pré-dado deve ser, então, tomado em seu sentido forte: ele se impõe a nós, ele se abre a priori a toda apreensão, ele é aquilo, de maneira quase empírica, de que nós sempre necessariamente devemos partir. Por isso Meinong pode retomar por sua conta, sem nenhuma ironia, a idéia emprestada a Fechner, de uma filosofia que começaria por baixo, isto é, pelo que é irredutivelmente dado, fosse este estranho ao ser (ausserseiend)1. Logo, é dado, fora do ser, isto que vale e que é verdadeiro: certos objetos não são, e isto de tal maneira que seu não-ser é ele mesmo sucetível de ser dado. Meinong se esforçou justamente para encontrar para seu “paradoxo” uma formulação mais facilmente aceitável, ao introduzir o conceito singular de Aussersein. Deve-se aqui seguir passo a passo Meinong em sua marcha visando reduzir esta fórmula paradoxal que ele não fez sua senão a contra-gosto: “Quem ama os paradoxos poderá muito bem dizer: há objetos a propósito dos quais se pode afirmar que eles não são”2. Ora, se trata justamente, na teoria dos objetos, de neutralizar este paradoxo. A solução óbvia – aquela contra a qual se constrói precisamente a teoria dos objetos – consistiria em interpretar o primeiro “es gibt” no sentido trivial de uma existência na representação ou de uma pseudo-existência: certos objetos são ou

variação sobre o “gelten” 9p 50sq.), antes de abrir a questão: “Gibt es das “es gibt” (p62), ecoando E. Lask que abordava a categoria do “Es-geben” como aquela da “reflexive Gegenständlichkeit” (Logik der Philosophie, 3ªed. reimpr. da edição de 1923, Tübingen, Mohr, 1993); seria ainda necessário retomar as reflexões do último Natorp e em particular as suas Vorlesungen über Praktische Philosophie. Cf. sobre este ponto Chr. von Wolzogen: “Es gibt” – Heidegger und Natorp “Praktische Philosophie”, em Heidegger und die praktishce Philosophie, éd. Annemarie Gethman-Siefert et Otto Pöggeler, Stuttgart, Suhrkamp, 1988, p313-37. Mas, nós reservamos este ponto delicado par uma outra nevegação.

1 Selbstdarstellung, p[40].2 Teoria do objeto, p [400].

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são possíveis, por exemplo, no intelecto divino, outros, que não são, não têm ser senão na e pela representação, a título de entia rationis ou de intentionalia, seu ser se reduz ao esse objetive, à pseudo-existência. Mas, e aqui se deve seguir o detalhe da argumentação (Teoria do objeto, §4), a tese da não-existência não remete nunca apenas à representação ou ao ser-representado, mas também a um objeto, digamos x, sobre o ser ou não-ser do qual se interroga: “se eu devo poder, a propósito de um objeto, julgar que ele não é, parece que eu estou na necessidade de apreender uma primeira vez o objeto para poder lhe predicar o não-ser”. Seja dito ainda, em outros termos, e de maneira mais rigorosa: ao objetivo que “A não é” ou ao não-ser de A, deve-se atribuir ainda um ser, fosse por meio de uma analogia da relação entre a parte e o todo. Tomando o objetivo pelo todo, se ele é, faz-se necessário que a parte, a objetidade ou o objectum (Gegenstand) seja também de uma certa maneira. Do objetivo do não-ser, se ele é, depreende-se, com efeito, o ser da objetidade. Isto, convenhamos, não é resolver o paradoxo, mas o aumentar, o que conduz à posição de um terceiro gênero, ou melhor, um terceiro nível de ser, para além da existência e da subsistência, aquele que Meinong nomeou durante um tempo “quase-ser”, diante da dificuldade de que a um tal ser (o “quase-ser”) não se poderia mais opor um não-ser do mesmo tipo. “Poderíamos ainda, questiona Meinong, nomear ser um ser ao qual, por princípio, não corresponde nenhum não-ser?”1 Não deveríamos, antes, renunciar à analogia entre todo e parte ou, ainda, complexo e elemento constitutivo, e objetivo e objetidade, estabelecendo que se o objetivo de um não-ser – entenda-se: o ser deste objetivo – não é “atribuido ao ser de seu objeto”, é que o ser e o não-ser não são sobre o plano do objeto. Seja dito ainda, de maneira mais apropriada, que o objeto puro está para além do ser e do não-ser, ou que ele é radicalmente estranho ao ser (ausserseiend). Trata-se aqui, naturalmente do objeto puro ou do objeto como tal – em seu minimalismo de seu

1 Teoria do objeto, p [492].

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gegenstehen, gegenbensein - , o que não contradiz em nada o fato que tal objeto absurdo (o quadrado redondo ou o bode-cervo) comporta em si a atestação de seu não-ser, tanto quanto a idealidade implica a de sua não-existência. Remetendo, desse modo, toda a dificuldade doutrinária ao termo mesmo do Aussersein – que acabamos de ver que ele não poderia sem mais ser trascrito como “para além do ser e do não-ser” -, Meinong entende reduzir o paradoxo ao qual seu nome está associado:

O que se pode de maneira pertinente denominar o princípio do fora-do-ser do objeto para dissipar definitivamente a aparência de paradoxo que forneceu o primeiro motivo para o estabelecimento deste princípio [o princípio da independência do Sosein em relação ao Sein].1

Do princípio da indiferença infere-se, portanto, que o ser ou o não-ser não pertencem à natureza do objeto: este está para além do ser e do não-ser, ou ainda, como indica Meinong de maneira mais precisa, ele é ausserseiend, estranho ao ser, fora-do-ser. Na verdade, se se toma a expressão ao pé da letra, deve-se compreender não é tanto o objeto que está fora da esfera do ser, esfera que se está inclinado naturalmente a privilegiar tomando-a por primeira, mas sim que o par ser/não-ser é que é exterior ao objeto: Sein wie Nichtsein dem Gegenstand gleich äusserlich ist.

Tal é o preço a pagar por uma completa des-ontologização do objeto como tal.

Se alguém julga, por exemplo, que um perpetuum mobile não existe, é portanto claro que o objeto (Gegenstand) do qual a existência é aí recusada, deve necessariamente ter propriedades e mesmo propriedades características, sem as quais a convicção da não-existência não poderia ter nem sentido nem justificação.2

Importa não recuar diante desta conclusão diretamente contrária à tradição da metafísica aristotélica, tomista tanto

1 Teoria do objeto, p [494]. Cf. também supra, p30, nota 2. ?2 Über Annahmen, §12, GA, p79.

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quanto scotista1. “O ser não é justamente apenas a condição que permitiria ao processo do conhecimento encontrar de qualquer modo um primeiro ângulo de visada, ele é, ao contrário, ele próprio um tal ângulo de visada. Mas, o não-ser o é, ele também, um bom ângulo.2

Atribuir-se-á, portanto, ao objeto puro, senão uma terceira ordem de ser, ao menos um estatuto próprio que não será nem a existência, nem a subsistência, mas justamente o Aussersein. Mesmo os objetos singulares do tipo “círculo quadrado” não são inteiramente um nada absoluto (vollends nichts), a eles cabe pelo menos este “fora-do-ser” que, a título de resto último do caráter posicional (äusserster Rest vom Positionscharakter), não pode ser recusado a nenhum objeto3. Desse modo o objeto puro (der reine Gegenstand) é, como se viu, “jenseits von Sein und Nichtsein”4, ele se dá para além do ser e do não-ser. Meinong, sabe-se, preferia a esta formulação esta outra, um pouco diferente: “Der Gegenstand ist von Natur ausserseiend...”. Com efeito, ao objeto como tal, o ser e o não-ser são “gleich äusserlich”, eles lhe são

1 Cf. Quodlibeta III, a.1, n.7-9, em Obras del Doctor sutil Juan Duns Escoto: Cuestiones cuodlibetales, éd. F. Alluntis (Madrid, BAC, 1968), p93-94: “illud est nihil quod includit contradictionem, et solum illud, quia illud excludit omne esse extra intellectum et in intellectu; (...) Et isto intellectu communissimo, prout res vel ens dicitur quodlibet conceptibile quod non includit contradictionem (...) potest poni ens primum objectum intellectus; quia nihil potest esse intelligibile, quod non includit rationem entis isto modo, quia, ut dictum est prius, includens contradictionem non est intelligibile”, (indicamos ainda a tradução inglesa por F. Alluntis et A. B. Wolter, em John Duns Scotus, God and creatures, The Quolibetal Questions, Princeton UP, 1975, p61.).

2 Teoria do objeto, p [494].3 É permitido interrogar-se sobre este caráter posicional irredutivelmente ligado ao ser, e

sobretudo de se interrogar sobre a compatibilidade deste “resto” de posição com a doação sobre a qual nós somos paralizados. O Kant crítico do argumento ontológico teria determinado, como se sabe, o ser (Sein) como posição. Em realidade, se trata de um caractere bem atestado do ser tomado no sentido de Dasein, existência. Cf. P. d’Auriole: “existere non est alliud quam extra sistere, extra videlicet causas suas. (...) Esse existentiae nihil aliud est quam poni in rerum natura, et existens est positum in rerum natura”. Scriptum super Primum Sententiarum, éd. M. Buytaert, N.Y., Franciscan Institute, St. Bonaventure, 1956, dist. VIII, sect. 21, 2 (p887-88). Pode ser, e é esta última hipótese que nós reteremos, que sob a pena de Meinong o caráter de posição remeta menos ao ato de pôr que a positividade. Cf. Über Annahmen, GA, IV, p80. Passagem citada supra, p 32. ?

4 Cf. sobre este ponto o volume coletivo editado por R. Haller, Jenseits von Sein und Nichtsein, Beiträge zur Meinong-Forschung, Graz, Akademische Drunk, 1972.

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igualmente exteriores, extrínsecos, estranhos por indiferença1. Nenhum objeto pode deixar de participar desta terceira ordem extra-ontológica que não se opõe à nada e não ao nada!

Pouco importa aqui a questão de saber se Meinong se manteve constantemente sobre esta linha de crista tão vertiginiosa do Aussersein – a única que responde à dupla injunção do princípio de independência: independência do ser-tal em relação ao ser e independência do objeto em relação ao espírito – o que em todo caso parece assegurado é que, como bem mostrou Perszyk, é esta tese que constitui o vivo da doutrina do objeto, e é por relação a ela que importa, o caso terminado, procurar os predecessores. Sem voltar aqui às aquisições importantes das pesquisas conduzidas por Alain de Libera2, eu quero, finalizando sem concluir esta breve apresentação, de um lado chamar a atenção para o belo desafio lançado por Perszyk3, e de outro, de maneira inteiramente exploratória em vista deste vasto programa de pesquisa, indicar uma direção: não mais estritamente medieval, mas tardo-escolástico, aquela aberta sem dúvida por Clemens Timpler ou R. Goclenius, onde a ontologia aristotélica é já passada em benefício de uma doutrina sobretranscendental do objeto e do algo. Simples sequência em atenção a estudos complementares de uma história ainda a escrever, esta da tino-logia.

III. (...)

1 Pode-se ver aí como que um eco ou melhor uma inversão radicalizadora da tese scotista e suareziana da neutralidade ou da indiferença em relação à existência do “conceptus entis”.

2 Notamente em “Subsistance et existence: Porphyre et Meinong”.3 K. Perszyk, Nonexistent Objects: Meinong and contemporary philosophy, p67sq.: “Embora

Meinong não foi certamente o primeiro filosófo a considerar a noção de não-existentes em uma ou outra forma, ou tomá-la a sério, eu advogo que é importante salientar as diferenças entre Meinong e seus precursores, se nós podemos aceitar a abordagem de que os não-existentes são literalmente sem-ser e independente da mente como algo que Meinong aceitava. A alegação de que um certo precursor acatou a teoria dos objetos não-existentes, especialmente no sentido “meinongiano”, pode ser altamente enganadora.”.

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12. Sobre a teoria do objeto

Alexius Meinong

Über Gegenstandstheorie; Selbstdarstellung; Mit. Einl., Bibliogr. u. Reg. hrsg. von Josef M. Werle; Hamburg, Meiner, 1988. pp1-51.

§1. A questãoQue não se pode conhecer sem conhecer algo; mais

genericamente, que não se pode julgar e também não representar sem julgar sobre algo ou representar algo, isto pertence ao mais evidente sob uma consideração elementar dessas experiências. Que no domínio da suposição não é diferente, eu pude mostrar sem recorrer a um exame especial1, embora a pesquisa psicológica sobre isso mal tenha começado. O problema é mais complexo no caso dos sentimentos, onde a linguagem, sem dúvida, mais nos induz ao erro, com a indicação do que se sente, o gozo, a dor, assim como a piedade, a inveja, etc., e, no caso dos desejos, na medida em que, a despeito do testemunho da ocorrência muito clara na linguagem, sempre tem-se que enfrentar a eventualidade de desejos que não desejam nada. Mas, mesmo aqueles que não compartilham a minha opinião — qual seja, que tantos os sentimentos quanto os desejos não são fatos

1 Über Annahmen, Leipzig, 1902, p. 256f.

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psíquicos independentes, porque eles são representações a título da inelutável “pressuposição psicológica”1 — concederão sem reservas que se goza de alguma coisa, que se interessa por alguma coisa e, ao menos na extrema maioria dos casos, que se não quer ou deseja sem querer ou desejar qualquer coisa, em suma, ninguém ignora que o processo psíquico tão frequentemente esteja de par com esta propriedade de “ser orientada para algo” que se está bem perto de ver nisso um aspecto característico que distingue o que pertence ao psíquico do que não é da ordem psíquica.

Todavia, não é a tarefa das considerações seguintes ex-planar porque eu tenho esta suposição como a melhor fundada a despeito das muitas dificuldades que a ela se opõem. Os casos em que a referência, o estar expressamente orientado para “algo” ou, como se diz muito grosseiramente, a um obje-to, são tantos que se impõe, mesmo que seja para dar conta desses casos, que a questão acerca de a quem cabe tratar de maneira científica estes objetos não deve permanecer sem resposta.

A repartição do que é que é digno de trabalho teórico e o necessário em diferentes domínios científicos, bem como a delimitação precisa desses domínios, deve-se reconhecer, não tiveram senão pouca incidência prática sobre o avanço da pes-quisa; o que importa, afinal, é o trabalho acabado e não a bandeira sob a qual ele foi realizado. Mas, a confusão sobre as fronteiras dos diversos domínios científicos pode ser justificada de duas maneiras opostas: ou os domínios nos quais efetivamente nós trabalhamos se interpenetram, ou, então, eles não se interpenetram e resta um domínio não-trabalhado entre eles. A importância destas confusões é no domínio teórico exatamente inversa a que tem no domínio prático. Neste a “zona neutra” é a garantia, com efeito, sempre bem-vinda, raramente obtida de relações de boa-vizinhança, enquanto que a interpenetração das fronteiras reivindicadas representa o caso típico de conflito de

1 Cf. meu Psychologisch-ethischen Untersuchungen zur Werttheorie, Graz 1894, p.34s., também Höfler, Psychologie, p.389.

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interesses. Ao contrário, no domínio do trabalho teórico, onde aparece a menor legitimidade de tais conflitos, a sobreposição de dois setores fronteiriços, que, por consequência, poderão ser eventualmente tratados de diversos pontos de vistas, representa, objetivamente, muito mais um benefício, enquanto a sua separação é sempre um inconveniente cuja importância será naturalmente função da extensão e da relevância do setor intermediário assim criado.

Interrogar-se sobre um semelhante domínio do saber, negligenciado a ponto de ele não ter reconhecido ao menos a medida de sua especificidade, eis o que visa o problema aqui posto de saber qual é de fato o lugar, de qualquer maneira legítimo, do tratamento rigoroso do objeto enquanto tal e em sua generalidade; trata-se da questão seguinte: existe entre as disciplinas reconhecidas por sua proveniência científica uma ciência onde se pode encontrar um tratamento rigoroso do objeto enquanto tal ou, ao menos, onde tem valor esta exigência?

§2. O pré-juízo a favor do efetivoNão foi por acaso que as reflexões acima tomaram o

conhecimento como ponto de partida para chegar ao objeto. Com certeza não é apenas o conhecimento que “tem” seu objeto; mas, ele o tem sempre de uma maneira singular que leva, quando se trata da questão do objeto, a pensar em primeiro lugar no objeto do conhecimento. Pois, o processo psíquico que se denomina conhecer não constitui, estritamente considerado, inteiramente o fato do conhecimento: o conhecimento é, por assim dizer, um fato bifronte, em que o conhecido não está diante do conhecimento como qualquer coisa de relativamente autônoma que este apenas se contentaria de visar, por exemplo, no modo de um falso juízo; ao contrário, ele é de qualquer maneira apreendido, apanhado, pelo ato psíquico, ou melhor, como se tenta em geral o descrever de maneira inevitavelmente figurada, ele é o indescritível. Se se considera exclusivamente este objeto de conhecimento, a questão

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que colocamos acerca de uma ciência do objeto se apresenta de saída sob uma luz pouco favorável. Uma ciência do objeto do conhecimento: significa isto que a exigência de fazer daquilo que já foi reconhecido como objeto do conhecimento o objeto de uma ciência, isto é, uma segunda vez, em fazê-lo um objeto do conhecimento? Dito de outro modo, não se procura assim uma ciência que seja ou constituída pelo conjunto das outras ciências ou que deva realizar uma segunda vez o que todas as ciências reconhecidas realizam sem ela?

Guardemo-nos, a propósito de tais considerações, de tomar como verdadeiramente incongruente a ideia de uma ciência universal diferente das ciências particulares. O que os melhores de todas as épocas tiveram em vistas como sendo o fim último e, sobretudo, o fim digno de seu desejo de saber, a apreensão da totalidade do mundo em sua essência e fundamento últimos, apenas pode ser a tarefa de uma ciência englobante ao lado das ciências particulares. Efetivamente, sob o nome da Metafísica não se pensou outra coisa senão uma tal ciência: e as esperanças frustradas, no passado como no futuro, ligadas a esta ciência, ainda são tantas, que a culpa se deve unicamente à nossa incapacidade intelectual e não à ideia desta ciência. Pode-se, porém, por causa disso, exigir-se da Metafísica que ela seja esta ciência cuja tarefa natural seria a elaboração do objeto enquanto tal, isto é, dos objetos em sua totalidade?

Quando se recorda a que ponto a Metafísica sempre teve a intenção de integrar ao domínio de suas colocações o mais próximo como o mais distante, o maior como o menor, pode parecer estranho que ela não possa assumir a tarefa que estamos evocando pela razão que, malgrado a universalidade de suas intenções, a Metafísica não teve sempre, e de longe, a visada suficientemente universal para ser uma ciência do objeto. A Metafísica lida, sem dúvida, com a totalidade do que existe. Mas, a totalidade do que existe, incluindo aí o que existiu e o que existirá, é infinitamente pequena em relação a totalidade dos

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objetos de conhecimento; e que se tenha negligenciado isto tão facilmente tem, bem entendido, o seu fundamento no fato que o interesse vivo pelo efetivo, que está em nossa natureza, favorece esse excesso que consiste em tratar o não-efetivo como um simples nada, mais precisamente, a tratá-lo como algo que não oferece ao conhecimento nenhum ponto de apreensão ou nenhum que seja digno de interesse.

Quão pouco esta opinião é correta mostram facilmente os objetos ideais1 que, certamente, são dotados de uma subsistência (bestehen), mas em nenhum caso de existência (existierien) e, por conseguinte, não podem de maneira alguma ser efetivos. A identidade ou a diferença, por exemplo, são objetos desse tipo: talvez, elas subsistam entre estas ou aquelas realidades efetivas (Wirklichkeiten), em tais ou quais circuns-tâncias, mas elas mesmas não são um elemento desta efeti-vidade (Wirklichkeit). Naturalmente está fora de questão que a representação, a suposição e o juízo tenham relações com estes objetos, e tenham seguidamente boas razões de se ocupar deles de maneira muito precisa. Também os números não são dotados de uma existência ao lado daquela do que é enumerado, no caso em que este exista; o que se compreende muito claramente, pois se pode enumerar o que não existe. Do mesmo modo, uma relação não existe ao lado do que está em relação, no caso em que este exista: que esta existência não seja, por sua parte, absolutamente indispensável, é o que demonstra, por exemplo, a relação entre a igualdade dos ângulos e igualdade dos lados de um triângulo. Além disso, a relação de inclusão une tudo, mesmo que se trate de algo que existe, como o estado do ar e a indicação do termômetro, ou do barômetro, não tanto as realidades efetivas elas mesmas quanto o seu ser ou também o seu não-ser. No conhecimento de uma tal relação já se está lidando com este gênero particular de objetos,

1 Sobre o sentido que eu penso deva ser dado à expressão “ideal”, cujo uso lingüístico é infelizmente equívoco, cf. minhas indicações em “Über Gegen-stände höherer Ordnung etc.”, Zeitschrift für Psychologie Bd. XXI, p.198.

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que eu espero ter mostrado1, que se situam face aos juízos e às suposições de uma maneira análoga àquela do próprio objeto em relação às representações. Eu propus para designar aqueles o termo “objetivo” (Objektiv), e mostrei que este “objetivo” ele mesmo pode assumir, por sua vez, as funções próprias de uma objetidade (Objektes) e tornar-se, em particular, o objeto (Ge-genstand) de uma nova apreciação que o leva em conta como uma objetidade (Objekte), tal como aquele das outras operações intelectuais. Se eu digo: “é verdadeiro que há Antípodas”, não é às Antípodas que se atribui a verdade, mas ao objetivo (Objektiv): “que há Antípodas”. A existência de Antípodas, porém, é um fato que cada um constata, também, ser ele dotado de uma subsistência, mas ele não pode, por sua vez, existir uma outra vez. Porém, isto vale igualmente para todos os obje-tivos, de tal modo que todo conhecimento que tenha por objeto (Gegenstande) um objetivo (Objektiv), representa igualmente um caso de conhecimento de um não-existente.

O que foi mostrado aqui, por meio de alguns exemplos limitados, é testemunhado por uma ciência inteira, muito de-senvolvida, mais, desenvolvida ao extremo: as matemáticas. Ninguém teria a intenção de qualificar as matemáticas como estranhas à realidade, no sentido de que elas não teriam nada a ver com o que existe: é inegável, com efeito, que elas têm assegurada, na vida prática tanto quanto na análise teórica do real, uma vasta esfera de aplicação. Todavia, o conhecimento matemático estrito não trata em nenhum caso de qualquer coisa da qual seria essencial que ela fosse efetivamente real. Jamais o ser de que se ocupam as matemáticas enquanto tais é existente; em relação a estas, jamais elas ultrapassam os limites do que é dotado de uma subsistência: uma linha reta não tem mais existência que um ângulo reto, um polígono regular ou um círculo. Que, na linguagem que elas empregam, as matemáticas

1 Über Annahmen, Kap. VII.

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podem falar expressamente de existência2, não se deve ver nisso senão como uma particularidade do seu emprego da linguagem, e nenhum matemático hesitaria em conceder que o que ele visa quando emprega o termo “existência”, a propósito dos objetos que ele submete às análises teóricas, não é, ao final, nada senão o que de hábito se denomina “possibilidade”, operando, sem dúvida, um giro positivo, ao mesmo tempo que notável, no conceito que de ordinário tem simplesmente uma conotação negativa.

Junto com o pré-juízo a favor do conhecimento da rea-lidade efetiva, indicado acima, esta independência de princípio das matemáticas em relação à existência permite compreender um fato que, sem levar em conta estes aspectos, não deixaria de parecer estranho. As tentativas que têm por finalidade um sistema articulando a totalidade das ciências se encontram logo de saída, quando se trata das matemáticas, em um emba-raço do qual elas não podem sair, com chances de êxito ao menos relativas, senão com expedientes mais ou menos artifi-ciais. O que contradiz de maneira gritante o reconhecimento, e se deveria dizer a popularidade, que as matemáticas adquiriram devido aos seus resultados até entre os círculos leigos. Ora, a ordenação de todos os saberes em ciências da natureza e ciências do espírito não dá conta, sob a aparência de uma disjunção radical, senão do saber que se ocupa da realidade efetiva: é fácil de se observar, quando não de se surpreender, que assim não se reconhece nenhum direito às matemáticas.

§3. Ser-tal e não-serNão há, então, nenhuma dúvida: o que deve ser objeto de

conhecimento não tem nenhuma necessidade de existir. As reflexões precedentes podem, entretanto, dar lugar à suposição de que a subsistência (Bestand) não apenas poderia substituir a

2 Cf. K. Zindler, Beiträge zur Theorie der mathematischen Erkenntnis, Sitzungs-beriche der kais. Akademie der Wissenschaften in Wien, philos. hist. Kl. Bd. CXVIII, 1889, p. 33, tbém 53s.

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existência (Existenz), mas que deveria necessariamente o fazer sempre onde nenhuma existência se dá. Mas, mesmo esta res-trição é inadmissível. Isto mostra-se pela observação das duas funções específicas do juízo (Urteilens) e da suposição (Anneh-mens) que eu procurei estabelecer contrapondo a “função tética e a sintética” do pensamento1. No primeiro caso, o pensamen-to apreende um ser (Sein), no segundo, um “ser-tal” (Sosein); naturalmente, se poderia denominar aquele como objetivo-de-ser e este como objetivo-de-ser-tal. Ora, isto responde, bem entendido, ao pré-juízo evocado mais acima em favor da existência efetiva, ao afirmar que se não está autorizado a falar de um ser-tal senão pressupondo sempre um ser. De fato, não teria muito sentido qualificar uma casa de grande ou pequena, uma região de fértil ou estéril, antes de saber se a casa ou a região existe, existirá ou existiu. Mas, a ciência a qual nós podemos a toda hora emprestar os mais numerosos argu-mentos contra este pré-juízo permite igualmente reconhecer, de maneira particularmente clara, a impossibilidade de sustentar um tal princípio: as figuras de que trata a geometria não têm existência, como nós sabemos; e, no entanto, suas propriedades, logo, seu ser-tal, podem ser indubitavelmente constatadas. No domínio do que é conhecível a posteriori, sem dúvida não se poderia justificar uma afirmação quanto ao ser-tal se ela não se funda sobre o saber que se tem de um ser: e é também certo que um ser-tal, que não tem nenhum ser por trás de si, seria muito seguidamente desprovido de interesse imediato. Tudo isto não muda em nada o fato de que o ser-tal de um objeto não sofre nenhum interdito pelo não-ser (Nichtsein) deste objeto. Este fato é suficientemente importante para que nós formulemos como sendo expressamente o princípio da independência do ser-tal em relação ao ser2; e o domínio de validade deste princípio se

1 Über Annahmen, p.142s. 2 Definido pela primeira vez por E. Mally em seu estudo, coroado pelo prêmio Wartinger de 1903, que foi publicado inteiramente reelaborado no n. III dessas Investigações. Cf. Kap. I, §3.

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manifesta, pelo menos em vista a isso, que decorrem deste princípio não apenas os objetos que não tem existência de fato, mas também aqueles que não podem existir porque são impossíveis. Não apenas a célebre montanha dourada é de ouro como o círculo quadrado certamente é tanto quadrado quanto é redondo. Evidentemente, no que concerne a tais objetos apenas excepcionalmente se registram conhecimentos de efetiva importância: não obstante isso, alguma luz pode ser jogada daí sobre os domínios cujo conhecimento é em grande medida digno.

Todavia, em vez de evocar tais coisas que de alguma maneira permanecem um pouco estranhas ao pensamento natural, mais instrutivo é observar o fato trivial — que permanece ainda nos limites do objetivo-de-ser —, que um não-existente (Nichtseiendes) qualquer deve ser (Sein) em alguma medida para fornecer um objeto (Gegenstand), ao menos, para os juízos (Urteile) que apreendem o seu não-ser (Nichtsein). Agora, é completamente inessencial se este não-ser é necessário ou simplesmente fatual, e também se, no primeiro caso, a necessidade tenha por origem a essência (Wesen) do objeto ou algum momento que é exterior ao objeto em questão. Para reconhecer que não há círculo quadrado, eu sou obrigado a fazer um juízo sobre o círculo quadrado. Quando, de maneira unânime, a Física, a Fisiologia e a Psicologia afirmam a assim denominada idealidade das qualidades sensíveis, é dito também, implicitamente, algo a propósito da cor e do som, a saber, que em sentido estrito nem estes nem aquelas existem. Quem gosta de paradoxos pode muito bem dizer: há (es gibt) objetos a propósito dos quais se pode afirmar (von denen gilt) que não há tais objetos; e o fato muito banal para todo mundo, que é assim expresso, joga uma luz tão clara sobre a relação entre os objetos e a realidade efetiva, i.é, o ser em geral, que absolutamente convém, no presente contexto, analisar mais de perto este problema cuja importância é em si mesma um fato decisivo.

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§4. O extra-ser do objeto puroPara neutralizar o paradoxo que parece aqui bem real, se

oferece, quase naturalmente, o recurso a certos fenômenos psíquicos, e eu já procurei expor o essencial no concernente ao caso presente1. Em conformidade com o que eu já mostrei, se se tem presente no espírito, por exemplo, a subjetividade das qualidades sensíveis, deve-se falar do objeto da representação do azul, para citar um exemplo, apenas no sentido de uma faculdade desta representação, cuja realidade efetiva, por assim dizer, propicia a ocasião da manifestação. Do ponto de vista da representação, parece-me ainda agora que se toca assim em algo essencial: mas, eu não posso hoje esconder que o objeto, para não existir, tem possivelmente ainda menos necessidade de ser representado do que para existir, nem também que mesmo para a possibilidade de ser representado — pelo que o objeto se presta —, não poderá resultar não mais que uma existência que seria “existência na representação”, isto é, mais exatamente, uma “pseudo-existência”2. Dito de modo mais preciso, se eu afirmo que “o azul não existe”, eu não penso, então, em uma representação nem em suas eventuais faculdades, mas sempre no azul. Tudo se passa como se o azul devesse antes ser, afim de que se possa levantar a questão de seu ser ou de seu não-ser. Mas, para não cair de novo em paradoxos ou incongruências efetivas, talvez se possa dizer: o azul e todo outro objeto é de algum modo dado antes de nossa decisão quanto ao seu ser ou não-ser, de uma maneira que também não pré-julga o seu não-ser. Do lado psicológico, se poderia igualmente descrever assim a situação: se eu devo, a propósito de um objeto, poder julgar que ele não é, parece que eu devo apreender antes uma vez o objeto para poder predicar o não-ser, mais exatamente, para lhe o imputar ou denegar.

Pode-se esperar fazer justiça a este estado de coisas

1 Über Annahmen, p98ss.2 Cf. “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, Op. cit. p186s.

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inteiramente singular, como se pode perceber, apesar de sua banalidade, com mais rigor teórico, graças à consideração que se segue. Que um certo A não é, brevemente, que o não-ser de A é, como eu mostrei em outro lugar1, ou que um objetivo é, como o ser de A: eu estou justificado assim em afirmar tanto que A não é, assim como ao objetivo “não-ser de A” advém um ser (mais precisamente, como se disse mais acima, uma subsistência). O objetivo, pouco importa que se trate de um objetivo-de-ser ou de um objetivo-de-não-ser, está em face de sua objetidade (Objekte), cum grano salis, na mesma relação que o todo face à parte. Mas, certamente se o todo é, a parte deverá também ser, o que, transposto para o caso do objetivo, parece significar: se o objetivo é, o seu objeto deve também necessariamente ser em um sentido qualquer, mesmo no caso em que este objetivo é um objetivo-de-não-ser. Mas, na medida em que, por outro lado, o objetivo interdiz precisamente de se considerar o nosso A como sendo, e considerando-se que, como nós vimos, o ser seja tomado conforme o caso não somente no sentido de existência, mas também no sentido da subsistência, a exigência, deduzida mais acima do ser de um objetivo-de-não-ser, de um ser do objeto parece ter sentido apenas se se tratar de um ser que não seria nem existência nem subsistência, sob a condição de que se integre aos dois níveis de ser, se se pode exprimir assim, existência e subsistência, um tipo de terceiro nível. Este ser deveria advir a todo objeto enquanto tal: a ele não pode corresponder um não-ser do mesmo tipo, pois um não-ser nesse novo sentido teria imediatamente por consequência necessária as mesmas dificuldades que aquelas que implica o não-ser no sentido habitual, e que a nova concepção teria em primeira linha afastado. É por esta razão que me pareceu por um tempo que o termo “quase-ser” (Quasisein) seria uma expressão bastante útil para designar este ser cujo estatuto permanece de todo modo um pouco insólito.

1 Über Annahmen, Kap. VII.

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Mas, no que concerne esta denominação, ela tem contra si certamente o perigo, utilizada ao mesmo tempo que outras designações depois de longo tempo atestadas, de produzir confusões, tal como “pseudo-existência” e “quase-transcendência”1. As objeções práticas são mais importantes. Poder-se-ia ainda nomear ser um ser que, por princípio, nenhum não-ser se lhe oporia? Além disso, se trataria de um ser que não seria nem existência nem subsistência — em nenhuma parte encontraremos motivo, que se pudesse aqui julgar, para um tal postulado: não seria o caso de não se hesitar em evitá-lo, também em nosso caso, tanto quanto possível? O que parece aí ser posto é um fenômeno, em verdade, muito bem observado: é necessário que A, nós o vimos, me seja de algum modo “dado” para que eu apreenda o seu não-ser. Isto implica, porém, como eu mostrei em outro lugar2, uma suposição de qualidade afirmativa: para negar A, eu devo previamente supor o ser de A. Bem entendido, desse modo eu faço referência a um ser, de alguma maneira, previamente dado de A: ora, é da natureza mesma da suposição que ela se direcione a um ser que ele mesmo não precisa ser.

Desse modo se esboçaria, no final das contas, a pers-pectiva, sem dúvida muito apaziguadora, de fundar a posse desse surpreendente ser do não-existente por mais absurdo que ele pareça, se o objetivo existente não exigir em todos os casos um objeto existente. Esta exigência não repousa senão sobre uma analogia com o comportamento da parte em relação ao todo: o objetivo seria tratado como um tipo de complexo, o seu objeto como um tipo de elemento constitutivo. Isto pode parecer conforme, sob muitos aspectos, à nossa concepção, por hora com muitas lacunas, da essência do objetivo: mas, ninguém negaria que a analogia seria apenas um primeiro expediente, e que não se tem nenhum direito de a tomar a sério, nem que fosse em uma certa medida. Em vez de deduzir, com base em uma analogia

1 Über Annahmen, p95. 2 Ibidem, p105ss.

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problemática, do ser do objetivo um ser de seu objeto, mesmo no caso em que este objetivo é um objetivo-de-não-ser, seria melhor tirar a lição dos fatos que nos ocupam que esta analogia não é precisamente válida para o objetivo-de-não-ser, isto é, que o ser do objetivo de maneira geral não depende do ser de seu objeto.

Esta é uma posição que por si mesma diz: se toda opo-sição entre ser e não-ser é apenas um problema do objetivo e não da objetidade (Objektes), no fundo, é evidente que nem o ser nem o não-ser podem se situar no objeto (Gegenstande) como tal. Isso naturalmente não significa que um objeto qualquer poderia nem ser nem não-ser. Isto não significa tam-bém afirmar que é da natureza de um tal objeto (Gegenstandes) poder ser puramente contingente se ele é ou não é: um objeto absurdo como o círculo quadrado implica a certeza de seu não-ser em qualquer sentido que isto tenha, um objeto ideal, como a diferença, a de sua não-existência em si. Seguramente, quem quer que desejasse fazer eco a um modelo tornado célebre afirmaria o resultado ao qual nós chegamos acima por meio dessa formulação, o objeto enquanto tal, sem levar em conta as particularidades eventuais ou de seu sempre dado objetivo aposto, talvez, pudesse dizer: o objeto puro se situa “para além do ser e do não-ser” (jenseits von Sein und Nichtsein). De maneira menos surpreendente e menos exigente também, mas, a meu ver, mais apropriada, se poderia dizer a mesma coisa expressando-se mais ou menos assim: o objeto puro é por natureza fora do ser (ausserseiend), embora de seus dois objetivos-de-ser, seu ser e seu não-ser, sempre um deles subsiste.

Portanto, o que se pode denominar de maneira pertinente o princípio do extra-ser (aussersein) do objeto puro dissipa definitivamente a aparência de paradoxo que forneceu o primeiro motivo ao estabelecimento deste princípio. Que ele não deixa, por assim dizer, para um objeto (Gegenstande), apreender o seu não-ser como seu ser, eis o que se compreende imediatamente desde que se entenda que, abstração feita das particularidades, ser e não-ser são igualmente exteriores ao objeto. Uma extensão bem-

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vinda está também aberta para o princípio evocado mais acima de uma independência do ser-tal (Sosein) em relação ao ser (Sein): ela nos diz que o que não é de maneira nenhuma exterior ao objeto e constitui, ao contrário, sua verdadeira essência, reside em seu ser-tal, o qual adere ao objeto, quer ele seja quer ele não seja. Finalmente, nós estamos agora, e a bem dizer somente agora, em posição de compreender de maneira suficientemente clara o que nós anteriormente reconhecemos como sendo o pré-juízo em favor da existência ou do ser de todos os objetos possíveis de conhecimento. O ser não é justamente a única pressuposição sob a qual o processo de conhecimento encontraria de alguma maneira um primeiro ângulo de ataque, ele é, ao contrário, ele mesmo um tal ângulo de ataque. Mas, o não-ser é também ele um bom ângulo. Além disso, o conhecimento encontra já no ser-tal de todo objeto um campo de atividade que ele não tem nenhuma necessidade de tornar acessível em respondendo antes a questão do ser ou do não-ser ou dando uma resposta afirmativa.

§5. Teoria do objeto como PsicologiaAgora nós sabemos quão pouco a totalidade do existente

(Existierenden), ou mesmo dos entes (Seienden), constitui a totalidade dos objetos de conhecimento, e também quão pouco uma ciência do efetivo (Wirklichen) ou do ente em geral, por mais universal que ela seja, poderia ser considerada como a ciência dos objetos do conhecimento tomados pura e simplesmente. Porém, ao mesmo tempo, nesses últimos parágrafos, não se consideraram ainda senão os objetos do conhecimento, enquanto que a questão posta no início dessas análises teria podido já ter resposta pelo fato que não é simplesmente o conhecimento, mas cada juízo (Urteilen) e cada representação (Vorstellen) têm seu objeto, para não falar outra vez da objetividade (Gegenständlichkeit) das vivências extra-intelectuais. Esta significação dominante, ou, como já indicamos rapidamente, esta significação caracterizadora

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da objetividade para a vida psíquica pode sugerir que nós, ao tomar exclusivamente em consideração apenas o conhecimento, nos deixamos levar por um desvio fácil de evitar, embora o mais natural é que esta ciência devesse se ocupar dos objetos como tais e que a ela cabe tratar de sua objetividade, tarefa esta que parece, conforme o que se deve de novo ser mencionado, não pode caber senão à psicologia.

Deve-se logo conceder que o atual exercício da psico-logia não é sob qualquer ponto de vista contrário a uma tal concepção. Por exemplo, existe uma psicologia dos sons, tanto quanto uma psicologia das cores que estão longe de considerar como uma tarefa acessória o esforço que procura ordenar a multiplicidade de objetos que pertencem ao domínio sensível em questão e a examinar as suas propriedades1. Também é inteiramente natural que a ciência dos fatos psíquicos integre às suas pesquisas as operações específicas do psíquico e em particular aquelas do intelectual. Seria uma psicologia do juízo muito estranha aquela que não tivesse nenhuma noção da capacidade de, sob condições suficientemente favoráveis, apre-ender algo além de si, de se apoderar de um certo modo da realidade efetiva. E, havendo ainda algo fora da realidade efetiva, que se pode conhecer e que nós podemos conhecer com a ajuda de certas operações intelectuais, então, certamente a psicologia não deve deixar de tomar em consideração, juntamente com esta faculdade este domínio extra-efetivo (ausser-wirklich), sobre o qual são direcionadas as operações que carac-terizam esta faculdade.

Desse modo, os objetos do juízo, da suposição e da re-presentação, bem como os do sentimento e do desejo, encontram sem dúvida um lugar na psicologia; todavia, todos dirão também que esta ciência não toma estes objetos em consideração por sua própria vontade. Para a práxis, no interior como no exterior de uma atividade científica, talvez seja seguramente um ponto

1 Para maiores detalhes, o meu “Bemerkungen über den Farbenkörper und das Mischungsgesetz”, Zeitschrift für Psychologie der Sinnesorgane, Bd. XXXIII, S. 3ff.

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inteiramente acessório saber o que é intencionalmente resultado principal e o que é resultado secundário obtido quase unicamente por acidente: nos estudos consagrados à Antiguidade, por exemplo, acontece certamente por acaso que os requisitos de interpretação de texto forneçam seguidamente aos filólogos indicações referentes aos “realia”. Porém, ninguém pensará em fazer passar o estudo da Antiguidade pela filologia clássica, a qual deveria nesse caso estender suas pretensões a disciplinas as mais diversas, mesmo se em realidade o fato de se ocupar das línguas antigas serviu de ponto de partida para investigações científicas tão diferentes quanto possíveis. Do mesmo modo, a pesquisa psicológica poderia assim se tornar frutífera para domínios vizinhos, tanto mais que a estes pertencem ciências que ou bem são menos desenvolvidas que a psicologia, ou bem não obtiveram ainda um reconhecimento formal a título de ciência especial. Que fenômenos desse tipo tenham efetivamente acontecido no que concerne à elaboração teórica dos objetos, nada o demonstra mais claramente que o exemplo já mencionado acima das cores, a propósito do que incontestavelmente foi o estudo aprofundado dos estados de coisas psicológicos que conduziu ao estudo dos estados de coisas próprios aos objetos, do estudo dos corpos coloridos a aquele do espectro de cores1. A referência feita à Linguística mostra, sob uma outra perspectiva, a que ponto não é permitido deixar a Psicologia passar como a autêntica ciência dos objetos. A Linguística tem também, desde que ela se ocupa da significação das palavras e das frases, obrigatoriamente a ver com objetos2 e a Gramática efetivamente prepara de maneira fundamental a apreensão teórica de objetos. Portanto, na verdade não é possível antever sob qual ponto de vista se deveria, nesses assuntos, conceder à Psicologia um privilégio: ao contrário, se reconhece claramente que nenhuma dessas disciplinas pode ser a buscada ciência dos objetos.

Mas, realmente seria algo estranho se, depois da tota-

1 Cf. Idem, p. 11ss.2 Cf. Über Annahmen, S. 271ss.

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lidade das ciências dos entes, incluindo aí a ciência da totalidade do efetivo, ter-se mostrado insuficiente para este fim, uma dentre elas, por assim dizer inopinadamente, revelasse uma aptidão para açambarcar a totalidade dos objetos. Agora, pode-se indicar precisamente de qual setor dessa totalidade a psicologia está em condições de se ocupar. A psicologia apenas pode se interessar por objetos sobre os quais um processo psíquico qualquer esteja efetivamente direcionado; pode-se dizer, talvez, abreviadamente: ela se interessa apenas pelos objetos que são de fato representados, para os quais existe representação, que também ao menos “existem em nossas representações” ou, mais corretamente, têm uma pseudo-existência1. Por isso, nós tivemos que caracterizar acima o corpo colorido, como conceito englobando todas as cores que efetivamente podem aparecer na sensação e na imaginação dos homens, como um assunto da Psicologia e, ainda assim sem uma precisão rigorosa, na medida em que esta totalidade, sendo não mais que uma multiplicidade de pontos, não constitui efetivamente um continuum, ao menos na medida em que os processos de alteração não podem ajudar2. A concepção do espectro das cores, ao contrário, funda-se apenas na natureza dos objetos concernidos, portanto, inteiramente não-psicológica, mas, sem nenhuma dúvida no plano da teoria do objeto, e nesse exemplo percebe-se de maneira imediata, sem apelar para considerações particulares, a diferença fundamental do ponto de vista adotado num caso e noutro.

Apenas um pensamento poderia ainda parecer capaz de destruir a impressão de completa disparidade, ao menos de tornar plausível, que, ao contrário da concepção defendida a propósito das cores, não pode haver nenhum objeto da representação que não pertença ao tribunal da Psicologia. Pode-se pensar que, seja qual for a via pela qual se decidiu introduzir o objeto concernido da elaboração teórica, nós deveríamos no final o apreender

1 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, Op. Cit, p. 186s.2 Cf. E. Mally, na terceira das presentes investigações, Cap. I, § 15, Cap. III, §10, Cap. IV, §25.

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(erfasst), logo, ao menos representá-lo; mas, desse modo ele já é incluído na série daqueles objetos pseudo-existentes que também concernem à Psicologia. Portanto, se eu penso num branco mais claro do que qualquer um que o olho humano tenha visto ou verá, este branco é, todavia, um branco representado, e nunca uma teoria, de qualquer maneira que ela seja constituída, poderá se referir a um não-representado.

Este pensamento relembra de um certo modo o argu-mento dos “idealistas” que estranhamente não foi ainda hoje completamente esquecido, segundo o qual o “esse” deve ser, se não também um “percipi”, ao menos um “cogitari”, porque nin-guém pode pensar um “esse” sem — o pensar. E, em todo caso, o efeito de tais considerações deveria ser antes contra à sua intenção do que em conformidade com ela. Se, com efeito, este ultrabranco que foi evocado se encontra incluído pela concepção no domínio da reflexão teórica, então, a partir desse evento psíquico tão novo na vida, é um trabalho inteiramente novo que pode se apresentar à Psicologia. Seguramente isto não é incontornável: no caso do exemplo considerado, nada desse gênero foi alcançado, pois há uma grande variedade de con-cepções análogas. Mas, deve-se ter à vista uma tal possibilidade; e se, por acaso, fosse ela de fato realizada, então, ficaria claro quão pouco a concepção do ultrabranco concerne à Psicologia. A teoria do objeto seguramente já fez o seu trabalho por meio desta concepção, eventualmente a Psicologia somente depois fará o seu; e, então, seria suficientemente estranho tomar o trabalho já feito, em vista de um trabalho futuro, por um trabalho já psicológico.

§6 – Teoria do objeto como teoria dos objetos do conhecimento.

O que a Psicologia não pode realizar de maneira alguma, por conseguinte, poderia ser investigado com melhores perspectivas ali onde são investigados fatos em cujas caracte-

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rísticas o objeto é parte constitutiva. A partir do que foi visto acima, não há dúvida nenhuma de que fatos desse tipo se dão ao conhecimento. O conhecimento é um julgar (Urteilen) que não é verdadeiro apenas de maneira contingente, mas naturalmente e por assim dizer de maneira intrínseca: mas, um juízo é verdadeiro, não na medida em que há um objeto existente (existierenden) ou mesmo apenas um objeto que é (seienden Gegenstand), mas antes enquanto ele apreende um objetivo que é (seienden Objektiv). Que há cisnes negros e que não há um perpetuum mobile, são ambas verdadeiras, embora se trate num caso de um objeto existente e no outro de um objeto inexistente; na primeira subsiste (besteht) precisamente o ser, na segunda o não-ser do objeto em questão. A verdade está ligada em cada caso ao ser deste objetivo e é isto que a constitui. O juízo não seria verdadeiro se o objetivo em questão não fosse. O juízo também não seria verdadeiro se ele fosse constituído diferentemente de como ele é, e se por conseguinte ele igualmente não concordasse com o fato. A coincidência desta exigência subjetiva e desta exigência objetiva pode, então, ser inteiramente contingente: como quando se retira uma conclusão verdadeira de premissas falsas.

Agora, esta contingência ou exterioridade é sem dúvi-da estranha à relação entre conhecer e conhecido: está na natu-reza do juízo que este não passa, por assim dizer, ao lado do que é conhecido; e esta propriedade do conhecer valida-se diante do tribunal da Psicologia como aquilo que se conhece como evidência (Evidenz). Porém, o juízo evidente não consti-tui por si o fato do conhecer: essencial é a apreensão da objetidade (Objektes) ou do objetivo (Objektivs), por isso o ser deste último é indispensável. Nessa perspectiva, o conhecer é inteiramente idêntico no juízo que é verdadeiro per accidens, por assim dizer, e é por esta razão precisamente que o conhe-cer pode, no início da presente exposição, ser caracterizado como um fato dúplice. Aquele que quer se aprofundar cienti-ficamente neste fato dúplice

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não deve, então, limitar-se ao aspecto psicológico, mas deve também levar em conta explicitamente, como uma parte da tarefa que lhe incumbe, o segundo aspecto, isto é, os objetivos que são e as objetividades que neles estão implicadas.

Nós retornamos aqui, quanto a nossa questão principal, de certa maneira a um ponto de vista que tivemos que abandonar no parágrafo precedente, ao considerar o fato de que os objetos não pertencem somente ao conhecer, mas também aos juízos errados, às representações e às atividades psíquicas realmente extra-intelectuais. Na medida em que nós chegamos ao resultado de que a doutrina dos objetos poderia naturalmente ser abordada no contexto da elaboração científica do conhecer, a questão se impõe de saber se, em virtude da limitação ao conhecer, e correlativamente da exclusão de todos os outros processos psíquicos, não seria uma parte dos objetos eliminada, o que conduziria ao abandono da universalidade, a qual, porém, não se pode renunciar quando se trata dos objetos enquanto tais.

Entretanto, essas ponderações são infundadas. Para se perceber isto, deve-se refletir numa diferença característica que resta entre a Psicologia e a ciência do conhecer. Compreende-se por si mesmo que a Psicologia lida somente com os eventos psíquicos efetivos e não com os simplesmente possíveis. A ciência do conhecer não pode se fixar tais limites, não apenas porque o saber como tal tem valor, de tal modo que o que não é, mas que poderia ser, chama sobre si a atenção, ao menos a título de desiderata. Por isso, entram em questão como objetos de nosso saber não apenas o conjunto de objetos pseudo-existentes, isto é, aqueles que são efetivamente julgados ou representados, mas também todos os objetos que não são objetos de nosso saber senão a título de possibilidade. Mas, não há nenhum objeto que não seja objeto de conhecimento, ao menos como possibilidade, se se coloca na perspectiva desta ficção, de outro modo muito instrutiva, segundo a qual a aptidão ao conhecimento não seria afetada por nenhuma limitação, inscrita na constituição do

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sujeito, e que de fato não pode desaparecer completamente, do tipo daquelas que estão associadas à capacidade de sensação ou de distinção. Sob a pressuposição de uma inteligência não limitada em suas aptidões e suas operações, não há nada incognoscível, e o que é cognoscível também dá-se (gibt es), ou, porque habitualmente se diz “dá-se” principalmente do que é, e especialmente do existente, seria preferível dizer: tudo o que é cognoscível é dado (gegeben) — precisamente ao conhecer. E, na medida em que todos os objetos são cognoscíveis, a todos sem exceção pode ser atribuído o ser-dado (Gegebenheit) como propriedade universal, quer eles sejam quer não.

Não se faz mais necessário expor a consequência no que concerne à relação dos objetos do conhecimento com os objetos das outras atividade psíquicas. Os objetos, seja qual for o tipo de vivência a qual eles pertençam, são inequivocamente também objetos de conhecimento. Portanto, aquele que procura elaborar os objetos do ponto de vista do conhecer e cientificamente não tem que se preocupar quanto à questão de saber se, em assumindo esta tarefa, ele não corre o risco de desse modo excluir um domínio qualquer da totalidade dos objetos.

§7 – Teoria do objeto como “lógica pura”.Conforme a uma antiga tradição, primeiro deve-se pensar

na lógica quando está em questão a elaboração científica do conhecer; e efetivamente, apenas em uma época recente, pela primeira vez, a lógica se impôs, em uma de suas partes principais, a lógica pura ou formal1, tarefas2 que coincidem de maneira inegável com aquelas que deveriam ser plausivelmente realizadas por uma elaboração científica dos objetos enquanto tais. Eu já assinalei a minha aprovação fundamental, em outro lugar3, ao ataque de Husserl contra o “psicologismo” na lógica e numa

1 Cf. E. Husserl, Logische Untersuchungen, 2 Bde. Leipzig und Halle, 1900 und 1901. Lógica “pura” e “formal” são expressamente identificadas, p. ex., Bd. I, p. 252.2 Em particular, Bd. I, p. 243ss; também Bd. II, p. 92ss.3 Über Annahmen, p. 196.

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época em que, por razões exteriores, apenas pude tomar conhecimento de uma maneira provisória e ainda muito incompleta da considerável obra do referido autor. Hoje, quando eu espero ter reconhecido, fazendo-lhe justiça por meio de um estudo aprofundado, os méritos da obra em questão, eu não posso mais sustentar a expressão de minha aprovação, pois eu tenho que atender a muitas outras coisas, incluindo aquelas “tarefas”, e, se eu prefiro não atribuir precisamente tais tarefas à “lógica pura”, isto não é senão um desacordo de uma importância relativamente secundária.

As condições que parecem ser aqui determinantes concernem, tanto quanto eu posso ver, que se não pode, sem violência, dissociar da lógica a ideia de uma arte interessada nas operações do intelecto e suas aptidões; que, portanto, a lógica permanece em todas as circunstâncias uma “disciplina prática”1, cuja elaboração permite que se efetue a passagem àquilo que eu, na ocasião, caracterizei como uma “disciplina teórico-prática”2. Por isso, eu prefiro antes não mais nomear lógica uma disciplina que tenha sido “purificada” de toda visada prática e que por conseguinte deveria ser caracterizada como “lógica pura”3; eu prefiro reservar as tarefas atribuídas à “lógica pura” à única disciplina teórica ou à única das disciplinas teóricas a que deve a lógica, como todas as outras disciplinas práticas, terminar por retornar.

Que nesse sentido não se deve recorrer exclusivamente à Psicologia, é um ponto sobre o qual, como acima novamente foi evocado, eu compartilho inteiramente a opinião com o autor das Investigações Lógicas. E quando eu considero os conceitos

1 Eu tentei desenvolver isto no meu escrito Über philosophische Wissenschaft und ihre Propädeutik, Viena, 1885; comparar em particular p. 96s.2 Ibidem, p. 98.3 Pelo termo equivalente “Lógica formal” me vem ainda à memória tudo o que se tem ensinado quase exclusivamente sob este nome e que teve que ser combatido e muito bem superado. Deveria haver aí uma propriedade individual simples? Por isso, talvez, não se torna evidente a pouca adequação da palavra “Forma” para o que ela pretende designar, ao menos em fornecer uma imagem minimamente clara?

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principais aos quais ele sempre retorna sem cessar em sua polêmica contra o “psicologismo”, afim de caracterizar este domínio extrapsicológico do saber, me é difícil evitar a im-pressão de que nosso autor não conseguiu ele mesmo se livrar inteiramente daquilo que ele combate de maneira justa com tanto zelo. A “lógica pura” lida com os “conceitos”, com as “proposições”, com as “deduções”, etc. Porém, afinal não seriam os conceitos representações (Vorstellungen) elaboradas para fins teóricos, mas justamente ainda representações? E quando, diante de uma “proposição”, se faz abstração da significação gramatical deste termo, de outro modo tão presente, como o exigia expressamente Bolzano, por exemplo, pode-se agora fazer igualmente abstração do processo psíquico (a suposição ou o juízo) expresso pela proposição gramatical ou, mais precisamente ainda, se isto é feito, o que nos resta que possa ainda pretender levar o nome de “proposição”? Mas, obviamente subsiste ali ainda um sentido extrapsicológico, mesmo com o sentimento de um uso um tanto metafórico das palavras, quando se fala do “princípio (Satz) de contradição”, do “princípio de Carnot”, etc.1 Tal sentido está inteiramente ausente, tanto quanto eu vejo, no termo “dedução” (Schluss). Pois, se se fala igual e naturalmente “da” dedução segundo o modo “darapti”, “da” dedução hipotética, etc., não se visa desse modo menos um processo intelectual, ou mesmo seu possível resultado, do que um processo fisiológico quando se fala “da” circulação do sangue.

Por isso, me parece que o fato de alocar as deduções e demonstrações “objetivas”, por oposição às deduções e de-monstrações subjetivas2, corre o risco de obscurecer mais do que clarificar a situação, se me é permitido retirar do conteúdo geral das Investigações lógicas e de numerosas análises detalhadas, a convicção que, a despeito de várias divergências nos detalhes, na época inevitáveis, são no essencial os mesmos fins aos quais as

1 Naturalmente, trata-se aí dos objetivos (Objektive), cf. Über Annahmen, p. 197, nota. 2 Logische Untersuchungen, vol. II, p. 26, tbém 94 e 101.

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investigações filosófico-matemáticas1 permitiram ao nosso autor, que me possibilitaram a distinção, devida a considerações em parte efetivamente e em parte supostamente psicológicas, entre conteúdo (Inhalt) e objeto (Gegenstand)2 e, mais ainda, aquela entre objetidade (Objetkt) e objetivo (Objetiv)3. Em tais circunstâncias, seria mais útil a esta causa comum, em vez de insistir sobre as reservas de ordem essencialmente terminológicas, evocadas acima, ou sobre pontos deste tipo, se eu tentasse antes explorar brevemente como a meu ver se deveria enfrentar o perigo do “psicologismo”, sem dúvida ainda não completamente eliminado, não obstante a atenção que lhe foi dedicada.

§8 – Teoria do objeto como Teoria do conhecimento.Antes, contudo, retiremos da objeção que se acabou de

formular contra a expressão “lógica pura” uma consequência prática imediata. Desde há muito tempo não se encontra um nome para uma doutrina do saber que, por representar uma ciência teórica, não tem nenhum fim prático. Para esta não se poderia desejar como mais natural a designação “teoria do conhecer”, ou mais precisamente “teoria do conhecimento”. Eu falarei, então, de “teoria do conhecimento” em vez de “lógica pura”, e espero mostrar agora que a questão do “psicologismo” na teoria do conhecimento nos reconduzirá de novo à teoria dos objetos, da qual as considerações precedentes aparentemente nos afastaram um pouco.

O “psicologismo”, quando designa uma inclinação natural ou uma disposição fundada sobre reflexões fundamentadas de abordar a solução de problemas com a ajuda de meios predominantemente psicológicos, não implica em si nada de repreensível4. Mas, dentro de um círculo de problemas definido,

1 Compare Idem, Prefácio do vol. I, p. V.2 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p. 185ss.3 Über Annahmen, p. 150ss.4 Em relação a isso, me abona no principal a objetividade demonstrada pela exposição

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precisamente este que nós nos ocupamos aqui, uma coloração negativa não é absolutamente estranha a esse termo: pois, compreende-se precisamente por ele um modo de tratamento psicológico no lugar errado. Na medida em que o conhecer é uma vivência, o modo de consideração psicológico não pode ser excluído por princípio da teoria do conhecimento; terá de tratar de conceitos, proposições (juízos e suposições), de raciocínios, etc., também de modo psicológico. Mas, face ao conhecer se põe o conhecido; o conhecer é, como já indicamos muitas vezes, um fato de dupla face. Aquele que negligencia o segundo aspecto e que, portanto, procede à maneira da teoria do conhecimento, como se houvesse apenas o lado psíquico do conhecer, ou aquele que desejaria subjugar este segundo ao ponto de vista do processo psíquico, não poderia evitar o reproche de psicologismo.

Poderíamos tornar claro, ao menos de certa maneira, em que consiste verdadeiramente o perigo que o psicologismo traz, perigo ao qual nenhum daqueles que se ocupam das questões pertencentes à teoria do conhecimento pode escapar sem pagar tributo? Aquela duplicidade do conhecer é suficientemente insidiosa que quase ninguém pode a desconhecer, mesmo se houvesse apenas o existente para conhecer. Mas, já as matemáticas em geral, e singularmente a Geometria, tratam, como nós vimos, do não-efetivo; e assim o pré-juízo, já denunciado muitas vezes, em favor da realidade efetiva já aí conduz a um dilema que parece evidente e no fundo tão estranho, do qual não se pode ter facilmente consciência explícita e que pode ser formulado assim: ou bem aquilo sobre o qual se volta o conhecer existe na realidade efetiva, ou bem ele existe, ao menos, “em minha representação”; em suma, ele “pseudo-existe”. Em favor da naturalidade desta disjunção nenhum testemunho é mais eloqüente que o emprego da palavra “ideal”, que na consciência

dos fatos devida a Überweg-Heinze, que coloca a minha própria atividade científica sob o título geral “psicologismo” (Grundriss der Geschichte der Philosophie, 9ª ed., 4ª parte, p. 212sg.). Para ver em que sentido eu mesmo devo concordar com esta caracterização, comparar Über Annahmen, p. 196.

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moderna da língua e na ausência de qualquer consideração histórica, significa aproximadamente aquilo que é “pensado” ou “somente representado” e, por isso, por si mesma parece perfeitamente aplicável a todos os objetos que não existem e também aos que certamente não podem absolutamente existir. Acredita-se involuntariamente que o que não existe fora de nós, ao menos, deve existir em nós: e com isso pertenceria ao tribunal da Psicologia, e então se poderia dar espaço enfim para o pensamento de que talvez o conhecimento do existente e, com este conhecimento, a realidade efetiva ela mesma, seriam suscetíveis de uma abordagem “psicológica”.

Talvez, agora aquele pré-juízo em favor da realidade efetiva deixe-se retroceder um passo atrás, mostrando a verdade de onde ele se originou. Seria certamente errado crer que cada conhecimento tem que ser de existência ou de um existente (Existierenden): mas, não é correto que no final, todo conhecimento como tal tem a ver com o que é (Seienden)? O que é, o “fato” (Tatsache), sem o qual nenhum conhecimento pode valer como conhecimento, é o objetivo (Objektiv) apreendido por um ato de conhecimento apropriado, ao qual cabe um ser (Sein) ou mais exatamente um subsistente (Bestand), quer seja positivo ou negativo, quer se trate de um ser (Sein) ou de um ser-tal (Sosein). Seria muito ousado supor que a fatualidade (Tatsächlichkeit) do objetivo (Objektiv), associada inevitavelmente a todo conhecer, sofreu uma transposição para a objetidade (Objekt) que a teoria considera quase que unicamente, para tornar-se em seguida, por extrapolação, uma tácita exigência de realidade efetiva aplicando-se a tudo o que se oferece ao conhecimento?

A questão pode aqui ser deixada sem solução: não é a psicologia do psicologismo que constitui nosso problema. Porém, o que permanece fora de dúvida, em todo caso, é que o psicologismo na teoria do conhecimento acaba sempre por negligenciar ou desconhecer o lado objetual do fato do conhe-

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cimento, a palavra “objeto” (Gegenstand) sendo aqui tomada em sua acepção mais larga, segundo a qual ela inclui também o objetivo (Objektiv). Aquele que não apreendeu a significação e a especificidade do objetivo (Objektiv) e procura, por conseguinte, na objetidade (Objekte) o ser (Sein) que pertence a todo conhecer, não está em condições de apreciar suficientemente a eventualidade do não-ser (Nichtseins) e do ser-tal (Soseins), e pensa que em todo ente (Seienden) deve-se encontrar um efetivo (Wirkliches), este cai no psicologismo. E aquele que quer se proteger disso não tem certamente a necessidade de se dar por tarefa eliminar cuidadosamente toda a psicologia da teoria do conhecimento: a psicologia do conhecer deverá antes constituir sempre uma parte integrante da teoria do conhecimento; deve-se apenas evitar de incluir como psicologia, na teoria do co-nhecimento, o que precisamente é e deve permanecer — teoria dos objetos.

Se, então, a teoria dos objetos do conhecimento, ou mais brevemente a teoria do objeto, é apresentada para nós como uma parte integrante da teoria do conhecimento1, então, se poderia agora facilmente encontrar também resposta à questão posta no início da presente reflexão. O lugar apro-priado para a investigação dos objetos como tais, assim nós podemos agora dizer, é a teoria do conhecimento. E, de fato este é um resultado que se pode aceitar sem prejuízo maior para a teoria do objeto. A teoria do conhecimento será e permanecerá, quanto mais ela tenha consciência de suas tarefas, muito mais seguramente, uma parte essencial da teoria daquilo que é para ser conhecido, do “dado” (Gegebenen) no sentido antes usado dessa palavra, portanto, dos objetos em sua totalidade, e os interesses próprios da teoria do conhecimento prepararão naturalmente, e seguidamente de maneira suficiente, a via aos da teoria do objeto.

1 No que concorda o mais novo estudo de A. Höfler, “Zur gegenwärtigen Naturphilosophie”, no caderno 2 de Abhandlungen zur Didaktik und Philosophie der Naturwissenschaft, editado por F. Poske, A. Höfler e E. Grimsehl, Berlim, 1904, p. 151 (p. 91 da edição separada).

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Portanto, se eu não me engano, deve-se ainda dar um passo a mais, se se quiser efetivamente fazer justiça às pretensões que uma teoria dos objetos, graças a sua especificidade, está habilitada a erguer.

§9 – Teoria do objeto como ciência especial.Em consequência disto, mostra-se agora a posição da

outra ciência, a qual nós antes atribuímos uma participação fundamental, ao lado da teoria do objeto, na teoria do conhe-cimento: a Psicologia. Não pode haver, nós aceitamos isso como auto-evidente, nenhuma teoria do conhecimento que não trate do ato de conhecer e, nessa medida, que não seja também psicologia do conhecimento. Mas, ninguém pode desejar considerar por isso que a posição da Psicologia no sistema das ciências seja definida pela importância que ela tem na teoria do conhecimento, ninguém desejará ver na Psicologia tão somente uma parte da teoria do conhecimento. No caso da teoria do objeto, ficar-se-ia satisfeito com uma caracterização semelhante? É essencial para o interesse pelos objetos, passar igualmente pelo interesse no conhecer?

Que não seja assim, qualquer um que se familiarizou um pouco com os problemas relativos à teoria do objeto tem, de maneira suficiente, uma experiência direta. A consideração seguinte é menos direta, mas não menos clara, a qual se pergunta até que ponto seria possível tornar útil cada aspecto da teoria do objeto a que a presente investigação já nos conduziu e nos conduzirá, no futuro, para os problemas da teoria do conhecimento. Pode-se, como foi feito acima, exaltar a importância fundamental de certos resultados derivados da teoria do objeto, notadamente no terreno do psicologismo epistemológico e noutros domínios, e conceder entretanto que a teoria do objeto coloca também problemas cuja solução não pode ser abordada senão em virtude de um interesse intrínseco a ela atribuído.

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Isto se tornará particularmente claro se se parte de um pressuposto que, certamente, possui ainda muitos aspectos inexplicados, mas com o qual eu não temo me desviar ao abordar o problema principal. Eu observei, mais acima, que jamais se encontrou, realmente, um lugar que fosse verdadeiramente natural para as matemáticas no seio do sistema das ciências. Se eu não me engano, a razão é que, do ponto de vista da problemática principal, a concepção da teoria do objeto ainda não tinha sido desenvolvida; no essencial, porém, as matemáticas são uma parte da teoria do objeto. Eu digo “no essencial” e assim quero deixar, o que eu indiquei com a alusão a pontos que restam inexplicados, expressamente aberta a eventualidade de uma diferenciação, de qualquer maneira inteiramente específica, dos interesses matemáticos1. Mas, com exceção dessa eventualidade, me parece inteiramente evidente que certos aspectos internos e externos asseguram às matemáticas, no seu domínio próprio, a vantagem de oferecer, para organizar todo o domínio de objetos, o que a teoria do objeto deve se dar por tarefa ou ao menos ter diante dos olhos como um ideal seguramente inacessível. Porém, se isso é correto, então é de todo evidente quão pouco os interesses pró-prios da teoria do objeto, na medida em que eles sejam tratados em um nível mais especial, são ainda interesses cognitivo-teoréticos.

Disto que foi exposto, eu concluo que a teoria do objeto reivindica a posição de uma disciplina independente da teoria do conhecimento e, portanto, tem a pretensão de uma disciplina científica autônoma. Visto que esta exigência não pode se erguer sobre alguma coisa acabada, senão que, ao contrário, ela mal ultrapassou o estágio inicial de sua realização, o desenvolvimento avançado de uma parte do todo, que é antes uma indicação do que um resultado, não apresenta obstáculos exteriores contra o reconhecimento desta exigência situada apenas no discurso. Um matemático não veria como uma exigência insignificante, se ele

1 Comparar, como esboço de uma definição mais apropriada, E. Mally, no número III das Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Introdução §2, Cap. VII, §40s.

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tivesse que conceder que ele “na realidade” é um teórico do objeto. Mas, também ninguém exigiria de um físico ou de um químico que eles se tomassem como metafísicos, de uma parte, porque é impossível definir ou nomear uma ciência existente a partir de uma disciplina que não está senão no nível do desejo e, por outra parte, porque uma disciplina relativamente mais geral pode e deve, enquanto tal, se propor objetivos estranhos a uma outra que é relativamente mais especial. Este segundo ponto é em certa medida ainda obscuro, quando se trata da relação entre as matemáticas e a teoria do objeto, pelo fato de que no domínio desta última as matemáticas representam não uma, entre outras, mas a única disciplina especial conhecida e reconhecida em sua singularidade. Assim, a teoria dos objetos é uma tarefa dúplice, cujos aspectos todos não são talvez da mesma natureza, de um lado ela persegue os objetivos próprios de uma disciplina cuja generalidade e extensão são as maiores e, de outro cabe a ela substituir todas as ciências especiais dotadas de um domínio específico que até agora não se beneficiaram de um tratamento particular. Através dessa necessidade de, nos casos faltantes, descer até os domínios relativamente particulares, inevitavelmente será obscurecido novamente o caráter de ciência universal, e a subsunção das matemáticas no domínio da teoria do objeto poderá, então, facilmente parecer ameaçar sua especificidade e sua legitimidade.

Mas, tais considerações exteriores e contingentes não devem impedir a percepção da copertinência íntima, na medida em que ela exista. Compreende-se melhor esta situação, de todo modo complexa, se se diz: as matemáticas seguramente não são teoria do objeto, mas como que uma ciência em si; porém, seus objetos se situam em um domínio que em sua totalidade a teoria do objeto tem de legitimamente tratar.

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§10 – A teoria do objeto nas outras ciências. Teoria geral e teoria especial do objeto.

Em relação ao material com o qual ela tem de lidar, isto é, em relação às diversas ciências, a teoria da ciência pode conforme o caso adotar um ponto de vista dúplice. Quando ela se fixa no princípio das ciências empíricas, seguramente a atitude mais natural é esta: primeiro os fatos, depois a teoria. Faz-se necessário, com efeito, que as diversas ciências sejam dadas para que se possa então se manifestar a necessidade de abordar um pouco mais de perto a sua natureza e suas relações mútuas. Mas, a ciência é também, em parte ao menos, o resultado de uma atividade de antecipação e a teoria da ciência pode, para servir esta antecipação, tratar também de disciplinas que ainda não existem, mas que deveriam existir, e ela pode se propor determinar o conceito e as tarefas destas ciências tanto quanto seja possível.

Nós também fomos levados a reflexões que pertencem à teoria da ciência, no que precedeu, constrangidos pelo interesse que nós temos pelos objetos. Isto nos obriga a operar conforme o segundo dos modos antes indicados: a teoria do objeto, que nós devemos considerar como uma ciência própria, no principal é uma ciência que, enquanto considerada como uma disciplina particular, expressamente reconhecida em sua legitimidade específica, no momento ainda não existe. Agora, absolutamente não se deve entender por isso que a teoria do objeto foi até agora tão pouco praticada em função de seu assunto quanto de seu nome. E pode ser que a exploração precisa das conexões, extremamente estreitas e numerosas, com outras vias de pensamento já abertas, apenas seja oportuna no momento em que a procurada nova ciência se legitime ela mesma, pelo que ela está em condições de oferecer, não deverá sem proveito, para a introdução que eu tento aqui desta nova ciência, de ao menos não a privar de toda referência ao fato de que, graças a esta disciplina,

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se pode dar conta de necessidades que já foram desde há muito tempo pressentidas e que já alcançaram expressão sob as formas mais variadas, desde que se examine de maneira refletida certos interesses muito difundidos, dos quais seguidamente, talvez, permaneceram mal-compreendidos os verdadeiros fins.

De fato, eu penso que investigações históricas particu-lares não são verdadeiramente necessárias para reconhecer que até o presente a teoria do objeto foi praticada, certamente não de maneira “explícita”, mas seguidamente de maneira “implícita”; a isto se deve acrescentar que, ao menos na prática, há graus na implicação que permitem apresentar a transição ao estado explícito como um contínuo. Se se examina estas transições e o que as provoca, deve-se considerar que nós reencontramos os interesses próprios à teoria do objeto, por assim dizer, em duas ocasiões diferentes: nas questões relacionadas diretamente com certos domínios mais especiais de objetos, e nas questões concernentes ao domínio total de objetos. Nesse sentido, e também apenas para as necessidades da compreensão imediata, nós podemos distinguir a teoria especial e a teoria geral do objeto.

Agora, já foi indicado mais acima que a teoria especial do objeto, em um certo sentido a teoria mais especial, encontra nas matemáticas a mais brilhante representação que se pode desejar. Depois de longo tempo, este brilho levou ao desejo de abrir a outros domínios do saber, ― eu bem poderia dizer, abreviadamente, a outros domínios de objetos ― o procedimento “more mathematico”, e seria difícil considerar como erro grave o fato de se acrescentar que, a cada vez que se fez tais tentativas, igualmente se ensaiou praticar a teoria especial do objeto em domínios exteriores às matemáticas. Seguramente não se deve levar em conta toda aplicação dos procedimentos matemáticos: quando o comerciante ou o engenheiro calculam, isso tem tão pouco a ver com a teoria do objeto quanto com qualquer outra teoria. Mas, certas pressuposições concernentes ao objeto subjazem naturalmente também em toda aplicação prática deste

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tipo e não é diferente quando a aplicação tem lugar na perspectiva de um interesse teórico. Nesse caso, a natureza dessas pressuposições pode restar inteiramente subjacente à técnica do cálculo que mobiliza nossa atenção, como o mostram de maneira mais evidente os exemplos da teoria das probabilidades, ou a teoria do erro, cujo pertencimento natural, à Lógica para a primeira, e à Psicologia para a segunda, não foi percebida ainda hoje por todos nem sequer admitida. Agora, a natureza destas pressuposições pode colocar as operações de cálculo efetuadas diretamente a serviço da teoria do objeto, como é fácil de mostrar no caso da teoria das combinações. Mais ainda que a Aritmética, a Geometria parece, para além desses estreitos limites, prestar-se a certas constatações da teoria do objeto. Considerando-se, com efeito, como seus domínios próprios, para a primeira as grandezas numéricas, para a segunda as grandezas espaciais, então, tudo o que se apresenta como a transposição, tão habitual para todo mun-do, de concepções geométricas do espaço para a dimensão temporal será já exterior às matemáticas, mas, ao mesmo tempo como pertencendo à teoria do objeto, pois que não há nada aí que estabeleça uma ligação qualquer com o que se chama realidade (Realität), mais exatamente com a existência efetiva (Existenz) do tempo. Compreende-se que a analogia vale, em grande medida, para a Phoronomia e, se A. Höfler tem razão, o que é pouco provável, quando, além do espaço e do tempo, ele chama a atenção para a tensão (Spannung) que ele considera como “o terceiro fenômeno fundamental da mecânica”1, então, uma outra direção é assim designada em que esta ciência, sem que seja dado atenção ao seu caráter por natureza empírico, reencontra, graças à elaboração a priori estendida de seu objeto, os interesses que são aqueles da teoria do objeto.

Esta consideração geométrica estendida torna-se mais evidente ali onde, em virtude da especificidade do domínio

1 A. Höfler, “Zur gegenwärtigen Naturphilosophie”, p. 84 (p. 24 da edição separada), nota 23; também p. 164 (p.104). A “teoria da dimensão”, mencio-nada no mesmo texto, p. 147 (87), merece igualmente ser citada no presente contexto.

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concernido, ela vale parcialmente. Nessa direção, são parti-cularmente instrutivos os esforços da Psicologia moderna para classificar os “objetos da percepção”1 próprios aos diferentes sentidos e para apreender sua diversidade tanto quanto possível por meio de uma figuração espacial; e mesmo que esses esforços permitiram já trazer à luz os mais tangíveis resultados2, mesmo ali onde se trata da visão, e que a expressão “geometria das cores” comporte uma conotação elogiosa bastante imerecida, é precisamente aí que, de maneira inegável, se apresenta o fato de que esses esforços pertencem antes à teoria do objeto que à Psicologia. Eu espero que não seja um traço pessoal o fato de me referir aqui apenas às explicações destas coisas numa perspectiva intencional e estritamente psicológica, e que muitos aspectos da natureza dos problemas próprios à teoria do objeto foram revelados em toda a sua generalidade.

O que eu acabo de definir como uma intervenção da consideração matemática além de seu domínio estrito tem a característica do instintivo e do inconsciente, em comparação com as expressivas tentativas de estender o domínio e a maior generalização de suas problemáticas já pretendidas sob o nome de teoria geral das funções e, inegavelmente, em expressões como “teoria da dimensão”, “teoria da multiplicidade”, bem como também sob a tão mal compreendida rubrica “metamatemática”. Vistas do ponto de vista que agora nos serve de medida, estas investigações altamente significativas representam a passagem da teoria especial à teoria geral do objeto. Sob muitos aspectos pode-se atribuir uma posição análoga aos esforços e aos resultados, que obedecem a uma intenção inteiramente diferente, que se costuma reunir sob o nome geral de “lógica matemática”. Ao contrário, é à teoria geral do objeto que cabe avaliar, apesar do saber histórico-filosófico de nossa época ter em mais alta conta, de maneira inteiramente aproximativa, as posições e os impulsos que levaram

1 Um termo que me parece muito útil devido a Witasek (cf. sua obra Grun-dlagen der Algemeinen Ästhetik, Leipzig, 1904, p. 36ss).2 Cf. o meu “Bemerkungen über den psychologischen Farbenkörper etc.”, Op. cit. p. 5ss.

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a lógica (não matemática), a teoria do conhecimento e a metafísica, de Aristóteles até os nossos dias, a investigações no interior do círculo de interesses de que nos ocupamos aqui. Mas, a mesma coisa vale também para a ciência da linguagem, especialmente a Gramática, cuja importância não foi certamente desconhecida nem pela antiga nem pela nova lógica, embora dificilmente pudesse ser apreciada corretamente caso não se reco-nheça na natureza do sentido de uma palavra a objetidade (Objekt), e na do sentido de uma frase, o objetivo (Objektiv)1. As coisas bem poderiam ter sido diferentes, pois hoje nos sentimos tentados a afirmar que a teoria geral do objeto tem a aprender com a Gramática da mesma maneira que a teoria especial pode e deve aprender com as matemáticas.

Como mostra este rápido panorama, não obstante sua superficialidade, a teoria do objeto absolutamente não está, em todos os assuntos, dependente de trabalhos ainda por começar. Antes, surge logo a questão de saber se a introdução que aqui foi tentada de uma “teoria do objeto” significa algo mais do que um novo nome para uma coisa antiga. E facilmente pode-se descobrir que é indiferente para o trabalho de investigação ainda por fazer se ele for realizado por um matemático, um físico, um lógico, ou ― um teórico do objeto. Todavia, nessa última locução há um mal-entendido que nós já tentamos dissipar desde o início de nossas reflexões. Seguramente, é indiferente saber quem resolveu os problemas teóricos e sob qual denominação isso foi feito. Se o reconhecimento da teoria do objeto como disciplina particular fosse alcançado, ainda assim poderíamos continuar gratos aos matemáticos, físicos e linguistas, bem como aos representantes de não importa qual outra disciplina particular, pela contribuição aos interesses próprios da teoria do objeto, mesmo quando eles imaginam não ter abandonado o domínio de competência de sua própria disciplina. Ao contrário, para um grande número de trabalhos decisivos, senão para a maioria, será, como tão

1 Cf. Über Annahmen, sobretudo p.19ss, e p. 175ss.

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seguidamente acontece, da maior importância ter uma representação a mais clara possível da natureza da tarefa a ser realizada: o refinamento de antigos questionamentos, a adição de novos e fecundos, é uma consequência natural. O fato que os pro-blemas e os esforços acima articulados, que no início pareciam tão diferentes, se revelarem correlacionados do ponto de vista da teoria do objeto, garante o valor deste ponto de vista.

§11 – Filosofia e teoria do objeto.Se, pelo apresentado até aqui, eu posso esperar ter

mostrado suficientemente a legitimidade própria da teoria do objeto em relação às outras ciências, então, agora é o momento de dar alguma atenção também às relações de parentesco com o restante das ciências, em outras palavras: determinar mini-mamente o lugar da teoria do objeto no sistema das ciências. As dificuldades que devemos agora enfrentar, notadamente ali onde se faz o esforço por tomar como ponto de partida certas definições pouco satisfatórias das ciências concernidas, não são atribuíveis apenas exclusivamente à teoria do objeto ou àquele seu “ideal” aqui defendido. Com efeito, pode-se constatar sem-pre que por mais diversas que sejam as ciências, o seu desen-volvimento e seu crescimento foram pouco perturbados pelo fato de que até agora não se encontrou para elas definições que fossem, sob todos os aspectos, desprovidas de alguma fonte de objeção. Eu não tiro disso a consequência de que não se deveria fazer estes esforços na tentativa de alcançar tais definições, mas eu infiro, certamente, que se não deve deixar inexplorada a situação imperfeita a qual já se alcançou e que, paralelamente, é também desejável investigar igualmente se não seria de ajuda apoiar-se em algum conhecimento concreto das coisas, sem recorrer a uma definição formal.

Partindo-se dessa que, de alguma maneira, é próxima destas disciplinas, cujo conjunto é resumido pelo termo “filo-

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sofia”1, não se terá nenhuma dificuldade em reconhecer na teoria dos objetos uma destas disciplinas. Mesmo a teoria do objeto pertence à filosofia e a única questão que se pode levantar interroga sobre sua posição em relação às outras “disciplinas filosóficas”. Ora, eu já dediquei a maior parte dessa exposição para responder esta questão. Resultou que a teoria do objeto não é nem uma psicologia nem uma lógica, e em razão da impossibilidade de se confundir com elas. Eu igualmente creio poder mostrar que ela é independente da teoria do conhecimento; mas, eu desejo atribuir, como eu disse, menos importância a este último resultado. Que se não possa praticar a teoria do conhecimento sem colocar em ação ao mesmo tempo a teoria do objeto ― ou, pelo menos, sem fazer uso de suas aquisições essenciais ― parece-me, em todo caso, fora de dúvida2; por causa disso um mal-entendido poderá, no final das contas, surgir no caso que se pretenda que estas aquisições mesmas tenham, na verdade, sido obtidas ou deveriam ser de qualquer modo somente em nome da teoria do conhecimento.

Muito mais importante quanto à posição da teoria do objeto me parece ser, ao contrário, as “relações hierárquicas” que ela mantém com uma outra disciplina vizinha que foi já retomada várias vezes no que precede: eu quero falar da metafísica, termo sob o qual a história da filosofia tem arquivado muitas das teses mais significativas da teoria do objeto. Mesmo aquele que deseje considerar a teoria do objeto como uma parte da teoria do conhecimento ― no sentido da concepção que é definida como relativamente admissível, embora eu não a aprove ― não será dispensado por isso deste problema de delimitação: pois, precisamente, a teoria do objeto conta entre os seus domínios constitutivos, para finalizar, o domínio a propósito do qual (dos quais) a teoria do conhecimento e a metafísica não conseguiram,

1 Especialmente sobre isso em minha consideração Über philosophische Wissenschaft und ihre Propädeutik, Kap. I. Cf. o novo trabalho de Höfler, “Zur gegenwärtigen Naturphilosophie”, Op. cit., p123 (63)ss. 2 Cf. tbém Höfler, Op.cit, p151 (91).

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como se sabe, nunca se entender.Infelizmente, porém, justamente quando se trata da

metafísica é impossível chegar a um entendimento sem se recorrer a determinações de ordem definicional. Nesse espírito, eu não vou passar em silêncio ao menos a sugestão que A. Höfler me fez chegar durante a redação do presente estudo e que, se apoiando sobre uma concepção inteligente de J. Breuer1, visava à definição da metafísica como a ciência do “metafenomenal”2. A razão pela qual eu não estou em condições de fazer justiça a esta sugestão é, no essencial, a mesma pela qual, depois de anos, eu não posso me resolver a considerar que os “fenômenos” são aquilo que os físicos tratam, a saber, a luz, o som, etc., ou que são os “fenômenos psíquicos” de que se ocupam os psicólogos. Os fenômenos, enquanto tais, são um tipo, mesmo se ele é muito importante, de objetos pseudo-existentes. O que existe efetivamente, no caso de uma pseudo-existência, não é senão representações determinadas por seu conteúdo: ora, as representações — para simplificar, eu falarei apenas da física —, Höfler mostra por argumentos particularmente muito patentes3, não são jamais objetos de pesquisa para esta última disciplina. Seguramente, o fenômeno não é o fenomenal, a manifestação não é o que se manifesta, uma vez que se entenda por este último termo algo que pode ser conhecido a partir de sua manifestação, e cuja existência possa ser deduzida, por exemplo, do fato da manifestação. Eu não vou contestar que o que se manifesta seja aquilo que o interesse do físico notadamente visa. Mas, eu não posso mais considerar que seria possível excluir do domínio dos problemas metafísicos o gênero do “fenomenal”, por exemplo, da questão da origem e do fim do que se manifesta.

Na medida em que eu não posso fazer uma digressão consequente em relação ao tema principal deste estudo — a

1 Publicado no anexo I da obra citada seguidamente citada de Höfler, Zur gegenwärtigen Naturphilosophie.2 Ibidem, p154 (94)s.3 Cf. Zur gegenwärtigen Naturphilosophie, especialmente p131 (71) ss.

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importância da reflexão apontada por Höfler e Breuer exigiria, com efeito, que se lhe faça justiça de um modo apropriado — possam, para o momento, estas poucas observações serem suficientes para justificar o porque não cessa1 de me parecer o mais oportuno, quando se busca definir a metafísica, colocar o acento principal sobre a característica da generalidade maior possível, no sentido em que seus problemas têm o domínio de validade o mais englobante possível. A metafísica não é nem física, nem biologia física, nem biologia psíquica; ao contrário, ela trata, em seu domínio de pesquisa, tanto do inorgânico como do orgânico e do psíquico, para descobrir aquilo que é pertinente do ponto de vista do conjunto disso que pertence a domínios tão diferentes. Naturalmente, em relação a esta definição, e em razão do acento que ela coloca necessariamente sobre a universalidade, faz-se particularmente sentir a necessidade de clarificar a relação entre metafísica e teoria do objeto, visto que, em relação à segunda, nossa atenção não deixou de ser solicitada pela amplidão singular do domínio que é o seu. Mas, sem dúvida, o fato de ter igualmente em conta a teoria do objeto nos conduziu a um ponto de vista que nos autoriza a completar a definição que se deu da metafísica e, desse modo, fazer calar muitas objeções, as quais ela até aqui poderia estar exposta.

De resto, a esse propósito eu posso recorrer ao que já foi dito, nessa medida, e exprimir as coisas de modo breve. Se não existe no mundo, como nós estamos justificados a crer, nada que não seja ou bem da ordem física ou bem da ordem psíquica, a metafísica é seguramente, na medida em que ela trata tanto do que é físico quanto do que é psíquico, a ciência da totalidade da realidade efetiva. Nessa medida, são naturalmente também de ordem metafísica as teses fundamentais do monismo — que pretende a identidade essencial do físico e do psíquico — e a do dualismo — que afirma a diferença essencial entre estas duas ordens. Mas, reconhecer duas coisas como idênticas ou como

1 “Über philosophische Wissenschaft etc.” p7.

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diferentes é reconhecer de fato alguma coisa que está em relação com estas duas coisas: este conhecimento concerne tanto à identidade quanto à diferença; e a identidade é ela mesma por sua vez nada menos que uma coisa, bem como a diferença. Ambas são exteriores à disjunção entre físico e psíquico, pois elas se situam fora do que é real. Ora, existe também um saber da não-realidade: e mesmo que se atribua às tarefas da metafísica uma generalidade tão grande quanto se queira, existem problemas ainda mais gerais que os desta última, problemas para os quais a orientação essencial que dirige a metafísica para a realidade efetiva não constitui nenhum limite. Tais problemas são precisamente os da teoria do objeto.

Porém, não se deixará de perguntar, se não é excessivo ou, ao menos, arbitrário excluir radicalmente do domínio de pesquisa da metafísica todos os objetos ideais?1 Eu respondo que eles não devem ser de maneira alguma excluídos: seria muito ruim ao nosso interesse metafísico se — o exemplo do monismo e do dualismo mostra — no seio da metafísica não devesse ser mais questão a identidade e a diferença, também não mais questão a causa, a finalidade, a unidade, a duração e muitos outros objetos que, parcialmente ou inteiramente, tem uma natureza ideal. Mas, muitos deles são questões na física, por exemplo, e ninguém, ao menos, irá contá-los entre os objetos de pesquisa física. Não é, em todo caso, sem reservas muito precisas que se fala de uma limitação do domínio da metafísica à realidade efetiva. Pressupondo esta reserva, eu creio verdadeiramente que esta limitação responde ao espírito no qual, outra vez como na época moderna, se praticou a metafísica e que ela corresponde ao mesmo tempo à prioridade do interesse, muitas vezes invocado, que testemunha esta disciplina pela realidade efetiva. Que a “ontologia”, a “doutrina das categorias”, etc., jamais deixaram de ser imputadas, mais ou menos unanimemente, à competência da metafísica — e que esta possa igualmente ter feito justiça a

1 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p198s.

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interesses que vão para além das fronteiras da realidade efetiva — testemunha somente da legitimidade e do caráter imperioso desses mesmos interesses, mas não deixa nenhum lugar, pelo que eu posso constatar, a uma dúvida quanto ao fato que a intenção fundamental de toda metafísica nunca cessou de visar à apreensão do “mundo” em sentido próprio, no sentido natural, isto é, o mundo da realidade efetiva, mesmo quando esta apreensão pareceria se desenvolver sobre aquilo que deveria ser apreendido não pudesse de maneira alguma pretender a qualificação de realidade efetiva. Mas, se esta concepção do caráter até então próprio à metafísica não convence a todos, e se revele historicamente errada, o erro não concerniria senão à definição da noção em termos “de lege data”, e a definição “de lege ferenda”1

permaneceria aberta à reflexão. Com esta pressuposição, o que acima foi avançado a propósito da definição da metafísica constituiria uma sugestão de definição: restringir o termo “metafísica” à ciência geral da realidade efetiva seria desejável tanto no interesse de um estabelecimento preciso das tarefas que pertencem a esta disciplina, quanto no interesse de uma delimitação clara desta em relação à teoria do objeto.

Há ainda, porém, um ponto a ser esclarecido em relação ao que foi dito. Se a metafísica é a ciência geral da realidade efetiva, seria nossa intenção lhe opor a teoria do objeto a título de ciência geral da não-realidade efetiva? Isto seria obviamente muito restritivo: por que razões os objetos efetivamente reais deveriam ser excluídos da teoria do objeto enquanto tal? Ou seria mais pertinente definir a teoria do objeto como teoria daquilo que é dotado de subsistência, sendo o termo “subsistência” tomado em uma acepção de algum modo oposta ao termo “existência”2, e tendo o cuidado de pressupor que todo o existente é, certamente, igualmente dotado de uma subsistência, enquanto que tudo o que é dotado de subsistência (por exemplo, a diferença) não é

1 Breuer, em Höfler, Op. cit., p189 (129).2 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p186.

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necessariamente existente? Mesmo assim não se abarcaria o conjunto do domínio que, nós vimos, pertence à teoria do objeto: o que não é dotado de subsistência, o absurdo, seria excluído; o interesse natural considera esses seguramente senão em uma medida bem mais restrita e ele oferece à apreensão intelectual bem menos pontos de ancoragem1, mas, no final das contas, ele faz parte também do “dado”, de tal modo que a teoria do objeto não poderia de maneira alguma o ignorar.

Tais defeitos poderiam ser facilmente corrigidos em se estabelecendo que a teoria do objeto trata do dado sem levar em conta o seu ser, pois ela não se interessa senão pelo conhe-cimento de seu ser-tal. E, de qualquer maneira, o que poderia impedir de mantermos esta definição pertence já, por assim dizer, à teoria do objeto em um nível mais profundo. Pois, se a teoria do objeto quiser fazer de sua indiferença em relação ao ser um princípio essencial, ela deveria ao mesmo tempo renun-ciar a ser ciência, o que excluiria igualmente o conhecimento do ser-tal. Com efeito, como se sabe, o conhecimento não implica que o seu objeto seja, mas todo conhecimento exige que seu objetivo seja; e se a teoria do objeto trata de um ser-tal que não mais seria dotado de um ser, ela não poderia mais pretender — fazendo-se aqui abstração de situações excepcionais e passageiras — o título de teoria. Certamente, pode-se sempre formular assim este princípio fundamental: a teoria do objeto não negligencia senão o ser de suas objetidades, mas não o ser de (certos) objetivos. Mas, qual seria a razão desta desigualdade de tratamento? Além disso e, sem dúvida, antes de mais nada: que tal ou tal objeto seja por essência absurdo, que possa ser dotado de subsistência, seja de existência, tantas são as questões que interessam à teoria do objeto e que, no final das contas, são sempre questões quanto ao ser. Em suma, a restrição ao ser-tal não convém à natureza da teoria do objeto.

Pode, contudo, haver entretanto um meio relativamente simples de encontrar uma solução para este problema, um ponto

1 Cf. E. Mally em Nr. III, Op. cit, Kap. I, §5s.

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de vista metodológico semelhante àquele que nós tentamos estabelecer, com um zelo mais excessivo do que indigente, quando nós definimos as diferentes ciências. Existem, como se sabe, conhecimentos cuja legitimidade se deve às propriedades, ao ser-tal de suas objetidades, por consequência de seus objetivos; outros, ao contrário, para os quais isso não é o caso1. Os primeiros são desde longo tempo denominados conhecimentos a priori, os outros, empíricos; e quanto acontece, talvez, ainda hoje, que se recuse esta distinção, isto não tem consequências para ela senão como para aquele que não importa a diferença das cores que o daltônico não percebe, senão que, do ponto de vista psicológico, o daltonismo é bem mais interessante. Com a ajuda dessa distinção, me parece, conseguiremos distinguir de maneira satisfatória e sem dificuldades as nossas duas disciplinas. Aquilo que, em relação a um objeto, pode ser conhecido a partir de sua própria natureza, portanto, a priori, pertence à teoria do objeto. Isso quer dizer que se trata do ser-tal do “dado”, mas também do seu ser, na medida em que esse possa ser conhecido a partir do ser-tal. Ao contrário, o que não pode ser estabelecido, a propósito dos objetos, senão a posteriori, pertence, pressupondo-se uma suficiente generalidade, à metafísica: é o caráter a posteriori dos conhecimentos que cuida para que os limites da realidade efetiva não sejam transgredidos. Existem, portanto, simplesmente duas ciências que são as mais gerais, uma ciência a priori a que concerne tudo o que é dado, e uma ciência a posteriori que retém do dado para análise apenas o que precisamente pode entrar em linha de conta de um conhecimento empírico, isto é, o conjunto da realidade efetiva: esta última disciplina é a metafísica, a primeira é a teoria do objeto.

O que, nessa definição, não deixa de espantar em pri-meiro lugar, é que a metafísica ali aparece como uma disciplina empírica e, todavia, a ausência de empiria foi precisamente do que sempre acusaram a metafísica, seja ela antiga ou moderna, os

1 Über Annahmen, p. 193s.

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partidários das ciências particulares. Eu não desejo proteger dessa acusação ninguém que a mereça, e eu espero ter ao menos contribuído como eu disse acima para fazer justiça às reivindicações legítimas da empiria em relação à metafísica, justamente pela definição que eu dei a ela. Uma ciência da realidade efetiva, pouco importa que ela seja mais especial ou mais geral, não dispõe, afinal, de nenhuma outra fonte cognitiva além da experiência. No final das contas: nem tudo é necessariamente objeto de uma experiência direta, pode-se inferir do que foi experimentado o inexperienciado e, quando muito, o que é inexperienciável. Mas, o que tem por base inevitável a empiria permanece sempre da ordem empírica e, absolutamente, diferente de tudo o que caracteriza, do ponto de vista da teoria do conhecimento, o domínio do a priori. Nesse sentido, não há portanto outro saber acerca do existente além do saber cuja base é a experiência: se a metafísica não dispõe de experiências que seriam indispensáveis às elaborações próprias à universalidade que a caracteriza, não há precisamente metafísica, pelo menos não metafísica rigorosa, que é a única que sempre esteve em questão aqui. E, a esse respeito, nós já indicamos explicitamente que, do ponto de vista das elaborações atuais, é perfeitamente possível que não se tenha nenhuma medida segundo a qual a aspiração a uma metafísica rigorosa chegou até o presente a se realizar. Não é senão um paradoxo aparente, que uma reflexão breve eliminaria, se eu devo afirmar que pouco nos importa a parte de saber metafísico que poderia nos ser acessível, pois este saber não seria, no final das contas, outra coisa que um saber de ordem empírica.

Se nos é oposto o fato que o termo “metafísica” foi muito seguidamente empregado para designar os esforços, seja os resultados de ordem científica onde foram postos em obra instrumentos cognitivos indiscutivelmente e mesmo fora de dúvidas extra-empíricos, portanto, a priori, se esquece então que nós nos situamos no momento na perspectiva da “definitio

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ferenda”, se nos permitem esta expressão. Naturalmente, eu não ignoro absolutamente que se está muito longe de sempre se ter rigorosamente distinguido estes dois domínios do conhecimento que se me impõe agora a estrita separação. Mas, se eu devo alcançá-la, o simples recurso ao argumento ontológico — argumento onde ao menos essas analogias que todo mundo, mesmo hoje, sem dúvida ainda não domina — testemunha aqui do fato que ele possa talvez não ser totalmente destituído de valor: é uma tentativa precisamente de resolver um problema de maneira estritamente a priori, portanto, de o tratar como um problema que concerniria simplesmente à teoria do objeto; este é o sentido do argumento e dos raciocínios do mesmo tipo.

Não é plausível pensar que esta distinção deve varrer do mundo todas as dificuldades de fronteira entre a metafísica e a teoria do objeto. Mas, seria também injusto exigir, justamente nesses casos, o que sem dúvida não se conseguiu em nenhum caso de ciências limítrofes. Mais importante é a objeção levantada do ponto de vista da teoria do objeto. Esta última é finalmente considerada como uma ciência geral, se bem que, mais acima, nós tivemos a ocasião de distinguir expressamente bem entre teoria geral do objeto e teoria especial. Aqui há uma imprecisão que, ao menos no imediato, isto é, no estado atual de nosso saber em matéria de teoria do objeto, não pode ser remediada por razões práticas. Certo é que diversas outras ciências especiais do objeto, que não se pode agora fixar o número, poderiam se somar às matemáticas, na medida em que elas são uma teoria especial do objeto. Mas, estes domínios nos são, ao menos no momento, tão imperfeitamente conhecidos que não existe por hora uma necessidade de se especializar em seu tratamento. Hoje, as teorias especiais do objeto se dividem, por conseguinte, em matemáticas e não-matemáticas: e no que concerne o segundo elemento desta repartição ainda muito grosseira, existe, no momento, tão pouco a dizer que ele se integra, sem maiores dificuldades, no quadro da teoria geral do

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objeto. De fato, não existe hoje nenhuma teoria especial do objeto que não seja matemática: mas, naturalmente, não se pode predizer quanto tempo esta situação irá durar. Uma evolução desta última não é antecipada pela definição proposta anteriormente. Do mesmo modo que há, face à ciência empírica geral, muitas disciplinas empíricas particulares, pode haver assim também várias disciplinas particulares a priori ao lado da ciência empírica geral. Esta eventualidade não tem no momento atualidade senão em matemática que, subsumida sob o ponto de vista da teoria do objeto, se encontra situada ao lado de disciplinas que certamente não são efetivas, mas restam ao menos virtuais, de tal maneira que ela não conhece assim em todo caso este estranho isolamento que nos pareceu acima ser o sinal de uma falha na concepção epistemológica desta disciplina que até então teve curso1.

Para finalizar, é necessário que eu retome uma vez mais à integração efetuada anteriormente, sem recurso a uma definição, da teoria do objeto às disciplinas filosóficas. Eu procurei, em uma certa época, reunir como filosóficas as ciências que se interessam exclusivamente pelo domínio psíquico ou que também lidavam com o psíquico. Ora, muito recentemente, foi formulada a hipótese de que meus trabalhos sobre a teoria das relações e das complexões bem poderia ter-me conduzido a atribuir à filosofia, como lhe sendo essencial, um duplo objeto: “o domínio psíquico e as relações (além dos complexos)”2. Compreende-se imediatamente que tal modificação faria desabar completamente a coerência da primeira definição; e apenas quando se crê dever colocar no princípio de uma definição da filosofia em todo caso a ideia de que o objeto de sua investigação seja simplesmente constituído por aqueles que as ciências da natureza deixaram de algum modo fora3, que se não deveria formalizar pelo fato de que estes restos poderiam aparecer como uma diversidade ainda

1 Cf. Supra, §9.2 Isto é o que sugere A. Höfler em seu estudo Zur gegenwärtigen Naturphilosophie, Op. Cit., p. 124 (p. 64), rem.3 Cf. J. Breuer, em A. Höfler, Op. Cit., p. 190 (p. 130).

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muito disparatada. Porém, desse modo não se atribuiria à filosofia uma posição particularmente digna: e mesmo quando não fosse totalmente desprovido de legitimidade prática introduzir uma atividade científica que, no essencial, tivesse por objetivo englobar este resto, é difícil imaginar que isto mudaria alguma coisa, pois, do ponto de vista teórico, este resto tomado em seu conjunto estaria longe de constituir, enquanto tal, o material de uma ciência. Por outro lado, é justo dizer, ao menos, que os com-plexos e as relações, na medida em que eles são ideais — hoje, eu falaria antes de complexos ideais e de relativos ideais (Idealrelate)1 —, pois eles não são concretos, nem são de ordem física e nem de ordem psíquica. Ora, para integrá-las ao campo de investigações que se podem denominar filosóficas, em outros termos, para estar autorizado a considerar a teoria do objeto como uma disciplina filosófica, não é necessário adicionar uma nova definição do “filosófico”, menos ainda do ponto de vista da primeira das duas ciências universais que do ponto de vista da segunda. Se eu estou justificado em contar a metafísica entre as disciplinas filosóficas, porque ela concebe as suas tarefas de maneira tão ampla para englobar, além do domínio físico, o domínio psíquico, nada mais então pode impedir que eu considere, pelas mesmas razões, a teoria do objeto como uma disciplina filosófica. O dado, cuja totalidade ela trata, engloba também o domínio psíquico, sem prejudicar o fato de que os objetos físicos e os objetos ideais devam ser também necessariamente aí incluídos — sem falar desse outro fato que, quando se trabalha sobre o ideal, que por natureza é sempre superius, são ainda os objetos psíquicos que podem muito bem entrar em consideração a título de indispensáveis inferiora.

Mas, naturalmente, eu não posso impedir o prolon-gamento ainda desse paralelismo estabelecido entre metafísica e teoria do objeto até um outro problema importante que, no fundo,

1 Sobre as razões dessa mudança de terminologia que havia utilizado até agora, cf. A terceira das investigações publicadas no volume Über Gegens-tandstheorie und Psychologie, Op. Cit., cap. I, § 9 e 11.

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é mais da ordem prática do que teórica. Do fato de que a metafísica não tenha a ver apenas com o psíquico, seguramente, mas também com o domínio físico, eu então tirei a consequência de que estavam justificados e chamados a tratar as questões metafísicas não somente os pesquisadores versados nas disciplinas com algum traço psíquico, mas também os pesquisadores do domínio físico. De fato, me parece agora que não se pode impedir a admissão da mesma coisa no concernente à teoria do objeto. Em relação à técnica de investigação, em metafísica como em teoria do objeto, aquele que é treinado no tratamento científico das experiências psicológicas se beneficiará certamente de uma vantagem: especialmente no caso da teoria do objeto, não se deve mal-interpretar o fato de que, quando se pratica esta teoria, penetra-se no terreno do psicológico com um tipo de facilidade que pode ser fatal. Mas, estas não são senão considerações de ordem técnica: não se deve mascarar completamente a que ponto é igualmente fácil, em certas circunstâncias particulares, alcançar a mais de uma compreensão graças à introdução de uma técnica específica importada de uma outra disciplina. Na medida em que é legítimo considerar as matemáticas como uma ciência especial do objeto, seria ingrato esquecer a que resultados brilhantes a investigação ditada pela teoria do objeto já conduziu, seguidamente sem nenhum contato com outros interesses filosóficos.

§12- Conclusão.Se as considerações precedentes expuseram, ao menos em

traços largos, a natureza e a legitimidade própria — assim como a situação que ela ocupa no conjunto das ciências — de uma disciplina particular, a “teoria do objeto”, chegou o momento de dizer alguma coisa mais precisa sobre as tarefas e o método desta nova ciência. Porém, de uma parte, o essencial a este respeito já foi exposto por si mesmo no curso das reflexões precedentes: se se sabe de que trata uma ciência, as suas tarefas são também

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assim determinadas de maneira genérica, sobretudo se o caráter a priori da disciplina em questão é posto de início; o que, ao mesmo tempo, constitui também o essencial no que toca ao seu método. De outra parte, e antes de tudo, sabe-se muito bem que fazer projetos parece ser “muitas vezes uma atividade intelectual presunçosa e impertinente”, e prescrever aos outros os caminhos que se evita de trilhar por si mesmo, é sem dúvida mais impertinente ainda. Por isso, sem dúvida eu faria melhor se me abstivesse deste ensaio sobre uma ciência que está por vir, se eu não estivesse justificado em me deter apenas na relação que eu precedentemente mantive com ela, excluída, talvez, a esperança que eu me contentaria com projetos em lugar de colocar eu mesmo a mão na massa. Para ser um Prometeu requer-se mais do que para ser um Epimeteu, a ponto que não se tomará, certamente, por um elogio pessoal o fato de salientar que, durante anos, ou durante decênios, meu trabalho científico obedeceu a influência de interesses que concerniam à teoria do objeto sem que eu tivesse senão uma intuição de sua verdadeira natureza. Ora, pelo fato de que a natureza desses interesses se impôs a mim absolutamente por si mesma e sobre o plano prático, pois, eu poderia dizer quando1, sobre o plano teórico igualmente, eu vejo um novo argumento, que não é certamente impositivo formalmente, bem que seu peso não implique que se o menospreze, em favor da legitimidade das exigências formuladas precedentemente em nome da teoria do objeto. Ora, mesmos estas exigências são aos meus olhos mais retrospectivas do que prospectivas; e se eu tivesse tido a ocasião, além disso, de me convencer, pelo meu exemplo e pelo de outros, a que ponto fecundo se revela a maneira de ver própria à teoria do objeto na posição e na resolução de problemas antigos como de problemas novos de número infinito, eu estaria agora justificado em não considerar muito precoce a tentativa de auxiliar esta maneira de

1 Em todo caso muito antes de 1903, quando pela primeira vez eu tive a oportunidade de indicar a teoria do objeto nomeando-a assim explicitamente; cf. “Bemerkungen über den Farbenkörper etc.”, op. cit., p. 3 ss.

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ver, em expondo a especificidade, a ser explicitamente reconhecida.

Seja como for, a presença das reflexões precedentes no quadro da presente coletânea de estudos responde a um motivo mais especial. No círculo que, pela primeira vez, viu verda-deiramente nascer uma inteligência do sentido da teoria do objeto, a investigação desvelada por esta última não poderia deixar de receber uma atenção particularmente favorável. Foi isto que permitiu que se coloque dois dos estudos consagrados à teoria do objeto no início desta coletânea que, além desses textos, farão sem dúvida, aqui e ali, no curso desses outros artigos, alguns testemunhos do fato que o saber e a capacidade da teoria do objeto pode certamente se revelar igualmente frutífera para a investigação em psicologia. Parece, a este respeito, que foi sugerido, pelo título mesmo da coletânea, de se consagrar explicitamente à teoria do objeto e de fazer preceder os dois estudos citados acima por um tipo de análise ao nível dos princípios disso que se entende por esta designação. Desse modo, o que foi dito antes a propósito de uma nova disciplina científica, não se apresenta, mesmo dentro do quadro desta publicação, como um agradável sonho do futuro, seja como uma utopia, mas como um objetivo que se tem em vista da maneira mais clara possível e nós já começamos a mobilizar nossas melhores capacidades afim de o realizar.

Por conseguinte, se as presentes considerações devem exercer o papel de prólogo especialmente destinado a introduzir a parte desse volume consagrada à teoria do objeto, aqui é o lugar conveniente para algumas observações sobre os dois artigos seguintes. Não é apenas o encarregado da edição científica destes trabalhos que toma a palavra, mas sem dúvida antes o professor que, no curso de um período em que a maior parte não está tão longe assim, teve a felicidade de iniciar os autores destes artigos nas disciplinas filosóficas e que se sente assim justificado e mais, dadas as presentes circunstâncias que são particulares, toma como

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dever dissipar de cara certos mal-entendidos aparentes a propósito das intenções próprias dos trabalhos em questão.

Diante do precedente, eu me exporia à suspeita de ingratidão em relação a trabalhos pioneiros que, de tão diversas partes, permitiram colocar em pé a teoria do objeto, se eu declarasse de qualquer maneira que a teoria do objeto é uma ciência jovem, muito jovem. Aquele que a assume encontra uma profusão de problemas por tratar bem como uma variedade de possibilidades abertas de os resolver: mas, depois de mais reflexão, ele não pode esperar encontrar sempre o que é justo; ele deve, ao contrário, perceber que muitas coisas que ele acreditou ter estabelecido serão sacrificadas de novo pelo saber mais avançado e pela técnica de investigação mais desenvolvida do futuro. Comumente, no início, uma parte dos resultados cabe à personalidade do pesquisador de maneira mais decisiva do que nas épocas em que as tradições são mais fortes e os caminhos da pesquisa mais planos. Por isso, os estudos que se seguem não devem jamais ser compreendidos como se seus autores acreditassem poder apresentar de modo unânime resultados definitivos. Não se trata senão de resultados transitórios, porém, não concebidos às pressas, o editor o pode testemunhar, mas antes numa perspectiva de serem melhorados — portanto, sob a ideia que o que eles abrem aqui é menos destinado a ser recebido passivamente pelo leitor do que criticado e reelaborado mais adiante.

Sob esta pressuposição, não se deve tomar como um problema de fundamento o fato de que, nos seus conceitos e na sua terminologia, as considerações dos dois artigos não estejam sempre de acordo um com o outro, nem com as concepções que eu mesmo tentei elaborar, embora isto novamente indique o estado ainda primitivo da teoria dos objetos, uma vez que os autores se sentiram mais de uma vez constrangidos a abordar questões de princípio e, portanto, talvez também, as mesmas questões de princípio. Pode-se facilmente ser tentado a nos

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censurar de não ter tomado cuidado, nas conversas, de aplainar as divergências afim de apresentar ao público, somente depois do acordo alcançado, munidos de um sistema solidamente articulado de conceitos conjuntamente coerentes. A exigência de preferir que se regule as controvérsias em privado antes que na cena da comunicação científica é certamente legítima e eu posso testemunhar que, nos departamentos de filosofia, em Graz, as discussões não faltaram. Mas, naturalmente, elas respeitaram o princípio da mais larga liberdade de convicção; e, se nós tivéssemos a intenção de não deixar se exprimir além de certos limites a voz das concepções individuais, nós teríamos aberto o caminho para sugestivos influxos, os quais poderiam revelar-se os mais prejudiciais, quando a pesquisa se sabe em seus começos. Se nós tivéssemos, no que se segue, oferecido um estado polido e unânime da pesquisa, nós não o poderíamos fazer senão aceitando renunciar aos estímulos que sem dúvida puderam se revelar os mais frutíferos para o desenvolvimento ulterior da teoria do objeto.

Por uma parte ao menos, são considerações como essas que estão na origem de um outro defeito das duas contribuições seguintes e cujos autores estão bem conscientes. A literatura escrita a propósito de um objeto pode, de um lado, estimular aquele que o investiga, mas, de outro lado, pelas sugestões que ela fornece, ela pode matar de saída os germes suscetíveis de se desenvolver. Isto é o que justifica, ao menos por uma parte, eu espero, esta máxima fundamental a qual eu obedeço e que eu ensino há muito tempo como princípio primeiro da investigação: antes observar e refletir, depois ler. Mas, esta máxima corre o risco, eu não posso deixar de reconhecer, que a exploração da literatura seja talvez muito restrita, sobretudo quando o acabamento de um trabalho é fixado em uma data precisa ou que a consulta desta literatura seja dificultada por tais e tais circunstâncias. Estes dois fatores interviram juntos nas investigações que se vai ler sobre a teoria do objeto. Na medida

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em que o motivo exterior da presente publicação fixou a aparição da obra antes do fim de 1904, eu obriguei os autores a terminar suas contribuições em um momento em que eles estavam perfeitamente conscientes do profundo estado de inacabamento de seus trabalhos. De outra parte, a literatura concernente à teoria do objeto, como se pode deduzir das referências que se fez incidentalmente acima1, é tudo menos facilmente acessível, pois não somente ela está dispersa sobre todos os horizontes científicos, mas, além disso, não se pode, por um lado, a descobrir ou a possuir senão nos estudos muito especializados de ciências vizinhas. Por isso se buscará em vão nos dois artigos em questão uma exploração minimamente equitativa da literatura matemática concernida a despeito do papel provavelmente decisivo que ela joga na fundação da teoria do objeto. Nenhum de nós pensa que se poderia permanecer assim: por minha parte, eu espero, não obstante estas circunstâncias particulares, que se encontre sempre confirmada a máxima evocada que fixa a prioridade da reflexão sobre a leitura.

Se eu não me engano, o leitor não ficará chocado com a quantidade de conceitos e termos novos, dos quais muitos po-derão lhe parecer supérfluos e pesados, pois, se eles realmente o forem, eles certamente não terminarão por se impor a longo prazo; também não ficará chocado por nós termos decidido designar este ou aquele conceito diferentemente do que eu talvez havia proposto antes em trabalhos anteriores. Um bom termo vale tanto quanto a metade de uma descoberta: e mais vale substituir um termo menos bom por um que se percebeu como melhor do que, por puro conservadorismo, continuar a retirar penosamente as consequências nocivas do antigo.

Eu resumo: no que precede tentou-se mostrar a legiti-midade específica da teoria do objeto como uma ciência inde-pendente. Os dois artigos que se seguem* — bem como também

1 Cf. § 10 acima.* [Os dois artigos a que Meinong se refere são: “Beiträge zur Grundlegung der Gegenstandstheorie”, de R. Ameseder, e “Untersuchungen zur Gegenstands-theorie des

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implicitamente nas outras investigações recolhidas nesse livro — espera-se oferecer contribuições para esta ciência. A esse respeito, exigir qualquer coisa de definitivo e de irrefutável, seria demasiado, tal como as coisas estão hoje: é suficiente, por pouco que se alcance, apresentar à reflexão e à crítica daqueles que a querem perseguir certas concepções que permitam fazer aparecer como digna de confiança a via empreendida, e estimular aquele que se decida assumi-la. Possa nossa contribuição se revelar própria a ganhar reconhecimento e simpatia para a causa dessa nova ciência que é a teoria do objeto.

Leipzig, 1904.

Messens”.]

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13. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações

Kazimir Twardowski

Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen, Eine psychologische Untersuchung. Wien, A. Hölder, 1894. §§ 1- 7, s. 3-40.

§ 1. Ato, conteúdo e objeto de representação.Uma das mais conhecidas proposições da Psicologia é que

a cada fenômeno psíquico relaciona-se um objeto imanente (immanenten Gegenstand). O estar dado de tal relação é uma marca característica dos fenômenos psíquicos, que se diferenciam por ela dos fenômenos físicos. Aos fenômenos psíquicos do representar, do julgar, do desejar e do detestar corresponde um representado, julgado, desejado e detestado, e os primeiros sem os últimos seriam absurdos. Esta circunstância, mencionada pelos escolásticos e já antes por Aristóteles, foi recentemente considerada em toda a sua importância por Brentano que, entre outras coisas, fundamentou a classificação dos fenômenos psíquicos no tipo de relação, como a que ocorre entre representar e representado, etc.1

1 Franz Brentano, Psychologie vom empirischen Standpunkte, Leipzig 1874. II. Buch, 1. Cap. §

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Com base nessa relação a um “objeto imanente” pró-pria dos fenômenos psíquicos costuma-se distinguir entre ato (Act) e conteúdo (Inhalt) em todos os fenômenos psíquicos, os quais são representados sob um duplo ponto de vista. Quando se fala de “representações” (Vorstellungen) tanto se pode entender o ato de representação (Vorstellungacte), a atividade de representar, quanto também significar com esta expressão o representado, o conteúdo da representação (Vorstellungsinhalt). E assim se tornou comum, onde poderia haver a menor possibilidade de mal-entendido, em vez da expressão “representação”, usar uma das duas expressões “ato de representação” e “conteúdo de representação”.

Mesmo evitando-se assim a confusão do ato psíquico com seu conteúdo, resta ainda por ser superada uma ambiguidade sobre a qual Höfler chamou a atenção. Após ele pronunciar-se sobre a relação com um conteúdo, própria dos fenômenos psíquicos, ele continua: “1. O que nós chamamos 'conteúdo da representação e do juízo' encontra-se inteiramente no interior do sujeito, tal como o ato de representação e de juízo. 2. As palavras 'Gegenstand' e 'Object' são usadas em dois sentidos: por um lado, para aquele existente em si (an sich Bestehende), ... para o qual nosso representar e julgar igualmente se dirigem, por outro, pela 'imagem' (Bild) psíquica ‘em’ nós existente mais ou menos aproximada daquele real (Realen), aquela quase-imagem (mais precisamente: signo) idêntica ao que em (1.) denominou-se conteúdo. Em contraposição ao Gegenstand ou objeto, suposto como independente do pensamento, denomina-se o conteúdo de um representar e julgar (igualmente, sentir e querer) também o ‘objeto imanente ou intencional’ desses fenômenos psíquicos.1

A partir disso diferencia-se o objeto (Gegenstand), para o qual nosso representar “igualmente se dirige”, do objeto imanente (immanenten Object) ou do conteúdo (Inhalt) de representação.

5 und 6. Cap. § 2.1 Logik, Unter Mitwirkung von Dr. Alexius Meinong, verfasst von Dr. Alois Höfler, Wien, 1890; § 6.

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Esta distinção nem sempre é feita e, entre outros, também Sigwart não a percebe.1 A linguagem facilita, como tão seguidamente, também aqui a confusão de coisas diferentes, na medida em que permite que tanto o conteúdo quanto o objeto sejam o “representado”. Mostrar-se-á que também a expressão “representado” é ambígua do mesmo modo que a expressão “representação”. Esta serve para designar o ato e o conteúdo, tanto quanto aquela para designar o conteúdo, o objeto imanente, e para designar o objeto não imanente, o que está diante da representação.

Esta investigação tratará da separação entre o repre-sentado no primeiro sentido, onde isso significa o conteúdo, e o representado no outro sentido, onde serve para designar o objeto; em suma, considerará o conteúdo de representação (Vorstellungsinhaltes) e o objeto de representação (Vorstellungs-gegenstande) separadamente e a relação mútua entre os dois.

§ 2. Ato, conteúdo e objeto do juízo.A suposição é que os juízos (Urteile) demonstram, rela-

tivamente à distinção entre conteúdo e objeto, algo semelhante às representações. Se tivermos sucesso em descobrir no domínio do julgar também uma distinção entre conteúdo e objeto do fenômeno, então isto poderia ser vantajoso para o esclarecimento da relação análoga no caso das representações.

O que diferencia um do outro representações e juízos e os constitui como classes de fenômenos psíquicos claramente separadas é o tipo especial de relação intencional ao objeto. Em que consiste esta relação não se deixa descrever, mas apenas esclarecer por meio da indicação daquilo que a experiência interna oferece. E aí se mostra de modo claro a diferença entre os tipos pelos quais um ato psíquico pode se relacionar com seu objeto. Pois não resta escondido para ninguém que se trata de uma relação diferente, a cada vez, se alguém meramente

1 Vergl.. Hillebrand, Die neuen Theorien der kategorischen Schlüsse, Wien, 1891, § 23.

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representa algo, ou se o reconhece, repudia. Entre esses dois tipos de relação intencional não há passagem, nem gradual nem descontínua. Trata-se de um equívoco acerca dos fatos acreditar que entre representar e julgar haveria alguma forma de passagem que estaria entre os dois. B. Erdmann apresenta uma dessas formas de passagem. “Quando lembramos de um objeto”, diz ele, “fazemos uma representação abstrata, ou procuramos nos esclarecer sobre as características de algum objeto composto, nós unimos ao objeto as sucessivas marcas distintivas involuntariamente e quase sem exceção com a ajuda de representações de palavras. E isto de tal modo que elas são ditas, predicadas do objeto, portanto, este é pensado como sujeito, aquelas como predicados de um juízo. Assim as representações passam para o juízo; elas aparecem num desdobramento de representação predicativa”. E mais: “Também a partir do lado oposto a diferença entre representação e juízo torna-se algo fluída... Nós podemos com efeito também sintetizar um juízo por meio de uma palavra. Palavras como imperativo categórico, estado, direito, polícia, religião, valor (em sentido de economia nacional), mercadoria, lei natural, não têm seu significado tanto nas representações, mas antes nos juízos que, segundo o tipo de representação, são sintetizados através de uma palavra; todavia, na consciência interveem apenas nos juízos. Onde o seu significado é claro, ele é dado por juízos, por sua definição, ali o processo de abstração no qual eles se formam se completa por meio da linguagem”.1 Estes os argumentos de Erdmann para a existência de uma passagem, também afirmada em outros lugares, da representação ao juízo e vice-versa.2 Fácil é mostrar o erro do

1 B. Erdmann, Logique, Halle sur S., 1892, Tome I, § 34.2 Cf. Bosanquet, Logic, Oxford, 1888, Tome I, p. 41: An idea or concept is not an image, though it may make use of images. It is a habit of judging with reference to a certain identity ... The purpose ... was to show, that the acts set in motion by the name and by the proposition are the same, and therefore the logical function of these forms would not be generally different. -- Do modo semelhante Schmitz-Dumont: “O direito de estado significa a mesma coisa que quando se diz explicitamente: o estado possui certos direitos”. Vierteljahrs-schrift für wissenschaftliche Philosophie X, Jhrg., S. 205.

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desenvolvimento de Erdmann.No que concerne ao primeiro argumento de Erdmann, que

afirma que nós sempre relacionamos do mesmo modo, involuntariamente, as características de um objeto composto ao mesmo objeto, de maneira que ele é pensado como sujeito e as características como predicados de um juízo, trata-se de um argumento não congente. Pois, mesmo se fosse admitido que o fato de se representar um objeto composto ocorresse do modo proposto por Erdmann, a intervenção de juízos, ou de uma forma de passagem entre representações e juízos, não estaria demonstrada por isso. Se nós pensamos um objeto como um sujeito, e suas características como predicados de um juízo, representamos um sujeito de juízo, predicados de juízos e os próprios juízos, pois sujeito e predicado não podem ser representados enquanto tais senão numa reflexão simultânea sobre um juízo. Mas há obviamente uma grande diferença entre o fato de se representar um juízo e o fato de ter lugar um juízo (Fällen eines Urteils). Um juízo representado é tampouco um juízo quanto “cem táleres” representados são uma posse. Embora, em vista disso, um objeto composto não possa ser representado sem a ajuda de “desdobramentos de representação predicativa”, este enunciado (Aussagen) das características de um objeto como sujeito não é, pois, senão um enunciado representado, ao qual, para passar ao estado de um enunciado efetivo, de um juízo, falta exatamente tudo o que um castelo pintado precisa para se tornar um castelo real. Se se representa o objeto composto “ouro”, se representa o ouro como amarelo, metálico, pesado, etc.. Isto quer dizer que os juízos “o ouro é amarelo”, “o ouro brilha como um metal”, “o ouro é pesado”, etc., são representados em conjunto; mas, justamente, estes juízos vêm apenas representados, não realizados (gefällt). Se esse fosse o caso, como sustenta Erdmann, não se poderia nunca representar-se um objeto composto, analisado em suas características, sem afirmar qualquer coisa de verdadeiro ou de falso sobre este objeto. Esta consequência, posta

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em todas as direções, daria como resultado que não haveria senão representações, no verdadeiro sentido da palavra, simples; e, por isso, Erdmann não se faria compreender.

O segundo argumento de Erdmann para a presença de passagens entre a classe das representações e a dos juízos é tão somente, visto de perto, uma inversão do primeiro e tão pouco cogente quanto este. Deve-se admitir certamente que se pode sintetizar os juízos por uma palavra. E isto é possível de duas maneiras. Um juízo cujo modo de expressão habitual na lin-guagem é o que se faz por uma frase (Satz) pode muito bem ser expresso numa frase que se compõe apenas de uma única palavra (Wort), ou bem ser proferido sem que haja uma sentença presente. O primeiro caso acontece em inúmeras línguas com o que se denomina frases sem sujeito, como em grego, latim, e todas as línguas eslavas. Nesses casos, o juízo é sintetizado por uma palavra, pois a frase significando o juízo aparece expressa por uma única palavra. Mas os juízos podem ser também resumidos por uma palavra sem que, por esta mesma palavra, uma frase no sentido gramatical seja representada. Quem faz o alerta “Fogo!”, ou outros do mesmo tipo, sintetiza numa só palavra a frase “Isto queima” e o juízo que é significado por esta frase.

Diferente desses casos é aquele considerado por Erdmann. Verdade é que onde a significação das palavras como estado, direito, etc., é claro, ela é dada por definições. Ora, as definições são, sem dúvida alguma, frases. Porém, Erdmann esqueceu que às frases podem corresponder, enquanto correlatos psíquicos, não apenas juízos, mas ainda muitas outras coisas, por exemplo, desejos, etc.. Além dos juízos efetivos, os juízos representados são também comunicados por frases. Quando alguém descreve o objeto de sua representação, serve-se para isso de frases. Ele diz: “A peça de ouro que eu me represento é amarela, etc..” Mas isso que é dado pela informação não é um outro juízo diferente daquele que o falante que tem uma representação determinada; sobre o objeto de representação nenhum juízo é feito; antes,

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apenas juízos sobre a constituição da peça de ouro representada. E estes juízos representados, por sua vez, são revestidos com a forma de uma ou várias frases. Se a definição, como pensa Erdmann, não tem outra função que indicar a significação clara de uma palavra, o único juízo que ela contém é então aquele sobre a união válida para aqueles que falam de um nome determinado com uma significação determinada. Se alguém diz: O estado é uma comunidade pública que une um povo residente sobre um certo domínio na reunião de governantes e governados, — não enuncia assim um juízo sobre o estado, mas somente sustenta que ele designa com a palavra “estado” um objeto cuja representação é composta da maneira indicada. E a descrição dessa representação faz-se com a ajuda de frases que consistem de sujeito e predicado, mas cujos correlatos psíquicos, longe de serem juízos, apresentam-se como representações de juízos. Vê-se o quanto o segundo argumento de Erdmann está ligado por conexão ao primeiro e, com ele, se eleva e cai.

A partir disso, nós vamos estabelecer firmemente que representação e juízo são duas classes claramente distintas de fenômenos psíquicos, sem que se dê entre eles qualquer forma de passagem.

No que agora concerne ao objeto de juízo, o mesmo objeto que num caso é simplesmente representado, pode noutro vir a ser julgado, reconhecido ou recusado. Que a essência do juízo encontra-se precisamente no fato de reconhecer ou rejeitar foi mostrado por Brentano.1 O que é reconhecido ou rejeitado é o objeto do juízo. Com esta operação psíquica dirigida a um objeto se entrelaça de uma maneira particular a existência ou a não-existência do objeto. Pois o que é julgado é o objeto; mas, na medida em que ele é reconhecido a sua existência parece ser reconhecida ao mesmo tempo; se ele é denegado, a sua existência também parece ser denegada. Quem acredita que é no reconhecimento ou na denegação de um objeto que se dá o

1 Op. Cit., livro 2, Cap. 7, §§ 4 e s.

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reconhecimento ou denegação da ligação da característica “existência” ao objeto esquece que no reconhecimento de uma ligação as partes ligadas são elas mesmas reconhecidas de uma maneira implícita, mas que, pela negação de uma ligação, as partes singulares não são negadas. Na afirmação da existência de A, A já é reconhecido; através da negação da existência de A, A também é negado, o que não poderia ser o caso se se tratasse de uma ligação de A com a característica “existência”.1 E entretanto, pelo reconhecimento de A, a sua existência parece ser reconhecida e, pela negação da existência de A, A também parece ser negado.

Esta situação remete à função do ato de juízo que oferece o análogo da função do ato de representação, pelo qual, além do objeto, o seu conteúdo também é “representado”. Do mesmo modo que no representar um objeto sobre o qual este representar se dirige no sentido próprio, um segundo elemento vem à luz ainda, a saber, o conteúdo da representação que, ele também, mas num outro sentido, tal como o objeto é “representado”, igualmente o que é afirmado ou negado por um juízo, sem ser o objeto do ato de julgar, é o conteúdo do juízo. Pelo conteúdo do juízo deve-se compreender a existência de um objeto, aquele que se trata em cada juízo. Pois, quem faz um juízo afirma alguma coisa sobre a existência de um objeto. Quando ele reconhece ou rejeita este objeto, ele reconhece ou rejeita também a sua existência. O que no sentido próprio é julgado é o objeto mesmo; e, na medida em o objeto é julgado, também a sua existência parece ser julgada, mas num outro sentido.

A analogia com as relações que se encontram no domínio do representar é perfeita. Aqui como lá tem-se um ato psíquico; aqui, o julgar, lá, o representar. Este como aquele se ligam a um objeto suposto como independente do pensar. Assim como quando o objeto é representado, quando ele é julgado, vem à luz além do ato psíquico e de seu objeto um terceiro elemento que é

1 Ibid., § 5.

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por assim dizer um signo (Zeichen) do objeto: sua “imagem” psíquica, na medida em que ele é representado, e sua existência, na medida em que é julgado. Assim tanto se diz da “imagem” psíquica de um objeto que ela é representada, se diz de sua existência que ela é julgada; mas o objeto próprio do representar e do julgar não é nem a imagem psíquica do objeto nem sua existência, mas o objeto mesmo. Entretanto, assim como a imagem psíquica ou a existência de um objeto não são idênticas a este, tampouco são semelhantes os sentidos dos verbos relativos quando se denomina “representado” o conteúdo e o objeto de uma representação, e “julgado” o conteúdo e o objeto de um juízo.

§ 3. Nomes e representações.Mesmo se falar e pensar não estejam relacionados um

com o outro numa relação de paralelismo completo, existe to-davia uma analogia entre os fenômenos psíquicos e as formas da linguagem que os designam que pode servir para clarear as propriedades dominantes sobre o primeiro domínio, ao se mencionar as particularidades que são próprias às manifestações do outro domínio. A respeito da distinção em consideração entre o conteúdo de representação e o objeto de representação, é a consideração do nome (Namen) como o signo linguístico de uma representação que propiciará a tarefa.

Uma questão seguidamente já levantada em relação aos nomes fornece a prova de que sobre uma representação uma tríplice distinção deve ser feita. Mill, ao tratar dos nomes, levantou a questão de se eles devem ser considerados como nomes das coisas (Dinge) ou de nossas representações das coi-sas. Por coisas ele compreende aqui o mesmo que nós designa-mos como objetos de representação; mas, com “representações” ele apenas pode significar os conteúdos de representações e não os atos de representação. A resposta que Mill dá à questão citada, referindo-se a Hobbes, pressupõe de maneira nada ambígua uma

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distinção entre o conteúdo e o objeto de uma representação.1 A palavra “sol”, pensa Mill, é o nome do sol e não o nome de nossa representação do sol; entretanto, ele não quer negar que unicamente a representação, e não a coisa (Sache) mesma, é evocada pelo nome ou comunicada ao ouvinte. A função (Aufgabe) do nome parece como sendo dupla: o nome comunica (mitteilt) ao ouvinte um conteúdo de representação e ao mesmo tempo nomeia (nennt) um objeto. Mas, era um tríplice momento, e não dúplice, que nós pensávamos dever distinguir em cada representação: o ato, o conteúdo e o objeto. E se o nome oferece uma imagem exata, na linguagem, das relações psíquicas que lhe correspondem, então ele também deve indicar ainda um correlato para o ato de representação. De fato, este está presente; e aos três momentos da representação, ao ato, ao conteúdo e ao objeto, corresponde uma tríplice função que cada nome deve cumprir.

Compreende-se por um nome tudo o que os lógicos antigos denominaram um signo categoremático. Porém, signos categoremáticos são todos os meios de designação da linguagem que não são meramente co-significantes (como “do pai”, “em redor”, “enquanto isso”, etc.), mas que também não formam por si mesmos a expressão completa de um juízo (enunciado) ou de um sentimento e de uma decisão da vontade, etc., (agradecimentos, questões, ordens, etc.), mas simplesmente a expressão de uma representação. “O fundador da ética”, “um filho que ofendeu o pai”, são nomes.2

Agora, qual é a função que os nomes devem cumprir? Claramente a de evocar no ouvinte um conteúdo de repre-sentação determinado.3 Quem diz um nome pretende evocar no ouvinte o mesmo conteúdo psíquico que ele cumpre para ele mesmo; se alguém diz “sol, lua, estrelas”, pretende que aqueles

1 Mill, System der inductiven und deductiven Logik, übersetzt von Th. Gomperz, Leipzig, 1884, Buch I, Cap. 2, § 1.2 Marty, Ueber subjectlose Sätze etc. In der Vierteljahrsschrift für wissens-chaftliche Philosophie, VIII. Jhrg., S. 293.3 Brentano a. a. O., Buch II, Cap. 6, § 3. Marty, a. a. O., S. 300, e Mill na última passagem citada.

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que o escutam pensem como ele no sol, na lua, nas estrelas. Mas quando aquele que fala pretende evocar no ouvinte, pela denominação de um nome, um conteúdo psíquico determinado, ele lhe revela, ao mesmo tempo, que encontra nele mesmo este conteúdo, logo, ele se representa aquilo mesmo que ele deseja que o ouvinte também se represente.1 Por isso, o nome cumpre já duas funções. Primeiro, ele informa que aquele que emprega o nome se representa algo; ele indica a presença de um ato psíquico naquele que fala. Segundo, ele evoca no ouvinte um conteúdo psíquico determinado. Esse conteúdo é o que se compreende pela “significação” (Bedeutung) do nome.2

Com isso as funções do nome não estão esgotadas. Ele cumpre uma terceira, a saber, a função de denominar objetos. Os nomes são nomes de coisas, diz Mill, e ele apela legitimamente para fundar isto ao fato de que nós nos servimos dos nomes para comunicar algo (etwas) sobre as coisas (Dinge), etc.. Enquanto terceira função que um nome cumpre aparece a denominação de objetos. As três funções do nome são: primeiro, a informação dada de um ato de representação que ocorre naquele que fala. Segundo, a evocação de um conteúdo psíquico, da significação do nome, naquele a quem a fala se dirige. Terceiro, a denominação de um objeto que é representado pela representação significada pelo nome.

A remissão às três funções que cada nome cumpre confirma, então, de uma maneira perfeita a distinção do con-

1 Os sons e outros objetos cuja representação é usada para suscitar certas representações junto a elas num outro ser pensante, são para esse, senão sempre, ao menos nas mais das vezes, um signo (signo característico) de que as representações mencionadas estão presentes no espírito do ser que produz estes sons e outros objetos. Bolzano, Wissenschaftslehre, Sulzbach, 1837, § 285.2 “Etymologically the meaning of a name is that, which we are caused to think of when the name is used.” Jevons, Principles of Science, s. 25. Em todo caso, nós denominamos como significação de uma expressão o conteúdo da alma cuja vocação própria, o objetivo final, é de ser revelado naquele a quem a fala se dirige (seja por natureza seja por hábito), no caso em que ele tem ao mesmo tempo a capacidade de atingir em geral este fim. O nome é signo de uma representação que o ouvinte deve evocar nele mesmo, enquanto signo do representado que se trata naquele que fala. Apenas dando a conhecer este fato é que ele significa esta representação. Marty, na última obra citada.

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teúdo em relação ao objeto de uma representação. E graças a consideração do signo linguístico para a representação nós temos um meio de distinguir um fator do outro, que, por causa da imperfeição da linguagem, que designa como “representado” o conteúdo e também o objeto, podem ser facilmente confundidos um com o outro ou bem considerados como sendo uma única coisa.

§ 4. O “representado”.Se a palavra “representar” é ambígua, pois se diz tanto do

conteúdo quanto do objeto de uma representação que ele é “representado”, esse fato pode contribuir sem dúvida em muito para tornar mais difícil a distinção exata entre o conteúdo e o objeto. Nós já dissemos que o conteúdo de representação e o objeto de representação não são um “representado” no mesmo sentido. Nós vamos procurar agora estabelecer firmemente o que a expressão “representado” significa quando ela é enunciada de um objeto de representação e qual é o seu sentido quando ela é ligada ao conteúdo de representação. O meio para estabelecer firmemente a diferença de significação nos é fornecido pelo nexo de relação que existe entre os adjetivos (Beiwörtern) atributivos ou determinantes, por um lado, e os adjetivos modificadores, de outro.1

Denomina-se atributiva ou determinante (determinierend) uma classificação (Bestimmung) se ela completa ou aumenta a significação da expressão a qual ela pertence, seja numa direção positiva ou negativa. Modificadora (modificierend) se ela altera completamente a significação original do nome junto ao qual ela está. Assim em “homem bom”, a classificação “bom” é verdadeiramente atributiva; se alguém diz “homem morto”, trata-se de um adjetivo modificador, pois o homem morto não é um homem. Do mesmo modo, pela adjunção do adjetivo “falso” a um nome, a significação original desse nome é substituída por uma

1 Cf. Brentano, op. Cit., livro 2, cap. 7, § 7, p. 288.

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outra. Pois um falso amigo não é um amigo, nem um falso diamante um diamante. Possível é que a mesma palavra seja empregada tanto de uma maneira modificadora quanto como uma atribuição determinadora efetiva. Tal como o adjetivo “falso” acima citado. Nos casos escolhidos como exemplos ele é, sem dúvida, modificador. Mas não é assim nas ligações como “um juízo falso”, “um homem falso (desleal)”.

O mesmo vale para a classificação algo ser “represen-tado”. Antes de nos ocupar, contudo, da ambiguidade que afe-ta esta expressão, nós vamos considerar um caso inteiramente análogo que, tirado da experiência externa, oferece a vantagem de ser bem conhecido e que nos torna mais aptos a apreender o equívoco que se faz com a palavra “representado”.

Sabidamente diz-se que o pintor pinta um quadro (Bild), mas também que ele pinta uma paisagem (Landschaft). Que uma ação de pintar dirige-se a dois objetos; o resultado dessa operação é um único. Quando o pintor termina de pintar o quadro relativamente à paisagem, ele tem diante de si tanto um quadro pintado quanto também uma paisagem pintada. O quadro é pintado; ele não é nem burilado nem gravado, etc.; antes, é um verdadeiro quadro pintado. A paisagem também é pintada; mas ela não é uma paisagem verdadeira, ela é apenas “pintada”. O quadro pintado e a paisagem pintada, em verdade, são apenas um; o quadro apresenta sim uma paisagem, trata-se portanto de uma paisagem pintada; a paisagem pintada é o quadro da paisagem.

A palavra “pintada” joga portanto um duplo papel. Se ela é empregada para o quadro ela aparece então como uma determinação; ela determina um pouco mais a constituição do quadro, uma vez que este é um quadro pintado e não burilado, gravado, produzido por xilografia ou fototipia, etc.. Se, ao contrário, diz-se da paisagem que é pintada, a classificação “pintada” aparece como modificadora; pois, a paisagem pintada não é precisamente uma paisagem, mas uma superfície de tecido tratada pelo pintor segundo determinadas leis do colorido e da

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perspectiva; a paisagem pintada não é uma paisagem, mas um quadro.

Mas esta paisagem pintada, o quadro, apresenta uma paisagem verdadeira. A paisagem que o pintor pintou, seja a partir da natureza ou de sua fantasia, é apresentada no quadro, portanto torna-se pintada pelo pintor. Porém, por ela ter sido pintada pelo pintor ela não deixa de ser uma paisagem. Se eu mostro a alguém uma paisagem e acrescento: Esta paisagem me faz lembrar de uma exposição de arte onde havia um quadro que a representa, ela foi pintada pelo pintor X. Então eu falo, designando a paisagem nesse sentido como “pintada”, da paisagem efetiva (wirklichen) que foi pintada, não da paisagem pintada que ornamenta a parede da exposição de arte. O adjetivo “pintada”, nesse sentido, acrescentado à palavra “paisagem”, não modifica em nada a significação da palavra paisagem; é um adjetivo realmente determinante, que indica que a paisagem é tida numa relação determinada com um quadro, numa relação que tampouco faz cessar a paisagem de ser uma paisagem, tal como um homem não deixa de ser um homem quando, em razão dos traços de seu semblante, é tido frente a um outro homem na relação de semelhança.

O que nós observamos sobre a palavra “pintada” na sua aplicação ao quadro e à paisagem vale mutatis mutandis para a classificação “representado”, tal como ela é aplicada ao conteúdo e ao objeto de uma representação. E porque nós temos o hábito de designar o representar como um tipo de figuração espiritual (geistigen abbilden), o estabelecimento da comparação entre a paisagem pintada e o objeto representado aparece assim, por isso, realmente esclarecedor e parecer menos inapropriado do que seria o caso da comparação das relações da experiência interna e da experiência externa.

Ao verbo representar corresponde, de um modo seme-lhante ao verbo pintar, um duplo objeto — um objeto que é representado e um conteúdo que é representado. O conteúdo é a

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imagem (Bild); o objeto, a paisagem. O resultado da operação de representação que se faz numa dupla direção é um único. O objeto representado, no sentido de que a paisagem pintada é uma imagem, é o conteúdo da representação. O conteúdo representado numa representação é, em verdade, um conteúdo; aplicado ao conteúdo o adjetivo “representado” atua como modificador tampouco quanto o adjetivo “pintado” para a imagem; o conteúdo representado é ainda assim um conteúdo, exatamente do mesmo modo que a imagem pintada é uma imagem; com efeito, do mesmo modo que uma imagem pode ser somente pintada, ou executada por uma operação que substitui o fato de pintar, um conteúdo de representação, exatamente do mesmo modo pode ser somente representado; não há aqui uma operação que substituiria o representar. O conteúdo da representação e o objeto representado são um só e o mesmo; e, todavia, a expressão “representado” é modifica-dora enquanto classificação do objeto, pois o objeto represen-tado não é mais um objeto, mas somente o conteúdo de uma representação. A paisagem pintada também não é mais uma paisagem, nós dizemos, mas um quadro.

Porém, nós vimos que a paisagem pintada, o quadro, apresenta algo que precisamente nesse sentido não é pintado. Exatamente do mesmo modo o conteúdo de uma representação relaciona-se a algo que não é conteúdo de representação, mas objeto desta representação, de modo análogo aquele da paisagem que é o “sujeito” do quadro que a apresenta. E tal como a paisagem figurada neste quadro é levada a exposição (Darstellung), portanto, pintada num sentido diferente do precedente, exatamente do mesmo modo para o conteúdo da representação, o objeto correspondente a esta representação (Vorstellung) torna-se, como se costuma dizer, espiritualmente figurado, portanto, representado. Quando se diz do objeto, nesse último sentido, que ele é representado, por isso a significação da palavra objeto não é modificada; “o objeto é representado” quer dizer somente que um objeto entrou numa relação inteiramente

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determinada com um ser (Wesen) capaz de representação. Mas, por isso ele não cessou de ser objeto.

Quando se fala de “objetos representados”, pode-se então significar dois tipos de coisas. Um objeto é “representado” pode querer dizer que um objeto, além das muitas outras relações nas quais ele se encontra ligado a outros objetos, participa também de uma relação determinada, como um dos dois membros desta, com um ser conhecedor. Nesse sentido, o objeto representado é um objeto verdadeiro exatamente tanto quanto o objeto extenso, perdido, etc. Mas, num outro sentido, o objeto representado significa o contrário de um objeto verdadeiro; aí o objeto representado não é mais um objeto, mas o conteúdo de uma representação e qualquer coisa inteiramente diferente de um objeto verdadeiro. O objeto representado no primeiro sentido é o que pode ser reconhecido ou rejeitado por um juízo; para poder ser julgado, o objeto deve ser entretanto representado; o que não se representa não se pode também reconhecer ou negar, tampouco amar ou odiar. Obviamente o objeto reconhecido ou rejeitado, desejado ou detestado, é um objeto representado sempre segundo a primeira das significações que nós mencionamos. O objeto representado no sentido da palavra “representado” citado por último não é, porém, aquele que é reconhecido ou rejeitado; não é ele que se tem vista quando se diz que objeto é ou não é; o objeto representado nesse sentido é o conteúdo da representação, a “figuração espiritual” de um objeto.

Esta ambiguidade da palavra “representado” de que nós estamos falando nem sempre recebeu a devida atenção. Sigwart confunde, por exemplo, o objeto representado no sentido de objeto de uma representação com o objeto representado no sentido de conteúdo de uma representação, quando ele polemiza contra a teoria idiogenética do juízo.1

Drobisch, de modo análogo, não percebe a diferença entre o objeto representado num sentido e o objeto representado noutro

1 Sigwart, Logik, Freiburg i. B., 1889, I. Bb., § 12.7.

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sentido. Quando ele fala da função que os nomes têm de cumprir, ele diz: “Na medida em que o pensar considera nas representações apenas o que (was) nela é representado, o representado, e fazendo abstração de todas as condições subjetivas do representar, forma os conceitos (Begriffe). — A designação linguística dos conceitos é o nome. Costuma-se, certamente, considerar este como a designação da coisa (Sache), do objeto real da representação (se ela o tem); mas o que é representado no conceito não é outra coisa senão a coisa tornada conhecida, etc..”1 Drobisch claramente não observa que ao falar do “representado” ele usa uma palavra com dupla significação, uma vez na primeira significação e na outra vez com outra. Quando ele designa o conceito como o que é representado numa representação ele visa então, enquanto o representado, o conteúdo da representação; mas quando ele diz que o representado não é outra coisa senão a coisa conhecida, aí então por representado deve-se compreender o objeto de uma representação que lhe é relativa. Se Drobisch fosse atento a esta diferença ele não teria explicado o nome exclusivamente como a designação linguística do conceito, mas antes ele haveria encontrado que o nome significa seguramente o conceito (logo, no sentido de Drobisch, o conteúdo de representação), mas precisamente por isso nomeia o objeto, a coisa.

Trata-se da mesma confusão cometida por Drobisch quando ele explica a diferença entre “marcas distintivas” (Merkmalen) e “partes constitutivas” (Bestandteilen).2 “Esta di-ferença”, diz ele agora, “não é para ser posta como se aquelas fossem partes do conceito, e essas ao contrário partes da coisa, do objeto mesmo. Esta coisa, ela também, e suas partes cons-titutivas são somente representadas; nós não ultrapassamos também aqui os conceitos para ir além”, etc. Drobisch não vê, propriamente, entre o conceito e a coisa alguma diferença, pois ambos seriam um “representado”. Mas que algo (Etwas) possa ser

1 Drobisch, Neue Darstellung der Logik, Leipzig, 1875, §8.2 Ibid., § 14.

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em sentidos diferentes um “representado”, ora como conteúdo, ora como objeto, isto parece ter sempre escapado à sua atenção.

Entretanto, a diferença que existe entre o conteúdo de uma representação e seu objeto foi muito seguidamente indicada com insistência. Bolzano a fez, e manteve firmemente esta diferença com muitas consequências;1 Zimmermann chama a atenção expressamente contra a confusão do conteúdo com o objeto;2 e, recentemente, Kerry mostrou esta diferença para as representações de números, logo para as representações cujos objetos não são reais.3 Mais tarde nós teremos a oportunidade de poder apelar, em muitas questões a enfrentar, a esses pes-quisadores mencionados agora e de neles nos apoiar; por agora nós vamos especificar a relação que conteúdo e objeto de uma representação têm com o ato respectivo, e depois fixar a designação linguística para essa relação.

Quando nós comparamos o ato de representação ao pintar, o conteúdo ao quadro, e o objeto ao tema (Sujet) fixado sobre a tela, algo como uma paisagem, é também a relação que o ato mantém com o conteúdo e o objeto da representação que alcança analogamente expressão. Para o pintor, o quadro é um meio de apresentar a paisagem; ele quer figurar, “pintar”, uma paisagem – efetiva ou pairando na sua fantasia – e ele faz isso ao pintar um quadro. Ele pinta uma paisagem ao perfazer, pintar, um quadro da paisagem. A paisagem é o objeto “primário” da sua atividade de pintar, o quadro o objeto “secundário”. Para o representar é análogo. Aquele que representa, representa um objeto qualquer, por exemplo, um cavalo. Mas, ao fazer isso, ele representa um conteúdo psíquico. O conteúdo é a figura (Abbild) do cavalo, num sentido análogo ao do quadro ser a figuração da paisagem.

1 Bolzano, op. Cit., §49. Bolzano emprega no lugar da expressão “conteúdo de uma representação” a designação representação “objetiva”, “representação em si”, e distingue por uma parte o objeto e por outra a representação “contida” ou “subjetiva”, compreendendo por isso o ato psíquico do representar. 2 Zimmermann, Philosophische Propädeutik, wien 1867, § 18, 26.3 Kerry, Ueber Anschauung und ihre psychische Verarbeitung. Vierteljahrschrift etc. X Jahrg. u. ff.

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Quando aquele que representa representa um objeto, ele representa ao mesmo tempo um conteúdo que se liga a este objeto. O objeto representado, quer dizer o objeto sobre o qual se dirige a atividade representadora, o ato de representação, é o objeto primário do representar; o conteúdo pelo qual o objeto é representado é o objeto secundário da atividade representadora.1

Para distinguir a dúplice significação que cabe à palavra “representar”, ora na sua aplicação ao conteúdo ora na sua aplicação ao objeto, nós nos serviremos de modos de expressão que encontramos em Zimmermann.2 Do conteúdo nós diremos que ele é pensado, representado na (in) representação; do objeto, diremos que é representado pelo (durch) conteúdo de representação (ou a representação). O que é representado em uma representação, é o seu conteúdo; o que é representado por uma representação, é o seu objeto. Desse modo será possível conservar a palavra “representar” — substituí-la por outra não faria senão aumentar a confusão — e entretanto evitar os mal-entendidos que esta palavra, por causa de sua ambiguidade, parece própria a suscitar. Faz-se necessário somente, quando se fala do fato de qualquer coisa ser representada, acrescentar se ela é representada na representação ou pela representação. No primeiro caso, o que é significado com o representar é o conteúdo de representação; no segundo, é o objeto de representação.

Nós dissemos que o conteúdo é como que o meio pelo qual o objeto é representado. O que se segue claramente desse ponto de vista é novamente a analogia tal qual nós a encon-tramos entre a representação e o signo linguístico para ela, o nome. Nós vimos que a função originária do nome é a de dar informação de um ato psíquico e, justamente, o de representar.

1 As expressões “objeto primário” e “objeto secundário” encontram-se em Brentano (op. Cit., Livro II, cap. 2, §8), num sentido ligeiramente diferente. Pois, embora Brentano designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui, ele entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela “consciência interna”, e aí a representação torna-se assim consciente.2 Op. Cit.

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Por isso o nome suscita naquele a quem a fala se dirige uma significação (Bedeutung), um conteúdo (de representação) psí-quico; e, em virtude dessa significação, o nome nomeia um objeto (Gegenstand). Assim como o suscitar de um conteúdo de representação é o meio pelo qual o nome nomeia um objeto, do mesmo modo o conteúdo de representação é ele mesmo o meio pelo qual o ato de representação (do qual ele deu informação pelo nome) representa um objeto.

Para tentar prevenir os mal-entendidos que se formam quando, sem acrescentar explicação, se fala de um objeto “re-presentado”, Kerry distingue entre o “representado como tal” e o simples representado.1 Todavia, é questionável se desse modo o objetivo é alcançado. Pois, por meio do acréscimo de uma expressão como “como tal”, “enquanto”, etc., o ouvinte é convidado a representar o objeto designado sob um ponto de vista inteiramente determinado, por meio de marcas distintivas completamente determinadas que justamente esse acrés-cimo alude. Este é o caso, com efeito, quando alguém fala por exemplo do círculo “enquanto” caso limite da elipse, ou bem dos macacos americanos “na medida em que” todos eles têm cauda. Mas, se o acréscimo ao nome das partículas “enquanto”, “na medida em que”, é ela mesma ambígua, a possibilidade de mal-entendido pelo nome não é assim suprimida. Se se designa um objeto enquanto “representado”, não se impediu desse modo os mal-entendidos que podem ser provados pela ambiguidade da palavra “representado”. Pois alguma coisa pode ser tratada como “representada” precisamente num sentido duplo, ou bem enquanto ela é objeto, ou bem enquanto ela é conteúdo de um ato de representação.2 No primeiro caso, o acréscimo “enquanto

1 Kerry, op. Cit., XV. Jarhg., p. 135.2 A dúplice tarefa a ser cumprida, a partir do que foi dito, o conteúdo de representação enquanto que ele é o que é significado pelo nome, e enquanto ele é aquilo pelo qual o objeto é representado, é caracterizada por G. Noël da seguinte maneira: “De uma parte a idéia é o que representa um objeto ao espírito; ela é, em outro termos, o substituto mental do objeto. De outra parte a idéia é o que constitui a significação de um nome, o acto pelo qual nós conferimos a este nome um sentido determinado, uma acepção específica, com

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representado” tem um efeito realmente determinante, pois por ele a atenção é dirigida para uma relação na qual o objeto está com um ser conhecedor; no segundo caso, o acréscimo tem um efeito modificador, pois um objeto representado nesse sentido não é um objeto, mas um conteúdo de representação.

Nós nos aferraremos firmemente ao modo de expressão proveniente de Zimmermann, pelo qual parece melhor se evitar todos os mal-entendidos; e admitiremos que o conteúdo é representado na representação, o objeto pela representação.

§ 5. As assim chamadas representações “sem objeto”.Nos desdobramentos feitos até aqui, tacitamente, estava a

pressuposição fundante de que a toda representação corresponde, sem exceção, um objeto. Em toda representação, nós dissemos, dever-se-ia distinguir não somente um conteúdo e um ato, mas, ademais a esses dois fatores, um terceiro, seu objeto. Pode-se rapidamente objetar a uma tal concepção que existem, entretanto, representações “sem objeto”, representações às quais nenhum objeto corresponde. Em tal caso, os desdobramentos precedentes deveriam ser restritos de uma maneira importante; de modo algum eles podem valer para todas as representações. De fato, mesmo aqueles que defenderam expressamente a distinção do conteúdo de representação e do objeto de representação não acreditaram poder aplicar esta distinção senão para um grupo de representações; e, a este grupo, eles contrapunham um segundo, tão grande quanto, ou talvez bem maior ainda, de representações às quais não correspondem objetos, que, portanto, deveriam ser designadas como representações ‘sem objeto”.

Assim Bolzano ensina que há representações sem objeto, quer dizer, representações que não têm nenhum objeto. Se alguém, pensa Bolzano, mantém que é absurdo sustentar que uma representação deve não ter nenhum objeto e portanto nada

exclusão de toda outra. (Noms et Conceptus: Revue Philosophique XXXI, 471.) Cf. Também Marty, Ueber das Verhältnis von Logik und Grammatik in den “Symbolae Pragenses”, Festgabe, etc., Wien, 1893, S. 116, anm. 1.

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representar, isto se dá por que ele confunde o conteúdo da representação, que, certamente, toda representação possui, com o objeto da representação. E como exemplos de tais representações “sem objeto”, Bolzano cita as representações: nada, círculo quadrado, virtude verde, montanha de ouro.1 De maneira análoga Kerry pensa que quem indica a incompatibilidade das partes de uma representação demonstra que sob esta representação não pode cair nenhum objeto. Uma tal representação seria a do número que é maior que zero e que, adicionado a ele mesmo, tem a si mesmo como resultado.2 Também Höfler ensina que há representações “cuja extensão é igual a zero, quer dizer, às quais nenhum objeto corresponde”; como exemplos de tais representações, Höfler cita ainda, além daquelas mencionadas por Bolzano, as representações de um aerostato dirigível, de um diamante com mais de um metro cúbico, etc..3

As representações às quais não corresponde nenhum objeto são de três tipos. Primeiro, as representações que envol-vem a negação de todo objeto, como a representação nada. Segundo, as representações às quais não corresponde nenhum objeto pelo motivo de que, no seu conteúdo, parecem estar reunidas determinações contraditórias uma com as outras, por exemplo, círculo quadrado. Terceiro, as representações às quais nenhum objeto corresponde por que até agora, na experiência, não se encontrou nenhum. Considerando estes três tipos de representação “sem objeto” nós vamos examinar os argumentos usados para a existência de tais representações.

1. No que concerne à representação designada por “nada”, parece haver um erro que se reproduz há séculos através de todas as investigações lógicas e dialéticas. Não pouco tem-se refletido sobre o , o non-ens e o nihil; estes são os diferentes tipos de “nada” que se acreditou dever distinguir, e Kant estabeleceu ainda um quadro sinótico dos quatro tipos do nada. Entre eles se

1 Bolzano, op. Cit., § 67.2 Kerry, op. Cit., X. Jahrg., pp. 428, 444.3 Höfler, op. Cit., §§ 6, 17, 4.

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encontra também o “nada enquanto conceito vazio sem objeto”.1

Agora, parece questionável se a palavra “nada” é uma expressão categoremática, quer dizer, se por ela designa-se em geral uma representação como, por exemplo, pelas palavras pai, juízo, folhagem. Em geral, a significação de “nihil” é identificada com a de “non-ens”, e hoje pensa-se também que “nada” é simplesmente um substituto da expressão “não-algo”. Mas, se é assim, então parece necessário levantar a questão acerca do que significam propriamente expressões como “non-ens” e “não-algo”.

O que foi denominado pelos escolásticos de infinitiza-ção (Infinitation), quer dizer, a união de uma expressão cate-goremática com non, não, produz em geral uma expressão nova com significação bem determinada. Uma representação torna-se dividida de maneira dicotômica por uma expressão composta pela união com “não”.

Porém, não é a representação cujo nome é precedido pela partícula negativa que é dividida dicotomicamente. Quando se diz “não-gregos”, não são os gregos que são assim divididos naqueles que são gregos e naqueles que não o são. O que é dividido é um conceito de ordem superior, por exemplo, homens. Acontece o mesmo nas infinitizações tais quais não-fumantes, pela qual os viajantes são divididos naqueles que fumam e naqueles que não fumam. Apenas o desconhecimento dessa força da infinitização, que produz como efeito a dicotomia de uma representação de ordem superior, pode ter como consequência a curiosa maneira de ver segundo a qual por “não-homem”, sem considerar em relação a uma representação de ordem superior comum aos homens e aos não-homens, deveria compreender-se sem exceção, de maneira geral, tudo o que precisamente não é homem, logo, anjo tanto quanto casa, paixão, estocada de trompete. Mas, uma tal con-cepção do Ôoa ¢Òristo não pode mais ser hoje defendida seriamente.

1 Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Kehrbach, §, p. 259.

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Agora, se à infinitização está associado um efeito dico-tomizador, relativamente a uma representação de ordem superior, então, é claro que expressões como não-gregos, não-fumantes, e outras, tomadas no sentido considerado, longe de serem sem significação, devem ser designadas com pleno direito como categoremáticas. A infinitização não suprime então, em si e por si, a natureza categoremática de uma expressão. Porém, vê-se que este efeito dicotomizador da infinitização está associado a uma condição. Em relação à representação significada pelo nome infinitizado deve haver uma outra que está numa ordem superior. Se não houver nenhuma, o nome infinitizado torna-se sem significação. Claro é que com “algo” uma representação é designada à qual nenhuma outra é superordenada. Pois, se em relação a algo, alguma coisa estivesse numa ordem superior, então esse superordenado seria precisamente também algo; seria um e o mesmo que estaria simultaneamente em face de outro em posição superior e colateral. Mas, a infinitização do “algo” pressupõe um termo superordenado ao “algo”, logo alguma coisa absurda; ela não é possível no mesmo sentido que, por exemplo, a infinitização de nomes como Gregos, etc.. Já Avicena havia chamado a atenção para este fato e pelas mesmas razões aqui reproduzidas qualificado como inadmissível as infinitizações como non-res, non-aliquid, non-ens.1 E quando se considera o papel que a palavra “nada” exerce na linguagem, percebe-se que esta ex-pressão é efetivamente sincategoremática e não um nome. É uma parte constitutiva das proposições negativas. Nada é eter-no, significa: não existe nenhuma coisa eterna; eu vejo nada, significa: não existe nenhuma coisa visível para mim, etc.

Se os desdobramentos precedentes são justos, então o argumento retirado da expressão “nada” para a existência de representações sem objeto se dilui, uma vez que a expressão “nada” não significa precisamente nenhuma representação. Somente é de se admirar que a natureza sincategoremática desta

1 Cf. Prantl, Geschichte der Logik im Abendlande, II. Bd., S. 356.

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expressão tenha escapado a um pesquisador como Bolzano, visto que ele chegou a reconhecer a natureza sincategoremática da palavra “nenhum”. Vê-se, diz ele, seguramente que a representação “nenhum homem” contém certamente a representação Homem e Não, mas de todo modo não de tal maneira que o Não se relacionaria à representação Homem e negaria esta; o Não se relaciona ao predicado que aparece a seguir na frase.1 E, numa outra direção, Bolzano chega a discutir a pressuposição mencionada sob a qual uma infinitização é admissível, sem entretanto tirar as consequências para a infinitização do algo.2

2. e 3. Um segundo grupo de representações por assim dizer sem objeto é formado pelas representações cujo conteúdo contém reunidas marcas distintivas incompatíveis. Uma representação deste gênero é, por exemplo, a de um quadrado com ângulos oblíquos. Entretanto, uma consideração mais atenta do estado de coisas ensina que aqueles que sustentam que nenhum objeto cai sob esta representação tornam-se culpados de uma confusão. Esta confusão torna-se fácil de descobrir quando se considera as três funções que cabem aos nomes. Pois, as três funções mencionadas ocorrem todas aqui também: aquela do fornecimento de informação, a da significação e a da nomeação. Quem enuncia a expressão: quadrado de ângulos oblíquos, dá a informação de que nele ocorre um representar. O conteúdo correlato desse ato de representação constitui a significação do nome. Esse nome, todavia, não significa apenas qualquer coisa, mas ele nomeia algo, a saber, algo que reúne em si as propriedades contraditórias umas com as outras, e cuja existência se nega prontamente quando se é levado a um juízo sobre o que é nomeado. Mas, pelo nome algo é nomeado, sem dúvida alguma, mesmo se ele não existe. E este nomeado é distinto do conteúdo de representação; porque, primeiro, este existe, aquele não; e, segundo, nós atribuímos ao nomeado propriedades que se

1 Bolzano, op. Cit., §89, nota 8.2 Ibid., § 103, nota.

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contradizem umas com as outras, as quais porém não cabem ao conteúdo de representação. Pois, se este contivesse propriedades contraditórias umas com as outras, então, ele não existiria; mas ele existe. Não é ao conteúdo de representação que nós atribuímos a oblicidade dos ângulos e ao mesmo tempo o ser-quadrado; mas ao que é nomeado pelo nome, quadrado de ângulos oblíquos, que é o suporte, certamente não existente, mas representado, destas propriedades. E obviamente o quadrado de ângulos oblíquos não é um representado no sentido em que o conteúdo de representação é um representado; pois o conteúdo existe; o quadrado de ângulos oblíquos é antes um representado no sentido de objeto de representação, que, nesse caso, deve ser rejeitado, mas que por isso não é menos representado enquanto objeto. Pois, apenas enquanto objeto da representação o quadrado de ângulos oblíquos pode ser rejeitado; o que é rejeitado é o que é nomeado pelo nome: quadrado oblíquo; enquanto conteúdo da representação, o quadrado de ângulos oblíquos não pode ser rejeitado; o conteúdo psíquico que constitui a significação do nome existe no sentido mais verdadeiro dessa palavra.

A confusão feita pelos defensores das representações sem objeto consiste em que eles tomaram a não existência de um objeto de representação pelo seu não ser representado. Contudo, para cada representação um objeto é representado, exista ele ou não, do mesmo modo que cada nome nomeia um objeto a despeito de se ele existe ou não. Embora seja correto sustentar que os objetos de certas representações não existem, fala-se frequentemente, entretanto, quando se sustenta que sob tais representações não cai nenhum objeto, que tais representações não têm objeto, que elas são representações sem objeto.

Contra tal desdobramento pode-se levantar uma objeção muito forte. Por meio de uma concepção desse tipo, pode-se dizer, o limite entre existência e não-existência é apagado. O objeto de uma representação, em cujo conteúdo marcas distintivas contraditórias são representadas, não existe; entretanto, sustenta-

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se que ele é representado; logo, ele existe, enquanto objeto representado.

Quem argumenta assim esquece que se algo “existe” (existiert), enquanto representado no sentido de objeto de re-presentação, esta existência não é nenhuma verdadeira exis-tência. Por meio do adjetivo: enquanto objeto de representação, a significação da expressão existência é modificada; algo existente enquanto objeto de representação, em verdade, não existe, mas é somente representado. À existência efetiva de um objeto, na medida em que ela forma o conteúdo de um juízo de reconhecimento, se opõe a existência fenomenal, intencional, desse objeto;1 ela consiste somente e unicamente no ser-representado. Longe de apagar os limites entre existência e não-existência, os desdobramentos precedentes, sobre o objeto das representações ditas “sem objeto”, contribuem antes para traçar este limite de maneira mais clara possível. Pois, agora nós sabemos que se deve evitar confundir a existência de um objeto com o seu ser-representado. Este implica e funda precisamente tão pouco a existência do objeto representado quanto o ser-nomeado de um objeto, por pressuposição ou consequência, a sua existência. A escolástica reconheceu a singularidade dos objetos representados, mas que não existem; e é dela que provém a expressão segundo a qual estes objetos teriam uma existência somente objetiva (objektiv), intencional, pela qual se tinha consciência de não designar com esta expressão nenhuma existência verdadeira. Com a exceção de que isto valia apenas para objetos possíveis, livres de contradição interna, e que se deixava os objetos impossíveis de fora do jogo. Todavia, não é compreensível porque o que é válido para aqueles não deva ser aplicado também a estes. Quando se representa um objeto não existente, nem sempre se observa no primeiro golpe de vista se o objeto é afetado ou não por determinações que se contradizem umas com as outras. É possível mesmo que as determinações

1 Cf. Brentano, op. cit., Livro II, cap. I, § 7.

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desses objetos sejam tais que pareçam unificáveis umas com as outras e que apenas pelas consequências resultantes elas se revelem incompatíveis. Nesse caso, a representação teria um objeto até que essas contradições não fossem observadas; e então, num piscar de olhos, quando aquele que se representa as percebe, a representação cessaria de ter um objeto. Em que então essas contradições existiriam? No conteúdo de representação? Certamente não, pois as determinações contraditórias são representadas nela, mas a ela não se aplicam; não resta, portanto, outra coisa senão o fato dessas determinações serem representadas enquanto fixadas no objeto; e é por isso, seguramente, que o objeto mesmo deve ser representado.

A diferença entre as representações com objetos pos-síveis, e aquelas com objetos impossíveis, reside em que aquele que representa no primeiro caso, a saber, quando representa o possível, terá, grosseiramente, incomparavelmente menos oca-siões de fazer sobre esse objeto de representação, intrínseca-mente isento de contradições, um juízo de reconhecimento ou de rejeição, que no segundo caso, em que se representa um objeto impossível, sem que a impossibilidade do mesmo lhe escape. No segundo caso, um juízo de rejeição se estabelecerá espontaneamente, o qual, para ser feito, não deverá provocar nenhuma forte tensão do lado daquele que representa o objeto impossível. Mas, mesmo se se está inclinado a recusar o objeto, e se, seguindo esta inclinação, faz-se um juízo: Este objeto não existe, deve-se precisamente por isso, para poder fazer o juízo, representar-se o objeto.

A teoria das representações verdadeiras e falsas, tal como se encontra ainda em Descartes e seus sucessores, resta incompreensível sem a pressuposição de que corresponde a cada representação, sem exceção, um objeto. Cada representação, diz Descartes, representa algo igualmente enquanto objeto; ora, se este objeto existe, a representação é materialmente verdadeira; se

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ele não existe, a representação é materialmente falsa.1 Portanto, claramente a maneira de ver de Descartes é que,

exista ou não o objeto de uma representação, ele aparece sempre dado (gegeben) na representação; a questão é somente se à esta existência intencional do objeto na representação corresponde uma existência verdadeira; e, como as representações oferecem àquele que representa tanto os objetos verdadeiramente existentes quanto os objetos existentes somente de modo intencional, de modo igual e sem nenhuma diferença, elas ocasionam muito seguidamente juízos falsos, pois pode-se ser facilmente inclinado a ter por verdadeiramente existente objetos existentes de modo meramente intencional, tanto quanto os objetos existentes verdadeiramente.

Nós encontramos, portanto, nos desdobramentos de Descartes, uma confirmação da maneira de ver avançada aqui, segundo a qual a cada representação corresponde um objeto. Se se conseguir mostrar que, mesmo para as representações em cujo conteúdo são representadas determinações contraditórias, dão-se objetos, isto constituiria a prova correspondente para o terceiro grupo de representações “sem objeto”, objeto esse que, embora não seja impossível, a existência de fato não é dada na experiência. Mesmo aí deve-se manter firmemente que para cada representação um objeto é representado, quer ele exista ou não; mesmo as representações cujos objetos não podem existir não são exceção a esta regra.

À luz desse pertencimento necessário de um objeto a cada ato de representação e a cada conteúdo, o que se segue claramente é a natureza do tipo próprio de relação que mantém com seu objeto o ato psíquico que nós denominamos representar. Com efeito, o que distingue precisamente a relação com o objeto, própria à classe das representações, daquela própria aos juízos, é que se trata, nesses últimos, da existência ou da não-existência de

1 Descartes, Meditationes de prima philosophia, Med. III: Nullae ideae nisi tanquam rerum esse possunt. — Est tamen profecta quaedam alia falsitas materialis in ideis, cum non rem tamquam rem repraesentant.

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um objeto, enquanto que para aquelas ele é simplesmente representado pela primeira classe de fenômenos psíquicos, sem referência ao fato de ele existir ou não.

Que sejam propostas aqui relações de um tipo tal que um de seus membros existe e o outro não, portanto relações entre existentes e não-existentes, não deve surpreender quando se pensa que a questão, de saber se os membros de uma relação existem (existieren) ou não, não entra na conta para a relação “subsistente” (bestehende) entre eles, tal como demonstra Höfler.1 Salvo que isso é misturado, no pesquisador citado, com o erro consistente em confundir o conteúdo e o objeto da representação. Ele diz: um juízo que afirma uma relação não supõe uma existência “efetiva” (“wirkliches” Dasein) dos membros da relação; é suficiente representá-los e é então sobre esses conteúdos de representação que se faz o juízo. Isto não parece justo na medida em que os conteúdos de representação, de um lado, existem, mas, de outro lado, não são aquilo entre o que tem lugar a relação afirmada no juízo. Quem diz que o número quatro é maior que o número três não fala de uma relação entre o conteúdo da representação de três e o conteúdo da representação de quatro. Pois entre os conteúdos de representação não há relações de grandeza. A relação tem lugar antes entre o “número três” e o “número quatro”, ambos os dois tomados enquanto objetos de representação, sem referência a eles existirem ou não, dado apenas que eles sejam representados pelas representações correspondentes.

Se é assim, então surge uma outra dificuldade que já foi apontada por Höfler. Os juízos de relação que têm por conteúdo a existência de uma relação entre objetos que não existem parecem, com efeito, reconhecer os objetos mesmos; e, a partir do que foi dito mais acima sobre a relação de reconhecimento das partes com o reconhecimento do todo no qual estas partes estão contidas, parece que pelo reconhecimento de uma relação, cada

1 Op. cit., § 45, II.

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membro dessa relação deve ser também reconhecido. Esta observação conduz a um resultado que entra em contradição com o fato de se sustentar que, num juízo de relação, não é levado em conta a existência dos membros da relação. Esta dificuldade resolve-se, entretanto, pela seguinte consideração.

A partir da teoria do juízo idiogenético, isto é, aquela que coloca a essência do juízo no reconhecimento ou rejeição de um objeto,1 há apenas juízos afirmativos particulares e negativos apenas gerais, enquanto que aqueles que se denominam juízos afirmativos gerais e negativos particulares podem ser reduzido àquelas duas classes.2 Agora, no que concerne aos “juízos de relação” negativos gerais, a dificuldade aludida simplesmente não existe propriamente para eles. Um tal juízo, como por exemplo: Não há círculos com raios desiguais (expresso categoricamente: todos os raios de um círculo são iguais uns aos outros), não contém nada sobre a existência de raios; ele rejeita somente a desigualdade dos raios de um círculo, sem enunciar algo sobre a existência mesma desses raios. E no que concerne aos juízos afirmativos particulares, nos quais algo é enunciado sobre uma relação, a dificuldade mencionada desaparece se é estabelecido firmemente o sujeito verdadeiro de tais frases. Na frase “Posseidon é o deus do mar”, parece que pelo reconhecimento da relação que Posseidon mantém com o mar, Posseidon é ele mesmo reconhecido de uma maneira implícita. Entretanto, isto é apenas uma aparência; pois, na medida em que o nome próprio, segundo a maneira de se expressar dos escolásticos, nesse caso supõe (supponiert), o nomeado enquanto nomeado, o sujeito da proposição não é “Posseidon”, mas “o que é nomeado Possei-don”.3 O que é implicitamente reconhecido, portanto, é um nomeado enquanto tal, um objeto de representação, na medida em que ele é nomeado, e não o objeto de representação ele mesmo.

1 Hillebrand, op. cit., § 16.2 Brentano, op. cit. , Livro II, Cap. 7, § 7.3 Cf. Marty, Sobre as proposições sem sujeito etc., Vierteljahrsschr. f. wissensch. Philos., VIII Jahrg. p. 82, e Hillebrand, op. cit., § 68, nota.

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Dessa maneira a relação entre o ato de representação e o objeto representado por ele deve revelar-se como independente da questão se este objeto existe ou não. Com isso cai o obstáculo que se opunha ao fato de afirmar que a cada representação corresponde um objeto, quer ele exista ou não. A expressão “representação sem objeto” é do tipo que contém uma contradição interna. Pois, não há representação que não represente algo enquanto objeto; não pode haver semelhante representação. Há, ao contrário, numerosas representações cujo objeto não existe, e isto ou bem porque este objeto reúne determinações contraditórias entre si, logo, que não pode existir, ou bem porque simplesmente factualmente não existe tal objeto. Mas, mesmo nesses casos um objeto é representado, de tal maneira que se pode bem falar em representações cujos objetos não existem, mas não em representações que seriam sem objetos, às quais não haveria objeto correspondente.4

§ 6. A diferença do conteúdo e do objeto de representação

Que conteúdo e objeto de uma representação são dife-rentes um do outro, isto não mais deverá ser contestado no caso em que o objeto de representação existe. Quem diz: O sol existe, claramente indica não o conteúdo de sua representação do sol, mas algo toto genere diferente desse conteúdo. Não é assim tão simples para as representações cujo objeto não existe. Alguém poderia facilmente ser da opinião de que nesses casos a diferença

4 Bolzano vê-se ele mesmo obrigado a falar, num parágrafo particular, da maneira que as relações estabelecidas para as representações que têm objetividade (por exemplo, aquela entre representações intersubstituíveis, a de ordem superior e inferior) podem ser estendidas para as representações “sem objeto” (op. cit., § 108). Este parágrafo, por seu objetivo e por seu desenvolvimento, é uma confirmação da proposição segundo a qual propriamente não há representações sem objeto. — Em Kerry também nós encontramos uma proposição que confirma — talvez sem que isso seja o desejo do autor – nossa maneira de ver. Assim nós lemos: já o enunciado “Não há triângulo reto com lados iguais, e com ângulos desiguais” mostra que se pode pensar de uma maneira qualquer (naturalmente não intuitivamente) um objeto cuja existência é negada. (op. cit., IX, Jahrg., p. 472).

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entre o conteúdo e o objeto não consiste em nada real (realer), mas meramente lógica (logischer); conteúdo e objeto são nesses casos, em verdade, o mesmo; apenas o dúplice ponto de vista sob os quais esse mesmo pode ser considerado o deixa aparecer ora como conteúdo ora como objeto.

Mas não é esse o caso. Ao contrário, uma consideração rápida ensina que entre conteúdo e objeto de uma representação, mesmo no caso em que o objeto não existe, deve subsistir as mesmas diferenças que aquelas que podem se mostrar no primeiro caso, aquele em que o objeto existe. Nós vamos enumerar as mais importantes dessas diferenças e tentar mostrar, para cada uma em particular, como ela vale quando os objetos não existem assim como quando eles existem.

1. O que nos serviu já tão seguidamente para fazer valer a diferença em questão foi a remissão ao tipo inteiramente diferente de relação na qual estão o conteúdo e o objeto com o juízo afirmativo ou negativo. Se, com efeito, conteúdo e objeto fossem diferentes um do outro de maneira não real, mas simplesmente lógica, não seria possível que eventualmente o conteúdo existisse enquanto o objeto não. Mas, este é seguidamente o caso. Quem faz um juízo verdadeiro, que nega um objeto, deve, entretanto, representar-se o objeto por ele julgado como rejeitável. O objeto é representado enquanto objeto por um conteúdo correspondente. Tanto quanto esse seja o caso, o conteúdo existe, mas o objeto não existe, pois ele é o que é rejeitado no juízo negativo verdadeiro. Se conteúdo e objeto fossem verdadeiramente a mesma coisa, não seria então possível que no mesmo instante um existisse e o outro não. Dessa relação do juízo verdadeiro de rejeição com o conteúdo e o objeto da representação, que se encontra no fundamento do juízo, nós tiramos o argumento mais eficaz em favor da diferença real entre os dois.

2. Kerry menciona outro argumento. A diferença, diz ele, entre o conceito de um número e o número mesmo é tornada evidente já pelo fato de o número possuir propriedades e estar

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inserido em relações que são completamente estranhas ao seu conceito.1 Kerry compreende por conceito o que nós denominamos conteúdo da representação; o número mesmo é o objeto. Uma montanha de ouro, por exemplo, tem, entre outras, a propriedade de ser espacialmente estendida, de se compor de ouro, de ser maior ou menor que outras montanhas. Estas propriedades e relações de grandeza com outras montanhas não se aplicam obviamente ao conteúdo da representação de uma montanha de ouro. Pois, este não é nem espacialmente estendido nem de ouro e não é possível também que sobre ele sejam aplicados enunciados sobre relações de grandeza. E mesmo quando a montanha de ouro não existe, se lhe atribuem, na medida em que ela é objeto de representação, estas propriedades, e se a coloca em relação com outros objetos de representação, talvez tampouco existentes quanto ela mesma. E isto também vale para os objetos aos quais se atribui determinações contraditórias entre si. Não é ao conteúdo da representação que estas determinações são atribuídas; o conteúdo da representação de um quadrado com ângulos oblíquos não tem ângulos oblíquos e nem a forma quadrada; mas é o quadrado com ângulos oblíquos mesmo que é o objeto desta representação. E então resulta disso, sob este ponto de vista, a diferença entre conteúdo de representação e objeto de representação.

Liebmann, que se esforça por manter o ato e o conteúdo de uma representação rigorosamente separados um do outro como algo inteiramente diferente, esquece de ver nisso a diferença entre o conteúdo e o objeto. Ele diz: especialmente o conteúdo de nossas representações visuais e táteis possui sempre, ao mesmo tempo que a extensão espacial, certos predicados geométricos como a posição, a figura, etc.. Mas o representar este conteúdo se mostra completamente inacessível a estes predicados geométricos que possuem a luminosidade, a força de um som, a temperatura e outras grandezas do gênero da intensidade.2 Aqui Liebmann

1 Kerry, op. cit., X. Jahrg., p. 428.2 Liebmann, Zur Analyse der Wirklichkeit, Strasburg, 1876, p. 152.

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denomina “conteúdo” o que nós chamamos “objeto” de representação; visto que este último possui os predicados geométricos de que fala Liebmann. Mas, quando Liebmann compreende por conteúdo a mesma coisa que nós designamos como objeto, os seus desdobramentos são corretos, mas lhes falta o elo de ligação (Bindglied) entre o ato de representação e o objeto de representação que faz esse ato ligar-se precisamente a este objeto determinado e a nenhum outro. E este elo de ligação, o conteúdo de representação no sentido que nós supomos, não é um e o mesmo que o ato. Sem dúvida ele forma, conjugado com este, uma realidade psíquica única; mas, enquanto o ato de representação é algo real, a realidade sempre falta ao conteúdo de representação; ao objeto, a realidade tanto pode advir quanto não. Também nes-sa diferente relação para com a propriedade de ser real mostra-se a diferença entre o conteúdo e objeto de uma representação.

3. Uma outra prova em favor da diferença real, e não simplesmente lógica, entre conteúdo e objeto de representação, nos é dada por aquilo que se denomina representações inter-substituíveis (Wechselvorstellungen). Por estas se compreende, conforme a definição habitual, representações que têm a mesma extensão, mas um conteúdo diferente. Por exemplo, são representações desse tipo o lugar em que se situava a cidade romana Juvavum e o lugar de nascimento de Mozart. Os dois nomes significam (bedeuten) algo diferente; mas eles nomeiam (nennen) o mesmo. Agora, como nós vimos, visto que a significação de um nome coincide com o conteúdo da representação designada por ele, e que aquilo que é nomeado pelo nome é o objeto da representação, então, as representações intersubstituíveis podem também ser definidas como representações nas quais o conteúdo difere, mas pelas quais é o mesmo objeto que é representado. Para isso, porém, a diferença entre conteúdo e objeto já está dada. Pois, pensa-se em algo inteiramente diferente com o lugar em que se situava a cidade

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romana Juvavum e com o lugar de nascimento de Mozart. Essas duas representações reúnem partes constitutivas muito diferentes. Na primeira aparecem como partes constitutivas a representação de romanos, de um lugar antigo, de uma cidade fortificada; na segunda representação aparecem como partes constitutivas a representação de um compositor, de uma relação que o mesmo mantém com sua cidade natal, enquanto que a relação com uma colônia antiga que se encontrava sobre este lugar e estava representada pela primeira representação não aparece. A despeito dessas enormes diferenças nas partes constitutivas dos conteúdos de representação nomeados, os dois conteúdos se relacionam entretanto a um único e mesmo objeto. As mesmas características que cabem ao lugar de nasci-mento de Mozart aplicam-se também ao lugar que foi a loca-lização da cidade romana Juvavum; este é idêntico ao lugar de nascimento de Mozart; o objeto das representações é o mesmo; o que distingue as duas representações é o seu conteúdo dife-rente.

Fácil é aplicar o que foi dito às representações cujo objeto não existe. Um círculo no sentido rigorosamente geométrico não existe em nenhum lugar. Contudo, pode-se representá-lo de maneiras muito diferentes; seja como linha de uma curva constante, seja como formação que é expressa pela equação (x – a)2 + (y – b)2 = r2, ou ainda enquanto linha cujos pontos estão todos à mesma distância de um ponto determinado. Todas essas representações diferentes se referem ao mesmo. O mesmo a que elas se referem é o seu objeto; aquilo em que elas diferem entre si, é o seu conteúdo.

A aplicação do argumento, derivado das representações intersubstituíveis, em favor da diferença real do conteúdo e do objeto das representações cujo objeto contém determinações contraditórias entre si, não parece isento de dificuldades. Se se representa um quadrado com ângulos oblíquos e um quadrado com diagonais desiguais, se tem, como é o caso em todas as representações intersubstituíveis, duas representações com

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conteúdo em parte semelhante e em parte diferente. Mas, quanto a saber se esses conteúdos diferentes se referem ao mesmo objeto é difícil de estabelecer, pois todas as outras representações do objeto, fora as representações intersubstituíveis em questão, estão ausentes; e, por conseguinte, o que Kerry designa como a “tomada de conhecimento” do objeto de representação, não é possível.1 A comparação das propriedades do objeto da primeira representação intersubstituível com as propriedades do objeto da outra representação não pode ser mais estabelecida, pois toda conexão lógica entre as marcas distintivas foi suprimida. Há, porém, um substituto para este modo de constatar a identidade do objeto representado por duas representações intersubstituíveis que pode ser da seguinte maneira:

Pode-se formar a representação de um objeto, dotado de determinações contraditórias entre si, por meio do conteúdo do que é representado para além de um único par de determinações incompatíveis. A representação de uma figura quadrada, com ângulos oblíquos, e diagonais desiguais, por exemplo, é desse tipo. Aí entram em conflito umas com as outras sob a forma de pares tanto as determinações quadrado e obliquangular quanto as determinações quadrado e diagonais desiguais. Por meio da representação, que tem como conteúdo esses dois pares, é representado um objeto único e não existente. Agora, esta representação pode, entretanto, se repartir em duas, quando se representa a cada vez apenas um dos dois pares de propriedades que se contradizem entre si. Pode-se representar na primeira vez a figura quadrada, obliquangular, com diagonais desiguais, representando-se somente as determinações quadrado e obliquangular; e se pode outra vez representar-se o mesmo objeto que é tido, por pressuposição, ser quadrado e obliquangular, representando-se somente o par de propriedades que é designado pelas palavras: ser um quadrado e ter diagonais desiguais. Conforme a pressuposição, representa-se pelas duas

1 Kerry, op.cit., XV. Jahrg., p. 160.

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determinações o mesmo objeto; mas, as duas representações são, no seu conteúdo, iguais somente em parte, portanto representações intersubstituíveis autênticas. Desta maneira o argumento retirado das representações intersubstituíveis em favor da diferença entre conteúdo de representação e objeto de representação pode ser também empregado para as representações cujos objetos não podem existir porque as determinações particulares deles são incompatíveis entre si.

4. Kerry serve-se ainda de outro argumento para mostrar a não identidade de conteúdo e objeto. A representação geral, enquanto representação sob a qual cai uma pluralidade de objetos, tem, porém, efetivamente apenas um único conteúdo, e forneceria por isso a prova que conteúdo e objeto deveriam ser distinguidos rigorosamente.1 Este argumento apresenta-se por assim dizer como o complemento do anterior, no qual esta mesma diferença foi demonstrada a partir do pertencimento de muitos conteúdos a um objeto único. Mas, que sob representações gerais está efetivamente um número plural de objetos parece ser um erro — por mais estranho que isso possa soar — e, por isso, o argumento de Kerry, fundado nessa situação, parece caducar.

Entretanto, mesmo sem esse argumento as razões que foram mencionadas parecem mostrar suficientemente que se deve distinguir um do outro o conteúdo e o objeto de uma representação, mesmo quando este objeto deva ser negado.

§ 7. Descrição do objeto de representação.Quando nós designamos o que é representado por uma

representação como seu objeto, nós damos a esta palavra um sentido que Kant já lhe atribuiu em parte. “O conceito mais elevado”, lemos em seu texto, “de onde nós costumamos começar uma filosofia transcendental, é a divisão entre o possível e o impossível. Mas, visto que toda divisão pressupõe um conceito

1 Kerry, op. cit., X. Jahrg., p. 432.

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partilhado, deve ser indicado um ainda mais elevado; e este é o conceito de um objeto qualquer (tomado problematicamente, e sem decidir se ele é algo ou nada)”.1 Apenas sob um aspecto nós cremos dever modificar o sentido que Kant dá à palavra objeto. Segundo Kant, o objeto pode ser “algo” ou “nada”. Em oposição a Kant, nós já estabelecemos (§ 5) que “nada” deve ser concebido não tanto como nome de objetos de uma representação possível, mas como expressão sincategoremática: “nada” significa o limite do representar, ali onde este cessa de ser representar. Às razões já indicadas em favor dessa concepção do “nada”, o que segue pode ser ainda adicionado. Nós designamos como objeto o que é representado por uma representação, julgado (beurteilt) por um juízo, desejado ou detestado por uma atividade afetiva. Se “nada” fosse um objeto de representação, ele deveria então poder também, reconhecendo-se ou rejeitando-se, ser julgado, desejado ou detestado. Ora, isto não é nunca o caso. Não se pode dizer jamais: “nada” existe, nem “nada” não existe; não se pode também nem querer “nada” nem o detestar. Ali, portanto, onde se utiliza tais giros de linguagem, ou análogos, a expressão “nada” ou bem revela visivelmente sua natureza sincategoremática — como quando o solipsista diz: “não há nada = não há nenhuma coisa de real ao redor do sujeito que se representa — ou bem ela ocorre como figura de um outro nome, como quando o budista diz: o que se segue à morte é o estado do nada.

Portanto, aquele que diz que representa o “nada”, sim-plesmente não representa; aquele que representa, representa algo, um objeto.

A Kant se associam, no uso da palavra “objeto”, Bolzano2 e Erdmann3; ambos usam “nada” como um tipo de objeto. Kerry o faz também4; entretanto, o uso kantiano da palavra “objeto” não

1 Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Kehrbach, §, p. 259.2 Bolzano, op. cit., § 49, 1.3 Erdmann, Zur Theorie der Apperception. Vierteljahrschr. f. wissensch. Philos., X. Jahrg., pp. 313ss, e Logik, t.1, §§ 8-34, especif. §15.4 Op. cit., Jarhg. XIII, p. 122, nota.

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lhe parece, numa outra direção, livre de objeção. Ele diz que Kant não emprega sempre a palavra no mesmo sentido, pois para ele o objeto é tanto “o que afeta o espírito”, portanto real, quanto um objeto conceitual1. Sem considerar se a objeção de Kerry contra Kant é justificada, nós vamos esclarecer nosso ponto de vista sobre esta questão.

O objeto das representações, dos juízos e dos senti-mentos, bem como das volições, é qualquer coisa de diferente da coisa em si, no caso onde por esta entenda-se aquela causa não-conhecida que afeta nossos sentidos. Nessa perspectiva, a significação da palavra objeto coincide com a da expressão “fenômeno” ou “aparência”, cuja causa pode ser ou bem, segundo Berkeley, Deus, ou bem, segundo os idealistas radicais, nosso próprio espírito, ou bem, segundo os “real-idealistas” moderados, as coisas em si concernidas. O que foi dito até aqui sobre os objetos de representação e que será posto ainda como resultado no curso da investigação sobre eles, pretende ser válido, qualquer que seja o ponto de vista que se escolha entre esses que acabamos de mencionar. Para cada representação, algo é representado, quer exista ou não, quer se apresente como independente de nós e se imponha à nossa percepção, quer seja formado por nós mesmos na imaginação; de qualquer maneira que seja, o objeto está, na medida em que nós nos o representamos, em oposição a nós e à nossa atividade de representação.

Quanto a saber se este objeto é algo real ou não-real, restará difícil de decidir, enquanto não se esteja de acordo sobre a significação que se deve associar a estas expressões. A existência de um objeto não tem nada a ver com a sua realidade. Sem considerar se um objeto existe ou não, diz-se dele que ele é alguma coisa de real ou não — exatamente como se pode falar da simplicidade ou da composicionalidade de um objeto, sem se perguntar se ele existe ou não. Agora, em que consiste a realidade de um objeto, isto não se pode descrever com palavras; mas, hoje

1 Ibid., Jahrg. X., p. 464. nota.

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a maioria concorda em que objetos tais como som estridente, árvore, tristeza, movimento, são algo real, enquanto objetos tais como falta, ausência, possibilidade, etc., são contados entre os não reais1. Agora, do mesmo modo que um objeto real pode bem existir uma vez e outra não, alguma coisa não-real pode tanto existir quanto não. Juízos tais como: Existe uma falta de dinheiro, ou: Não existe a possibilidade que isto ou aquilo aconteça, são verdadeiros ou falsos inteiramente independente da não-realidade do objeto reconhecido ou rejeitado por eles.

À objeção de Kerry levantada contra Kant, nós replica-remos que a palavra objeto, tomada no sentido estabelecido aqui, tanto pode falar de um objeto real quanto de um objeto conceitual — objeto não-real —, pois os objetos, da mesma maneira que eles podem ser repartidos em existentes e não-existentes, são, por uma parte, algo real e, por outra, algo não-real.

Há ainda uma outra expressão em relação a qual a significação da palavra “objeto” deve ser delimitada. Esta pala-vra não deverá ser confundida com “assunto” (“Sachen”) ou “coisa” (“Dingen”). Esses últimos são apenas grupos de objetos dentre os quais há muitos que não são ainda nem um assunto nem uma coisa. Aos objetos aplicam-se, na sua totalidade, as categorias do representável, enquanto que as coisas ou assuntos designam apenas uma dessas categorias. Uma queda mortal não é uma coisa, mas um objeto, como por exemplo também: experimento, morte, ataque de epilepsia, tranquilidade da alma, seno (na trigonometria), etc.

Para explicar o significado da palavra ‘objeto’ ainda mais, pode-se também — com nós já o fizemos — indicar a designação na linguagem e afirmar que tudo aquilo que é designado é um objeto. Tal designação usa ou nomina no sentido gramatical, ou usa frases consistindo de nomina e outras expressões, ou, finalmente, usa outras partes da linguagem, assumindo que elas foram substantivadas. Pode-se, pois, dizer que tudo o que é

1 Marty, op. cit., VIII. Jahrg., p. 171 ss.

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designado por um substantivo ou por uma expressão substantivada é um objeto no sentido aqui adotado.

Agora, uma vez que todo objeto (Gegenstand), pode ser objeto (Object) de uma representação, não excluído o sujeito representador, aqueles que concebem o objeto como o summum genus estão justificados. Tudo o que é, é um objeto de uma possível representação; tudo o que é, é algo. E aqui, portanto, está o ponto onde a discussão psicológica da diferença entre conteúdo e objeto de representação adentra na metafísica.

Os objetos de representação têm sido vistos de um ponto de vista metafísico, com efeito, até o presente momento. Ao denominá-los onta, entia, revela-se o modo pelo qual se chegou a eles. Contudo, que o on aristotélico, tal como o ens da filosofia medieval, não é nada mais do que o objeto de representação, mostra-se pelo fato de que todas as doutrinas sobre o ens, na medida em que elas sejam corretas, valem para o objeto de representação. Vamos nos deter aqui nas mais famosas dessas doutrinas.

1. O objeto é algo diferente do existente; muitos objetos, além de sua objetividade (Gegenständlichkeit), isto é, em adição a sua propriedade de ser representado (que é o sentido real da palavra ‘essentia’), têm ainda existência, outros não. O que existe é um objeto (ens habens actualem existentiam), como também é algo que meramente poderia existir (ens possibile); mesmo o que nunca pode existir, mas que pode apenas ser pensado (ens rationis) é um objeto; em suma, tudo o que não é nada, mas que em algum sentido é “algo”, é um objeto.1 De fato, a maioria dos escolásticos mantêm que ‘aliquid’ tem o mesmo significado de ‘ens’, e isto em contraste com aqueles que concebem o primeiro como um atributo do último.

1 Alguns, como Suarez, não aplicam o nome ens para o que meramente tem uma “chimaerica essentia” ou “ficta”, e o aplicam apenas às “essentia realis”. Contudo, esta restrição parece envolver uma inconsistência. Cf. Suarez, Disputationes metaphysicae II, sect. 4.

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2. Objeto é summum genus. Os escolásticos expressam isto com o enunciado de que o conceito de ens não é um conceito geral, mas um conceito transcendental, porque ele “om-mia genera transcendit”.

3. Todo objeto de representação pode ser objeto de um juízo e objeto de uma atividade afetiva. Este é o significado da doutrina escolástica de que todo objeto de representação é “verdadeiro” e “bom”. A verdade (metafísica) de um objeto não consiste em ser julgado (logicamente) em um juízo verdadeiro; tão pouco quanto sua “bondade” depende de se o sentimento em relação a ele no sentido ético é bom ou não. Antes, um objeto é chamado verdadeiro na medida em que ele é um objeto de um juízo, e ele é chamado bom na medida em que ele relaciona-se com uma atividade afetiva. Sem dúvida não se toma sempre de uma maneira rigorosa, do lado dos escolásticos, esta significação da verdade e do bem de um objeto. Quem definir a verdade metafísica como a “conformitas rem inter et intellectum”, pressupõem a verdade do juízo em relação ao objeto julgado. E quando, por exemplo, Tomás de Aquino coloca a verdade de um objeto em sua “cogniscibilitas” ou “intelligibilitas”, a remissão à verdade do juízo está aí incluída. Pois, todo conhecimento é um juízo verdadeiro. Entretanto, Tomás abandona esse ponto de vista quando ele ensina: “Sicut bonum nominat id, in quod tendit appetitus, ita ve-rum nominat id, in quod tendit intellectus”.1 Segundo esta concepção, a teoria ensinada não quer dizer nada senão que um objeto é chamado verdadeiro na medida em que a ele se liga um juízo, e ele é chamado bom na medida em que a ele se liga um sentimento. E, visto que cada objeto de representação pode ser submetido a uma atitude que julga, deseja ou detesta, então a verdade e a bondade cabem a cada objeto de representação, e a teoria escolástica ensinada mostra-se justa no

1 Tomás de Aquino, De veritate, p. 1, questão 16, art. 1.

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sentido de que cada ente é tanto verum quanto bonum.

4. Um objeto é chamado verdadeiro em relação a sua capacidade de ser julgado; ele é chamado bom em relação a sua capacidade de ser um objeto de atividade afetiva. Pode-se levantar questão de se o objeto tem, por analogia, um atributo que expressa sua concebibilidade e que, por conseguinte, seria um nome do objeto na medida em que ele é representado. Agora, a filosofia medieval reconhecia um terceiro atributo do objeto; todo ens, diz esta filosofia, não é apenas verum e bonum, mas também unum. Nós devemos investigar num contexto diferente, uma vez que esta questão surgirá naturalmente, o que esta unidade significa para a representação de um objeto, especialmente se nós podemos ver nela o análogo na esfera da representação para a verdade na esfera do juízo e a bondade na esfera das atividades afetivas.

5. Se o objeto de representação, juízo e sentimentos não é senão o ens aristotélico-escolástico, então, a metafísica deve ser definível como a ciência do objeto em geral, tomando-se esta palavra no sentido aqui proposto. E isto é, de fato, o caso. Aquilo com que as ciências particulares lidam também nada mais é senão os objetos de nossas representações, suas mudanças, suas propriedades, bem como as leis de acordo com as quais os objetos afetam uns aos outros. Apenas que as ciências particulares sempre lidam com um grupo de objetos mais ou menos delimitado, um grupo formado pelo contexto natural ou por um determinado objetivo. As ciências naturais, no sentido mais amplo do termo, por exemplo, consideram as peculiaridades daqueles objetos denominados corpos inorgânicos e orgânicos; a psicologia investiga as propriedades e as leis características do fenômeno psíquico, dos objetos psíquicos. A metafísica é uma ciência que considera todos os objetos físicos, orgânicos e inorgânicos, bem como os psíquicos, os reais e os não-reais, os existentes bem

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como não-existentes; ela investiga aquelas leis que os objetos em geral obedecem, e não apenas um certo grupo de objetos. O que nós temos aqui é expresso pela venerável definição de metafísica como a ciência do ser enquanto tal (Seienden als solchem).1

Esta retrospectiva sobre alguns pontos da teoria do ente ensinada pelos escolásticos pode servir para caracterizar, de maneira a mais precisa possível, o sentido associado na presente investigação à palavra objeto. Para resumir o que foi dito até aqui, o objeto pode ser descrito da seguinte maneira: tudo o que é representado por uma representação, reconhecido ou rejeitado por um juízo, desejado ou detestado por uma atividade afetiva, nós denominamos objeto. Os objetos são reais ou não reais, eles são possíveis ou impossíveis, eles existem ou não existem. A todos é comum o fato de que eles podem ser ou serem objeto (Objekt) (não o intencional!) de atos psíquicos, que sua designação lingüística é um nome (no sentido definido acima no § 3), e que, considerados como família, eles formam o summum genus que encontra na linguagem sua expressão usual com o “algo” (“Etwas”). Tudo o que é “algo” no sentido amplo do termo, denomina-se, primeiramente por relação a um sujeito que representa, mas depois também independente dessa relação, “objeto” (“Gegenstand”).

§ 8 (...)

1 Cf. Brentano, Dos múltiplos sentidos do ser em Aristóteles, v.1, cap. 1, §

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14. Sobre a existência em Frege

Leila Haaparanta

L. HAAPARANTA & J. HINTIKKA (eds) Frege synthesized. Reidel, 1986.

I. IntroduçãoEm sua filosofia da linguagem Gottlob Frege procura

apresentar as estruturas básicas da linguagem que supostamente corresponderiam à estrutura do que é referido. Ele faz uma distinção entre nomes próprios, que referem a objetos, e nomes de funções, que referem a funções. Nomes de funções incluem palavras-conceitos e palavras-relações, as quais estão por conceitos e relações, respectivamente. Frege também assume que, além de uma referência (Bedeutung), cada nome tem um sentido (Sinn), pelo qual o nome é direcionado a sua referência.

Em sua monumental obra sobre a filosofia da linguagem de Frege, Michael Dummett lista dez teses de Frege concernentes ao sentido e a referência (Dummett, 1981, p152-203). Um princípio central está ausente, contudo, e ele tem sido igualmente ignorado pela maior parte dos outros especialistas em Frege. Trata-se da tese de que a palavra “é” é ambígua em um certo modo. Ignacio Angelelli chega perto de reconhecê-lo quando ele faz algumas considerações sobre identidade e predicação, e Mathias Schirn coloca uma ênfase especial no papel desta tese na obra de Frege, mas a grande maioria dos especialistas tem passado por cima da

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doutrina da ambiguidade. Frege e Russell propuseram esta tese e fizeram dela um dos ingredientes básicos da lógica moderna. Do mesmo modo, no Tractatus Ludwig Wittgenstein enfatizou a ambiguidade do verbo “ser” e salientou a importância da construção de uma linguagem que evitasse a confusão entre os diferentes sentidos de “é”. Wittgenstein observou que a notação conceitual de Frege e de Russell se propunha a ser uma tal linguagem embora ela não tivesse êxito em excluir todos os erros (TLP, 3.323-3.325). Alguns filósofos e linguistas, incluindo Jaakko Hintikka, Charles Kahn, e Benson Mates, recentemente têm discutido a doutrina da ambiguidade e levantaram críticas contra ela.

As raízes da tese da ambiguidade não vão além do começo do século dezenove. Charles Kahn (1973a, 1973b, 1985) argumenta que no século dezenove houve uma curiosa interação entre as visões de linguistas e filósofos no que concerne ao verbo “ser”, particularmente em relação às noções de existência e cópula. Linguistas e filólogos interpretaram mal o antigo uso do verbo grego einai e basearam a sua abordagem do verbo em uma exegese filosófica equivocada de antigas teorias do ser e, por sua vez, os filósofos confiaram no trabalho de linguistas e filólogos ao desenvolverem suas teorias do ser. Em 1801, Gottfried Hermann, um filólogo alemão, propôs uma regra que atribuía deferentes acentos aos diferentes sentidos de einai, por conseguinte, com efeito, atribuindo a ambiguidade entre existência e cópula ao Grego antigo (Hermann, 1801, pp84-85).

Entre os primeiros oponentes da tese da ambiguidade, quando aplicada à filosofia grega, G. E. L. Owen (1960) apontou que a concepção do ser de Aristóteles havia sido mal interpretada. Michael Frede (1967), por sua parte, questionou a possibilidade de encontrar qualquer distinção precisa entre existência e cópula no texto de Platão (Frede, 1967, p37). R. M. Dancy (1975, 1983) argumentou explicitamente contra os esforços para aplicar a tese da ambiguidade ao verbo einai, especialmente ao verbo einai em

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Aristóteles, e Jaakko Hintikka (1983, 1985) discutiu a doutrina do ser de Aristóteles em detalhe e manteve que a tese da ambiguidade é completamente anacrônica quando aplicada a Aristóteles. Benson Mates (1979) criticou a tese de que Platão fez uma distinção semântica entre o “é” de identidade e o “é” de predicação.

De acordo com Aristóteles o domínio dos seres cai sob diferentes categorias. O ser mesmo não é um gênero, e nenhuma categoria singular exaure todos os seres (Met. B 3, 998b22-27, An. Post. II 7, 92b14; cf. Owen, 1965, p77). Aristóteles assume que ser é sempre ser ou uma substância de um certo tipo, ou uma qualidade de um certo tipo, ou uma quantidade de um certo tipo, etc. (An. Post. I 22, 83b13-17). Contudo, isto não significa que Aristóteles tome “ser” como tendo um sentido completamente diferente para diferentes tipos de sujeitos. Ao contrário, ele argumenta:

Há muitos sentidos em que se pode dizer que uma coisa “é”, mas em todos o “é” está relacionado a um ponto central, um tipo definido de coisa, e ela não é dito ser por uma mera ambiguidade (Met. IV 2, 1003a33-36)

Aristóteles faz uma distinção entre homonímia e multiplicidade de usos. No começo das Categorias ele estabelece que são homônimas as coisas que têm em comum apenas o nome, mas definições completamente diferentes. Não é isto que ele assume para todas as coisas existentes, mas ele argumentou que os diferentes usos de “ser” nas diferentes categorias têm o mesmo significado focal. Isto significa dizer que os diferentes usos de “ser” não são homônimos para Aristóteles, mas que “é” tem, em sua concepção, apenas uma multiplicidade de usos.

A distinção entre diferentes categorias aristotélicas é, contudo, muito diferente da distinção de Frege-Russell entre diferentes sentidos de “é”. A lógica fregeana distingue os seguintes sentidos de “é”:

(1) o “é” de identidade (i.é., Phosphorus is Hesperus; a = b).(2) o “é” de predicação, a cópula (Platão é um homem;

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P(a)).(3) o “é” de existência,

(i) expresso por meio do quantificador existencial e o sinal de identidade (Deus é; (∃x) (g = x), ou(ii) expresso por meio do quantificador existencial e o sinal de predicação (Há seres humanos/ Há pelo menos um ser humano; (∃x)H(x)), e

(4) o “é” de inclusão de classe (Um cavalo é um animal de quatro patas; (x) (P(x) ⊃ (Q(x)).

A notação conceitual de Frege expressa estes significados da seguinte maneira:

Estas fórmulas da linguagem de Frege são juízos (Urteile), uma vez que elas contêm o traço “|-”, que consiste do traço de conteúdo (Inhaltsstrich) ‘ – ‘ e do traço de julgamento (Urteilsstrich) ‘|’. O traço vertical que conecta os dois horizontais Frege denomina de traço condicional (Bedingungsstrich) (BS, §5). A negação é expressa em seu simbolismo por um pequeno traço vertical que é posto sob o traço de conteúdo (ibid, §7). Na Begriffsschrift Frege usa três traços horizontais paralelos como

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um sinal de identidade, mas nas Grundgesetze ele adota o sinal usual para identidade com apenas dois traços (GGA, I, “Prólogo”, pIX). A generalidade é expressa por uma concavidade contendo uma letra germânica mais a mesma letra germânica ocupando o espaço do argumento (BS, §11). Frege não presta atenção ao (3) (i) em seu formalismo, mesmo que ele o discuta em detalhe em seus artigos informais, tal como o “Diálogo com Pünjer sobre a existência” (NS, pp60-75). Ele também não tem nenhum sinal separado para existência, mas ele a expressa por meio do sinal de generalidade e dois traços de negação.

Kahn, Hintikka e outros ficaram, principalmente, espantados com o esforço dos primeiros pensadores para derivar a tese fregeana da ambiguidade a partir das palavras de Aristóteles. Pois, para Aristóteles, ser não é um gênero e ser é sempre ser alguma coisa ou outra, então, não pode ser alegado que ele acreditava em qualquer espécie de ambiguidade pura entre existência e predicação. Se Aristóteles apontou para qualquer uma das ambiguidades fregeanas ou não, é óbvio que Frege deu a estas sugestões uma posição menor em seu pensamento. Isto se mostra no fato de que ele não reconheceu nenhuma necessidade de explicitar estes diferentes sentidos de “é” em qualquer linguagem específica. Ele estava satisfeito com nossa linguagem natural que não provê nenhuma distinção como aquela entre identidade, predicação, existência e inclusão. Por conseguinte, mesmo se Aristóteles acreditasse em tais formas de ser como as suas categorias, as quais ele também encontrava na linguagem natural, ele não acreditava nessas formas de ser que são explicitadas pelas distinções fregeanas. Diferente de Frege, Aristóteles não pensava que pensava que existem tais relevantes formas de ser como identidade, predicação, existência e inclusão de classe.

A doutrina de Frege concernente às palavras “ser” e “é” pode ser apreendida a partir de várias fontes, principalmente o artigo “Diálogo com Pünjer sobre a existência”, escrito antes de 1884 e publicado postumamente, o livro Os fundamentos da

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Aritmética (1884) e o artigo “Sobre o conceito e o objeto” (1892). Nestas obras Frege lida com a diferença entre predicação e identidade, por um lado, e com a diferença entre predicação e identidade, por outro. A distinção entre predicação e inclusão de classe é discutida por Frege já na Begriffsschrift (1879), onde ele também introduz o resto das distinções, mas não as comenta em detalhe. A tese de Frege não apenas relaciona-se com a diferença de uso das palavras “ser” e “é”, mas também concerne aos diferentes conceitos que estas palavras representam. Frege argumenta que nossa linguagem natural é deficiente, uma vez que ela oferece-nos uma única palavra para estes vários propósitos. O que nós precisamos, portanto, é de uma linguagem que reflita corretamente a distinção entre os diferentes conceitos de ser. Frege entende que seja uma tarefa filosófica mostrar onde a linguagem natural nos leva a ver coisas sob uma perspectiva errada (NS, pp74-75, 289). Como Frege mesmo diz na Begriffsschrift, a sua notação conceitual foi pensada como uma linguagem do pensamento puro, a qual é livre de ambiguidades.

É verdade que o principal objetivo de Frege era desenvolver o seu programa logicista. Para realizar o programa, Frege tinha que definir os conceitos aritméticos por meio de conceitos lógicos e provar que as verdades matemáticas eram deriváveis de axiomas lógicos por meio de dedução lógica. Frege desenvolveu novos dispositivos lógicos para as derivações, na Begriffsschrift e, ao fazer isso, ele se tornou o pioneiro da lógica moderna. Contudo, apresentar as regras de inferência lógica não era o único propósito de Frege. Com efeito, a sua notação conceitual tinha por objetivo ser uma lingua characterica leibniziana, da qual todas as ambiguidades seriam eliminadas e que ainda assim seria a representação semântica correta da linguagem natural. O paradigma de Frege da linguagem de primeira ordem era, assim, essencialmente determinada semanticamente. Contudo, ele mesmo não a apresentou semanticamente, pois, como Jean van Heijenoort (1967) e Jaakko Hintikka (1979a, 1981b, 1981c)

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argumentaram, ele acreditava na inefabilidade da semântica. Isto significa que ele não pensava ser possível para nós nos colocar fora dos limites da linguagem para então considerar a relação entre linguagem e mundo, porque, na sua visão, toda fala já pressupõe esta relação semântica. Frege explanava os diferentes usos da palavra “é” simplesmente em descrevendo sua notação para uma linguagem de primeira ordem, o que era para ele a única representação correta de nossos conceitos.

É verdade que muitos lógicos do século vinte adotaram a ideia de uma linguagem como um cálculo que pode ser livremente reinterpretada em um domínio fixo de indivíduos. Alguns lógicos até mesmo rejeitaram completamente a alegação de que uma linguagem de primeira ordem fregeana – suplementada, por exemplo, pela adição de alguma lógica de ordem superior, como Frege fez – seria um medium universal de comunicação no sentido fregeano; tanto no sentido que a interpretação de seus nomes e predicados não variaria em um domínio fixo de indivíduos quanto no sentido que ela falasse de um domínio fixo. No entanto, os lógicos aceitaram a teoria da quantificação fregeana, onde a doutrina da ambiguidade está firmemente entrincheirada. A razão simples pela qual eles aceitaram esta doutrina, meramente por aceitarem a teoria da quantificação é que o significado das constantes lógicas da teoria da quantificação, incluindo aquelas que representam vários tipos de ser, permanece inalterado mesmo que a classe de indivíduos sobre a qual os quantificadores variam possa se alterar. Pois, adicionando novos elementos para a teoria fregeana básica da quantificação ou relativizando o alcance de seus quantificadores não se remove o comprometimento lógico com a ambiguidade de “é”.

Eu aleguei aqui que Frege tem vários conceitos de ser, sem prestar atenção cuidadosa à terminologia própria de Frege, de acordo com a qual conceitos são referentes de palavras-conceitos. Nós podemos tentar evitar a distinção entre sentidos e

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significados dizendo que, na lógica de Frege, a palavra “é” não apenas tem um número de usos, mas que ela tem vários significados. Nesse escrito, eu não vou lidar com a possibilidade de aplicar a distinção entre sentido e significado a um verbo auxiliar como o verbo “ser”.

Este escrito focaliza a doutrina fregeana da existência. Uma das inovações da teoria lógica de Frege foi construir a existência como um conceito de segunda ordem, i.é., como uma propriedade de conceitos. Este escrito é, contudo, uma tentativa de elucidar alguns aspectos menos conhecidos da concepção de existência de Frege. Eu argumentarei que Frege concebe a existência tanto como um conceito de segunda ordem quanto como um conceito de primeira ordem vazio, e que a distinção entre as duas referências de “existe” está motivada por suas suposições metafísicas e epistemológicas. Ao construir tais suposições, nós devemos nos satisfazer com as breves observações e indicações de Frege. Pois, Frege não apenas assume que a palavra “é” é ambígua como também considera o verbo “existir” e, por conseguinte, o “é” de existência uma palavra equívoca. O conceito fregeano de Wirklichkeit, o qual do mesmo modo torna-se um tipo de conceito de existência, não será discutido aqui.

Eu falei da linguagem lógica de Frege como uma linguagem de primeira ordem. Efetivamente, Frege trabalha com quantificadores de ordem superior. Contudo, por razões que não serão discutidas aqui o componente de ordem superior da lingua characterica de Frege pode ser considerado inessencial e, de qualquer modo, ele é largamente irrelevante para os propósitos desse escrito.

2. A equivocidade de “existe”O conceito de existência é discutido por Frege

detalhadamente no “Diálogo com Pünjer sobre a existência”, o qual foi publicado nos Nachgelassene Schriften de Frege. O texto foi escrito antes de 1884, o ano em que Frege completou os

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Fundamentos da Aritmética. Nos Fundamentos Frege apresenta a sua doutrina da existência em uma forma madura. A argumentação apresentada em “Diálogo com Pünjer sobre a existência” complementa os Fundamentos e é muito instrutiva se nós estivermos interessados nos diferentes aspectos da concepção fregeana de existência. Eu discuti esse Diálogo no meu escrito “On Frege’s concept of being”, onde eu tentei jogar alguma luz em como a concepção de Kant sobre a existência influenciou as ideias de Frege. A seguir, eu apresentarei os principais pontos que Frege faz no diálogo e darei minhas sugestões concernentes às motivações implícitas de sua concepção.

No “Diálogo com Pünjer sobre a existência” Frege mantém a alegação de que sentenças como “Leo Sache é” e “Leo Sache existe” são auto-evidentes (selbstverständlich), enquanto que Pünjer sugere que a palavra “é” carrega o mesmo significado que “é algo que pode ser experimentado” (ist erfahrbar). Para Pünjer, o conjunto de objetos de experiência (Gegenstände der Erfahrung) é um subconjunto do conjunto de objetos de representação (Gegenstände der Vorstellungen). Frege argumenta que a abordagem de Pünjer leva a uma contradição: se “A não é” significa o mesmo que “A não é um objeto de experiência”, então, o enunciado “Existe algo que não é um objeto de experiência” significa o mesmo que “Existe um objeto de experiência que não é um objeto de experiência” (NS, pp71-72). Em um posfácio do Diálogo Frege continua a sua argumentação e afirma que se a sentença “A é” não fosse auto-evidente a sua negação poderia ser verdadeira em algumas circunstâncias. Ele conclui que se a sentença “Existem entidades que não têm a propriedade de ser” significasse o mesmo que “Algo que tem ser cai sob o conceito de não-ser (der Begriff des Nichtseienden)”, ela seria uma sentença contraditória, e se a sentença “Existem B’s” é equivalente em significado à sentença “Algo que tem ser é B”, o conceito de ser é auto-evidente.

Frege parece ser levado a negar a significatividade de

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sentenças “A é” ou “A existe” por causa de suas concepções de linguagem e de mundo. Ele não pode dizer que a sentença “Algo que tem ser não é” significa que algo, para o qual é possível existir, não existe no mundo atual, pois ele está comprometido com a concepção de que há somente um mundo e que sua notação conceitual é uma linguagem universal que fala sobre este mundo. Ele nem mesmo divide o seu universo em vários tipos. Isto é indicado por seu princípio de completude (Grundsatz der Vollständigkeit), de acordo com o qual qualquer função deve ser definida para todos os objetos (GGA II, §§56-65). Devido a sua concepção de um único universo, ele conclui que o conceito de ser não é uma determinação de um objeto, isto é, tal conceito não nos ajuda a distinguir entre quaisquer dois objetos (NS, p73).

Nós podemos por o mesmo ponto do seguinte modo: por causa da concepção de um único mundo de Frege, apenas pode haver quantificadores de um tipo, a saber, quantificadores abrangendo todos os objetos existentes realmente. Por esta razão, Frege não pode escapar da ameaça de inconsistência assumindo que nós temos dois diferentes domínios de quantificadores em sentenças como “Algo que tem ser não é”, o que de outro modo seria uma saída plausível para alguém que distinguisse um do outro os diferentes significados de “é”.

Após rejeitar a ideia de que a existência é uma propriedade real de um objeto, Frege faz um esforço para converter os enunciados existenciais para a forma dos enunciados particulares (NS, p70). Por exemplo, ele converte a sentença “Existem humanos” para a sentença “Alguns seres vivos são racionais”. Se o conceito que ocorre em uma dada sentença não pode ser definido por meio de dois conceitos, Frege recorre ao conceito de ser idêntico consigo mesmo (sich selbst gleich sein), o qual ele entende ser o conceito mais geral na hierarquia de conceitos. Ele identifica este conceito com o conceito de ser. Logo, ele pode converter a sentença “Existem humanos” também na sentença “Algo que tem ser é um humano” ou “Algo que é idêntico a si

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mesmo é um humano” (NS, p71).Consequentemente Frege mantém a concepção de que nós

somos forçados a pensar o ser (no sentido de existência) como um conceito que é superordenado a todo conceito. O que Frege mostra aí é que, de acordo com a sua doutrina do ser, a existência pode ser usada como um conceito de primeira ordem se se quiser pagar o preço de torná-lo um conceito vazio. O conceito de ser que nós estamos interessados é tal que nós o predicamos de todo objeto do qual nós predicamos alguma coisa. Ao dizer que a é X, nós dizemos que a é e que a é X. Aí supõe-se que a cópula põe o objeto a, no sentido de que ela é a parte da predicação que faz a predicação carregar nela mesma a alegação de existência. A cópula é para Frege um conceito que se aplica a entidades desse nosso único mundo como também para qualquer outro conceito, mesmo se mais genérico.

A ideia de que a existência está incluída em cada predicação aparentemente coloca Frege muito próximo de Aristóteles. Frege parece repetir a concepção de Aristóteles de que a expressão “humano existente” não diz nada mais do que “humano”, isto é, “existente” é uma palavra vazia e, logo, redundante em qualquer contexto que ocorra (Met, IV, 2, 1003b27-30; I, 3, 1054a16-18). Mais ainda, na medida em que nós consideremos o conceito de ser de Frege como um conceito de primeira ordem, Frege não acredita na analogia de “é” no sentido em que Aristóteles o faz, que tem uma extensão infinitamente grande e nenhuma compreensão. Se nós limitamos nossa consideração ao conceito de existência de Frege ao que nós encontramos até agora, nós poderíamos concluir que o conceito de ser de Frege é um conceito unívoco.

Por que Frege pensa o ser como um conceito unívoco nesse sentido limitado? A razão é, novamente, que Frege não divide o seu universo em vários tipos. Diferente do de Aristóteles, o domínio dos seres de Frege não cai sob diferentes categorias.

Em seu artigo “Kritische Beleuchtung einiger Punkte in E.

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Schröders Vorlesungen über die Algebra der Logik” Frege sugere que as sentenças “A é” e “A existe” poderiam ser interpretadas como a sentença metalinguística “O nome ‘A’ tem um referente” (KS, p208). Mas, se Frege é consistente em sua visão de que nós não podemos sair dos limites da linguagem ele tem que considerar tal enunciado como fala ilegítima acerca das expressões de nossa linguagem.

Frege exige que nas linguagens da ciência todos os nomes próprios tenham que ser tomados como não-vazios (NS, p135). Ele também assume que se nós falamos sobre um objeto nós já pressupomos a existência desse objeto (“Über Sinn und Bedeutung”, KS, p147). Entretanto, Frege admite que nós falamos com sentido sobre entidades que não existem. Na visão de Frege uma sentença apenas perde o valor de verdade – não o sentido – se ela contém um nome que não tem referente (“Über Sinn und Bedeutung”, KS, p148).

Uma vez que Frege considera o ser como uma característica de todo conceito, pode-se sugerir que se nós adicionamos qualquer palavra-conceito a um nome próprio vazio, o conceito faz com o nome tenha um referente, no final das contas. Que isto não é o caso se torna óbvio se nós consideramos o conceito de conceito de Frege. De acordo com Frege, uma palavra-conceito – e também o conceito ao qual ela refere – é indizível. Ela tem uma ‘lacuna’ que pode ser preenchida com uma expressão completa, isto é, com um nome próprio (CGA I, p5-8). Se nós preenchemos a lacuna da palavra-conceito com um nome próprio nós também pretendemos preencher a lacuna do conceito correspondente. Se nós somos bem sucedidos em preencher a lacuna do conceito, então, é também verdade que o nome próprio tem um referente. Se a lacuna do conceito não é preenchida, nós não atribuímos existência a nada, uma vez que nós não fomos bem sucedidos em predicar existência ao mesmo tempo. Isto é assim porque, para Frege, ser um objeto implica existência. Pois, se a é um objeto, então, o nome próprio ‘a’ tem um referente, o que significa que a

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existe. Consequentemente, a idéia de Frege, de que nós pressupomos a existência dos objetos sobre os quais nós falamos, concerne apenas à natureza de nossos atos linguísticos e aos aspectos pragmáticos de nossa linguagem, e não tem nada a ver com as relações semânticas entre as sentenças de nossa linguagem e os objetos e funções do mundo. Frege simplesmente deseja observar que, quando nós dizemos algo sobre um objeto, nós não adicionamos que o objeto existe.

No Tractatus Wittgenstein argumenta que nós produzimos sem-sentidos quando nós tratamos os conceitos como os de objeto, função, número e conceito como conceitos ordinários. De acordo com Wittgenstein, em uma linguagem consistente e precisa, que algo é um objeto, uma função, etc., pode ser apenas mostrado, mas não pode ser dito (TLP, 4.126). David Bell (1979) alega que Frege sustentou esta posição em relação às funções, pois, em sua visão, que alguma coisa é uma função era mostrado pela imcompletude do sinal que era usado para referir a ela, mas não é possível dizer que algo é uma função (“Über Begriff und Gegenstand”, KS, p170). Bell assume que Frege nunca estendeu esta doutrina para incluir a expressão ‘( ) é um objeto’ (Bell, 1979, p47). O tratamento de Frege da existência é, contudo, um tipo de extensão, uma vez que em sua visão nós não dizemos que algo é um objeto porque, ao usar um nome, nós já pressupomos que há um objeto ao qual o nome refere.

Há uma reserva importante e explícita que Frege faz em sua argumentação no “Dialog mit Pünjer über Existenz”. Ele conclui ali que se a sentença “Existem Bs” é equivalente em significado à sentença “Algo que tem ser é B”, então, o conceito de ser é auto-evidente. Sua formulação sugere uma maneira alternativa de lidar com o problema, na qual a equivalência mencionada é negada e que aponta para a equivocidade de “ser”. Mas, se as expressões “x tem ser” e “Existe um x” diferem em significado, a argumentação de Frege de que “A é” é auto-evidente colapsa.

No final do diálogo Frege introduz a doutrina de que a

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existência é uma propriedade de um conceito (NS, p75). Frege está inclinado a manter que existência usada como um conceito de primeira ordem é um conceito vazio, mas ele insiste em preservar a significatividade de existência usada como um conceito de segunda ordem. Esta convicção é explícita em sua crítica da ideia de que todo conceito é abstraído de uma multiplicidade de objetos. Ele observa que se todo conceito fosse abstraído de objetos existentes os enunciados existenciais perderiam todo conteúdo; uma vez que nós tivéssemos um conceito, nós poderíamos inferir que existe um objeto que exemplifica o conceito (GLA, §49).

3. O pano de fundo filosófico da doutrina da equivocidade de Frege

A discussão acima mostra que Frege assume que o “existe” e o “é” de existência tem duas leituras. Elas podem referir ou a um conceito de primeira ordem vazio ou a um conceito significativo de segunda ordem. No primeiro caso o enunciado existencial torna-se significativo se ele é transformado em um enunciado metalinguístico que expressa que um dado nome próprio tem um referente. No segundo caso o enunciado nos diz que um conceito é instanciado, isto é, que existe um objeto que tem uma dada propriedade. Existência de primeira ordem é formalizada por meio de um quantificador existencial e o símbolo de identidade, enquanto a existência de segunda ordem é expressa por meio de um quantificador existencial e o símbolo de predicação. Para expor as motivações filosóficas da visão de existência de Frege, vamos considerar primeiro a distinção entre identidade e predicação.

Frege discute o problema de interpretar o conceito de identidade já no Begriffsschrift, onde ele estabelece que em enunciado de identidade um nome parece representar ele mesmo. Ele acrescenta, todavia, que um enunciado de identidade não concerne apenas aos nomes, mas ele expressa que dois sinais têm

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o mesmo conteúdo (Inhalt), o qual é determinado em dois modos diferentes por dois sinais (BS, §8). Ele reformula esta idéia em “Über Sinn und Bedeutung”, dizendo que um enunciado de identidade expressa que dois nomes têm o mesmo significado, mas diferentes sentidos. O sentido de um nome é o modo pelo qual o significado de um nome é apresentado (KS, pp143-144).

Frege pensa que os símbolos que ocorrem nos diferentes lados de um símbolo de identidade podem ser substituídos um pelo outro em qualquer contexto, e ele assume que dois objetos são idênticos se e somente se eles caem sob os mesmos conceitos. Como nós vimos na seção precedente, Frege também considera a identidade como sendo uma relação de um objeto consigo mesmo. Estas interpretações do conceito de identidade são objetos de críticas de Wittgenstein, de acordo com as quais dizer de dois objetos que eles são idênticos é sem-sentido, e dizer de um objeto que ele é idêntico a si mesmo não é dizer nada (TLP, 5.5303). Os detalhes da doutrina de Frege sobre a identidade e as possíveis modificações em sua visão não serão discutidas nesse escrito. Contudo, é importante mencionar que Frege não aceita que seja possível definir a identidade de objetos pela igualdade de suas propriedades ou por qualquer outro meio, uma vez que qualquer definição é ela mesma uma identidade (“Rezension von: E. G. Husserl, Philosophie der Arithmetik” G, KS, p184).

Em seu artigo “Über Begriff und Gegenstand” Frege enfatiza que, para manter separados objetos e conceitos, nós devemos fazer uma distinção precisa entre identidade e predicação (KS, p168). O princípio segundo o qual objetos devem ser claramente distinguidos de conceitos também mostra-se em que, diferentemente da análise gramatical tradicional, a análise fregeana de sentenças distingue a relação entre dois conceitos da mesma ordem e a predicação, a qual, por sua parte, concerne à relação entre um indivíduo e um conceito ou à relação entre dois conceitos de duas ordens diferentes (NS, p207 e p210). Nos Fundamentos a distinção entre objetos e conceitos ocorre na

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lista dos princípios básicos de Frege (GLA, pX). Ele também defende a distinção em Grundgesetze (GGA, I, p.X e pXIV), em “Über die Begriffsschrift des Herrn Peano und meine eigene” (KS, p233), e em “Über die Grundlagen der Geometrie II” (KS, p270).

Por que Frege enfatiza a distinção entre objetos e conceitos? Frege rejeita a análise gramatical de sentenças e substitui sujeito e predicado por objeto e conceito (e outras funções), e assim modifica a estrutura das sentenças universais e particulares. No que diz respeito às sentenças particulares, ele não aceita a identificação de indivíduos com as suas propriedades essenciais. Para Frege, a sentença “Platão é um homem” contém o “é” de predicação, o qual deve ser distinguido claramente do “é” de identidade (“Logik in der Mathematik” (1914), NS, pp230-31). Isto significa que Frege não entende que seja possível para nós ter conhecimento do que um objeto é em si mesmo por meio de nossos conceitos. Para ele, todas as propriedades estão no mesmo nível, sejam elas chamadas essenciais ou acidentais na literatura filosófica tradicional.

Surpreendentemente, a muito debatida distinção de Frege entre Sinn e Bedeutung testemunha a mesma visão epistemológica. Deixando de lado a visão de Frege sobre o sentido e o significado das sentenças, as quais Frege também classifica como nomes próprios, nós podemos apresentar a doutrina de Frege do sentido e do significado de um nome próprio como se segue: o sentido que um nome próprio expressa e que é o modo de apresentação do objeto ao qual o nome próprio refere pertence ao objeto. Mais ainda, nós poderíamos ter um conhecimento completo do objeto apenas se nós conhecêssemos todos os seus sentidos, o que não é possível para nós (“Über Sinn und Bedeutung”, KS, p144-147). Por conseguinte, os sentidos fregeanos de um objeto parecem ser complexos de conceitos sob os quais o objeto cai. Esta interpretação do conceito de Sinn fregeano é suportada por seus exemplos, de acordo com os quais

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“A estrela da manhã” e a “A estrela da tarde” são sentidos de Vênus e “o professor de Alexandre” e “o discípulo de Platão” são sentidos de Aristóteles. Frege também argumenta que um nome próprio é relacionado a um objeto via um sentido e apenas via um sentido, e cada nome próprio tem que expressar pelo menos um sentido (NS, p135). Portanto, de acordo com Frege, não é possível falar significativamente de um objeto sem pensar o objeto como caindo sob algum conceito. A observação de Frege sobre o sentido e o significado, assim, nos dá mais indicações para a hipótese de que Frege acredita na universalidade da linguagem. Elas podem também indicar a visão de que não há propriedades que pertençam a objetos antes que exista um sistema conceitual que atribui sentidos a objetos.

A teoria fregeana do sentido e do significado mostra que Frege não apenas entende que é impossível encontrar qualquer propriedade essencial de objetos, o que seria idêntico com o objeto mesmo, mas também que ele considera a formação de conceitos completos de objetos como estando para além das habilidades de um ser humano finito. Frege retoma o pensamento de Leibniz de que um ser humano é apenas capaz de formar conceitos parciais de indivíduos, enquanto que deus vê no conceito de um indivíduo tudo o que pode ser predicado daquele indivíduo (Leibniz, Discurso de Metafísica, sec. 8 e 9). Para Frege, um objeto não é nem idêntico com qualquer propriedade essencial nem com qualquer combinação de conceitos sob os quais nós podemos conhecer que o objeto cai. Ao enfatizar a distinção entre objetos e propriedades, ou conceitos, Frege esboça os limites do conhecimento humano.

O que foi dito acima mostra porque Frege chama atenção para distinção entre identidade e predicação. A notação conceitual de Frege, a qual foi pensada como uma linguagem universal, permite-nos falar sobre objetos apenas por meio de diferentes configurações formadas por palavras-conceitos e outros nomes-de-funções. Nós não podemos nos colocar fora dessas

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configurações para considerar a relação entre nossa linguagem e os objetos eles mesmos. Um enunciado de identidade pode apenas nos dizer que dois nomes têm o mesmo Bedeutung, mas de acordo com Frege, nós não podemos dizer o que é esse Bedeutung. Se Frege fosse consistente, nós não poderíamos nem mesmo aceitar uma sentença metalinguística que diga algo sobre a relação entre nomes e referentes. Um enunciado de identidade tenta dizer algo que não pode ser dito, enquanto a predicação é precisamente o modo em que nossa razão é capaz de lidar com objetos.

Mesmo se Frege subscreva o princípio de que um e apenas um símbolo linguístico ou distinção deveria corresponder a cada significado ou distinção no universo, ele não elimina o símbolo de identidade de sua linguagem. Wittgenstein era mais consistente nesse aspecto, pois ele via um enunciado de identidade apenas como uma regra, a qual concernia à substituibilidade de nomes em diferentes contextos. Ele assumia que nós poderíamos eliminar o símbolo de identidade, quando nós realizássemos a idéia de uma linguagem universal, de tal modo que não haveria mais dois nomes para qualquer objeto singular em nossa linguagem. De acordo com Wittgenstein, o símbolo de identidade não é uma parte essencial de nossa notação conceitual (TLP, 5.53).

Frege considerou o papel do símbolo de identidade a partir de uma perspectiva completamente diferente. Como ele já havia mencionado no Begriffsschrift, ele não via os enunciados de identidade apenas como regras concernentes aos nomes. Ao mesmo tempo, ele insistiu no princípio de que sua linguagem fala sobre algo e que cada distinção e cada símbolo na linguagem deve corresponder a um único sentido, um único significado e a uma única distinção no universo. Portanto, nós devemos tentar encontrar qual contraparte no mundo é no caso dos enunciados de identidade. O que Frege encontrava no mundo era uma distinção entre sentidos e significados, a qual se segue da distinção entre

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objetos em si mesmos e objetos tais quais nós os conhecemos. Frege desejava fazer uma distinção entre objetos como entidades metafísicas e objetos como nós os conhecemos, e ele também queria que esta distinção fosse visível na linguagem universal. Por esta razão, ele distinguiu o “é” de identidade do “é” de predicação em sua notação conceitual e, portanto, incorporou o símbolo de identidade em sua linguagem. Frege não notou que ele deveria ter excluído enunciados de identidade de sua linguagem precisamente porque eles pretendem dizer algo sobre objetos como entidades metafísicas, ou seja, no sentido de que nós não podemos falar sobre objetos na linguagem, de acordo com Frege.

Na seção anterior eu argumentei que a visão de Frege da linguagem e do mundo influenciou sua doutrina da existência. A discussão acima relativa à identidade e à predicação serve para clarificar os detalhes da visão de Frege de que a palavra “existe” é equívoca. Não é apenas que a visão de Frege em relação ao “existe” e ao “é” de existência como equívocos no sentido de que há dois conceitos de existência fora de qualquer contexto, mas que cada contexto determina qual conceito as palavras referem em cada caso. Mais ainda, a análise de Frege tem a consequência adicional que o “existe” e o “é” de existência preservam sua equivocidade em alguns contextos. Isto é o que acontece se nós os adicionamos a nomes próprios. Eu devo clarificar este ponto a seguir com base no que eu argumentei acima relativamente à identidade e à predicação. Isto provê também uma resposta a questão concernente ao pano de fundo filosófico da visão de Frege da existência.

Se os Sinne de Frege são complexos de propriedades de objetos, a sentença “a existe” expressa o pensamento de que há um objeto que é P, Q, R, etc.. Uma vez que a sentença “Existe um P” significa, para Frege, o mesmo que a sentença “O conceito P é instanciado”, do mesmo modo, a sentença “a existe” significa que um certo feixe de conceitos é instanciado. Aqui a existência se

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torna algo que é asserido de um feixe de propriedades. Frege em nenhum lugar tira explicitamente esta conclusão de suas premissas, mas suas sugestões são, contudo, evidentes. Em “Über Sinn und Bedeutung” Frege procura mostrar que enunciados de identidade podem ser significativos mesmo se eles parecem ser ou verdadeiros tautologicamente ou autocontraditórios. A solução que ele oferece é que se pode associar um sentido diferente com “a” e com “b” mesmo se “a = b” é verdadeiro. Se Frege sustenta este tipo de análise, ele deve também admitir que “a existe” faz sentido. Isto porque se pode, obviamente, atribuir um sentido a “a” sem saber-se que a existe, tão facilmente quanto se pode atribuir um sentido a “a” e “b” sem saber-se que “a = b” é verdadeiro. Existência não está incluída no Sinn expresso por um nome próprio. Se nós tomamos as propriedades individuais expressas por um nome próprio separadas e formamos um juízo de cada uma, as sentenças que expressam os juízos podem ser ou verdadeiras ou sem valor de verdade. Para Frege, formar um conceito ou um feixe de conceitos é independente da instanciação daquele conceito ou feixe de conceitos.

Tal como a distinção entre identidade e predicação, a tese da equivocidade do “existe” e do “é” de existência está motivada por considerações epistemológicas concernentes aos limites do conhecimento humano. Minha sugestão para construir a doutrina fregeana de existência no caso de sentenças como “a existe” ou “a é” é, portanto, a seguinte: se nós dizemos que a existe e se alguém nos pergunta o que é que existe, nós não somos capazes de responder esta questão de outro modo senão em mencionando alguns dos conceitos sob os quais aquele objeto cai. Nós podemos dizer que a sentença “a existe” significa que há um objeto que tem as propriedades P, Q, R, etc.. Existência vem a ser um conceito de segunda ordem que significa instanciação de um feixe de propriedades. Mas, como nós não podemos dizer o que o objeto a é fora (abstracted) de nossos conceitos, nossa resposta a questão concernente ao que a é em si mesmo reduz-se a dizer que

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a é a, o que é um enunciado vazio. Na visão de Frege, nós podemos dizer que um objeto é o que ele é, isto é, que ele é idêntico a si mesmo, o que é um enunciado vazio, mas nós não podemos dizer o que ele é, ou seja, o que é que é idêntico com. Por conseguinte, nas sentenças “a existe” e “a é” as palavras “existe” e “é” podem ser lidas ou como expressões de um conceito significativo de segunda ordem ou como expressões de um conceito vazio de primeira ordem. Se nós interpretamos as palavras como referindo a conceitos de primeira ordem, as sentenças correspondentes podem ser transformadas na sentença “O nome “a” tem referente”, mas, isto é obviamente de pouca valia para ajudar-nos a encontrar qual é o referente.

Portanto, a distinção de Frege entre os dois conceitos de existência resulta de sua tentativa de distinguir objetos em si mesmos de objetos considerados através de descrições que nós podemos atribuir a eles. Como eu conclui acima, Frege quer fazer uma distinção entre objetos como unidades metafísicas e objetos como nós os conhecemos, e ele também quer que esta distinção seja visível em sua linguagem universal. Porém, novamente, se Frege fosse consistente, ele deveria eliminar a existência expressa pelo quantificador existencial e o símbolo de identidade de sua linguagem, pois ele tenta dizer algo que, na visão de Frege, não pode ser dito na linguagem.

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15. Prólogo às Leis básicas da Aritmética

Friedrich Ludwig Gottlob Frege

Grundgesetze der Arithmetik, Begriffsschriftlich abgeleitet; Zweite unveränderte Auflage; Hildesheim, Georg Olms, 1962; pp. v-xxvi.

Neste livro encontram-se axiomas nos quais se baseia a aritmética, demonstrados com sinais especiais, cujo conjunto eu chamo conceitografia. Os mais importantes teoremas (Sätze) foram reunidos em parte no final juntamente com sua tradução. Porém, como se poderá ver, não foram considerados aqui os números negativos, fracionais, irracionais, nem os complexos, como tampouco a adição, a multiplicação, etc. Nem sequer os teoremas sobre os números naturais foram apresentados com a completude projetada no início. Em particular, falta ainda o teorema de que o número dos objetos que caem sob um conceito é finito, se é finito o número de objetos que caem sob um conceito a que o primeiro está subordinado. Razões externas levaram-me a reservar a prossecução desses estudos, assim como o tratamento dos demais números e das operações de cálculo; a publicação desses resultados dependerá da aceitação que encontre este primeiro tomo. O que ofereço aqui é suficiente para dar uma ideia de meu procedimento. Pode ser que se julgue como

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desnecessários os teoremas sobre o número infinito1. Para a fundamentação da aritmética em sua extensão habitual eles de fato não são necessários; mas, a sua dedução é mais simples que a dos teoremas correspondentes para números finitos e pode servir como preparação para estes. Ainda aparecem teoremas que não tratam de números, mas que são utilizados nas demonstrações. Eles tratam, por exemplo, da sucessão em uma série, da univocidade das relações, das relações compostas e acopladas, da figuração mediante relações e semelhantes. Esses teoremas poderiam ser atribuídos, talvez, a uma teoria combinatória ampliada.

As demonstrações estão contidas unicamente nos parágrafos intitulados “Construção” (Aufbau), enquanto que os intitulados “Análise” (Zerlegung) facilitam a compreensão, ao descrever provisoriamente em esboços toscos a marcha da demonstração. As demonstrações mesmas não contêm nenhuma palavra (Worte), mas se realizam apenas com meus sinais (Zeichen). Estes apresentam-se visualmente como uma série de fórmulas, separadas por traços contínuos ou descontínuos, ou por outros sinais. Cada uma dessas fórmulas é um enunciado completo, com todas as condições que são necessárias para sua validade (Gültigkeit). Essa completude, que não permite pressupostos tácitos subentendidos, parece-me indispensável para o rigor da demonstração.

A passagem de um enunciado para o seguinte procede segundo as regras que se encontram reunidas no § 48, e não se dá nenhum passo que não cumpra estas regras. Como e segundo que regras se faz a inferência é indicado pelo sinal que se encontra entre as fórmulas, enquanto que — • — conclui uma cadeia dedutiva. Aqui deve haver enunciados que não podem ser deduzidos de outros. Estes são em parte as leis fundamentais que reuni no § 47, e em parte as definições que se encontram juntas no final numa tabela com a indicação das passagens em que

1 A cardinalidade de um conjunto infinito enumerável.

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aparecem pela primeira vez. Numa continuação desta tarefa aparecerá sempre de novo a necessidade de definições. Os princípios que se deve seguir para introduzir as definições estão expostos no § 33. As definições não são propriamente criadoras e, conforme creio, não podem ser; elas apenas introduzem designações (nomes) abreviadas que poderiam ser evitadas se o tamanho não produzisse nesse caso dificuldades externas insuperáveis.

O ideal de um método estritamente científico da mate-mática que procurei realizar aqui e que bem poderia ser denominado euclidiano, vou descrever da seguinte maneira. Que tudo seja demonstrado, isto certamente não se pode exigir, porque é impossível; mas, pode-se exigir que todos os enunciados utilizados sem demonstração sejam declarados explicitamente como tais, para que se veja claramente sobre o que descansa a construção inteira. Por isso há que se esforçar para reduzir ao máximo o número de leis primitivas, demonstrando tudo o que seja demonstrável. Além disso, e assim vou mais além de Euclides, exijo que se mencionem previamente todos os modos de dedução e de inferência empregados. Do contrário não se pode assegurar o cumprimento da primeira exigência. No essencial, eu acredito haver alcançado este ideal. Apenas em alguns poucos pontos poder-se-ia levantar exigências de maior rigor. Para alcançar maior rapidez e não cair numa extensão desmedida, eu me permiti fazer uso da intersubstituibilidade dos membros inferiores (condições) e da fusão de membros inferiores iguais, e não reduzi os modos de dedução e de inferência ao menor número. Quem conhece meu livrinho Begriffschrift (Conceitografia) poderá deduzir do que se diz ali como se poderia satisfazer também aqui exigências mais rigorosas, mas ao mesmo tempo saberá que isto traria consigo um aumento considerável de extensão.

No geral, creio eu, as correções que com razão podem ser feitas a este livro não se referirão ao rigor, mas apenas a escolha

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das inferências e dos passos intermediários. Frequentemente se apresentam vários caminhos possíveis para se levar a cabo uma demonstração; eu não procurei explorar todos eles e por isso é possível, inclusive provável, que nem sempre eu tenha escolhido o mais curto. Quem tiver algo a objetar nesse sentido que o faça melhor. Outras coisas também serão discutíveis. Alguns teriam preferido estender mais o conjunto de modos de dedução e inferências admitidos, para conseguir assim uma maior mobilidade e brevidade. Mas, nisto devemos nos deter em algum ponto, se é que se admite o ideal que propus, e seja qual for o ponto em que nos detemos, sempre haverá alguém que pode dizer: teria sido melhor admitir ainda mais modos de dedução.

Pela ausência de lacunas nas cadeias dedutivas consegue-se explicitar cada axioma, pressuposição, hipótese, ou como se queira chamar, sobre as quais transcorre a demonstração; e assim obtemos um fundamento para o julgamento da natureza epistemológica da lei demonstrada. Certamente afirmou-se repetidas vezes que a aritmética não é mais do que lógica desenvolvida; mas, isto permanece discutível enquanto aparecerem nas demonstrações passos não dados segundo as leis lógicas reconhecidas, mas que pareçam descansar em um conhecimento intuitivo. Somente a partir do momento em que estes passos se decomponham em passos lógicos simples, poderemos estar convencidos de que na base não há nada senão lógica. Reuni tudo o que pode facilitar o julgamento de se uma cadeia dedutiva é concludente ou de se suas premissas são sólidas. Se alguém encontrasse algo errado deveria poder indicar exatamente onde se acha o erro segundo sua opinião: nas leis fundamentais, nas definições, nas regras ou em sua aplicação num determinado lugar. Se tudo se encontra em ordem, então se conhece exatamente os fundamentos sobre os quais se baseia cada teorema em particular. Somente pode haver discussão, pelo que posso ver, a respeito de minha lei fundamental do curso de valores (V), que talvez os lógicos não a considerem apropriada,

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ainda que se pense nela quando se fala, por exemplo, de extensões de conceito. Eu a tomo como puramente lógica. Em todo caso, aqui é indicado o lugar onde a diferença pode se dar.

O meu objetivo exige muitos afastamentos em relação ao que é comum em matemática. As exigências de rigor nas demonstrações têm como consequência inevitável um maior comprimento das demonstrações. Quem não leve em consideração este fato, ficará surpreendido com a complicação resultante aqui na demonstração de um enunciado que ele acredita compreender imediatamente num único ato cognitivo. Isto será especialmente surpreendente se se compara com o escrito do Sr. Dedekind Was sind und was sollen die Zahlen? (O que são e o que devem ser os números?), o mais profundo que conheci nos últimos tempos sobre a fundamentação da aritmética. Em um espaço muito menor, examina as leis da aritmética até um nível muito superior do que se considera aqui. Esta brevidade, naturalmente, apenas se consegue deixando que muito fique propriamente sem demonstrar. O Sr. Dedekind diz freqüen-temente apenas que a demonstração procede a partir de tais e tais enunciados; utiliza pontos, como em “m (A, B, C, ...)”; em nenhuma parte encontramos uma compilação das leis lógicas ou de outro tipo postas como base, e se estas tivessem sido postas, não haveria nenhuma maneira de controlar se realmente não foram utilizadas outras; pois, para isso as demonstrações deveriam aparecer não apenas indicadas, mas conduzidas sem lacunas. O Sr. Dedekind também é da opinião de que a teoria dos números é uma parte da lógica; mas, seu escrito apenas contribui para dificultar esta opinião, porque as expressões empregadas por ele, como “sistema”, “uma coisa pertence a uma coisa”, não são usuais em lógica e não podem ser reduzidas a nada reconhecidamente lógico. Não digo isso como reprovação; pois, seu método pode ter sido o mais útil para ele tendo em vista seu objetivo; apenas o digo para tornar por contraste mais claro meu propósito. O comprimento de uma demonstração não deve ser

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medido com a régua. Pode-se fazer com que uma demonstração pareça breve sobre o papel facilmente, pulando membros intermediários da cadeia dedutiva e deixando passos apenas indicados. Geralmente nos contentamos com que cada passo da demonstração nos pareça evidentemente correto, e isto é lícito se apenas queremos convencer da verdade do enunciado por demonstrar. Mas, quando se trata de proporcionar uma compreensão da natureza desta evidência, este procedimento não é suficiente, mas há que escrever todos os estágios intermediários, para jogar sobre eles toda a luz de nossa consciência. Os matemáticos costumam estar interessados apenas no conteúdo do enunciado e em que seja provado. Aqui o novo não é o conteúdo do enunciado, mas como a demonstração é realizada, sobre quais fundamentos ela se apoia. Não se deve estranhar que este ponto de vista essencialmente distinto exija também outro tipo de tratamento. Se se demonstra da maneira usual um dos nossos enunciados, facilmente se passará por alto algum enunciado que parece desnecessário para a demonstração. Porém, sob um exame mais detalhado de minha demonstração se verá, segundo creio, que esse enunciado é indispensável, a não ser que se queira tomar um caminho completamente diferente. Por isso, talvez, encontrem-se aqui e ali em nossos enunciados condições que a primeira vista pareçam desnecessárias, mas que logo mostram-se necessárias, ou que pelo menos somente podem ser abandonadas com algum outro enunciado por demonstrar.

Eu realizo aqui um projeto que já havia tido em vista no meu Begriffschrift do ano de 1879 e que anunciei em meus Fundamentos da aritmética do ano de 1884.1 Eu quero demons-trar com a prática minha concepção sobre o número que expus no último dos livros citados. O fundamental de meus resultados expressei ali, no § 46, dizendo que a atribuição de número contém uma asserção (Ausage) sobre um conceito (Begriffe); e nisto se baseia a presente exposição. Se alguém tem uma concepção

1 Compare-se com a Introdução e os §§ 90 e 91 de Fundamentos da Aritmética; Breslau, edição de Wilhelm Koeber, 1884.

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diferente, que tente fundamentar sobre ela mediante sinais uma exposição consequente e útil, e verá como não se pode. Na linguagem natural, a situação não é obviamente tão transparente; mas, se se examina cuidadosamente, se achará que também aqui ao atribuir-se um número emprega-se sempre um conceito, e não um grupo, um agregado ou algo do tipo e que, inclusive se isto ocorre alguma vez, o grupo ou o agregado sempre está determinado por um conceito, quer dizer, pelas propriedades que deve ter um objeto para pertencer ao grupo, enquanto que para o número é completamente indiferente o que torna grupo o grupo, sistema o sistema, ou as relações que têm as partes entre si.

A razão de porque a realização atrasou tanto depois de seu anúncio em parte se deve a transformações internas da conceitografia, que me obrigaram a abandonar o manuscrito que estava já quase terminado. Explicarei aqui brevemente estes melhoramentos. Os sinais primitivos empregados no meu Begriffschrift aparecem aqui de novo com uma única exceção. Em vez de três traços paralelos empreguei o sinal de igualdade usual, posto que me convenci que na aritmética este também se refere ao mesmo que eu quero designar. Com efeito, uso a palavra “igual” com a mesma referência que “coincidente com” ou “idêntico a”, e realmente assim é como se usa também na aritmética o sinal de igualdade. O paradoxo que aparentemente surge daí provém, sem dúvida, da ausência da distinção entre sinal e designado. Claramente na equação “22=2+2” o sinal da esquerda é diferente do que está à direita; mas, ambos designam ou se referem ao mesmo número.1 Aos sinais primitivos antigos adicionei somente dois: o ‘espírito suave’ para designar o curso de valores de uma função e um sinal que deve substituir o artigo definido da linguagem natural. A introdução do curso de valores das funções é um progresso essencial, a que se deve uma mobi-lidade muito maior. Os sinais derivados anteriores podem ser

1 Naturalmente, também posso dizer: o sentido do sinal que está à direita é diferente do sinal que está à esquerda; mas, a referência é a mesma. Veja-se meu ensaio “Sobre o sentido e a referência”, supra, pp. 49 e ss..

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substituídos agora por outros sinais, mais simples, se bem que as definições da univocidade de uma relação, da sucessão em uma série, da figuração sejam as mesmas que eu havia fornecido em parte no Begriffschrift e em parte nos Fundamentos da Aritmética. Mas, os cursos têm além disso uma grande impor-tância fundamental; pois, eu defino o número mesmo como uma extensão de conceito, e as extensões de conceito são, segundo minha concepção, cursos de valores. Sem estes, portanto, não se poderia chegar a nenhuma parte. Os antigos sinais primitivos que reaparecem externamente não-alterados e cujo algoritmo apenas foi modificado, foram providos, todavia, de esclarecimentos diferentes. O anterior traço de conteúdo torna a aparecer como horizontal. Estas são consequências da evolução de minhas concepções lógicas. Antes havia distinguido, no que por sua forma externa é um enunciado afirmativo (Behauptungssatz), duas coisas: 1) o reconhecimento da verdade, 2) o conteúdo que é reconhecido como verdadeiro. Ao conteúdo eu chamava conteúdo judicável (beurtheilbaren Inhalt). Este agora é analisado no que eu chamo pensamento (Gedanken) e valor de verdade (Wahrheistwerth). Isso é conseqüência da distinção entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung) de um sinal (Zeichen). Nesse caso, o sentido do enunciado (Satzes) é o pensamento e sua referência o valor de verdade. A isto se soma ainda o reconhecimento de que o valor de verdade é o verdadeiro. Com efeito, eu distingo dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso. Isto justifiquei detalhadamente em meu ensaio antes citado sobre o sentido e a referência. Aqui direi somente que unicamente deste modo pode-se conceber corretamente o estilo indireto. Com efeito, o pensamento, que nos demais casos é o sentido do enunciado no estilo indireto passa a ser sua referência. Até que ponto tudo se faz mais simples e rigoroso mediante a introdução de valores de verdade, apenas se poderá ver com um estudo detalhado deste livro. Estas vantagens sozinhas representam já um grande peso no prato a favor de minha concepção, que

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naturalmente a primeira vista pode parecer estranha. Também caracterizei mais claramente que no Begriffschrift a essência da função (Function) em contraposição ao objeto (Gegenstande). Disto resulta adicionalmente a distinção entre as funções de primeira e segunda ordem. Tal como expus em minha confe-rência sobre “Função e conceito”,1 os conceitos e as relações são funções, no sentido ampliado por mim desta palavra, e desse modo devemos distinguir também conceitos de primeira e segunda ordem, relações da mesma ordem e de ordens distintas.

Como se vê, não transcorreram em vão os anos desde a publicação do meu Begriffschrift e de meu Fundamentos: fize-ram amadurecer a obra. Mas, precisamente isto que eu considero como progresso essencial, não posso ocultar-me, representa também um grande obstáculo no caminho da difusão e do efeito de meu livro. E aquilo que constitui uma parte não pequena de seu valor, a saber, a rigorosa ausência de lacunas nas cadeias dedutivas, temo que não será bem recebida. Distanciei-me demais das concepções usuais, imprimindo com isso certo caráter paradoxal às minhas ideias. É fácil tropeçar aqui e ali, ao folhear o livro rapidamente, com alguma expressão que parece estranha e que provoca um prejuízo desfavorável. Eu mesmo posso compreender em certa medida esta resistência com a qual se defrontarão minhas inovações, já que eu mesmo, para alcançá-las, tive que superar primeiro algo semelhante. Pois, cheguei a essas expressões não por acaso ou por ânsias de novidade, mas constrangido pela coisa mesma (durch die Sache selbst gedrängt).

Com isto chego ao segundo motivo do atraso: a deses-perança que às vezes me atacava ante à fria recepção, ou melhor dizendo, ante à falta de recepção feita às minhas obras antes mencionadas por parte dos matemáticos2 e a má vontade das

1 Jena, ed. Hermann Pohle, 1891. (cf. Supra, pp. 17 e ss).2 Em vão se procuraria meus Fundamentos da Aritmética no Jahrb. Über die Fortschritte der Math. (Anuário dos progressos da Matemática). Outros investigadores no mesmo campo, os senhores Dedekind, Otto stolz, v. Helmholtz parecem desconhecer meus trabalhos. Tampouco Kronecker os menciona em seu ensaio sobre o conceito de número.

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correntes científicas contra as quais meu livro terá que lutar. Já a primeira impressão tem que produzir espanto: sinais desconhecidos, páginas inteiras de fórmulas extravagantes. Desse modo, durante anos dediquei-me a outras questões. Mas, não podia deixar por muito tempo na gaveta os resultados de meus pensamentos, que me pareciam valiosos, e o esforço empregado exigia sempre novos esforços para que o trabalho não fosse em vão. Por isso não me livrava do assunto. Num caso como esse, em que o valor do livro não pode determinar-se mediante uma leitura rápida, a crítica deveria propiciar o começo. Mas, em geral, a crítica se paga muito mal. Um crítico nunca poderá esperar ser compensado em dinheiro pelo esforço que representa um estudo profundo deste livro. Apenas me resta esperar que alguém acredite de antemão muito no tema e que espere interiormente uma recompensa suficiente, e que transmita logo ao público o resultado de seu exame consciencioso. Não se trata de que a mim apenas possa satisfazer um comentário elogioso. Pelo contrário! Não posso senão preferir um ataque apoiado num conhecimento profundo do que um elogio em termos gerais que não toca no núcleo da questão. Ao leitor que queira se adentrar no livro com tais propósitos, gostaria aqui de facilitar-lhe o trabalho com algumas advertências.

Antes de tudo, para se obter uma ideia aproximada de como expresso pensamentos com meus sinais, será útil examinar detalhadamente na tábua dos axiomas mais importantes alguns dos mais simples, ao lado dos quais está uma tradução. Desse modo, pode-se descobrir o que os demais, para os quais não há tradução, querem dizer. Depois, pode-se começar com a introdução e enfrentar a apresentação da conceitografia. Contudo, aconselho que no início faça-se apenas uma leitura rápida e não se detenha muito diante de dúvidas particulares. Algumas considerações seriam necessárias para poder responder a todas as objeções, mas não são essenciais para a compreensão dos enunciados ideográficos. Para isso eu indico a segunda parte do §

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8, que na página 12, começa com as palavras “Se definimos agora ...”; além disso, a segunda parte do § 9, que na página 15 começa com as palavras “Quando digo em geral ...”, e finalmente todo o § 10. Em uma primeira leitura, estas passagens podem ser deixadas de lado. O mesmo vale para os §§ 26 e 28 até o 32. Ao contrário, gostaria de observar que são especialmente importantes para a compreensão a primeira parte do § 8 e além disso os §§ 12 e 13. Uma leitura mais detalhada pode começar com o § 34 e chegar até o final. Então, ocasionalmente o leitor deverá retroceder aos §§ lidos com pouca atenção. Isso é facilitado pelo índice de termos no final e pelo índice de conteúdos. As deduções dos §§ 49 até o 52 podem servir como preparação para a compreensão das demonstrações mesmas. Todos os modos de inferência e de dedução e quase todas as aplicações de nossas leis fundamentais aparecem já neste ponto. Depois que se tenha chegado até o fim procedendo desse modo, se poderá ler a apresentação da conceitografia uma vez mais em seu contexto e completamente, tendo em vista então que as estipulações que não se utilizam de pronto, e que por isso parecem desnecessárias, servem para o cumprimento do princípio fundamental de que todos os sinais formados regularmente devem referir-se a algo, princípio este que é essencial para se alcançar um rigor absoluto. Desta maneira creio que desaparecerá aos poucos a desconfiança que minhas inovações podem despertar no começo. O leitor verá que meus princípios nunca conduzem a consequências que ele mesmo não deva reconhecer como corretas. Talvez, também deverá admitir então que antes havia superestimado o esforço necessário, que meu proceder sem saltos na realidade facilita a compreensão, uma vez que se superaram os obstáculos que se originam na novidade dos sinais. Possa eu ter a felicidade de encontrar um semelhante leitor e crítico! Pois, um comentário baseado numa olhada superficial seguramente seria mais prejudicial do que benéfico.

Por isso, seguramente as perspectivas de meu livro são pequenas. Em todo caso há que se descontar todos os matemá-

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ticos que ao topar com expressões lógicas, como “conceito”, “relação”, “juízo”, pensam: methaphysica sunt, non leguntur! E também os filósofos que ao ver uma fórmula exclamam: mathematica sunt, non leguntur!, e serão muito poucos os que não são de um ou de outro tipo. Talvez não seja grande o número de matemáticos que se interessam pela fundamentação de sua ciência, e também esses frequentemente parecem ter muita pressa para logo deixar para trás de si as bases iniciais. E apenas me atrevo a esperar que minhas razões para o penoso rigor e para a extensão que a ele está conectada convençam a muitos deles. O que se tornou habitual tem grande poder sobre as faculdades. Se comparo a aritmética a uma árvore que em cima desdobra-se numa multiplicidade de métodos e teoremas, enquanto que suas raízes penetram na profundidade, então, parece-me que o impulso de buscar as raízes, na Alemanha pelo menos, é demasiado fraco. Mesmo numa obra que se poderia contar nessa direção, a Álgebra da Lógica, do Sr. Schröder, impõe-se de início o impulso em direção à copa e, antes de se ter alcançado uma profundidade maior, efetua um giro para o alto e para o desenvolvimento de métodos e teoremas.

Também é desfavorável para meu livro a inclinação tão difundida de admitir-se como disponível (vorhand) apenas o sensível (sinnliche). O que não pode ser percebido com os sentidos, pretende-se negar ou passar por cima. Agora, os objetos da aritmética, os números, são de natureza não-sensível. Então, como se resolve? Muito facilmente! Tomam-se os sinais numéricos pelos números. Nos sinais se tem algo visível, e isto obviamente é o principal. Seguramente os sinais têm propriedades totalmente distintas das dos números; mas, que importa? Simplesmente imputa-se a eles as propriedades dese-jadas mediante supostas definições. Seguramente é um enigma como pode dar-se uma definição quando não entra em questão qualquer conexão entre sinal e designado. Fundem-se o sinal e o designado tornando-os o mais indistinguíveis possível; então,

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conforme seja necessário, pode-se afirmar a existência indicando a tangibilidade dos signos1, ou das propriedades legítimas dos números. Às vezes parece que se consideram os sinais numéricos como figuras de xadrez e as chamadas definições como regras do jogo. O sinal não designa nada, então, mas é a coisa mesma (die Sache selbst). Claramente, assim se passa por cima de um detalhe, a saber, que com “32+42=52” expressamos um pensamento (Gedanken), enquanto que uma disposição de figuras de xadrez não afirma nada (nichts besagt). Quando alguém se contenta com tais superficialidades não há lugar, naturalmente, para uma consideração mais profunda.

Aqui é importante ter uma ideia clara do que é definir e do que se pode conseguir mediante definições. Com frequência parece que se atribui à definição uma força criadora, enquanto que na realidade não ocorre outra coisa senão que se faz ressaltar algo delimitando-o e atribuindo-lhe um nome. Assim como o geógrafo não cria nenhum mar quando traça fronteiras e diz: a porção de superfície oceânica limitada por estas linhas eu denominarei Mar Amarelo, assim tampouco o matemático pode criar nada propriamente mediante suas definições. Não se pode atribuir a uma coisa magicamente, por simples definição, uma propriedade que já não tenha antes, a não ser a de chamar-se com o nome que lhe foi atribuído. Mas, que uma figura em forma de ovo, que se cria sobre o papel com tinta, tenha que receber mediante definição a propriedade de que somada a um dê um, isto somente posso considerar uma superstição científica. Do mesmo modo poderia fazer-se, por simples definição, de um acadêmico preguiçoso um aplicado. A confusão nasce aqui facilmente por falta de distinção entre conceito e objeto. Se se diz: “Um quadrado é um retângulo em que os lados que se tocam são iguais”, define-se o conceito quadrado, ao indicar as

1 V. E. Heine: “Die Elemente der Functionslehre” (“Os elementos da teoria das funções”), no Crelle’s Journal, n74, p. 173: “Com respeito à definição coloco-me no ponto de vista puramente formalista, ao denominar números certos sinais perceptíveis, de modo que não se põe em questão a existência destes números”.

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propriedades que algo deve ter para cair sob este conceito. A estas propriedades eu chamo características do conceito. Mas, observe-se que estas características do conceito não são suas propriedades. O conceito quadrado não é um retângulo; apenas os objetos que caem sob este conceito são retângulos, do mesmo modo como o conceito pano negro não é negro nem pano. Que exista tais objetos ainda não sabemos diretamente por meio da definição. Suponhamos agora que se queira definir o número zero, por exemplo, dizendo: é algo que somado a um dá um. Com isto definiu-se um conceito, ao indicar a propriedade que deve ter um objeto que caia sob o conceito. Mas, esta propriedade não é propriedade do conceito definido. Pelo que parece, as pessoas imaginam seguidamente que, mediante a definição, cria-se algo que, somado a um, dá um. Erro grave! Nem o conceito definido tem esta propriedade, nem a definição garante que o conceito não seja vazio. Isto demanda primeiro uma investigação. Somente quando se provou que existe um objeto e apenas um objeto com a propriedade requerida, é que se está em condições de dar a este objeto o nome próprio “zero”. Criar o zero é, pois, impossível. Repetidas vezes eu expus esta opinião, mas, pelo que parece, sem êxito.1

Tampouco por parte da lógica dominante pode se esperar compreensão da diferença que faço entre a característica (Merkmal) de um conceito e a propriedade (Eigenschaft) de um objeto;2 pois, a lógica atual parece estar completamente infectada de psicologia. Quando, em vez da coisa mesma, se consideram somente suas imagens subjetivas (subjectiven Abbilder), as representações (Vorstellungen), perdem-se naturalmente todas as diferenças reais mais finas e, ao contrário, aparecem outras que para a lógica carecem totalmente de valor. E com isso passo a falar do que dificulta o influxo de meu livro sobre os lógicos. Se trata da perniciosa ingerência da psicologia na lógica. Para o

1 Pede-se aos matemáticos que não gostam de extraviar-se pelos caminhos da filosofia que interrompam aqui a leitura do Prólogo.2 Na Lógica do Sr. B. Erdmann não encontro nenhum indício dessa importante diferença.

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tratamento dessa última ciência deve ser decisiva a concepção das leis lógicas, e isso por sua vez depende de como se entende a palavra “verdadeiro”. Que as leis lógicas devem ser normas para o pensamento alcançar a verdade, é algo reconhecido certamente por todo o mundo; só que se esquece isso muito facilmente. Aqui o duplo sentido da palavra “lei” é enganador. Em um sentido ela diz o que é, em outro ela prescreve o que deve ser. Apenas nestes sentidos as leis lógicas podem ser chamadas leis do pensamento, ao estabelecerem o modo como se há de pensar. Toda lei que diz o que é pode conceber-se também como uma prescrição, posto que há que se pensar de acordo com ela, e neste sentido é portanto uma lei do pensamento. Isto vale para as leis geo-métricas e físicas não menos do que para as lógicas. Estas merecem com maior direito o nome de “leis do pensamento”, apenas se com isto queremos dizer que são mais gerais, que sempre prescrevem como se há de pensar sempre que se pense. Porém, o termo “lei do pensamento” induz à opinião errônea de que estas leis regem o pensamento do mesmo modo que as leis naturais os acontecimentos do mundo exterior. Nesse caso, não podem ser outra coisa que leis psicológicas; pois, o pensamento é um processo mental (seelischer Vorgang). E se a lógica tivesse alguma coisa a ver com estas leis psicológicas, então, ela seria parte da psicologia. E assim é concebida de fato. Estas leis do pensamento são consideradas, então, como normas no sentido de que representam o padrão médio, do mesmo modo que se pode dizer como ocorre a digestão sadia no homem, ou como se fala de maneira gramaticalmente correta, ou como alguém veste-se modernamente. Em tal caso, somente se pode dizer: segundo estas leis se rege o padrão médio que os homens tomam por verdadeiro, atualmente e na medida em que se conhecem os homens; assim, pois, se alguém quer concordar com o padrão médio, deve seguir estas leis. Mas, assim como o que hoje é moderno dentro de certo tempo já não será mais, e entre os chineses agora não é, assim também somente de maneira limitada

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se pode propor as leis lógicas como determinantes. Certamente, se é que na lógica se trata do que se toma por verdadeiro e não do que é verdadeiro! E isto é o que confunde os lógicos psicologistas. Assim por exemplo, o Sr. Erdmann equipara, no primeiro tomo de sua Lógica,1 pp. 272-75, a verdade (Wahrheit) com a validade geral (Allgemeingültigkeit) e fundamenta esta na certeza geral sobre o objeto acerca do qual se julga, e esta certeza por sua vez se baseia no acordo geral dos emissores de juizos (allgemeine Übereinstimmung der Urtheillenden). Definitivamente, portanto, reduziu-se assim a verdade ao tomar por verdadeiro (Fürwahrhalten) dos indivíduos. Contra isto eu apenas posso replicar: ser verdadeiro (Wahrsein) é algo distinto de ser tomado por verdadeiro, seja por parte de um indivíduo, seja por muitos, ou todos; e o primeiro não pode ser reduzido ao segundo em nenhum caso. Não há contradição em que seja verdadeiro algo que todos têm por falso. Por leis lógicas não entendo leis psicológicas do tomar por verdadeiro, mas as leis do ser verdade (Gesetze des Wahrseins). Se é verdade que eu escrevo isto em minha casa em 18 de julho de 1893, enquanto lá fora sopra o vento, seguirá sendo verdade ainda que todos os homens considerem isto falso. E como o ser verdade é independente de que alguém o reconheça como tal, resulta que as leis da verdade não são leis psicológicas, mas antes marcos cravados em um solo eterno, que certamente podem ser renegados por nosso pensamento, mas nunca removidos. E posto que o são, são determinantes para o nosso pensamento, se este quer alcançar a verdade. Estas leis não estão para nosso pensamento na mesma relação que as leis gramaticais para a linguagem, de modo que fossem a expressão da natureza de nosso pensamento humano e se modificassem com ela. Completamente diferente é, naturalmente, a concepção de lei lógica do Sr. Erdmann. Ele duvida de sua validade incondicionada, eterna, e pretende limitá-la ao nosso pensamento, tal como este é agora (p. 375e s.).

1 Halle a. S., Max Niemayer, 1892.

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“Nosso pensamento” sem dúvida somente pode significar o pensamento da humanidade conhecida até agora. Conforme isso, ficaria aberta a possibilidade de que se descobrissem homens ou outros seres que pudessem emitir juizos contraditórios com nossas leis lógicas. E, se isso ocorresse realmente? O Sr. Erdmann diria: vemos, pois, que estes princípios não valem universalmente. Sem dúvida! Se devem ser leis psicológicas, sua expressão verbal deve dar a conhecer a espécie de ser cujo pensamento está empiricamente determinado por elas. Eu diria: existem seres, portanto, que não conhecem certas verdades diretamente como nós, mas que talvez estejam obrigados a trilhar pelo longo caminho da indução. Mas, o que ocorreria se também se encontrassem seres cujas leis de pensamento contradissessem totalmente as nossas e, portanto, também sua aplicação conduzisse a resultados opostos? O lógico psicologista não poderia fazer mais do que reconhecer isso e dizer: para estes seres valem essas leis, para nós aquelas. Eu diria: aqui nós temos um tipo de loucura até agora desconhecido. Quem entende por leis lógicas aquelas que prescrevem como se há de pensar, ou leis do ser verdade, não leis naturais do assentimento humano, esse perguntará: Quem tem razão? Quais leis do tomar por verdadeiro estão de acordo com as leis da verdade? O lógico psicologista não pode fazer estas perguntas; pois, com elas admitiria leis do ser verdade que não seriam psicológicas. Há pior maneira de falsear o sentido da palavra “verdadeiro” do que quando se pretende incluir uma relação com o emissor do juízo? Que não se me objete que o enunciado “Eu estou com fome” pode ser verdadeiro para um e falso para outro! O enunciado bem pode ser, mas o pensamento não; pois, a palavra “eu” se refere na boca de outro a outro homem, e por isso o enunciado emitido pelo outro expressa outro pensamento. Todas as determinações de lugar, de tempo, etc. pertencem ao pensamento cuja verdade está em questão; o ser verdadeiro mesmo não é espacial e nem temporal. O que realmente diz o princípio de identidade? Algo assim: “No ano

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1893 é impossível para os homens admitir que um objeto é distinto dele mesmo”?, ou isso: “Todo objeto é idêntico a si mesmo”? A primeira lei trata de homens e contém uma determinação temporal; na segunda não se fala nem de homens nem de tempo. Esta é uma lei do ser verdadeiro, aquela é uma lei do assentimento humano. O conteúdo de ambas é completamente distinto, e são independentes entre si, de modo que nenhuma das duas segue-se da outra. Por isso, é muito confuso designar ambas com o mesmo nome de princípio de identidade. Tais confusões de coisas radicalmente distintas são as responsáveis pela terrível falta de claridade que encontramos nos lógicos psicologistas.

Agora, a pergunta de por que e com que direito nós reconhecemos como verdadeira uma lei lógica, apenas pode ser respondida pela lógica reconduzindo-a a outras leis lógicas. Onde isto não é possível, a resposta fica em aberto. Saindo da lógica podemos dizer: por nossa natureza e pelas circunstâncias externas estamos obrigados a emitir juízos, e quando emitimos juízos não podemos prescindir desta lei — a da identidade, por exemplo —; devemos admiti-la se não queremos fazer cair nosso pensamento em confusão e renunciar, definitivamente, a qualquer juízo. Não vou discutir nem apoiar esta opinião, e apenas observar que aqui não temos nenhuma consequência lógica. Não se dá nenhuma razão do ser verdadeiro, senão de nosso assentimento. E mais: esta nossa impossibilidade de prescindir da lei não nos impede de supor seres que prescindam dela; mas, nos impede sim de supor que estes seres têm razão; também nos impede de duvidar se são eles ou nós que temos razão. Pelo menos isso vale para mim. Se outros num só respiro se atrevem a reconhecer e duvidar de uma lei, isso me parece como a tentativa de sair da própria pele, do que não posso senão prevenir veementemente. Quem admitiu uma vez uma lei do ser verdade, terá admitido com isso uma lei que prescreve como se há de julgar sempre, onde, quando e por quem quer que seja julgado.

Olhando o conjunto, parece-me que a origem da polêmica

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é a distinta concepção da verdade. Para mim, ela é algo objetivo, independente do emissor de juízos, para os lógicos psicologistas, não. O que o Sr. B. Erdmann chama “certeza objetiva” é somente o reconhecimento geral por parte dos emissores de juízos, que, portanto, não é independente destes, senão que pode modificar-se com sua natureza mental.

Podemos conceber a diferença com maior generalidade ainda: eu reconheço um domínio do objetivo não-efetivo (Objectiven Nichtwirklichen), enquanto que os lógicos psicologistas consideram o não-efetivo como o subjetivo (Subjectiv) sem mais. E, obviamente, não se vê claramente por que aquilo que tem uma existência (Bestand) independente do emissor de juízos deva ser efetivo, isto é, deva poder atuar diretamente ou indiretamente sobre os sentidos. Não se pode descobrir uma tal relação entre os conceitos. Inclusive podem dar-se exemplos que mostram o contrário. O número um, por exemplo, não é facilmente considerado como efetivo (wirklich), se não se é seguidor de J. S. Mill. Por outra parte, é impossível atribuir a cada homem o seu próprio um; pois, primeiro haveria que se investigar até que ponto coincidem as propriedades destes uns. E se alguém dissesse “um vezes um é um” e outro dissesse “um vezes um é dois”, apenas se poderia constatar a diferença e dizer: o teu um tem esta propriedade, o meu esta outra. Não teria nenhum sentido uma discussão acerca de quem tem razão nem também a tentativa de ensinar; pois, para isto faltaria uma comunidade de objeto. Evidentemente, isto é totalmente contrário ao sentido da palavra “um” e ao sentido do enunciado “um vezes um é um”. Dado que o um, enquanto que é o mesmo para todos, apresenta-se a todos do mesmo modo, é tão impossível investigá-lo por meio da observação psicológica quanto a Lua. Se bem que existem representações do um nas mentes individuais, estas devem ser distinguidas do um, do mesmo modo que as representações da Lua devem ser distinguidas da Lua mesma. Como os lógicos psicologistas ignoram a possibilidade do não-

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efetivo objetivo, tomam os conceitos por representações, com o que atribuem o seu estudo à psicologia. Mas, a verdadeira situação impõe-se fortemente para que isto se realize. E assim se chega a uma oscilação no uso da palavra “representação”: por um lado, ela parece se referir a algo que pertence à vida mental do indivíduo e se funde com outras representações, e se associa a elas segundo leis psicológicas; por outro lado parece se referir a algo que se apresenta a todos do mesmo modo, sem que se nomeie ou sequer se pressuponha um sujeito de representação. Estes dois usos são inconciliáveis; pois, estas associações ou fusões ocor-rem somente no sujeito de representação e ocorrem somente em um estado que é tão absolutamente peculiar a este sujeito de representação como sua alegria ou dor. Não se deve esque-cer que nunca as representações de homens diferentes, por mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, nós não podemos comprovar exatamente, não coincidem em nenhum ponto, e devem ser diferenciadas. Cada um tem as suas repre-sentações, que não são por sua vez as do outro. Naturalmente, entendo aqui “representações” no sentido psicológico. O uso vacilante desta palavra provoca confusão e ajuda aos lógicos psicologistas a ocultar sua debilidade. Quando se porá fim a isto! Desse modo tudo é arrastado definitivamente para o domínio da psicologia; desaparece cada vez mais a fronteira entre o objetivo e o subjetivo, e inclusive os objetos efetivos são tratados psicologicamente como representações. Pois, o que é o efetivo senão um predicado? E, que são os predicados lógicos senão representações? Assim desemboca tudo no idealismo e, sendo mais consequentes, no solipsismo. Se cada um designasse com a palavra “Lua” algo distinto, a saber, uma de suas representações, do mesmo como a exclamação “Ai!” expressa sua dor, então, estaria justificado o modo de consideração psicologista; mas, uma discussão sobre as propriedades da Lua careceria de objeto: alguém poderia muito bem afirmar de sua Lua o contrário do que outro diria da sua, com a mesma razão. Se não pudéssemos

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conceber mais do que está em nós mesmos, seria impossível uma disputa de opiniões, uma compreensão mútua, porque faltaria o terreno comum, e este não pode ser nenhuma representação no sentido da psicologia. Não haveria nada parecido com a lógica, que estivesse encarregado de arbitrar a disputa de opiniões.

Mas, para não dar a impressão de que estou lutando contra moinhos de vento, vou mostrar em um livro determinado o afundamento incontornável no idealismo. Escolho para isto a antes mencionada Lógica do Sr. B. Erdmann como uma das obras mais recentes da orientação psicologista, a que ninguém negará certa importância. Consideremos o seguinte enunciado (I, p85):

“Assim, a psicologia ensina com certeza que os objetos da memória e da imaginação são, tal como os da representação patológica alucinatória e ilusória, de natureza ideal.... Ideal é também todo o domínio das representações propriamente matemáticas, desde a série dos números até os objetos da Mecânica”.

Que comparação! O número dez deve também estar no mesmo nível que o das alucinações! Aqui se confunde, evidentemente, o não-efetivo objetivo com o subjetivo. Algumas coisas objetivas são efetivas, outras não. Efetivo é somente um dos tantos predicados, e à lógica não lhe interessa mais que o predicado algébrico aplicado a uma curva. Naturalmente, por causa dessa confusão, o Sr. Erdmann se perde na metafísica, por mais que tente manter-se livre dela. Considero um sintoma seguro de erro que a lógica necessite da metafísica e da psicologia, ciências estas que precisam dos princípios da lógica. Qual é aqui a verdadeira base originária sobre a qual tudo repousa? Ou é como no conto de Münchausen, que ele mesmo saia do pântano puxando-se pelos cabelos? Duvido muito dessa possibilidade e suspeito que o Sr. Erdmann ficará atolado em seu pântano psicológico-metafísico.

Não existe uma verdadeira objetividade para o Sr. Erdmann, pois tudo é representação. Nos convenceremos disso

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por meio de suas próprias afirmações. Na página 187 do primeiro volume, lemos:

“Na medida em que é uma relação entre coisas representadas, o juízo pressupõe dois pontos relacionais, entre os quais tem lugar. Como asserção (Aussage) sobre o representado, exige que um destes pontos relacionais defina-se como objeto do qual se assere algo, o sujeito ..., o segundo como objeto que se assere, o predicado...”. Antes de tudo, vemos aqui que tanto o sujeito, do qual se assere algo, como o predicado, são qualificados de objeto ou representado. Em vez de “o objeto”, poderia ter dito também “o representado”; com efeito, lemos (I, p.81): “Pois os objetos são o representado”. Mas, ao inverso, também todo o representado deve ser objeto. Na página 38 diz-se:

“Por sua origem, o representado divide-se, por um lado, em objetos da percepção sensorial e da consciência de si mesmo, e por outro, em primitivos e derivados.”

O que nasce da percepção sensorial e da consciência de si é, sem dúvida, de natureza mental. Os objetos, o representado e com isso também sujeito e predicado são atribuídos à psicologia. Isto é confirmado pela seguinte passagem (I, pp. 147 e 148):

“É o representado ou a representação como tal. Pois, ambos são uma e a mesma coisa: o representado é representação, a representação é o representado”.

A palavra “representação” geralmente é tomada em sentido psicológico; que este também seja o uso dado pelo Sr. Erdmann vemos pelas passagens:

“Consciência, por conseguinte, é sentir, representar, querer o geral” (p. 35), e “O representar compõe-se das representações... e pelo fluxo de representações” (p. 36).

Por isso não deveríamos estranhar que um objeto surja pela via psicológica:

“Na medida em que uma massa de percepções ... apresenta algo análogo a estímulos anteriores e às excitações provocadas por eles, reproduz os resíduos da memória que

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procediam do análogo nos estímulos anteriores e funde-se com eles para formar o objeto da representação apercebida” (I, p.42).

Na página 43, mostra-se, por exemplo, como se cria por meios puramente psicológicos, sem prancheta, tinta, prensa e sem papel, um relevo de cera da Madonna sixtina de Rafael. Depois disso, ninguém pode duvidar de que o objeto, do qual se afirma algo, há-de ser, segundo a opinião do Sr. Erdmann, o sujeito de uma representação no sentido psicológico, o mesmo que o predicado, o objeto que é afirmado. Se isto fosse correto, de nenhum sujeito poder-se-ia afirmar com verdade que é verde; pois, não há representações verdes. Eu tampouco poderia afirmar de um objeto (Subjecte) a independência em relação ao ser representado ou em relação a mim, o representador, como tampouco minhas decisões são independentes de minha vontade nem de mim, o querente, e seriam aniquiladas comigo caso eu fosse aniquilado. Para o Sr. Erdmann não há, pois, uma objetividade autêntica, como também se deduz do fato de que põe o representado ou a representação em geral, o objeto no sentido mais geral da palavra, como gênero supremo (genus summum) (p. 147). Ele é, portanto, um idealista. Se os idealistas pensassem de modo consequente, não considerariam o enunciado “Carlos Magno conquistou os saxões” nem verdadeiro nem falso, senão como poesia, tal como estamos acostumados a conceber, por exemplo, o enunciado “Nessus levou Deïanira para o outro lado do rio Euenus”, pois também o enunciado “Nessus levou Deïanira para o outro lado do rio Euenus” apenas poderia ser verdadeiro ou falso se o nome “Nessus” tivesse um portador. Desse ponto de vista, certamente não seria fácil demover os idealistas. Mas, não temos porque admitir isso, que falsifiquem o sentido do enunciado como se eu quisera afirmar algo acerca de minha representação quando falo de Carlos Magno; eu quero designar um homem independente de mim e de minha representação e afirmar algo sobre ele. Pode-se conceder aos idealistas que a execução desse propósito não é totalmente segura, que talvez sem

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querer eu abandone a verdade para cair na poesia. Mas, com isso nada é alterado no sentido. Com o enunciado “esta ramagem é verde” não expresso nada sobre minha representação; com as palavras “esta ramagem” não designo nenhuma de minhas representações, e, se assim o fizesse, o enunciado seria falso. Aqui aparece uma segunda falsificação, a saber, que minha representação do verde seja afirmada de minha representação desta ramagem. Eu repito: neste enunciado não se trata absolutamente de minhas representações; desse modo seria atribuído a ele um sentido completamente diferente. Diga-se de passagem, absolutamente não entendo como uma representação pode ser afirmada de algo. Assim mesmo seria uma falsificação se se quisesse dizer que, no enunciado “a Lua é independente de mim e do meu representar”, minha representação do ser independente de mim e de meu representar sejam afirmados de minha representação da Lua. Desse modo se abandonaria a objetividade no sentido próprio da palavra e posto algo muito diferente no seu lugar. Certamente é possível que ao emitir um juízo ocorra tal jogo de representações; mas, não é este o sentido do enunciado. Também pode-se observar que no mesmo enunciado, e com o mesmo sentido do enunciado, o jogo de representações pode ser completamente diferente. E esta manifestação logicamente indiferente é tomada por nossos lógicos como o real objeto de sua investigação.

Como é compreensível, a natureza do tema evita um afundamento no idealismo, e o Sr. Erdmann não estaria disposto a admitir que para ele não há objetividade autêntica; mas, igualmente compreensível é a vanidade desse esforço. Pois, se todos os sujeitos e todos os predicados são representações, e se todo pensamento não é senão a produção, conexão e modificação de representações, não se compreende como se pode alcançar algo objetivo. Uma indicação desse vão esforço é já o uso das palavras “representado” e “objeto”, que à primeira vista parecem querer designar algo objetivo em contraposição à representação,

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mas apenas parecem; pois, está claro que se referem a mesma coisa. Para que, então, esta profusão de expressões? Isto não é difícil de adivinhar. Note-se também que se fala de um objeto da representação, embora o objeto mesmo tenha de ser uma representação. Este seria, logo, uma representação da representação. A que relação de representações nos referimos aqui? Por mais obscuro que isto seja, também é compreensível, sem dúvida, como o conflito da natureza da questão com o idealismo pode dar origem a semelhante embaraço. Por todos os lados vemos como aqui se confundem o objeto, do qual faço uma representação, com esta representação, e depois volta a aparecer a diferenciação. Este conflito nós o detectamos também no seguinte enunciado:

“Pois uma representação cujo objeto é geral nem por isso é, como tal, como evento da consciência, geral, como tampouco é real uma representação porque seu objeto é posto como real, nem um objeto que sentimos como doce... é dado por representações que em si mesmas sejam doces” (I, p. 86).

Aqui predomina a verdadeira situação com toda sua força. Eu quase poderia estar de acordo; mas, observemos que, segundo os princípios erdmannianos, o objeto de uma representação e o objeto que é dado por representações são também representações, de modo que toda defesa é em vão. Peço que se retenha na memória as palavras “como tal”, que aparecem similarmente na seguinte passagem, também na página 83:

“Quando se afirma a realidade de um objeto, o sujeito material deste juízo não é o objeto ou o representado como tal, mas é o transcendente, que se pressupõe como fundamento ôntico (Seinsgrundlage) desse representado, que se manifesta por meio do representado. Nesse caso não se deve supor que o transcendente seja o incognoscível..., mas que sua transcen-dência consiste apenas na sua independência em relação ao ser representado”.

Outra vã tentativa de sair do pântano! Se tomamos estas

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palavras a sério, então é dito que nesse caso o sujeito não é uma representação. Mas, se isso é possível, então, não se compreende por que no caso de outros predicados, que indicam modos especiais de atuação ou efetividade, o sujeito material deva ser absolutamente uma representação, por exemplo, no juízo “a Terra é magnética”. E assim chegaríamos ao resultado de que somente em alguns poucos juízos o sujeito material deveria ser uma representação. Mas, uma vez que se admitiu não ser essencial nem para o sujeito nem para o predicado que seja uma representação, então, retira-se o solo de apoio dos pés da lógica psicologista. Todas as considerações psicológicas de que estão cheios atualmente nossos livros de lógica aparecem então como carentes de finalidade.

Porém, certamente não devemos levar tão a sério a transcendência do Sr. Erdmann. Basta apenas recordar uma de suas afirmações (I, p. 148): “Ao gênero supremo está subordi-nado também o limite metafísico de nossa representação, o transcendente”, e ele se afunda; pois, este gênero supremo (genus summum), segundo ele, é precisamente o representado ou a representação como tal. Ou será que a palavra “transcendente” anterior deve ser empregada noutro sentido diferente desse? Em todo caso, teria que se pensar o transcendente como estando subordinado ao gênero supremo.

Todavia, detenhamo-nos um pouco na expressão “como tal”! Considere-se o caso em que alguém quisesse fazer-me acreditar que todos os objetos não são nada mais do que imagens sobre a retina de meu olho. Tudo bem, eu ainda não respondo nada. Mas, ele prossegue afirmando que a torre é maior do que a janela pela qual eu penso ver a primeira. Obviamente, diante disso eu diria: ou bem não são nem a torre nem a janela imagens retinianas em meu olho, e nesse caso a torre pode ser maior que a janela; ou bem a torre e a janela, como tu dizes, são imagens em minha retina, e então a torre não é maior, mas menor que a janela. Agora, ele quer escapar do embaraço com o “como tal” e diz:

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com certeza a imagem retiniana da torre como tal não é maior do que a da janela. Diante disso, eu quase poderia sair da pele e gritar para ele: pois então a imagem retiniana da torre não é maior que a da janela, e se a torre fosse a imagem retiniana da torre e a janela a imagem retiniana da janela, então, a torre não seria maior que a janela, e se tua lógica te ensina algo diferente é porque não serve para nada. Esse “como tal” é uma invenção excelente para autores confusos que não querem dizer nem sim nem não. Mas, eu não tolero esta vacilação entre ambos, e pergunto: se de um objeto se afirma a efetividade, então o sujeito material do juízo é a representação, sim ou não? Se não é, o é sem dúvida o transcendente que se pressupõe como fundamento ôntico dessa representação. Mas, esse transcendente, por sua vez, é representado ou representação. Assim somos conduzidos à suposição ulterior de que o sujeito do juízo não é o transcendente representado, mas o transcendente pressuposto como fundamento ôntico desse transcendente representado. Desse modo, sempre teríamos de ir adiante; porém, por mais longe que fôssemos, nunca sairíamos do subjetivo. Do mesmo modo, poderíamos começar o mesmo jogo com o predicado, e não apenas com o predicado efetivo, mas igualmente com doce. Neste caso, diríamos primeiro: se de um objeto se afirma a efetividade ou a doçura, o predicado material não é a efetividade ou a doçura representadas, mas o transcendente pressuposto como fundamento do representado. Mas, desse modo não descansaríamos nunca, e sempre teríamos de ir mais além. O que se apreende de tudo isso? Que a lógica psicologista está numa vereda sem saída ao conceber sujeito e predicado dos juízos como representações no sentido da psicologia, que as considerações psicológicas são tão pouco adequadas em lógica como em astronomia ou geologia. Se queremos sair do subjetivo, devemos conceber o conhecimento como uma atividade que não produz o conhecido, mas que agarra (ergreift) algo que já existe. A imagem do agarrar é muito adequada para explicar a questão. Se eu agarro

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um lápis, ocorrem em meu corpo certos processos: excitações nervosas, alterações na tensão e na pressão dos músculos, tendões e ossos, modificações na circulação sanguínea. Mas, o conjunto desses processos não é o lápis, nem o produz. Este subsiste (besteht) independente de tais processos. E é essencial para o agarrar que haja aí algo que seja agarrado; as modificações internas por si só não são o agarrar. Assim, também, o que apreendemos mentalmente (geistig erfassen) subsiste independentemente dessa atividade, das representações e suas modificações, que pertencem ou acompanham essa apreensão; não é nem a totalidade desses processos, nem é produzido por eles como parte de nossa vida mental.

Vemos agora como os lógicos psicologistas borram distinções reais mais finas. A confusão entre característica e propriedade já foi mencionada. Com ela está relacionada a diferença acentuada por mim entre objeto e conceito, como também a que há entre conceitos de primeira e de segunda ordem. Estas distinções, naturalmente, são irreconhecíveis para os lógicos psicologistas; pois, para eles tudo é representação. Por isso também carecem de uma concepção correta do tipo de juízos que em Português fazemos com “há”*. Esta existência é confundida pelo Sr. Erdmann (Lógica, I, p. 311) com a efetividade, que, como vimos não é diferenciada claramente da objetividade. De que coisas afirmamos propriamente que é efetivo quando dizemos que há raízes quadradas de quatro? Seria do 2 ou do −2? Mas, absolutamente nem um nem outro são aqui nomeados. E se eu quisesse dizer que o número dois atua, ou que é atuante ou efetivo, isto seria falso e totalmente diferente do que quero dizer com o enunciado “há raízes quadradas de quatro”. A confusão que ocorre aqui quase é a mais grosseira possível; pois, não ocorre entre conceitos da mesma ordem, mas são mesclados um conceito de primeira ordem e um de segunda. Isto é característico da grosseria da lógica psicologista. Se, em geral, se

* N. T. Tomei a liberdade de substituir aqui “im Deutschen” e “es gibt” por “em Português” e “há”.

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alcançou um ponto de vista mais livre, espanta-se de que tal erro possa ser cometido por um lógico profissional; porém, naturalmente, primeiro há que se ter compreendido a diferença entre conceitos de primeira e segunda ordem, antes que se possa medir a magnitude desse erro e disso a lógica psicologista é sem dúvida incapaz. O obstáculo com que quase sempre esta choca-se é que seus representantes esperam milagres do aprofundamento psicológico, quando este não é mais do que uma falsificação psicológica da lógica. E assim aparecem nossos grossos livros de lógica nas estantes, inchados de insana gordura psicológica que oculta todas as formas mais finas. Desse modo faz-se impossível uma colaboração frutífera entre matemáticos e lógicos. Enquanto que o matemático define objetos, conceitos e relações, o lógico psico-logista espreita o acontecer e a transformação das representações e, no fundo, as definições do matemático apenas podem parecer-lhe insensatas, porque não refletem a essência da representação. Ele olha dentro de sua câmara psicológica e diz para o matemático: não vejo nada de tudo isso que tu defines. E o outro apenas pode responder: não me admira, pois não está ali onde procuras.

Isso basta para tornar claro, por contraposição, meu ponto de vista lógico. A distância com respeito à lógica psicologista me parece tão grande que não há perspectivas de que meu livro influa agora já sobre ela. Parece-me como se a árvore plantada por mim devesse levantar um peso descomunal para procurar espaço e luz. E, contudo, não quisera abandonar a esperança de que mais tarde meu livro possa contribuir para derrubar a lógica psicologista. Para isso não deverá faltar-lhe certo reconhecimento por parte dos matemáticos, o qual os forçará a enfrentar-se com ele. E creio poder esperar certo apoio dessa parte; pois, obviamente, os matemáticos têm que fazer causa comum contra os lógicos psicologistas. Logo que estes se dignem a estudar seriamente meu livro, ainda que apenas para atacá-lo, creio terei vencido. Pois, toda a Parte II é na realidade uma prova de minhas concepções

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lógicas. De antemão é improvável que semelhante construção pudesse estar alicerçada sobre uma base insegura e errada. Qualquer um que tenha outras concepções pode tentar montar sobre elas uma construção semelhante e acabará por ver, segundo creio, que não funciona ou pelo menos que não funciona tão bem. E como refutação, eu apenas poderia admitir que alguém mostrasse na prática que com outras concepções básicas diferentes se pode construir um edifício melhor e mais sólido, ou que alguém me mostrasse que meus princípios conduzem a consequências manifestadamente falsas. Mas, isso ninguém conseguirá. E assim pode ser que este livro contribua, ainda que tarde, para uma renovação da lógica.

Jena, julho de 1893.

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16. Lógica [1897]

G. Frege

Tradução provisória Schriften zur Logik und Sprachphilosophie, aus dem Nachlass; hrsg. G. Gabriel. Hamburg, Felix Meiner, 2001. S. 35-73.

[35]1

[Breves indicações do conteúdo das páginas. Frege o fez apenas até a página 57]

[38] A palavra “verdadeiro” (wahr) fornece o objetivo. A lógica está envolvida de modo especial com o predicado “verdadeiro”. A palavra “verdadeiro” caracteriza a lógica.

[39] Verdadeiro não se deixa definir; não se pode dizer: verdadeira é uma representação se ela concorda com a realidade. Verdadeiro originário e simples. Expor a singularidade de nosso predicado através de comparação. Ele sempre é enunciado se algo é enunciado (ausgesagt).

[40] Pesquisar o domínio onde o predicado “verdadeiro” é aplicável. Não na corporeidade. Se o atribui mais seguidamente a frases; obviamente apenas a frases assertóricas. Obviamente não às sequências de sons. Tradução.

[41s] (Não se faz necessário considerar em lógica enunciados aparentes.)

1 Paginação da edição usada como base para a tradução.

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[42] O sentido (Sinn) de uma frase (Satzes) é denominado pensamento (Gedanke). O predicado “verdadeiro” aplica-se aos pensamentos. Também é aplicável às representações (Vorstellungen)? Também quando uma representação é denominada verdadeira, propriamente é ao pensamento que esse predicado é atribuído.

[43] Pensamento não é nenhuma representação e não é composto destas. Pensamentos e representações são fundamentalmente diferentes. Através da associação de representações nunca surge algo que poderia ser verdadeiro. O meio de expressão apropriado para o pensamento é a frase. Esta, ao contrário, é pouco apropriada para reproduzir representações. Imagens e peças musicais, [36] ao contrário, são inapropriadas para expressar pensamentos. Comparação do predicado “verdadeiro” com “belo”. Este tem uma gradação, aquele não.

[44] O belo é apenas belo para quem como tal o sente. Sobre o gosto não se discute. O verdadeiro é em si verdadeiro; nada é em si belo. Na base dos juízos de gosto objetivos está a suposição de um homem normal. Agora, o que é normal? O belo objetivo portanto baseia-se sempre no belo subjetivo. Não é útil para nada ao invés de um normal supor um homem ideal.

[45] A obra de arte é uma configuração de representações em nós. Cada um tem a sua. Nenhuma contradição entre juízos de beleza. Qualquer um que asserisse que algo é verdadeiro apenas pelo nosso reconhecimento contradiria com esse ato o conteúdo de sua asserção. Ele não poderia em verdade asserir nada. Toda opinião seria então injustificável; não haveria nenhuma ciência. Propriamente não haveria nada verdadeiro. A independência em relação ao nosso reconhecimento está intrinsecamente ligada ao sentido da palavra “verdadeiro”.

[46] Pensamentos não precisam ser pensados por nós para serem verdadeiros. Leis da natureza são descobertas (não criadas). Pensamentos são independentes de nosso pensar (Denken). O pensamento não é especialmente próprio do pensador como a representação do representador, mas está para os pensadores igualmente como o mesmo. Do contrário nunca dois homens associariam com a mesma frase o mesmo pensamento. Uma contradição entre asserções de diferentes homens seria impossível. Discussões sobre a verdade seriam vãs. Faltaria uma arena comum.

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[47] Em relação à beleza cada um julga o seu poema, assim cada um julgaria também o seu pensamento, se esse se relacionasse com a frase de modo semelhante ao modo como [37] as configurações de representações sonoras com as vibrações do ar. Se o pensamento fosse algo mental, então a sua verdade poderia consistir apenas numa relação com algo externo, e que esta relação ocorresse seria um pensamento de cuja verdade se deveria perguntar. Roda de moinho. O pensamento é algo impessoal. Escrita na parede.

[48] Objeção: uma frase como “Eu estou com frio”. As palavras proferidas precisam seguidamente de um complemento. A palavra “eu” não designa sempre a mesma pessoa. A frase com “eu” pode ser dita de uma forma mais apropriada. Diferença das interjeições. Palavras “agora”, “aqui” semelhantes a “eu”. Num juízo subjetivo de gosto é essencial quem o enuncia.

[49] Objeção: eu emprego a palavra “pensamento” de modo não habitual.

[50s] Suposição. O modo de emprego de Dedekind concorda com o meu integralmente.

[51] O pensar não é produção, mas apreensão de pensamentos.[52] Pensamento não espacial. Material.[53] Pensamento apenas em um sentido especial algo efetivo.

Também os pensamentos falsos independentes do falante. [54] O predicado “verdadeiro” sempre é co-enunciado. Em frases

assertivas a expressão de um pensamento e o reconhecimento de sua verdade estão ligados. Esta ligação não é necessária. Nem sempre há numa frase assertiva uma asserção. A apreensão do pensamento seguidamente precede o reconhecimento da verdade. Julgar, asserir. Uma frase deve também atuar sobre o representar e sentir.

[55] Ela é capaz de fazer isso como todo de impressões sonoras. Onomatopeia. Através de seu sentido as palavras atuam sobre o representar. Obviamente representação não intersubstituível com sentido.

[56] A palavra não determina sozinha a representação. Representações para a mesma palavra são diferentes. [38] Palavras fornecem indicações para o representar. Meios para o poeta. “Cachorro” e “cão” podem substituir uma a outra, sem modificar o pensamento. A diferença tem o valor de uma interjeição.

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[57] Kriterium. Para diferenciar: pensamentos que se expressa, e aqueles que apenas se provoca a apreensão. Voz triste, “ah”, “infelizmente”. Casos duvidosos devido à mutabilidade da linguagem.

IntroduçãoO predicado verdadeiro, pensamentos, consequências para a

abordagem da lógica

Ao adentrar numa ciência, tem-se a necessidade, provisoriamente ao menos, de se ter uma noção de sua natureza. Deseja-se ter em vista um objetivo para buscar, um ponto de chegada, que dê a direção, para o qual se quer progredir. Para a lógica a palavra “verdadeiro” pode servir para tornar conhecido esse ponto, de modo análogo como “bom” para a ética e “belo” para a estética. Na verdade, todas as ciências tem a verdade como seu objetivo, mas a lógica lida com o predicado “verdadeiro” de um modo especial, a saber, análogo à física com os predicados “pesado” e “quente” ou à química com os predicados “ácido” e “alcalino”; com a diferença que estas ciências tem que levar em conta, além dessas mencionadas, outras propriedades e nenhuma individualmente pode caracterizar a sua natureza tão completamente como a lógica pela palavra “verdadeiro”.

Como a ética, pode-se denominar a lógica como uma ciência normativa. Como eu devo pensar para alcançar o objetivo, a verdade? Espera-se da lógica o respondimento à esta questão, mas não se exige dela que ela adentre ao que é peculiar a cada ramo de conhecimento e seus objetos; mas sim atribuímos como tarefa à lógica indicar apenas o mais geral, o que tem validade para todos os domínios do pensar. As regras para o nosso pensar e tomar por verdadeiro nós devemos pensar como [39] determinadas por meio das leis do ser verdade (Gesetze des Wahrseins). Com estas aquelas são dadas. Com isso nós podemos também dizer: a lógica é a ciência das mais gerais leis do ser verdade. Pode-se talvez achar que assim não é possível pensar de modo muito preciso. A culpa pode ser da falta de jeito do autor e da linguagem. Mas também se trata apenas de tornar conhecido aproximadamente o objetivo. O que ainda falta deve ser completado no prosseguimento.

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Agora seria inútil esclarecer o que deve ser compreendido por “verdadeiro” por meio de uma definição. Se se quisesse falar assim: “verdadeira é uma representação quando ela concorda com a realidade”, assim nada seria alcançado, pois, para aplicar isso, se deveria decidir se em um caso dado uma representação realmente concorda com a realidade, em outras palavras: se é verdadeiro que a representação concorda com a realidade. Logo, deve-se pressupor aquilo que está sendo definido. O mesmo valeria para toda definição dessa forma: “A é verdadeira, se ela tem esta e aquela propriedade, ou está nessa ou naquela relação com isso e aquilo”. Sempre retornaria em cada caso a questão de se é verdade que A tem esta e aquela propriedade, ou está nessa ou naquela relação com isso e aquilo. Verdade é claramente algo tão originário e simples que a recondução a algo ainda mais simples não é possível. Por isso nós precisamos esclarecer a peculiaridade de nosso predicado por meio da comparação com outros. Primeiramente ele diferencia-se de todos os outros predicados em que ele sempre é enunciado (ausgesagt) junto quando qualquer coisa é enunciada.

Se eu assiro (behaupte)1 que a soma de 2 e 3 é 5, então, eu assiro com isso que é verdade que 2 e 3 é 5. E assim assiro eu, é verdade que minha representação da Catedral de Colonia concorda com a realidade, se eu assiro que ela concorda com a realidade. A forma da frase assertiva (Form des Behauptungssatzes) é portanto propriamente o com que nós dizemos a verdade, e para isso nós não precisamos da palavra “verdadeiro”. Sim, nós podemos dizer: ali onde nós empregamos o modo de expressão “é verdade que ...”, [40] é propriamente a forma da frase assertiva o essencial.

Perguntemos, agora: onde o predicado “verdadeiro” é empregável? Trata-se de delimitar um domínio fora do qual não se possa em geral falar de um emprego. O inteiro domínio da corporeidade de qualquer modo está excluído. Apenas para as obras de arte poderia contudo surgir uma dúvida. Porém, quando se fala em verdade aí, emprega-se obviamente esta palavra com um significado diferente do

1 N. do T. A opção pela tradução de “behaupten” por “asserir”, e não por “afirmar”, que seria mais natural, deve-se obviamente ao fato de que o próprio Frege diferencia o ato de asseverar da afirmação e da negação. Essa antiga palavra da nossa língua, “asseverar”, também poderia ser usada, mas ela contém nela mesma a indicação de que ao asserir algo se afirma a sua verdade, e isso tornaria redundante o ponto de Frege.

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aqui visado. Em todo caso, apenas como obra de arte denominam-se as coisas como verdadeiras. Fosse ela criada por meio da atuação das forças cegas da natureza, o nosso predicado não seria empregado. Pelas mesmas razões nós excluímos da consideração o modo de emprego feito, seja, por um crítico de arte, quando se denomina verdadeiros sentimentos e experiências.

Na maioria das vezes atribui-se a frases o nosso predicado; em todo caso, estão excluídas as frases que expressam desejos, perguntas, pedidos e ordens, e apenas as frases assertivas estão em consideração, aquelas frases em que nós comunicamos fatos, estabelecemos leis matemáticas ou leis da natureza.

Além disso claro é que não é à sequência de sons, como se apresenta uma frase, mas ao seu sentido (Sinn), que nós propriamente atribuímos verdade; pois, por um lado, a verdade de uma frase é preservada quando ela é corretamente traduzida para uma outra linguagem, por outro, é ao menos concebível que a mesma sequência de sons em uma linguagem tenha um sentido verdadeiro e em outra um falso.

Nós compreendemos aqui sob a palavra “frase” a frase principal (Hauptsatz) e as dela dependentes frases subordinadas (Nebensätze).

Nos únicos casos que concernem à lógica o sentido de uma frase assertiva (Behauptungssatze) é ou verdadeiro ou falso, e então nós temos o que eu chamo propriamente de um pensamento (Gedanken). Há, porém, ainda um terceiro caso sobre o qual se deve aqui fazer alguma menção.

A frase “A Scylla tem seis cabeças” não é verdadeira, mas a frase “A Scylla não tem seis cabeças” também não é verdadeira; pois, para ser verdadeira o nome próprio “Scylla” deveria designar algo (etwas bezeichnete). Talvez nós pensemos que o [41] nome “Scylla” sim designa algo, a saber, uma representação (Vorstellung). Nesse caso, a primeira questão a se fazer é “qual representação?”. Nós seguidamente falamos como se uma e a mesma representação ocorresse em diferentes pessoas, mas isso é falso, ao menos se a palavra “representação” é usada no sentido psicológico: cada pessoa tem sua própria representação. Agora, uma representação não tem cabeças, e então nós não podemos cortar cabeças de uma representação também. A palavra “Scylla” portanto não designa uma representação. Os nomes que falham em cumprir a função usual de um nome próprio, que é nomear

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algo, podem ser chamados de nomes próprios aparentes (Scheineigenname). Embora a lenda de Tell seja uma saga e não uma história e o nome “Guilherme Tell” seja um nome próprio aparente, nós não podemos negar-lhe um sentido (Sinn). Mas o sentido da frase “Tell flechou uma maçã sobre a cabeça de seu filho” não é mais verdadeiro do que o da frase “Tell não flechou uma maçã sobre a cabeça de seu filho”. Eu também não digo, porém, que este sentido seja falso, mas o caracterizo como ficção (Dichtung). Isto pode esclarecer o sentido em que eu estou usando a palavra “falso”, que é tão pouco suscetível de definição própria quanto o é a palavra “verdadeiro”.

Se a teoria idealista do conhecimento fosse correta então todas as ciências pertenceriam ao domínio da ficção. Com efeito, pode-se tentar reinterpretar todas as frases de tal modo que elas fossem sobre representações. Ao fazer isso, contudo, os seus sentidos seriam completamente alterados e nós obteríamos uma ciência muito diferente; esta nova ciência seria um ramo da psicologia.

Em vez de falar de “ficção” nós poderíamos falar de “pensamentos aparentes” (Scheingedanke). Assim, se o sentido de uma frase assertiva não é verdadeiro, ele é ou falso ou fictício, e em geral será o último se ela contém um nome próprio aparente*. O escritor, em comum, por exemplo, com o pintor, tem seus olhos na aparência (Schein). Asserções na ficção não são para serem levadas a sério: elas são apenas asserções aparentes (Scheinbehauptungen). Também os pensamentos não são para serem levados [42] a sério como nas ciências: eles são apenas pensamentos aparentes. Se o Don Carlos de Schiller fosse para ser visto como uma peça de história, então em grande parte o drama seria falso. Mas, uma obra de ficção não é feita para ser levada a sério desse modo: ela é um jogo (Spiel). Também os nomes próprios no drama, embora eles correspondam a nomes de personagens históricos, são nomes próprios aparentes; na obra eles não são para serem levados a sério. Nós temos um caso similar na pintura histórica. Como uma obra de arte ela simplesmente não reclama oferecer uma representação visual do que efetivamente aconteceu. Um quadro que pretendesse retratar algum momento significativo da história com precisão fotográfica não seria uma obra de arte no sentido

* Nós temos uma exceção ali onde um nome próprio ocorre numa cláusula em orações indiretas.

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superior da palavra, mas seria comparável antes a um desenho anatômico numa obra científica.

O lógico não tem de se preocupar com pensamentos aparentes, tanto quanto um físico que investiga raios não prestará nenhuma atenção a raios-de-palco. Quando nós falarmos de pensamento no que se segue, nós significamos pensamentos propriamente, pensamentos que podem ser ou verdadeiros ou falsos.

O sentido de uma frase assertiva eu denomino um pensamento. Exemplos de pensamentos são as leis da natureza, as leis matemáticas, os fatos históricos: todos esses encontram expressão em frases assertivas. Eu agora posso ser mais preciso e dizer: o predicado “verdadeiro” aplica-se a pensamentos.

Obviamente fala-se de representações verdadeiras também. Por uma representação entende-se uma imagem da fantasia (Phantasiebild) que, diferente da percepção (Anschauung), não se baseia em impressões atuais, mas na reativação de traços de impressões e ações passadas. Como qualquer imagem, uma representação não é verdadeira nela mesma, mas apenas em relação a algo a que ela deve corresponder. Se se diz que uma imagem deve representar a catedral de Colonia a distância, pode-se perguntar se esta intenção foi realizada; se não há nenhuma referência à intenção de representar algo, não pode haver questão da verdade de uma imagem. Pode-se ver a partir disso que o predicado verdadeiro não é aplicado realmente à própria representação, mas ao pensamento de que ela [43] representa um certo objeto. E esse pensamento não é uma representação, nem é constituído de representações de modo algum. Pensamentos são fundamentalmente diferentes de representações (no sentido psicológico). A representação de uma rosa vermelha é algo diferente do pensamento de que esta rosa é vermelha. Nós podemos associar representações e misturá-las, mas com isso apenas alcançamos novas representações e não algo que possa ser verdadeiro. Esta diferença aparece também nos modos que nós temos de comunicar. O meio próprio para a expressão de um pensamento é uma frase. Mas uma frase é dificilmente apropriada como veículo para comunicar uma representação. Eu apenas relembro o quão inadequado é qualquer descrição comparada com uma apresentação imagéticas (bildlichen Darstellung). Um pouco mais favorável são as coisas nas representações sonoras; onde a onomatopeia pode ajudar; porém a onomatopeia não tem nada a ver com a expressão de pensamentos

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(Gedankenausdrucke), e numa tradução são facilmente perdidas essas tonalidades, enquanto o pensamento deve ser preservado para propriamente poder se falar em tradução. Inversamente, imagens e composições musicais sem o acompanhamento de palavras são dificilmente adequadas para expressar pensamentos. É verdade que nós podemos associar todo tipo de pensamentos com alguma obra de arte ou outra, mas não há nenhuma conexão necessária entre ambos, e nós não ficamos surpresos se outro associa diferentes pensamentos com ela.

Para esclarecer a peculiaridade do predicado verdadeiro, compare-se com o predicado belo. Nós podemos ver, para começar, que o que é belo admite graus, mas o que é verdadeiro não. Nós podemos imaginar dois objetos belos, e ainda pensar um mais belo do que o outro. Ao contrário, se dois pensamentos são verdadeiros, um não é mais verdadeiro do que o outro. E aqui emerge a diferença essencial de que o que é verdadeiro é verdadeiro independente de nosso reconhecimento, mas o que é belo é belo apenas para [44] aquele que o experimenta como tal. O que é belo para uma pessoa não é necessariamente belo para outra. Não há disputa de gosto. Onde a verdade está em questão, existe a possibilidade de erro, mas não onde está a beleza. Pelo simples fato de que eu considero algo belo ele é belo para mim. Mas, algo não tem de ser verdadeiro porque eu o considero verdadeiro, e se não é verdadeiro por si mesmo, também não é verdadeiro para mim. Nada é belo em si mesmo; é belo somente para algum ser que o experimenta e isto está implícito em qualquer juízo estético. Agora, esses julgamentos são feitos de tal modo a parecerem levantar pretensões de objetividade (Anspruch auf Objektivität). Nisso subjaz sempre, consciente ou inconsciente, a suposição de um homem normal, e cada um pensa-se involuntariamente como o mais próximo ao homem normal a ponto de crer que pode falar em seu nome. “Esta rosa é bela” deve então significar: para um homem normal esta rosa é bela. Mas, o que é normal? Isso depende inteiramente do círculo humano que se tem em consideração. Se em um longínquo vale nas montanhas quase todos os homens tivessem papo, então lá isso seria normal, e quem não tivesse esse adorno seria considerado feio. Como um negro do interior da Africa poderia ser dissuadido de que o nariz fino dos europeus é feio, e ao contrário de que o nariz largo dos negros é bonito? E um negro enquanto negro não pode ser tão normal quanto um homem branco enquanto homem branco? Uma criança não pode ser do mesmo

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modo normal como um adulto? As representações que surgem por associação tem grande influência nos juízos sobre a beleza, e elas dependem do que uma pessoa anteriormente experimentou. Isso porém é sempre diferente em diferentes homens. Mesmo que se quisesse definir o homem normal e com isso o belo objetivo, isso obviamente deveria sempre acontecer com base no belo subjetivo. Este não seria posto de lado desse modo, mas reconhecido como originário. Se no lugar do homem normal se quisesse colocar o homem ideal, não se poderia alterar a situação. Sem sensações e representações não se daria em nenhum caso um belo subjetivo e [45] portanto também não um objetivo. Portanto tem muito para si a visão de que a real obra de arte é uma configuração de representações (Vorstellungsgebilde) em nós, e que a coisa externa – a pintura, a estátua – apenas é um meio para produzir em nós a real obra de arte. Cada fruidor tem, por isso, a sua própria obra de arte, de tal modo que não se dá nenhuma contradição entre diferentes juízos de beleza. Logo: de gustibus non disputandum!

Se alguém tentasse contradizer o enunciado de que o que é verdadeiro é verdadeiro independente de nós, iria por sua própria asserção contradizer o que ele asseriu, de modo análogo, como um cretense que diz que todo cretense mente.

Se, com efeito, algo fosse verdadeiro apenas para aquele que o toma por verdadeiro, então não haveria nenhuma contradição entre opiniões (Meinung) de diferentes pessoas. Qualquer um que tivesse essa opinião não poderia consistentemente contradizer as opiniões opostas, ele deveria assumir o princípio: non disputandum est. Ele na verdade não poderia asserir nada no sentido habitual, e se ele agisse de acordo com a forma, isso obviamente teria apenas o valor de uma interjeição; ou seja, de expressão de um processo ou estado mentais, os quais não poderiam estar em contradição com os processos e estados mentais de uma outra pessoa. E a sua asserção, de que algo é verdadeiro apenas pelo nosso reconhecimento e para nós, teria esse valor também. Se esta opinião fosse verdadeira, então seria insustentável a pretensão de que as próprias opiniões teriam mais justificação para os outros do que as opostas. Uma opinião que levantasse essa pretensão seria injustificável; isso, porém, significaria que toda opinião no sentido habitual da palavra seria injustificável, portanto também aquelas pelas quais nós disputamos; não haveria nenhuma ciência, não haveria nenhum erro, nenhuma correção de erros; não haveria nada verdadeiro

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no sentido habitual da palavra. Com isso está conectada aquela independência enfatizada de modo tão estreito que elas não podem ser separadas. Se alguém defende seriamente e sinceramente a opinião aqui atacada, então não restaria senão assumir que ele associa à palavra “verdadeiro” um outro sentido.

Nós podemos ir mais além. Para serem verdadeiros, os pensamentos – por exemplo, leis da natureza – não apenas não necessitam ser reconhecidos por nós como verdadeiros: eles nem precisam ser pensados por nós. Uma lei da natureza não é inventada por nós, mas descoberta, e assim como uma ilha deserta no oceano ártico estava lá antes de alguém por os olhos nela, assim também as leis da natureza, e do mesmo modo as da matemática, valeram em todos os tempos e não apenas desde que elas foram descobertas. Isto nos mostra que esses pensamentos, se verdadeiros, não são verdadeiros apenas independente de nosso reconhecimento de sua verdade, mas que eles são independentes de nosso pensar. Um pensamento não pertence particularmente à pessoa que o pensa, como sim pertence uma representação a quem a tem: qualquer um que o apreende o encontra do mesmo modo, como o mesmo pensamento. Do contrário, duas pessoas nunca atribuiriam o mesmo pensamento à mesma frase, mas cada uma iria ter seu próprio pensamento; e se, por exemplo, uma colocasse 2 . 2 = 4 como verdadeiro enquanto outra o negasse, não haveria contradição, pois o que foi asserido por um seria diferente do que foi negado pelo outro. Seria impossível para as asserções de diferentes pessoas contradizerem-se, pois uma contradição ocorre apenas quando é o mesmo pensamento que uma pessoa assere como verdadeiro e a outra como falso. Assim uma disputa acerca da verdade de algo seria vã. Faltaria precisamente a arena comum (gemainsame Kampfplatz); cada pensamento estaria enclausurado em seu próprio mundo interior (Innenwelt) e uma contradição entre pensamentos de diferentes pessoas seria como uma guerra entre nós e os habitantes de Marte. Nem poderíamos dizer que uma pessoa poderia comunicar seus pensamentos para outra e um conflito então surgiria no mundo interno desta última. Um pensamento não poderia ser comunicado, pois teria de passar do mundo interno de uma pessoa para o da outra; mas, [47] o pensamento que chegaria a mente dessa última como resultado da comunicação seria diferente do pensamento da primeira; e a mais sutil diferença pode transformar uma verdade em uma falsidade. Se se quisesse ver o

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pensamento como algo psicológico, como uma configuração de representações, sem contudo permanecer num ponto de vista inteiramente subjetivo, então se deveria explanar a asserção de que 2 + 3 = 5 talvez assim: “Observou-se que em muitas pessoas ocorrem configurações de representações associadas com a frase “2 + 3 = 5”. Nós denominamos uma formação desse tipo de sentido da frase “2 + 3 = 5”. Até onde se observou até agora estas formações são sempre verdadeiras; de modo que nós podemos dizer provisoriamente: “Pelas observações feitas até aqui o sentido da frase “2 + 3 = 5” é verdadeiro”'. Porém, claramente essa explanação seria inteiramente falha. E não se sairia desse modo do lugar, pois o sentido da frase: “Observou-se que em muitas pessoas ocorrem configurações de representações, etc..” seria também agora uma configuração de representações e a coisa toda recomeçaria outra vez. Uma sopa que bem apraz alguém pode a outro ser detestável. Nisso cada um julga sobre sua própria impressão de gosto, que é diferente da dos outros. Assim seria também para o pensamento, se ele se relacionasse com a frase de modo análogo como as impressões de gosto relacionam-se com os estímulos químicos que as excitam.

Se o pensamento fosse algo interno, mental, como a representação, então a sua verdade obviamente apenas poderia estar em uma relação com algo, o que não seria interno, mental. Se se quisesse saber se um pensamento seria verdadeiro, então se deveria perguntar se esta relação ocorre e, com isso, se o pensamento de que esta relação ocorre seria verdadeiro. E assim nós estaríamos na situação de um homem na roda de moinho1. Ele dá um passo à frente e para cima; mas o degrau em que ele está sempre desce e ele retorna à posição anterior.

O pensamento é algo impessoal. Se nós vemos a frase “2 + 3 = 5” escrita numa parede, nós reconhecemos ali o pensamento expresso completamente, [48] e para a compreensão é completamente indiferente saber quem a escreveu.

Uma frase como “Eu estou com frio” parece ser um contra-exemplo de nossa tese de que um pensamento é independente da pessoa e do pensar, na medida em que ela pode ser verdadeira para uma pessoa e falsa para outra, e portanto não ser verdadeira em si mesma. A razão disso é que a frase expressa um pensamento diferente na boca de uma

1 N. do T.: A expressão de Frege é “Tretmühle”, a qual designa um tipo especial de moinho, movido por uma ou mais pessoas que “sobem” a roda como numa escada.

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pessoa do que ela expressa na de outra. Nesse caso as meras palavras não contêm o inteiro sentido: nós temos que levar em consideração adicionalmente a pessoa que a profere. Há muitos casos como esse em que as palavras faladas tem de ser complementadas por gestos e expressões do falante, e pelas circunstâncias concomitantes. A palavra “eu” simplesmente designa uma pessoa diferente na boca de diferentes pessoas. Não é necessário que a pessoa que sente frio expresse ela mesma o pensamento que ela sente frio. Outra pessoa pode fazer isso usando um nome para designar aquela que sente frio.

Desse modo um pensamento pode ser vestido numa frase que é mais adequada para o seu ser independente da pessoa que o pensa. A possibilidade de se fazer isso distingue-o de um estado mental expresso por uma interjeição. Palavras como “aqui” e “agora” apenas adquirem o seu sentido completo através das circunstâncias nas quais elas são usadas. Se alguém diz “Está chovendo”, o tempo e o local do proferimento tem de ser indicados. Se esta frase for escrita ela não mais tem um sentido completo, porque não há nada para indicar quem a proferiu, e onde e quando. Como a respeito de uma frase contendo um juízo de gosto como “Esta rosa é bela”, a identidade do falante é essencial para o sentido, mesmo quando a palavra “eu” não ocorra nela. Assim, a explanação para todas essas aparentes exceções é que a mesma frase nem sempre expressa o mesmo pensamento, porque as palavras necessitam de complementação para adquirir um sentido completo, e o modo como isso é feito varia de acordo com as circunstâncias.

Enquanto as representações (no sentido psicológico da palavra) são sem limites definidos e variáveis como Proteus, assumem diferentes formas, os pensamentos sempre permanecem os mesmos. Eles são em sua natureza (Wesen) atemporais e a-espaciais. [49] No pensamento de que 3 + 4 = 7, nas leis da natureza isso quase não tem necessidade de uma justificação. Se, por exemplo, fosse estabelecido que a lei da gravidade a partir de um certo momento não mais fosse verdadeira, então nós concluiríamos que ela simplesmente não era verdadeira, e nos preocuparíamos em descobrir uma nova lei, que se diferenciaria por conter uma condição que seria satisfeita (erfüllt) em um tempo e noutro não. O mesmo se dá com o lugar: se fosse mostrado que a lei da gravidade não valesse na região de Sirius, então nós iríamos procurar uma outra lei, com uma condição, que seria satisfeita em nosso sistema

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solar, mas não na região de Sirius. Se se quisesse citar como exemplo contra a atemporalidade do pensamento, talvez, “O número total de habitantes do Império Germânico é 52 000 000”, eu responderia: esta frase na verdade não é uma expressão completa de um pensamento, pois falta a determinação do tempo. Acrescente-se isso, por exemplo, “ao meio-dia de 1 de janeiro de 1897 no horário da Europa central”, então o pensamento é ou verdadeiro e então o seria sempre –, ou melhor, atemporalmente verdadeiro, ou ele seria falso e então ele o seria simplesmente. Isso vale para qualquer fato histórico particular: se ele é verdadeiro, é verdadeiro independente do tempo em que ele foi julgado verdadeiro. Não é nenhuma objeção que uma frase possa adquirir um sentido diferente no curso do tempo; pois o que muda nesses casos é obviamente a linguagem, não o pensamento. Em outra linguagem essa mudança não necessita ocorrer. É verdade, óbvio, que nós falamos que os pensamentos humanos são passíveis de mudança. Contudo, não são os pensamentos que são verdadeiros num tempo e noutro falsos: é que eles são tomados como verdadeiros num tempo e como falsos noutro.

E se fosse objetado a mim que eu associo à palavra “pensamento” um sentido não habitual, que ao contrário se entende por ela um ato do pensar, que claramente é interno e mental? Então, primeiro trata-se de saber se eu mantenho-me fiel ao meu modo de uso; se ele concorda com o uso habitual é de pouca importância. Pode bem acontecer que às vezes se compreenda com a palavra “pensamento” um

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ato de pensar, mas em todo caso [50] nem sempre esse é o caso* e um tal ato não pode ser verdadeiro.

[51] Como em outras ciências também em lógica é permitido cunhar expressões técnicas, sem se preocupar se na linguagem da vida (Sprache des Lebens) as palavras sempre são usadas desse modo. Na fixação do significado não importa se se adeque ao uso linguístico ou se a derivação é justificada, mas sim tornar a palavra o mais adequada possível para expressar leis. Mas, quanto mais adequado é um conjunto de expressões técnicas, tanto mais breve permite reproduzir precisamente o inteiro sistema de leis.

Agora, nós não podemos conceber o pensar como um produzir o pensamento. Tampouco o pensamento é um ato de pensar, como se o pensamento se relacionasse com o pensar tal como o salto com o saltar. E essa concepção está em consonância com muitos dos nossos modos de falar. Pois não se diz que o mesmo pensamento é apreendido por esta e por aquela outra, que cada pessoa pensa o mesmo pensamento de novo? Agora, se o pensamento surge apenas por meio do pensar ou

* O Sr. Dedekind emprega essa palavra, como eu o faço, na sentença 66 de seu escrito Was sind und was sollen die Zahlen? Ele quer provar ali que a totalidade de todas as coisas, que podem ser objeto de seu pensar, é infinita. Seja s um tal objeto; então os Sr. D. Denomina φ(s) o pensamento de que s pode ser objeto de seu pensar. E esse pensamento φ(s) pode agora ele mesmo ser objeto de seu pensar. Pelo que φ(φ(s)) é o pensamento de que o pensamento de que s pode ser objeto de seu pensar. Percebe-se disso o que φ(φ(φ(s))), φ(φ(φ(φ(s)))), etc., devem significar. Para a prova é essencial que a frase “s pode ser objeto do pensar do Sr. Dedekind” sempre expresse um pensamento, para que a letra “s” designe um tal objeto. Agora, se, como o Sr. D. quer provar, há infinitamente muitos de tais objetos s, então deve haver também infinitamente muitos pensamentos φ(s). Agora bem, não se espezinharia muito o Sr. D. com a suposição de que ele não pensou infinitamente muitos pensamentos. Tampouco ele pode pressupor que outros já pensaram infinitamente muitos pensamentos que poderiam ser objetos de seu pensar; pois assim ele iria pressupor o que tem de ser provado. Agora, se infinitamente muitos pensamentos ainda não foram pensados, então entre aqueles infinitamente muitos pensamentos φ(s) deve haver infinitamente muitos que não foram pensados, assim que o ser pensado não seria essencial para os pensamentos. E isto é precisamente o que eu afirmo. Houvesse apenas os pensamentos pensados, então o sinal “φ(s)” nem sempre teria um significado; e, para assegurar um para ele, não seria suficiente que “s” significasse algo que pudesse ser objeto do pensar do Sr. D., mas para que ele o fosse, ele deveria também ter sido pensado. Não fosse esse o caso, então o sinal “φ(s)” correlato a “s” não teria nenhum significado. O sol (☺) pode ser objeto do pensar do Sr. D.; com isso teriam um significado os primeiros dois membros e talvez ainda os seguintes da série “☺”, “φ(☺)”, “φ(φ(☺))”, …; mas ao progredir nessa série se alcançaria sempre um membro que seria sem significado, pois o pensamento, que ele deveria designar, não foi pensado, logo não estaria disponível. “φ(s)” seria então semelhante a uma série potencial que não converge para todo valor do argumento. O divergir da série corresponde ao ser sem significado do sinal “φ(s)”. Assumamos uma série potencial convergente entre 0 e 4, mas divergente para valores de argumento maiores do que 4; assumamos ainda que a série para o argumento 1 tem o valor 2, para o argumento 2 o valor 5, então a série correspondente de números 1, 2, 5 termina nesse ponto e não progride ao infinito. Do mesmo modo a série ☺, φ(☺), φ(φ(☺)), …, não progride ao infinito, se houvesse apenas pensamentos pensados. Além disso, a cogência da prova do Sr. D. repousa sobre a pressuposição de que os pensamentos ocorrem independentemente de nosso pensar. Vê-se como este modo de emprego da palavra “pensamento” por si mesmo se impõe naturalmente.

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consiste no pensar, então o mesmo pensamento poderia surgir, desaparecer e voltar a surgir, o que é um disparate. Como eu não crio a árvore pelo fato de eu a ver, e como [52] eu não faço surgir um lápis pelo fato de eu o agarrar, assim eu também não produzo o pensamento pelo pensar. E menos ainda o cérebro segrega pensamentos, como o fígado a bílis.

As analogias que embasam as expressões que nós usamos ao falar de apreensão de um pensamento, de conceber, captar, apreender, de capere, percipere, comprehendere, intelligere, repõem a situação do assunto corretamente. O concebido, o apreendido já está lá ( ist schon da) e apenas se toma a sua posse. Do mesmo modo, o que se vê em ou se retira de uma mistura já está lá e não vem a existência como resultado dessas atividades. Seguramente toda analogia falha em algum lugar. Nós estamos acostumados a ver o que é independente de nossa vida mental como algo espacial, material, e as palavras listadas fazem o pensamento assim parecer. Mas não é aí que se pode ver o ponto da analogia. O que é independente de nossa vida mental, o que é objetivo (das Objektive), não precisa ser espacial, material, efetivo. Se não se considera isso, facilmente se cai numa espécie de mitologia. Quando se diz: “As leis da gravidade, da inércia, do paralelogramo das forças causam (bewirken) que a terra se mova como ela se move”, poderia parecer que estas leis, por assim dizer, a pegam pelas orelhas e a mantém no caminho prescrito. Um tal uso das palavras “atuar” e “causar” seria equivocado. Ao contrário, pode-se bem dizer que o Sol e os planetas atuam uns sobre outros de acordo com as leis da gravitação.

Portanto, mesmo que quanto à independência de minha vida interna haja uma semelhança entre os corpos físicos e os pensamentos, disso não se pode concluir que os pensamentos podem ser movidos como os corpos, cheirados ou degustados, e seria falho procurar de algum modo retirar do disparate dessa inferência uma objeção contra nossa doutrina. Embora uma lei da natureza ocorra inteiramente independente de se nós nela pensamos ou não, obviamente ela não emite nenhuma luz [53] ou ondas sonoras que pudessem excitar nossos nervos oculares ou auditivos. Mas, então eu não vejo que esta flor tem cinco pétalas? Pode-se dizer isso, mas então não se emprega a palavra “ver” no sentido do simples sentir a luz, mas se quer dizer com ela associar um pensamento e julgar. Também Newton não descobriu a lei da gravidade por suas mais perfeitas impressões sensoriais.

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Se se quiser falar da efetividade (Wirklichkeit) de um pensamento, então apenas se pode fazê-lo no sentido de que o conhecimento que alguém tem de, p. ex., uma lei da natureza, influi (einwirkt) nas suas decisões, as quais por sua vez tem consequência no movimento das massas. Isso seria como se o efeito (Wirkung) do reconhecimento de uma lei sobre o conhecedor, o que talvez seja possível, assim como se pode considerar o ver uma flor como um efeito (Wirkung) mediado da flor sobre aquele que vê.

Os humanos podem não fazer caso dos pensamentos ou podem dominá-los. Este último pode ser concebido como um atuar (Wirken) dos humanos sobre os pensamentos, o que parece falar contra a sua atemporalidade (Zeitlosikeit). Mas, desse modo não se efetua uma modificação essencial no pensamento, assim como a lua parece não ser afetada por ser ou não considerada. Assim, se é possível falar da ação (Wirkung) dos pensamentos sobre os humanos, não se pode falar de uma ação dos humanos sobre os pensamentos. Pode-se mencionar como exemplo de mudança dos pensamentos o fato de que eles não sempre claros. Mas, o que se denomina claridade dos pensamentos, no nosso sentido dessa palavra, é propriamente a completude de sua assimilação e apreensão, não uma propriedade do pensamento.

Seria errado pensar que apenas os pensamentos verdadeiros são obtidos independentes de nossa vida mental, e que os falsos, por outro lado, pertenceriam, assim como as representações, à nossa vida interior. Quase tudo o que nós dissemos sobre o predicado verdadeiro vale para o predicado falso também. Em sentido estrito ele aplica-se apenas a pensamentos. Quando [54] ele parece ser predicado de frases e representações, ainda assim no fundo ele está sendo predicado de pensamentos. O que é falso, é falso em si mesmo e independentemente de nossas opiniões. Uma disputa sobre a falsidade é igualmente sempre uma disputa sobre a verdade de algo. Aquilo cuja falsidade pode ser disputado, não pertence portanto à mente individual.

Separando um pensamento de seus invólucrosEm uma frase assertiva dois tipos de coisas diferentes estão

intimamente ligados um com o outro: o pensamento (Gedanke) expresso e a asserção (Behauptung) de sua verdade (Wahrheit). E é por isso que seguidamente eles não são claramente distinguidos. Contudo, pode-se expressar um pensamento sem ao mesmo tempo apresentá-lo

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como verdadeiro. Um cientista que faz uma descoberta científica normalmente começa por apreender apenas um pensamento, e então se pergunta se ele tem de ser reconhecido como verdadeiro; somente após suas investigações se mostrarem a favor de sua hipótese é que ele se arrisca a apresentá-lo como verdadeiro. Nós expressamos o mesmo pensamento na pergunta “O oxigênio é condensável?” e na frase “Oxigênio é condensável.”, conectando-o num caso com um pedido e no outro com uma asserção.

Se nós reconhecemos internamente um pensamento como verdadeiro, então nós julgamos: se nós manifestamos este reconhecimento, nós asserimos.

Nós podemos pensar sem julgar.Nós vimos que as sequências de sons de uma frase seguidamente

não são suficientes para expressar completamente um pensamento. Quando nós queremos apreender a natureza (Wesen) de um pensamento de modo preciso não devemos esquecer o fato de que o caso contrário não é raro, em que a frase faz mais do que expressar um pensamento e asserir sua verdade. Em muitos casos ela deve atuar também sobre as representações e os sentimentos do ouvinte; e isto tanto quanto mais ela aproxima-se da linguagem da poesia. Nós insistimos no fato de que a linguagem é pouco apropriada para voluntariamente provocar uma representação [55] no ouvinte de modo exato. Quem iria confiar em palavras para evocar na mente de outro uma imagem de Apolo tão precisamente quanto se pode produzir sem dificuldades pela percepção de uma obra de arte? Mas, mesmo assim nós dizemos que os poetas pintam. E de fato não se pode negar que as palavras ouvidas afetam as representações na medida em que entram na consciência como um todo de sensações auditivas. Nós experimentamos já a sequência de sons, o tom da voz, a entonação e ritmo, com sentimentos de prazer e desprazer. A estas sensações auditivas conectam-se representações auditivas análogas e por sua vez essas estão ligadas com outras representações por meio delas reativadas. Este é o domínio da onomatopeia. Pode-se comparar para isso os versos homéricos (Odisséia IX, 71: tricqa/ kai tetracqa diescisen ij anemoio.)

Isto não é completamente independente do propósito das palavras, expressarem pensamentos. Aqui os sons agem somente como estímulo sensorial. Porém, porque a sua sequência deve ter um sentido (Sinn), eles atuam sobre a representação de um modo diferente.

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Qualquer um que ouve a palavra “cavalo” com entendimento provavelmente irá se representar na mente uma imagem (Bild) de cavalo. Esta imagem, porém, não deve ser confundida com o sentido da palavra “cavalo”; pois a palavra “cavalo” não fornece nenhuma indicação da cor do cavalo, ou sobre seu porte em movimento ou parado, ou sobre o lado do qual ele é visto, etc.. Se diferentes pessoas fossem capazes, seja, de imediatamente projetarem numa tela as suas representações provocadas pela palavra “cavalo”, diferentes imagens seriam apresentadas. E até mesmo para a mesma pessoa a palavra “cavalo” nem sempre evoca a mesma representação. Muito aqui provém do contexto. Pode-se comparar, por exemplo, as frases “com que destreza ele monta seu garboso cavalo” e “acabo de ver um cavalo cair no asfalto molhado”.

Portanto, não se pode falar de que à palavra “cavalo” sempre esteja associada a mesma representação. Em virtude de seu sentido, essa palavra irá [56] evocar uma certa representação; porém, está longe de por ela mesma determinar completamente esta representação. Em geral, pode-se apenas pressupor que o falante e o ouvinte concordam em traços largos nas representações. Se diferentes artistas produzem, independentes um do outro, ilustrações do mesmo poema, eles irão divergir consideravelmente na apresentação dos mesmos acontecimentos. O poeta, portanto, realmente não pinta nada: ele apenas provê o ímpeto para os outros fazerem, fornecendo indicações (Winke) para isso, e deixa para o ouvinte dar às suas palavras corpo e forma. E para essas indicações é útil para o poeta dispor de um número de palavras diferentes que podem ser substituídas umas pela outras sem alterar o pensamento, mas que podem atuar de modo diferente sobre o sentimento e a representação do ouvinte. Pense-se, p. ex., nas palavras “andar”, “caminhar” e “passear”. Mesmo na linguagem coloquial estes meios são usados para estes fins. Se comparamos as frases “Este cachorro latiu a noite inteira” e “Este cão latiu a noite inteira”, nós achamos que o pensamento é o mesmo. Nós experimentamos com a primeira frase nada mais e nada menos do que com a segunda. Porém, enquanto que a palavra “cachorro” (Hund) é neutra quanto a associações prazerosas ou desprazerosas, a palavra “cão” (Köter) certamente tem mais associações desprazerosas do que prazerosas e

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evoca na mente antes um cachorro com uma aparência descuidada.1 Mesmo que isso seja um tanto inadequado em relação a ele, isto não torna a segunda frase falsa. Claramente quem profere esta frase fala pejorativamente, mas isto não é parte do pensamento expresso. O que distingue a segunda frase da primeira é da natureza de uma interjeição. Poder-se-ia objetar que a segunda frase ainda assim diz mais do que a primeira, a saber, que o falante tem uma opinião pejorativa sobre o cachorro. Neste caso a palavra “cão” conteria um pensamento completo. Nós podemos testar isso do seguinte modo.

Admita-se o caso em que a primeira frase é correta e a segunda seja proferida por alguém que não tem a opinião [57] que a palavra “cão” parece implicar. Se a objeção fosse correta, a segunda frase iria agora conter dois pensamentos, um dos quais seria falso; portanto, ela iria asserir algo falso como um todo, enquanto a primeira frase seria verdadeira. Nós dificilmente poderíamos prosseguir com isso; ao contrário, a palavra “cão” não nos impede de tomar a segunda frase também como verdadeira. Pois, deve-se fazer uma distinção entre os pensamentos expressos e aqueles que o falante induz os outros a tomarem como verdadeiros embora ele não os expresse. Se um comandante oculta a sua inferioridade para o inimigo fazendo com que suas tropas troquem de uniforme, ele não está mentindo; pois ele não está expressando nenhum pensamento, embora suas ações sejam calculadas para induzir pensamentos nos outros. Estas ações (Handlung) nós encontramos também na fala, como quando alguém dá um tom especial para a voz ou escolhe palavras especiais. Se alguém anuncia a notícia de uma morte com um tom triste, sem realmente estar triste, o pensamento expresso ainda assim é verdadeiro, mesmo se o tom triste seja assumido com o propósito de criar uma falsa impressão. Este tom de voz pode ser substituído por palavras como “Ah” e “Infelizmente”, sem alterar o pensamento. As coisas são diferentes naturalmente quando certas ações são especificamente convencionadas como meios de comunicar algo. Na linguagem o uso comum faz as vezes de tais convenções. Obviamente casos anômalos podem ocorrer tendo em vista a transformação da linguagem. Algo que não era originalmente empregado como um meio de expressar um pensamento

1 N. do T.: note-se que esse tipo de contraposição não ocorre no vernáculo; para fazer isso nós usamos uma frase descritiva, “vira-lata”, por exemplo, e não um nome comum como é caso na língua de Frege.

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pode eventualmente vir a ser por causa de ser constantemente usado em casos do mesmo tipo. Um pensamento que antes era apenas sugerido por uma expressão pode mais tarde vir a ser explicitamente asserido por ela. E num período de transformação diferentes compreensões podem ser possíveis. Porém, por meio dessas mudanças da linguagem a distinção mesma não é superada. Para nós o que importa aqui é que nem toda diferença linguística corresponde a uma diferença de pensamento, e que nós temos um meio de distinguir o que pertence e o [58] que não ao pensamento, mesmo que a constante transformação da linguagem possa tornar difícil a sua aplicação.

A distinção entre a voz ativa e passiva pertence a isso também. As frases “M deu o documento A para N”, “O documento A foi dado para N por M”, “N recebeu o documento A de M” expressam exatamente o mesmo pensamento; nós não experimentamos nada mais nada menos com uma dessas frases do que com outra. Por isso, é impossível que uma delas seja verdadeira enquanto as outras falsas. O que pode ser verdadeiro ou falso aí, é exatamente o mesmo. Contudo isso, porém, não se pode dizer que é completamente indiferente quais dessas frases usar. De regra, razões estilísticas e estéticas irão determinar a escolha entre uma e outra. Se alguém pergunta “Por que A foi preso?”, seria não natural dizer “B foi assassinado por ele”, pois isso iria requerer uma desnecessária inversão da atenção de A para B. Pode ser muito importante para onde a atenção é dirigida e onde recai a ênfase, mas isso não concerne à lógica.

Na tradução de uma linguagem para outra às vezes se é forçado a atropelar completamente a construção gramatical. Todavia, isto não afeta o pensamento e este deve ser o mesmo, se a tradução deve ser correta. Mas, às vezes é necessário sacrificar as indicações para o representar e a tonalidade.

Também nas duas frases “Frederico o grande venceu a batalha de Rossbach” e “É verdade que Frederico o grande venceu a batalha de Rossbach”, nós temos, como foi dito antes, o mesmo pensamento em diferentes formas verbais. Ao asserir o pensamento na primeira frase nós também asserimos o pensamento na segunda, e vice-versa. Não há dois atos de julgamento, mas apenas um.

(Por tudo isso, vê-se que as categorias gramaticais de sujeito e predicado não podem ter significado para a lógica.)

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[59] A distinção entre o que numa frase pertence ao pensamento expresso, e o que ela apenas sugere, é de grande importância para a lógica. A pureza daquilo que se investiga não é importante apenas para o químico. Como ele seria capaz de reconhecer, sem nenhuma dúvida, que ele alcançou por diferentes caminhos o mesmo resultado, se a aparente diferença de meios pudesse ser remontada às impurezas na substância usada? As primeiras e mais importantes descobertas de uma ciência são muito seguidamente reconhecimentos. Quão auto-evidente possa parecer para nós que é o mesmo sol que ontem se pôs e hoje nasceu, e quão insignificante possa parecer por isso essa descoberta, ainda assim ela certamente é uma das mais importantes e talvez seja a fundadora da astronomia. Foi importante reconhecer que a estrela da manhã era a mesma estrela da tarde, que três vezes cinco é o mesmo que cinco vezes três. Do mesmo modo importa não distinguir o que é o mesmo, como reconhecer diferenças ali onde elas não se dão à vista. Portanto é errado pensar que não se podem fazer distinções mais do que o suficiente. Não é apenas prejudicial insistir em distinções ali onde elas não são relevantes. Assim, em mecânica geral deve-se evitar falar das diferenças químicas entre substâncias e estabelecer particularmente para cada elemento químico a lei de inércia. Deve-se antes ter em consideração apenas aquelas diferenças que são essenciais para a regularidade com a qual se está lidando. Menos ainda deve-se deixar induzir por impurezas estranhas e ver diferenças onde não há nenhuma.

Em lógica nós devemos rejeitar todas as distinções que são feitas a partir apenas de um ponto de vista psicológico. O que é referido como um aprofundamento da lógica pela psicologia é apenas a sua falsificação pela psicologia.

Nos humanos originariamente o pensar está misturado com o imaginar e o sentir. A lógica tem a tarefa de isolar o que é lógico, não, [60] seguramente, de tal modo que nós deveríamos pensar sem representar, o que é sem dúvida impossível, mas para que nós possamos conscientemente distinguir o lógico do que está associado a ele como representações e sentimentos. Há uma dificuldade aqui no fato de que nós pensamos em alguma linguagem ou outra e que a gramática, que tem um significado para a linguagem análogo ao que a lógica tem para o juízo, é uma mistura do lógico com o psicológico. Se não fosse assim, todas as linguagens teriam necessariamente a mesma gramática. É verdade que nós podemos expressar o mesmo pensamento em

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diferentes linguagens; mas os adereços psicológicos, a roupagem do pensamento, serão em geral diferentes. Por isso é que o aprendizado de línguas estrangeiras é útil para a educação lógica. Ao ver que o mesmo pensamento pode ser dito de modos diferentes, nós aprendemos melhor a distinguir a casca verbal da semente com que, em qualquer linguagem, ela aparece organicamente associada. Assim é que as diferenças entre as linguagens pode facilitar a nossa apreensão do que é lógico. Ainda assim as dificuldades não são completamente removidas, e nossos livros de lógica ainda permanecem enroscando-se em várias coisas – sujeito e predicado, por exemplo – que, estritamente falando, não pertencem à lógica. Por esta razão é útil estar familiarizado também com formas de expressar pensamentos que são de uma natureza radicalmente diferente, tal como nós temos na linguagem de fórmulas da aritmética ou em minha conceitografia.

A primeira e mais importante tarefa é apresentar puro o objeto de pesquisa. Apenas assim se é capaz de realizar os reconhecimentos, que também na lógica provavelmente são as descobertas fundantes. Portanto, não nos esqueçamos jamais que duas frases diferentes podem expressar o mesmo pensamento, que do conteúdo da frase apenas nos importa o que pode ser verdadeiro ou falso.

Estivesse contido na forma passiva apenas um vestígio a mais no pensamento do que na ativa, então seria pensável que esse vestígio seria falso enquanto o pensamento na forma ativa fosse verdadeiro, e portanto não se poderia passar da forma ativa para a passiva sem mais. Do mesmo modo: se na forma ativa [61] estivesse contido apenas um vestígio a mais do que na forma passiva, então não se poderia sem exame passar da forma passiva para a ativa. Porém, se ambas as passagens sempre são possíveis sem prejuízo da verdade, então isto é uma confirmação de que o que era verdade ali, a saber, o pensamento, não é perturbado por essa mudança de forma. Isto serve como advertência para não se dar tanto peso às distinções linguísticas, como os lógicos costumam fazer: um caso exemplar é a suposição de que todo pensamento – ou juízo como é usualmente chamado – tem um sujeito e um predicado, de tal modo que o sujeito e o predicado de um pensamento estariam determinados pelo pensamento, tal como o sujeito e o predicado de uma frase são de modo inequívoco dados com a frase. Se nós fazemos essa suposição, nos envolvemos em dificuldades desnecessárias, e, atracados em lutas vãs com elas, nós apenas

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aumentamos a impressão de que a ciência da lógica é realmente supérflua.

Nós devemos evitar as expressões “sujeito” e “predicado”, tão apreciadas pelos lógicos, especialmente porque elas não apenas tornam mais difícil o reconhecimento do mesmo como o mesmo, mas porque apagam diferenças existentes. Em vez de seguir a gramática cegamente, o lógico deveria antes ver sua tarefa como a de nos livrar das cadeias da linguagem (uns von den Fesseln der Sprache zu befreien). Pois, por mais que nós devamos reconhecer que é a linguagem apenas que torna possível o pensar, ao menos nas suas formas superiores, ainda assim nós devemos tomar cuidado para não se tornar dependente da linguagem; pois muitos erros que ocorrem no raciocínio tem sua fonte nas imperfeições da linguagem. Obviamente que se se vê a tarefa da lógica como a de descrever como os humanos realmente pensam, então se deveria dar uma grande importância à linguagem. Mas então o nome lógica seria usado para o que realmente é apenas um ramo da psicologia. Isto seria como se alguém imaginasse que se está a fazer astronomia quando se desenvolve uma teoria psico-física de como alguém vê através de um telescópio. No caso anterior as coisas que propriamente concernem à lógica não vem à luz mais [62] do que nesse último caso os problemas da astronomia. O tratamento psicológico da lógica resulta da crença errada de que um pensamento (um juízo como usualmente é chamado) é algo psicológico como uma representação. Esta concepção leva necessariamente a uma teoria idealista do conhecimento; pois, se ela for correta, então as partes que nós distinguimos num pensamento, tal como sujeito e predicado, devem pertencer à psicologia assim como os próprios pensamentos. Agora, uma vez que todo ato de cognição é realizado em juízos, isto significa o solapamento de toda ponte condutora ao que é objetivo. E todas as nossas tentativas de chegar a isso não seriam mais do que tentativas de sair do pântano puxando-nos pelos cabelos. Quando muito pode-se tentar explicar como a aparência de objetividade surge, como nós chegamos a supor algo que não pertence a nossa mente, sem que essa suposição por isso seja justificada. O mais extraordinário é o desembocar no idealismo da psicologia fisiológica, que por seu ponto de partida realista está com ele em nítida oposição. Começa-se com fibras nervosas, células ganglionárias, faz-se suposições sobre excitações e sua transmissão e busca-se desse modo se aproximar da

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compreensão da representação, na medida em que involuntariamente se tomam os processos nas células ganglionárias e fibras nervosas por mais compreensíveis do que o representar. Como convém a uma brava ciência da natureza, sem reparar pressupõem-se para isso as células ganglionárias e as fibras nervosas como objetivas e efetivas. Isso pode funcionar enquanto se restringe ao representar. Mas não se fica nisso: se transpõe para o pensar e o julgar, e de repente o realismo inicial se transforma no extremo idealismo, e com isso esta teoria mesma corta o galho sobre o qual ela estava. Agora tudo dissolve-se em representações e com isso as explicações anteriores se tornam ilusórias. Anatomia e fisiologia tornam-se ficções. A inteira fundação fisio-anatômica de se dissolve. E com que nós ficamos? Representações de fibras nervosas, representações de células ganglionárias, representações de excitações, etc.. E o que deveria [63] ser originalmente explicado? O representar! Agora, pode-se dizer dessas explicações se elas valem (gelten) ou são verdadeiras? Estando à beira de um rio observam-se seguidamente redemoinhos na água. Não seria absurdo levantar a pretensão, para estes redemoinhos, de que eles valem ou de que eles são verdadeiros, ou também, de que eles são falsos? E também se os átomos ou moléculas em meu cérebro dançassem de modo milhares de vezes mais gracioso e louco do que os mosquitos num lindo anoitecer de verão, não seria do mesmo modo absurdo asserir que essa dança seria válida ou verdadeira? E se essas explicações fossem essa dança, poderia dizer-se que seriam verdadeiras? E se concluiria diferente se estas explicações fossem conjunções de representações? Os fantasmas que assombram o doente de tifo numa constante procissão de imagens semoventes, são verdadeiros? Tampouco verdadeiros quanto falsos, mas simples processos, como o redemoinho na água é um processo. E se se deve falar de um direito, então obviamente apenas pode ser o direito de se passar tal como ele se passa. Um fantasma contradiz o outro tampouco como um redemoinho na água o outro.

Se a representação visual de uma rosa associa-se com a representação de um perfume delicado e a esses adiciona-se as representações auditivas das palavras “rosa” e “perfume”, bem como as representações motoras associadas com o proferimento dessas palavras, e se prosseguimos juntando associações sobre associações até que a mais complexa e elaborada representação seja formada, a que propósito isso serve? Realmente se pensa que assim se tem um pensamento como

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resultado? O resultado não seria um pensamento tanto quanto um autômato, por mais bem construído, é um ser vivo. Construa algo a partir de partes que são inanimadas e você ainda terá algo inanimado. Combine representações e você ainda terá uma representação, e as mais variadas e elaboradas associações não fazem diferença. Mesmo se, no cume disso, o composto seja acrescido de sentimentos e estados, não é nada para se avaliar. A lei da gravitação nunca poderia vir a existência desse jeito, pois esta lei é inteiramente independente do que acontece em minha mente e de como minhas representações mudam e oscilam. Porém, [64] ainda assim a apreensão desta lei é um processo mental! Sim, sem dúvida, mas é um processo que acontece nos próprios confins do mental e que por essa razão não pode ser completamente compreendido a partir de um ponto de vista puramente psicológico. Pois, no apreender da lei algo, cuja natureza que não é mais, em sentido próprio, mental, é percebido, a saber, o pensamento; e este processo é talvez o mais misterioso de todos. Mas mesmo porque ele é mental, nós não precisamos nos preocupar com isso na lógica. Para nós é suficiente que nós possamos apreender pensamentos e reconhecê-los como verdadeiros; como isso acontece é uma questão por si mesma.* Também para o químico é suficiente que ele possa ver, cheirar e provar; e sua tarefa não é pesquisar como isso acontece. Não é inessencial para os resultados de uma investigação científica que questões, que podem ser tratadas independentes de outras, não sejam confundidas com estas e com isto tornem as coisas desnecessariamente mais difíceis. Assim se introduz facilmente uma distorção. Por isso nós não nos preocupamos quanto ao como efetivamente acontece o pensar, o alcançar uma convicção; não o como acontece o tomar por verdadeiro (Fürwahrhalten), mas antes as leis do ser verdade (Gesetze des Wahrseins). Estas podem ser apreendidas como prescrições (Vorschriften) para o julgar, as quais nós devemos seguir se não quisermos perder a verdade. Se se quiser chamá-las de leis do pensar ou, melhor, leis do julgar, não se deve esquecer que se tratam de leis que, como as leis morais ou leis estatais, prescrevem como se deve agir, e não, como as leis da natureza, determinam como os processos ocorrem. O pensar efetivo não está sempre em consonância com as leis

* Esta questão ainda não foi bem apreendida em sua dificuldade. As mais das vezes fica-se contente com contrabandear pela porta dos fundos o pensamento na representação, de tal modo que não se sabe como realmente ele surge.

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lógicas, tampouco como o agir efetivo com as leis morais. Por isso, em lógica o melhor é evitar completamente a expressão “lei do pensar”, [65} pois isso sempre leva à confusão de conceber as leis lógicas como leis naturais. Como tais nós as deveríamos atribuir à psicologia. Do mesmo modo como as leis lógicas se poderia conceber também as geométricas e físicas como leis do pensar ou leis do julgar, a saber, como prescrições, segundo as quais o julgar sobre um domínio diferente deve se orientar se quiser se manter em consonância com a verdade. Tampouco quanto a geometria ou a física, é a lógica o lugar certo para se desenvolver investigações psicológicas. Explicar o transcorrer do pensar e do julgar, certamente é uma tarefa possível, mas não lógica.

Por isso o lógico não tem de se perguntar sobre qual é o curso natural do pensar na mente humana. O que é natural para um pode facilmente ser não-natural para outro. Isso, já indica a grande diversidade das gramáticas. Menos ainda o lógico precisa temer ser-lhe objetado que suas proposições não estão de acordo com o pensar natural. Se uma pessoa inocente devesse ser introduzida nos rudimentos da matemática com o maior rigor possível, ela acharia essa regularidade muito não-natural e justamente por causa desse rigor. Um professor perspicaz tenderia por isso a deixar o rigor de lado e primeiro procurar despertar a sua necessidade. Também na história da matemática nós vemos que o maior rigor sempre é o último e portanto o mais afastado do natural. Por isso, a luta por apresentar o processo natural do pensar nos levaria a se afastar da lógica. Se o lógico tentasse considerar a objeção de não-naturalidade, ele ficaria em perigo de se envolver em disputas infindáveis sobre o que é natural, disputas essas impossíveis de solucionar no campo da lógica, portanto, que não pertencem à lógica. Para isso talvez a observação dos povos naturais pudesse ajudar.

Porém, acima de tudo deve-se evitar a opinião de que seja tarefa da lógica investigar o pensar e o julgar efetivo enquanto se está em consonância com as leis do ser verdadeiro. [66] Então dever-se-ia ter um olho numa e olhar de soslaio para a outra e observar de volta aquela e de novo olhar de soslaio para a outra e assim perder completamente de vista um objetivo determinado. Isto seria deixar-se seduzir por questões obscuras e assim tornar um resultado satisfatório tão bom quanto impossível.

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O que se denomina seguidamente leis do pensar, a saber, leis segundo as quais o julgar, ao menos nos casos normais, acontece, podem sempre ser leis do tomar por verdadeiro, e não leis do ser verdade. Quem toma algo por verdadeiro e os lógicos psicologistas obviamente tomam por verdadeiras ao menos as suas próprias colocações – reconhece com isso que algo é verdadeiro. Mas então é bem provável que haja leis do ser verdade, e se há, estas devem ser normas para o tomar por verdadeiro. E estas seriam propriamente as leis lógicas. No suplemento 26 do volume de 1897 do Allgemeine Zeitung, T. Achelis no artigo “Völkerkunde und Philosophie” escreve o seguinte:

“Agora porém nós temos clareza sobre isso, que as normas mais gerais válidas do pensar e do agir não podem ser alcançadas por uma simples dedução abstrata unilateral, mas por meio de uma determinação empírico-crítica de leis básicas objetivas de nossa organização psicofísica, no geral continuamente válidas para a consciência humana”.

Não é inteiramente claro se se tratam das leis pelas quais se julga, ou se daquelas pelas quais se deveria julgar. Parece que é de ambas. A saber, as leis pelas quais se julga são postas como normas de como se deve julgar. Mas porque isso é necessário? O julgar já acontece inteiramente por si segundo essas leis. Não! Óbvio, não inteiramente, na verdade, normalmente, mas não sempre! Portanto são leis que tem exceções; mas as exceções por sua vez são governadas por outras leis. Aquelas leis propostas, por conseguinte não são completas. Agora, o que justifica a separação de parte de um todo de leis e sua colocação como normas? Isto é como se se propusesse as leis [67] dos movimentos planetários de Kepler como normas e, ora veja, ser forçado a reconhecer que os planetas em sua pecaminosidade não se comportam em conformidade rigorosa com elas, mas sim como alunos travessos molestam uns aos outros. Então isso deveria ser severamente repreendido.

Por essa concepção deve-se cuidadosamente evitar para não se perder do caminho real sobre pelo qual vai a grande maioria. Também dos grandes espíritos se deve desconfiar; pois se eles fossem normais, então eles seriam medíocres.

Com a concepção psicológica da lógica nós perdemos a distinção entre as razões (Gründen) que justificam uma convicção e as causas

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(Ursachen) que atualmente a produzem. Isto significa que uma justificação no sentido próprio do termo não é possível; o que nós temos no seu lugar é o tratamento de como se chegou a ela, a partir do que se deve inferir que tudo foi causado por fatores psicológicos. Isto pode acontecer tanto numa superstição (Aberglauben) como num conhecimento científico.

Se nós concebemos as leis lógicas como psicológicas, nós seremos inclinados a levantar a questão se elas são algo sujeito a mudanças. Seriam elas como a gramática de uma linguagem que pode, obviamente, mudar com a passagem do tempo? Esta é uma possibilidade que se impõe quando se deriva a obrigatoriedade das leis lógicas de modo análogo a das leis da gramática, se elas são normas apenas porque nós raramente nos desviamos delas, se é normal julgar de acordo com nossas leis lógicas como é normal andar ereto. Agora, tal como é possível que para nossos antepassados não fosse normal andar ereto, assim também poderia para o pensar que muitos modos podem ter sido normais no passado que atualmente não mais, e pode no futuro algo vir a ser normal que agora não é. Assim como a consciência da língua sempre é insegura em algumas questões gramaticais, na medida em que a língua ainda não se fixou completamente, também deve ocorrer uma situação análoga em relação às leis lógicas em cada período de transição. Por exemplo, ficar-se-ia em dúvida sobre se seria correto julgar que cada objeto era igual a si mesmo. Não se deveria falar de leis lógicas, mas apenas de [68] regras lógicas, que indicariam o que seria visto como normal numa certa época. Não se deveria expressar uma tal regra numa forma como “Todo objeto é igual a si mesmo”, pois não aparece aí a espécie de ser para os quais esse juízo deve valer, antes se deveria talvez dizer: “Para os homens – com exceção talvez de alguns povos selvagens, nos quais o assunto ainda não foi pesquisado – é agora normal julgar que todo objeto é igual a si mesmo”. Mas se se tem leis, mesmo quando elas são psicológicas, então elas devem, como nós vimos, ser sempre – ou melhor, atemporalmente – verdadeiras, se elas são verdadeiras em geral. Portanto, se nós observamos que uma lei não mais vale num determinado tempo, então nós devemos dizer que é falsa em geral. Nós poderíamos procurar uma condição que deveria ser acrescentada. Vamos assumir que o julgar humano por um certo período se conforma à lei de que todo objeto é igual a si mesmo, mas que depois não mais,

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então a causa poderia ser talvez que a taxa de fósforo no cérebro se alterou, e nós talvez tenhamos que dizer: “Se a taxa de fósforo no cérebro do homem em nenhum lugar excede 4%, então seu julgar sempre procede em consonância com isso, que todo objeto é igual a si mesmo”.

Leis psicológicas que se referem desse modo à composição química ou à estrutura anatômica do cérebro são ao menos pensáveis. Nas leis lógicas, ao contrário, isso seria absurdo; pois nelas não se trata do que esse ou aquele homem toma por verdadeiro, mas do que é verdade. Se um homem toma por verdadeiro ou por falso que 2 x 2 = 4, pode ser dependente da composição de seu cérebro, mas se este pensamento é verdadeiro, não depende disso. Se é verdadeiro que Júlio César foi morto por Brutus não pode depender do cérebro do Professor Mommsen.

Às vezes se questiona se as leis lógicas podem se alterar com o tempo. As leis do [69] ser verdade são, como todo pensamento, quando elas são verdades em geral, sempre verdadeiras. Elas também não podem conter nenhuma condição que poderiam ser satisfeita num certo tempo e não seria noutro, pois elas tratam com o ser verdade dos pensamentos, que, se elas são verdadeiras, são verdadeiras atemporalmente. Portanto, se da verdade de certos pensamentos se segue a verdade de outros pensamentos em um tempo, então sempre deve se seguir (folgen).

Façamos um resumo do que nós obtemos sobre os pensamentos (propriamente).

Os pensamentos não pertencem como as representações à mente individual (eles não são subjetivos), mas são independentes do pensar, e se antepõem a todos do mesmo modo (objetivos); eles não são feitos pelo pensar, mas apenas apreendidos. Nisso eles são semelhantes aos corpos físicos. Desses eles se diferenciam por que eles são a-espaciais e essencialmente atemporais, se poderia dizer talvez também [in]efetivos1, na medida em que eles não sofrem nenhum efeito que modifique sua própria natureza. Por sua a-espacialidade eles são semelhantes às representações.

Da natureza [não-]mental dos pensamentos segue-se que todo tratamento psicológico da lógica é do mal. Esta ciência tem antes a

1 N. do T.: Os organizadores do material introduziram aqui a partícula negativa “Un”, mas no texto de Frege está apenas “wirklich”.

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tarefa de purificar o lógico de tudo o que é estranho, portanto também do psicológico, e livrar o pensar das cadeias da linguagem, ao mostrar as suas imperfeições lógicas. Na lógica se tratam das leis do ser verdade, não do tomar por verdadeiro, não da questão de como o pensar acontece nos homens, mas como ele deve acontecer para não se perder a verdade.

NegaçãoUm pensamento propriamente é ou verdadeiro ou falso. Quando

nós julgamos sobre ele, então nós ou o aceitamos como verdadeiro ou o rejeitamos como falso. A última expressão, contudo, pode nos enganar, [70] como se o pensamento rejeitado devesse ser relegado ao esquecimento tão logo quanto possível não tendo mais nenhum uso. Muito pelo contrário, o reconhecimento de que um pensamento é falso pode ser tão frutífero quanto o reconhecimento de que um é verdadeiro. Propriamente compreendido, não há nenhuma diferença entre os dois casos. Tomar um pensamento como falso é tomar um pensamento (diferente) como verdadeiro, e desse então nós dizemos que ele é o oposto do primeiro. Na língua alemã em geral indica-se que um pensamento é falso inserindo a palavra “nicht” (não) no predicado. Mas, como antes a asserção é veiculada pela forma indicativa, e não está necessariamente ligada com a palavra “nicht”. Enquanto se mantém a forma negativa, pode-se retirar a asserção. Pode-se dizer igualmente bem: “O pensamento, que Pedro não veio a Roma” quanto “O pensamento, que Pedro veio a Roma”. Nós vemos também que o asserir e o julgar não é diferente quando eu afirmo que Pedro não veio a Roma, de quando eu afirmo que Pedro veio a Roma; apenas o pensamento é o oposto. Assim, para cada pensamento há um oposto. Aqui nós temos uma relação simétrica: se o primeiro pensamento é o oposto do segundo, então o segundo é o oposto do primeiro. Ao asserir como falso o pensamento de que Pedro não veio a Roma, se assere que Pedro veio a Roma. Se poderia fazer a asserção como falso com um segundo “não” inserido: “Pedro [não] não veio a Roma”, ou “Não é verdade que Pedro não veio a Roma”. E disso se segue que duas negativas cancelam uma à outra. O oposto do oposto é o original.

Se está em questão a verdade de um pensamento, nós oscilamos entre pensamentos opostos, e com o mesmo ato reconhecemos um deles como verdadeiro e o outro como falso. Nós temos relações semelhantes

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de oposição em outros casos também, p. ex., o belo e o feio, bom e mau, agradável e desagradável, positivo e negativo em matemática e física. Mas nosso caso diferencia-se [71] desses em duplo aspecto. Primeiramente, porque não há nada aqui, como o zero ou o estado não-eletrizado que ocuparia um meio neutro entre os opostos. Pode-se bem dizer que o zero opõe-se a si mesmo em relação aos positivos e negativos; mas não há nenhum pensamento que seria o oposto de si mesmo. Isso vale até mesmo para a poesia. Segundo, nós não temos aqui duas classes tal que a uma pertenceriam os pensamentos opostos aos que pertenceriam a outra, como há uma classe dos números positivos e uma dos negativos. Ao menos eu não observei nenhuma característica que pudesse ser empregada para fazer essa divisão de classes; pois o emprego da palavra “não” nas expressões linguísticas é o de uma marca inteiramente exterior e também flutuante. Nós temos também outros sinais para a negação como “nenhum” e em muitos casos o prefixo “in”, como por exemplo em “insatisfatório”. Por isso parece ser de pouca monta, em frases como “Esta obra é péssima”, “Esta obra é satisfatória”, “Esta obra não é péssima”, 'Esta obra é insatisfatória” atribuir os pensamentos contidos nas duas primeiras a uma classe e os nas últimas a outra, tendo em vista que “insatisfatório” e “péssimo” estão muitos próximos quanto ao sentido, e é possível que em alguma outra linguagem a palavra para “insatisfatório” fosse uma tal cuja forma negativa não pudesse ser distinguida tal como em “péssimo”. Não se pode ver em que aspecto os dois primeiros pensamentos devem ser mais proximamente aparentados do que o primeiro e o quarto. Além disso, acrescenta-se que a negação pode ocorrer não apenas no predicado da oração principal, mas também em outros lugares, e que tais negações não se cancelam simplesmente, como p. ex. na frase “Nem todas obras são insatisfatórias”, pela qual não se pode dizer “Todas as obras são satisfatórias”; ou como nas frase “Quem não foi aplicado, não será recompensado”, pela qual não se pode dizer “Quem foi aplicado, será recompensado”. Compare-se para isso ainda as frases “Quem é recompensado, foi aplicado”, “Quem não foi aplicado, [72] vai embora sem nada”, “Quem foi preguiçoso, não será recompensado”, “24 não é diferente de 42” e “24 é igual a 42”, e se perceberá que aí se está embrenhando num espinheiro de questões. Sobretudo não compensa querer tentar uma saída para cujas respostas se empregaria muito esforço. Ao menos para mim não é conhecida

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nenhuma lei lógica pela qual se poderia fazer uma divisão de classes de pensamentos entre assertivos e negativos. Logo, deixemos isso quieto até que talvez se dê a necessidade de uma tal divisão. Para isso mesmo que provisoriamente se esperaria também um critério que fosse apropriado para este fim.

O prefixo “in” nem sempre é usado para negação. “Infeliz” pouco se diferencia quanto ao sentido de “miserável”. Nós temos aí uma oposição à feliz, mas não a negação. Por isso as frases “Esta casa não é infeliz” e “Esta casa é feliz” não tem o mesmo sentido.

Compondo pensamentosSe os jurados respondem “Sim” para a questão “O acusado

premeditadamente pôs fogo num monte de madeira e (premeditadamente) causou um incêndio florestal?”, então eles asserem simultaneamente dois pensamentos:

(1) O acusado premeditadamente pôs fogo no monte de madeira.(2) O acusado premeditadamente causou um incêndio na floresta.Na verdade nós temos em nossa questão um pensamento; pois ela

pode ser respondida com um juízo; mas, este pensamento é composto de dois pensamentos, os quais podem ser julgados individualmente, de tal modo que por asserir o inteiro pensamento eu assiro ao mesmo tempo os pensamentos componentes. [73] Agora, isso pode parecer indiferente e que o assunto é de pouca importância; mas, ficará evidente que isso está intimamente relacionado com leis lógicas muito importantes. Isso se torna claro tão logo se considera a negação de tais pensamentos compostos. Quando os jurados tem de dizer “Não” para a questão acima? Claramente já quando eles aceitam apenas um dos pensamentos como falso; por exemplo, se eles são da opinião de que embora não haja dúvidas de que o acusado pôs fogo premeditadamente no monte de madeira, ele não tinha a intenção de que como consequência a floresta devesse pegar fogo.

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17. Diálogo com Pünjer sobre a existência1

G. Frege

Tradução provisória de Celso R. Braida e Cezar A. Mortari (Ufsc) a partir do original alemão Dialog mit Pünjer über Existenz, in G. FREGE, Schriften zur Logik und Sprachphilosophie, Aus dem Nachlass, Hrsg. G. Gabriel; Hamburg, Felix Meiner, 1978; pp. 1-22.

[I. Diálogo]

1. Pünjer. “Uma coisa não tem a característica de voar, mas ainda assim cai sob o conceito ‘pássaro’”. Isto é equivalente a “Entre aquilo que é, há uma coisa que não tem a característica de voar, mas ainda assim cai sob o conceito ‘pássaro’”?

2. Frege. O que significa é?

1 Pünjer, interlocutor de Frege, é o teólogo protestante Bernhard Pünjer (1850-1885), que foi professor em Jena a partir de 1880, autor das obras Die Religionslehre Kants (1874), De M. Servatii doctrina (1876), Geschichte der christlichen Religionsphilosophie seit der Reformation (1880s), Grundriss der Religionsphilosophie (1886), Religionsphilosophie auf modern wissenschaftlicher Grundlage (1886); Organizador do Theologische Jahresbericht (1879) e de uma edição crítica da obra de Schleiermacher Reden über Religio. A partir da observação entre parêntesis no n. 84, e também do estilo das respostas de Pünjer, percebe-se que se trata na parte I do protocolo de um diálogo que aconteceu realmente. O protocolo está fragmentado e refere-se a afirmações não protocoladas (cf. Nota 4). O manuscrito da parte II estava nos Póstumos de Frege junto com pós-escrito ao diálogo em um envelope, como indica as obervações de Scholz e seus colaboradores sobre os manuscritos. Cruzamentos com a fase final de I permitem a suposição de que se trata de uma consideração conclusiva posterior de Frege.

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3. P. Algo que é experienciável (para nós).2

4. Fr. Não é supérfluo afirmar a experienciabilidade de algo?

5. P. Não, uma vez que nós temos a capacidade de nos fazer representações, por meio da livre reconfiguração das representações obtidas pela experiência, às quais não corresponde nada experienciável.

6. Fr. Na sentença “A é algo experienciável” está o sujeito A, não o lingüístico, mas o real (sachliche) ou a representação de A?

7. P. A.8. Fr. “O enunciado ‘A não é experienciável’ é a negação

do enunciado ‘A é experienciável’”. Isto está correto?9. P. Sim, quando se entende por “A não é

experienciável”: A sentença “A é experienciável” é falsa. (No original, não há resposta de Frege. N.T.)10. P. O enunciado “A não é experienciável” não é

possível. Por isso a pergunta é sem sentido. Também a negação da experienciabilidade não tem nenhum sentido.

11. Fr. Portanto, parece-me supérfluo afirmar a experienciabilidade de algo.

12. P. “Há homens” significa “Ao conceito homem corresponde algo experienciável” ou “Algo entre o que é experienciável cai sob o conceito homem”. “Não há centauros” significa “À representação ou ao conceito2 centauro não corresponde nada experienciável”.

13. Fr. Aqui a negação aplica-se à “corresponde”.14. P. Sim. Ou nada do que é experienciável cai sob o

conceito centauro.15. Fr. Por meio do enunciado da experienciabilidade

aquilo de que ela é enunciada não é determinado de nenhum

2 No Grundriss der Religionsphilosophie (cf. nota 1 acima), p. 50, diz-se: “... para nós ‘existir’ coincide com “ser experimentado”, isto é, exercer uma certa impressão sobre o eu, que o eu percebe”.

2 Aqui e a seguir não se diferenciará “Representação” de “Conceito”.

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modo.16. P. Não. Esta é a diferença deste enunciado em relação

aos outros.17. Fr. Parece-me ainda assim como se fosse supérfluo

afirmar de algo a experienciabilidade, pois com isso não se vem a saber nada de novo acerca daquilo de que se afirma. O senhor acabou de explicar “Há” e porque tais juízos não são supérfluos, mas não que o juízo “Isto é experienciável” não seja supérfluo.

18. P. “Isto é experienciável” significa: “A representação deste ‘isto’ não é uma alucinação, não é algo simplesmente imaginado por mim; mas, a representação é configurada a partir da ocorrência de uma afecção do Eu por meio deste isto”.

19. Fr. Você diferencia, portanto, dois tipos de representação?

20. P. Sim; há dois tipos de representação: umas que são meras construções do Eu, e outras que são construções fundadas em uma afecção do Eu. Para distingui-las, eu digo: os objetos destas últimas representações são experienciáveis; às primeiras não corresponde nenhum objeto experienciável.

21. Fr. Desse modo parece-me que o sujeito real em sua concepção é a representação. Você não admitiria que em cada enunciado material o sujeito real seja colocado numa classe e por isso seja distinguido dos outros que não caem sob esta classe?

22. P. Eu admito isso; mas, o enunciado de existência não é material. Eu não o admito, porém, se por “material” se entende “não auto-evidente”, “não contendo uma simples lei lógica”.

23. Fr. Nas sentenças “Há homens” e “Não há centauros” ocorre também uma classificação. Elas, porém, não classificam a coisa que num caso não está aí, e no outro que não entra em uma das duas classes, mas classificam os conceitos “Homem” e “Centauro”, na medida em que colocam um deles sob a classe de conceitos sob os quais cai alguma coisa e excluem o outro dessa classe. Por isso, eu digo que nessas sentenças os conceitos são os sujeitos reais. Quando você diz “Isto é experienciável” no sentido

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de “Esta minha representação não é meramente por mim produzida”, está a classificar as representações. Você está a colocá-las em uma das duas espécies antes diferenciadas por você. Por isso, eu digo que aqui é a representação o sujeito real. Você pode expressar-se linguisticamente desse modo: a representação tem a propriedade de que algo lhe corresponde.

24. P. Isso vai depender aqui do que é a negação. A negação é possível apenas após uma posição prévia. Quando nós dizemos “Os centauros não existem”, isso apenas é possível porque primeiro os pensamos como fora de nós. Nós temos duas razões para negar a existência: 1. uma contradição lógica, 2. [uma contradição] fora do conceito ou da representação na experiência. Logo, não é propriamente a representação ou o conceito o sujeito real.

25. Fr. Com isso, você fornece apenas a razão pela qual pronunciamos o juízo sobre existência. Pode-se também derivar um juízo como “Há raízes quadradas de 4” a partir do conceito raiz quadrada de 4.

26. P. “Há raízes quadradas de 4” não significa “Algo é experienciável e cai sob o conceito de raiz quadrada de 4”, uma vez que entendamos por experienciável algo independente e sendo por si mesmo. Números existem apenas em algo. Por isso, este juízo é essencialmente diferente de “Há homens”. Eu jamais diria: “4 existe”. Muito menos: “uma raiz quadrada de 4 existe”. O “há” (es gibt) é usado aqui em um outro sentido. Significa: o 4 tem a propriedade de poder ser produzido pela multiplicação de um número por si mesmo, de que se pode encontrar um número que multiplicado por si mesmo dá 4. Nós podemos emitir o juízo apenas quando previamente se tenha construído a sentença 22 = 4 (ou (-2)2 = 4). Isto é o correspondente aos outros juízos existências, como “Há homens”.

27. Fr. Anteriormente foi-me objetado1, diante do exemplo “Há raízes quadradas de 4”, que se tratava de um juízo

1 Esta objeção não se encontra no diálogo prévio.

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existencial; agora parece que você não concorda com isso, porque você não quer dizer: “Uma raiz quadrada de 4 existe”.

28. P. “Uma raiz quadrada de 4 existe” é um juízo existencial.

------29. Fr. (para 18) A sentença “A representação deste isto é

foi constituída por ocasião de uma afecção do eu provocada por este isto” é, se é que se pode explicitar corretamente seu conteúdo, auto-evidente; pois, não se pode empregar a expressão “A representação deste isto” sem que se faça antes o juízo “Esta minha representação corresponde a algo”, ou “Esta minha representação foi constituída por ocasião de uma afecção do eu”.1 Só então pode-se denominar “Isto” aquilo que o afetou, aquilo que corresponde à minha representação.

30. P.: “ A representação deste isto é foi constituída por ocasião de uma afecção do eu provocada por este isto” é apenas uma outra expressão para “À minha representação corresponde algo experienciável”.

31. Fr.: Eu entendo a sua afirmação (20) desse modo: Quando você quer dizer: B é uma representação que não é constituída apenas a partir do eu, mas com base em uma afecção do eu, você diz: “O objeto (Gegenstand) de B é experienciável”. Ambas as expressões significam o mesmo. Isto é assim?

32. P. : Em vez de “B é uma representação que, etc.” eu diria “A representação B é, etc.”, com o que já pressuponho que B seja uma representação.

33. Fr.: Eu concedo que não é auto-evidente e supérfluo dizer: “A representação B não provém do eu apenas, mas se dá por causa de uma afecção do eu”; pois nem toda representação provém de uma afecção do eu, ou pode-se ao menos discutir isto. A negação disso seria: “A representação B não provém de uma

1 Os casos desse juízo, para Frege, porém, não é de pressuposição lógica no sentido de premissa, mas de pressuposição auto-evidente, uma vez que “Isto” nas sentenças deve ser usado assertoricamente. Cf. Para isso 99. e nota 10; também página e nota 12.

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afecção do eu”, se pressupomos que B é uma representação.1 Esta negação tem um sentido perfeitamente claro e por isso não é supérfluo e auto-evidente asserir a sentença “A representação B provém de uma afecção do eu”, ou então , como você quer, a que tem o mesmo significado, “O objeto de B é experienciável”. Agora, se ambas estas expressões são sinônimas, então, pode-se, no juízo “A negação da sentença ‘A representação B provém de uma afecção do eu’ tem um sentido claro”, colocar no lugar de “A representação B provém de uma afecção do eu” a expressão “O objeto de B é experienciável” e obter o juízo: a negação da sentença “O objeto de B é experienciável” tem um sentido claro. Isto contradiz as suas afirmações anteriores.

34. P. : Não há nenhuma contradição em caracterizar a negação do enunciado “O objeto da representação B é experienciável” como admissível e, ao contrário, a negação do enunciado “O objeto de B’2 é experienciável” como inadmissível.

35. Fr. : Se o compreendo corretamente, a contradição é eliminada assim: Na expressão “o objeto da representação”, “objeto” é usada num sentido diferente do da expressão “O objeto de A é experienciável”.

36. P. : Não. A palavra “objeto” tem o mesmo significado, mas “objeto da representação” significado algo diferente de “o objeto”.

37. Fr.: Há uma mera delimitação na sentença “da representação”?

38. P. : Por si mesmo “objeto” significa objeto que não é simplesmente objeto da representação, mas da experiência. Propriamente a oposição deveria ser: objeto da representação – objeto da experiência.

1 Que B é uma representação é a pressuposição (cf. Nota 5) para que a expressão “A representação B” tenha um significado (no sentido da distinção posterior entre sentido e significado; cf. [20] e aqui página 83ss), e esta é a pressuposição, para Frege, para que uma sentença seja ou verdadeira ou falsa. A negação, entendida como passagem de um valor de verdade para outro, necessita por conseguinte dessa pressuposição.

2 “B’” tem que designar o objeto da representação B, e na medida em que ele seja tambem objeto de experiência (cf. 38).

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------39. P.: (com referência a (26) e (27)): Número não é

experienciável no mesmo sentido que Paulo.40. Fr. : Você diferencia portanto dois sentidos da palavra

“experienciável”?41. P. : Não. Os números são no mesmo sentido geral

experimenciáveis. O conceito de experienciável é em ambos os casos o mesmo; é o mesmo quer ser tome números, coisas ou cores por experienciável.

42. Fr. : Você entende por “experienciável” nem sempre algo por si mesmo experienciável?

43. P. : Experienciável é também aquilo que não é experienciável por si mesmo, como, p.ex., as cores que são experimentáveis apenas em algo.

44. Fr. : Você diz (26) que não diria “4 existe”. Você emprega aqui “existe” no mesmo sentido de “ser experienciável”?

45. P. : Sim, eu repito a afirmação que eu não diria: “4 existe”, “uma raiz quadrada de 4 existe”.

46. Fr. : A diferença entre o juízo “Há homens” e “Há raizes quadrada de 4” não está no “há”, mas na diferença dos conceitos “homem” e “raiz quadrada de 4”. Sob um homem nós pensamos algo por si e sob raiz quadrada de 4, não.

47. P. : Com isso eu estou de acordo.48. Fr. : A sentença “A é experienciável” está correta, se sob

A se entende uma representação?49. P.: Sim. Uma representação é experienciável.50. Fr.: Há uma representação de uma representação?51. P. : Há representações de representações.52. Fr. : Você antes tomou a representação como uma

imagem mutável, como uma série de impressões. Quais são, então, as impressões que constituem a representação da representação A?

53. P. : As atividades singulares da representação A são essas impressões.

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54. Fr. : Atividade do representar significa o mesmo que representação?

55. P. : Sim.56. Fr.: Então nós distinguimos incorretamente atividade da

representação de representação?57. P. : Sim.58. Fr. : A partir de suas afirmações (18) e (30) segue-se

que “isto é experienciável” tem o mesmo significado que “À minha representação corresponde algo experienciável”. Aqui “experienciável” é explicada por si mesma.

59. P. Isso não deve ser nenhuma explicação. Eu mantenho que a expressão “A representação deste Isto” sempre pode ser empregada.

60. Fr.: Toda representação tem um objeto?61. P. : Sim. Cada representação tem necessariamente um

objeto. “Objeto da representação” é o mesmo que “Conteúdo da representação”.

62. Fr. : O conteúdo da representação A é o mesmo que A?63. P. : Não. A imagem-representação é a imagem mutável.

Mais precisamente, deve-se diferenciar a imagem-representação de representação. Por imagem-representação é abstraída a atividade.

64. Fr.: O objeto da representação é diferente da imagem-representação?

65. P.: Sim.1

66. Fr. : Quando você vê uma miragem ou tem uma alucinação, qual é o objeto da representação?

(a resposta ficou por dar).-------

67. Fr.: Você concede que a negação da sentença “O objeto de B é experienciável” tem um bom sentido?

68. P.: Sim.69. Fr.: Você concede que se pode denominar A o objeto da

1 Pünjer diferencia entre representação (atividade do representar), objeto (conteúdo) da representação e imagem da representação.

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representanção B?70. P. : Sim.71. Fr. : Então Você concede que a negação da sentença “A

é experienciável” tem um bom sentido.72. P. : Sim. Mas, a sua pergunta (8) compreendia sob A,

não um objeto da representação, mas da experiência.73. Fr.: Não falei de A nem como objeto da experiência nem

que ele deveria ser o objeto da representação, mas deixei isto inteiramente indeterminado. Por isso eu entendi sua resposta (10) de uma maneira mais genérica do que você parece entender agora. De resto, era mais óbvio entender A como objeto da representação, pois em (6) eu havia usado a expressão “representação de A”.

74. P.: Mas, estava claro que sob A se entendia expressamente um objeto da experiência.

75. Fr.: Eu não vejo assim. Talvez possamos ir adiante desse modo: Você concede que há objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu?

76. P. : Sim.77. Fr.: Você concede que objetos de representação que não

provêm de uma afecção do eu, não existem?78. P. : Sim.79. Fr.: Então segue-se que há objetos de representação, que

não provêm de uma afecção do eu, logo, que não existem. Se Você usa a palavra “existir” no mesmo sentido da expressão “há”, então Você igualmente afirma e nega o mesmo predicado do mesmo sujeito. O raciocínio é correto; pois o conceito “objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu” é o mesmo em ambas as premissas e o mesmo também na conclusão. Você concede isto?

80. P. : Sim. Mas a palavra “há” é mal-empregada aqui.81. Fr. : Então, você proponha uma outra expressão que

expresse melhor a coisa.82. P. : Não dá, pois esta novamente não diria o que deve

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ser expresso.83. Fr.: Nós temos aqui, então, segundo sua opinião, uma

contradição real na qual a razão necessariamente chega; pois, por meio da simples modificação do modo de expressão ela não pode evitá-la.

84. P. : Antes que nós possamos negar a existência de algo, devemos representá-lo como existente, para então negar-lhe a existência. Porém, eu acredito que nós não podemos prosseguir desse modo. Como Você explica “Há homens”?

(O que se segue daqui foi deixado de lado, porque dava mostra de circularidade, na medida em que nós voltamos de novo a questão:)

85. P.: Como você explica “Há seres vivos”?86. Fr. : Eu explico assim: a sentença de que, o que quer

que eu possa entender sob A, A não cai sob o conceito “ser vivo”, é falsa.

87. P. : O que se deve pensar com A?88. Fr.: O significado que dou a A não deve sofrer nenhuma

delimitação. Se eu tenho que dizer algo sobre isso, então, isto apenas poderia ser algo auto-evidente como, p. ex., A = A.

89. P. : O erro está em que com A você sempre pensa um ente (ein Seiendes) e também pressupõe o simples “há”.

90. Fr. : Eu não aplico ao A a delimitação de ele seja um ente, na medida em que não se entenda com Ser algo auto-evidente, de tal modo que nenhuma delimitação seja posta.

91. P. : O que é “auto-evidente”?92. F. : Auto-evidente eu denomino um enunciado que não

determina em nada aquilo de que ele é enunciado.93. P. : Você conhece apenas enunciados que são feitos

acerca de alguma coisa?94. Fr. : “Há enunciados que não são feitos acerca de nada”

significaria: “Ha juízos nos quais não se pode distinguir um sujeito de um predicado”.

95. P. : O que você entende por algo de qual algo pode ser

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enunciado?96. Fr. : O que pode ser feito sujeito de um juízo.

------- 97. Fr. : “Alguns homens são alemães” significa igualmente

como “Há homens alemães”. Da sentença: “Sachse1 é um homem” segue-se também “Há homens”, do mesmo modo como das proposições “Sachse é um homem” e “Sachse é um alemão” segue-se: “Alguns homens são alemães” ou “Há homens alemães”.

98. P. : “Alguns homens são alemães” não significa o mesmo que “Há homens alemães”. Você não pode deduzir “Há homens” apenas da única sentença “Sachse é um homem”, antes Você precisa de uma outra sentença: “Sachse existe”.

99. Fr. : Sobre isso eu diria: se “Sachse existe” deve significar “A palavra ‘Sachse’ não é um som vazio, mas designa algo”, então, é correto que a condição “Sachse existe” deve ser preenchida. Esta porém não é nenhuma premissa nova, mas a pressuposição2 auto-evidente de todas as nossas palavras. As regras da Lógica pressupõem sempre que o uso das palavras não é vazio, que as proposições são expressões de juízos, que não se joga apenas com palavras. Se “Sachse é um homem” é um juízo efetivo, a palavra “Sachse” deve designar algo e então eu não uso uma outra premissa para concluir “Há homens”. A premissa “Sachse existe” é supérflua, se ela deve significar algo diferente dessa pressuposição auto-evidente em todo nosso pensamento.

1 Este nome não foi arbitrariamente escolhido por Frege. Havia em Jena um professor ginasial chamado “Leo Sachse”, que foi membro da Sociedade de Jena para a Medicina e ciências naturais desde 1876, a qual Frege também pertencia.

2 Em Sobre o sentido e a referência Frege fez observações precisas sobre esta “pressuposição auto-evidente”. Na página 40 diz-se: “SE alguém afirma algo, então sempre é auto-evidente a pressuposição de que o nome próprio utilizado, simples ou composto, tem um significado”. A argumentação conclusiva de Frege no exemplo anterior ficaria assim: se esta pressuposição não fosse auto-evidente, então a negação de “Sachse é um homem” significaria “Sachse não é um homem ou o nome “Sachse é sem significado”. Que o nome “Sachse” tem um significado (e um único)é tanto pressuposição para a afirmação “Sachse é um homem” como para sua contrária. Aqui Frege antecipa uma tese muito significativa que P. F. Strawson reformulou novamente em sua oposição a teoria das descrições de Russell.Strawson denomina este tipo de pressuposição auto-evidente “presumption”. Cf. On referring. MInd LIX (1950), pp. 320-344, p. 332.

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Você pode dar um exemplo em que uma sentença da forma “A é um B” tenha sentido e seja verdadeira [na qual]1 A seja um nome de um indivíduo e “Há B’s” seja falsa? “Alguns homens são alemães” pode ser assim expressa “Uma parte dos homens cai sob o conceito ‘alemão’”. Aqui, porém, sob parte deve-se entende uma parte não muito pequena, uma parte que contém indivíduos. Caso não fosse esse o caso, não houvesse nenhum homem que fosse alemão, então dir-se-ia: “Nenhum homem é um alemão”; isto é a oposta contraditória de “Alguns homens são alemães”. Por isso, inversamente, de “Alguns homens são alemães” segue-se “Há homens alemães”. “Alguns homens são alemães” pode-se também assim ...2 .

[II. Epílogo de Frege.]Formulação da questão disputada

Nós consideramos as proposições “Esta mesa existe” e “Há mesas”. A pergunta é se a palavra “existe” na primeira sentença tem essencialmente o mesmo conteúdo do que “há” na segunda.

Você não contestou, creio eu, que uma certa diferença também ocorre no predicado, que a diferença não esteja apenas na diferença de sujeito; porém, você afirmou apesar disso que no essencial o significado era o mesmo. Você poderia me mostrar, em que, segundo sua opinião, consiste o genérico, quão longe ele alcança e onde a diferença começa?

Nós devemos nos entender sobre como um juízo afirmativo particular com “alguns” deve ser compreendido. Eu acredito que em geral na Lógica isso seja assim compreendido, como na cláusula esclarecedora “talvez todos, e ao menos um” fica claro, de tal modo que “Alguns homens são negros” significaria

1 No manuscrito está “nisso”.2 Aqui o manuscrito interrompe-se.

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“Alguns, talvez todos, mas ao menos um homem é negro”.

Se há acordo a respeito disso, então pode-se converter um juízo afirmativo particular, como “Alguns homens são negros”, em “Alguns negros são homens”. A resistência que se tem primeiramente em relação a isso tem sua origem em que involuntariamente se pensa: “mas alguns negros não são homens”. Este pensamento adicional é evitado com nossa cláusula “talvez também todos”.

Você gostaria agora que a expressão “Homens existem” fosse apreendida como significando o mesmo que “alguns existentes são homens”. Esta expressão tem o defeito que nela, segundo a forma linguística, o predicado não é o existir, mas o ser homem. Agora, o existir é que deveria ser realmente enunciado. Nós podemos também expressar isso linguisticamente, fazendo a inversão: “Alguns homens existem” no sentido de “alguns, talvez também todos, ao menos um homem existe”. Isto tem, portanto, o mesmo significado de “Homens existem”.

Eu entendi a sua concepção sempre como se você tomasse a diferença de significado da palavra “existir” nas proposições “Leo Sachse existe” e “Alguns homens existem” como sendo do mesmo tipo da diferença de significado de “é um alemão” nas proposições “Leo Sachse é um alemão” e “alguns homens são alemães”, tal que “existe” relaciona-se nas primeiras proposições com “existem” do mesmo modo como “é um alemão” relaciona-se com “são alemães” nas duas últimas. Escolhi os mesmos sujeitos “Leo Sachse” e “Alguns homens” intencionalmente em ambos os casos, para indicar sua correspondência. Eu acredito que se deixa de fora o “alguns” na sentença “Homens existem” para evitar a objeção: “não todos?”

Eu acredito reapresentar corretamente o seu plano de ataque do seguinte modo.

Você quer em primeiro lugar levar-me a admitir que “Há

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homens” significa o mesmo que “Entre os entes há alguns homens”, ou “Uma parte dos entes são homens” ou “alguns entes são homens”. Em vez de ente vocês usam como significando o mesmo também as expressões “experienciável”, “existente”, “cuja(s) representação(ões) provêm de uma afecção do eu”. Estas são, creio, apenas modificações inessenciais. Talvez aparecem aí algumas dificuldades secundárias, ou sejam suprimidas. Contudo, a dificuldade principal permanece sempre a mesma e também a ideia geral do plano de ataque. Eu deveria agora, porém, ser levado a admitir que a expressão ser (existir) é usada no mesmo sentido que nas sentenças “Leo Sachse é” ou “existe”. Assim pareceria que você teria vencido a argumentação.

Eu posso muito bem conceder que a expressão “há homens” significa o mesmo que “Alguns existentes são homens” apenas sob a condição de que a palavra “existe” implica em um enunciado auto-evidente, portanto, que não propriamente não tem nenhum conteúdo. O mesmo vale para as outras expressões que foram usadas no lugar de “existir”.

Agora, se a sentença “Leo Sachse é” é auto-evidente, então, o “é” não pode ter o mesmo conteúdo que “há” na sentença “Há homens”, pois esta não diz algo auto-evidente. Quando vocês entendem que a sentença “Há homens” também expressa “Homens existem” ou “Entre os entes alguns são homens”, então, o conteúdo do enunciado não pode estar em “existem” ou “ente”, etc.. E este é o proton pseudos a partir do qual você depois é levado a juízos contraditórios: que1 o conteúdo do enunciado nas proposições “Alguns homens existem” ou “Alguns existentes são homens” ou “Homens existem” está contido na palavra “existem”. Isto não é o caso, antes apenas está ali contida a forma do enunciado, como na sentença “o céu é azul” a forma do enunciado está contida na cópula “é”. “Existem”, em ambas as sentenças, é apenas uma palavra estrutural (Formwort) a ser

1 “que” refere-se a proton pseudos. Cf. Abaixo página 17.

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compreendida de modo análogo ao “es” em “Es regnet”. Assim como a linguagem, diante do embaraço de introduzir um sujeito, inventou um “es”, assim ela aqui, no embaraço de introduzir um predicado gramatical, inventou o “existir”.

Que o conteúdo do enunciado não está na palavra “existir” eu mostro pelo fato que em vez disso se pode também dizer “igual a si mesmo”. “Há homens” significa o mesmo que “Alguns homens são iguais a si mesmos” ou “Alguns iguais a si mesmos são homens”. Na sentença “A é igual a si mesmo” fica-se sabendo algo novo sobre A tão pouco quanto em “A existe”. Nenhuma dessas sentenças pode ser negada. Pode-se em ambas substituir pelo A o que se quiser, elas permanecerão sempre corretas. Elas não dizem que A cai sob uma de duas classes, para diferenciar talvez de algum B que não pertence a esta classe. Quando se profere a sentença “A é igual a si mesmo”, pode-se apenas ter o objetivo de enunciar a lei lógica da identidade, não, porém, para tornar A um pouco mais conhecido. Do mesmo modo que pode-se afirmar, nas sentenças “Esta mesa existe” e “Mesas existem”, que “existe” significa o mesmo, pode-se também dizer que na sentença “Esta mesa é igual a si mesma” e “Mesas são iguais a si mesmas” o predicado “igual a si mesmo” tem o mesmo sentido. Apenas deve-se reconhecer que o juízo “Esta mesa existe” e “Esta mesa é igual a si mesma” são completamente auto-evidentes, que, portanto, nelas nenhum conteúdo especial é enunciado dessas mesas. Do mesmo modo como se denomina “Homens existem” por juízo de existência, na crença de que o conteúdo do enunciado está na palavra “existem”, pode-se denominar a sentença “Alguns homens são iguais a si mesmos” [um juízo de identidade]1, e “Há homens” seria um juízo de identidade. Em geral, em toda demonstração que fosse tentada para encontrar o conteúdo do enunciado da sentença “Há homens” no “existem” da sentença “Homens existem”, poder-se-ia sempre substituir “existir” por “igual a si mesmo”, sem que

1 No manuscrito está: “juízos de identidade”.

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novos erros sejam por isso introduzidos. Eu me coloco a disposição para isso.

Agora, se o conteúdo do enunciado do juízo “Homens existem” não está em “existem”, onde está ele então? Eu respondo: na forma dos juízos particulares. Cada juízo particular é um juízo existencial, o qual pode ser transposto na forma “há”. Por exemplo, “Alguns corpos são leves” é o mesmo que “Há corpos leves”. “Alguns pássaros não podem voar” é o mesmo que “Há pássaros que não podem voar”, etc.. O contrário, transpor um juízo com “há” em um particular, é mais difícil. A palavra “alguns” fora da articulação não tem nenhum sentido; ela é uma palavra estrutural como “todo”, “cada”, “nenhum”, etc., que exercem uma função lógica na articulação da sentença. Esta função consiste na colocação dois conceitos na mesma relação lógica. Na sentença “Alguns homens são negros” os conceitos “Homem” e “Negro” são postos nessa relação. Necessita-se sempre de dois conceitos quando se quer fazer um juízo particular. Desse modo a sentença “Há peixes voadores” deixa-se facilmente traduzir para “Alguns peixes podem voar” por que se tem dois conceitos, “peixe” e “poder voar”. Mais difícil é quando se quer transpor a sentença “Há homens” para a forma de um juízo particular. Quando se difine Homem = ser vivo racional, então se pode dizer: “alguns seres vivos são racionais” e isso, sob a pressuposição da correção da definição, significa o mesmo que “Há homens”.

O uso de tais recursos pressupõe que se pode dividir o conceito em duas características. Uma outra maneira está intimamente relacionada a esta. Quando, por exemplo, retranscreve-se “Há negros”, então se pode dizer “Negro = negro que é homem”, porque o conceito “Negro” é subordinado ao conceito de “Homem”. Tem-se agora novamente dois conceitos e pode-se dizer “alguns homens são negros” ou “Alguns negros são homens”. Isto porém é apenas uma informação especial para o caso do conceito “Negro”. Para a sentença “Há bétulas” deve-se

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escolher outro conceito superordenado, talvez “Árvore”. Se se quer tornar a coisa completamente geral, deve-se buscar um conceito que seja superordenado a todos os conceitos. Um tal conceito, se se quer denominá-lo assim, não pode ter mais nenhum conteúdo, na medida em que sua extensão (Umfang) torna-se ilimitada; pois, todo conteúdo deve consistir apenas em uma certa delimitação da extensão. Como um tal conceito pode-se escolher o de “igual a si mesmo”, na medida em que se diz que “Há homens” é o mesmo que “Há homens iguais a si mesmos” é o mesmo que “alguns homens são iguais a si mesmos” ou “alguns iguais a si mesmos são homens”.

A linguagem valeu-se de outros meios. Para a construção de um conceito sem conteúdo serve-se ela da cópula, isto é, a simples forma do enunciado sem conteúdo. Na sentença “O céu é azul” o enunciado é “é azul”, mas o conteúdo real do enunciado está na palavra “azul”. Se esta é eliminada, então, obtém-se um enunciado sem conteúdo: o “O céu é” restante. Desse modo constrói-se um quase-conceito “ser” (Seiendes) sem conteúdo, porque de extensão infinita. Agora pode-se dizer: Homem = homem sendo; “Há homens” é o mesmo que “Alguns homens são” ou “Alguns entes são homens”. O conteúdo real do enunciado não está aqui na palavra “ser”, mas na forma dos enunciados particulares. A palavra “ser” é apenas um expediente da linguagem para poder tornar empregável a forma dos enunciados particulares. Quando os filósofos falam do “ser absoluto” trata-se aí propriamente de um endeusamento da cópula.

Agora, é fácil de ver como chega-se a isso. Percebe-se que a sentença “Há um centro de gravidade da Terra” não é auto-evidente, que, portanto, o enunciado tem um conteúdo. É muito esclarecedor que se acredite que esse conteúdo esteja contido na palavra “existe”, quando se emprega a versão “Um centro de gravidade da Terra existe”. Desse modo, introduziu-se um conteúdo na palavra “existe”, sem, entretanto, poder dizer-se em

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que se constitui na verdade este conteúdo.

Pode-se mostrar agora, como Pünjer, através do proton pseudos, ao ver o conteúdo do enunciado “Homens existem” em “existir”, devia ser conduzido a afirmações contraditórias. Eu pude convencê-lo facilmente de que a negação da sentença “A é experienciável”é impossível, quando ser experienciável = ser = existir. Ele teve que conceder também que o enunciado da experienciabilidade daquilo de que se enuncia, não o determina de modo algum. Por outro lado, ele queria entretanto salvar o conteúdo do enunciado de experienciabilidade. Nas sentenças “Esta mesa é experienciável”, “Esta mesa existe”, algo deveria ser dito, mas o enunciado não deveria conter nenhum enunciado supérfluo e auto-evidente. Então, ele foi também conduzido à contradição de conceber a negação da sentença “Esta mesa é experienciável” como não supérflua e não auto-evidente. Ele teve que esvaziar a palavra ‘experienciável” de qualquer conteúdo, entretanto, sem torná-la sem conteúdo. O conteúdo do juízo “Isto é experienciável”, Pünjer expressou assim: “A representação deste Isto não é uma alucinação, não é algo que provém apenas do eu; antes, a representação é feita a partir da afecção do eu por meio desse Isto”. Contra isso eu tive que redarguir que apenas se pode construir corretamente as expressões “Representação deste Isto” e “Afecção do eu por meio desse Isto” depois que se chegou ao juízo “a esta minha representação corresponde algo”. Se a esta minha representação não corresponde nada, então a expressão “Representação deste Isto” não tem sentido e por isso a inteira sentença é sem-sentido.1 Pünjer modificou depois sua explicação, sem conceder que ela era incorreta: “O objeto da representação B é experienciável” significa: “A representação B é feita com base em uma afecção do eu”. Disso eu apenas posso concluir que a negação da sentença “O objeto da representação B é experienciável” tem um bom sentido. Porém, Pünjer havia antes

1 Frege aqui ainda não diferenciava sentido e significado. Ele teria, então, substituído aqui “Sentido” por “Significado” e “sem sentido” por “sem significado”.

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afirmado que a negação da sentença “A é experienciável” era impossível. Agora nós devemos delimitar isto um pouco e dizer: Se A é um objeto de experiência, então, a negação da sentença “A é experienciável” é impossível, mas, se A é um objeto de representação, então, a negação daquela sentença é possível. Nós vemos confirmado nesse exemplo que é impossível dar um sentido não auto-evidente ao predicado “experienciável” e ao mesmo tempo manter que a negação da experienciabilidade é sem-sentido. Nós vemos também que o conceito de experienciável apenas adquire um conteúdo ao ter sua extensão limitada. De fato, todos os objetos são repartidos em duas classes: os objetos da experiência e os de representação. Os últimos não caem em sua totalidade sob o conceito de “experienciável”. Disso se pode concluir mais ainda, que nem todo conceito é subordenado ao conceito de experienciável, a saber, não o conceito de “Objeto de representação”. Disso se segue ainda que o conceito de experienciável não é em geral apropriado para o objetivo de dar um juízo com “há” a forma do particular. Para justificar a expressão “objeto de representação” em geral, Pünjer teve que afirmar que cada representação tem um objeto, que há objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu. Se aplicamos a isso sua definição de proposição com “Há”, então uma contradição tem lugar. De fato, a partir dessa definição o juízo “Há objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu” significa o mesmo que “Entre o que é experienciável, há alguns que caem sob o conceito ‘objeto de uma representação que não provêm de uma afecção do eu’”. Porém, pela explicação de Pünjer, os objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu não são experimentáveis. Logo, nós chegamos a proposição: “Entre o que é experienciável, há algo que não é experienciável”.

Pode-se também dizer: das duas premissas

1. Há objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu;

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2. Objetos de representação que não provêm de uma afecção do eu não são experimentáveis;

segue-se a conclusão:

Há objetos de representação os quais não são experimentáveis. Isto é uma contradição, na medida em que pela expressão “Há” seja expresso o mesmo tipo de existência que pela palavra “experienciável”.

Em geral pode-se estabelecer o seguinte:

Quando se queira dar um conteúdo à palavra “ser” de tal modo que a proposição “A é” não seja supérflua e auto-evidente, faz-se necessário admitir que a negação da proposição “A é” é possível sob certas circunstâncias; isto é, que há objetos (Subjektes) dos quais o ser deve ser negado. Desse modo, porém, o conceito “ser” não seria mais em geral adequado para a explicação do “Há” de modo a propiciar que “Há B’s” signifique o mesmo que “Alguns seres caem sob o conceito B”; pois, se empregamos esta explicação para a proposição “Há objetos dos quais o ser deve ser negado”, nós obtemos “Alguns seres caem sob o conceito do não-ser” ou “Alguns seres não são”. Não se pode escapar disso, na medida em que se queira dar algum conteúdo ao conceito de ser, seja ele qual for. Faz-se necessário, pois, se a explicação de “Há B’s” como significando o mesmo que “Alguns seres são B” deva ser correta, que por ser se entenda algo completamente auto-evidente.

A contradição permanece também com base nessas razões quando se diz que “A existe” significa “A representação de A provêm de uma afecção do eu”. Aqui ocorrem ainda outras dificuldades, das quais eu quero mencionar apenas algumas.

Quando Leverrier colocou para si mesmo a pergunta se para além da órbita de Urano havia planetas, ele não se perguntou se a sua representação de uma planeta para além da órbita de Urano provinha ou poderia provir de uma afecção do eu. Quando as

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pessoas disputam se há um deus, elas não disputam acerca de se nossa representação de um deus provém ou poderia provir de uma afecção do eu. Muitos daqueles que acreditam que há um deus, discutem se a sua representação dele provém de uma afecção imediata do seu eu por deus, pois aqui apenas uma afecção imediata pode estar em questão. Mas, isso é apenas uma questão secundária. O resultado é o seguinte:

Pode-se dizer que os significados da palavra “existir” nas proposições “Leo Sachse existe” e “Alguns homens existem” não mostram nenhuma grande diferença como os de “ser um alemão” nas proposições “Leo Sachse é um alemão” e “Alguns homens são alemães”. Porém, a proposição “Alguns homens existem” ou “Alguns existentes são homens” apenas significa o mesmo que “Há homens” quando o conceito “existente” é superordenado ao conceito “Homem”. Se, portanto, tais formas de expressão devem ser universalmente significar o mesmo, então, o conceito “existente” deve ser superordenado a todo conceito. Isto é apenas possível se a palavra “existir” signifique algo completamente auto-evidente, se, portanto, na proposição “Leo Sachse existe” nada foi enunciado e se na proposição “Alguns homens existem” o conteúdo do enunciado não estiver na palavra “existir”. A existência expressa pela palavra “Há” não está contida na palavra “existir”, mas na forma dos juízos particulares. “Alguns homens são alemães” é um juízo existencial tanto quanto “Alguns homens existem”. Porém, tão logo se dê à palavra “existir” um conteúdo que possa ser dito de particulares, este conteúdo pode ser posto como uma nota característica de um conceito, sob o qual cai o particular do qual o existir é enunciado. Se, por exemplo, divide-se tudo em duas classes,

1. O que está em meu espírito, as representações, sentimentos, etc., e

2. O que está fora de mim,

e dos últimos diz-se que existem, então, pode-se conceber a

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existência como nota característica do conceito de Centauro, embora não haja nenhum centauro. Eu não reconheceria nada como centauro que não estivesse fora do meu espírito; isto é, simples representações e sentimentos em mim, eu não chamaria de centauro.

A existência expressa por “Há” não pode ser nota característica de conceitos, do qual ela seria propriedade, mesmo porque ela é uma sua propriedade. Na proposição “Há homens” parece falar-se de indivíduos que caem sob o conceito “Homem”, embora trate-se apenas do conceito “Homem”. O conteúdo da palavra “existir” não pode ser tomado como nota característica de um conceito, porque “existir” não tem nenhum conteúdo [quando]1 é usada na proposição “Homens existem”.2

Vê-se aqui como se é induzido facilmente pela linguagem a falsas concepções, e qual valor deve ter para a Filosofia livrar-se do domínio da linguagem. Quando se tenta construir um sistema de sinais com fundamentos e meios inteiramente diferentes, como eu tentei com a construção de minha conceitografia3, por assim dizer, bate-se com o nariz em falsas analogias da linguagem.

1 No manuscrito está: “assim como”.2 Já em Os fundamentos da Aritmética, § 53, Frege havia tornado claro que ele tomava

“existência” como um “conceito de segunda ordem”. Desde Função e conceito, p.27, ele fala de “conceito de segundo nível” (cf. .....pp163). Conceitos de segundo nível (e suas notas características) indicam propriedades de conceitos e conceitos de primeiro nível propriedades de objetos. A última frase de Frege deve ser entendida assim: que “existir” não tem conteúdo como nota característica de um conceito de primeiro nível. Como conceito de segundo nível “existir” tem, também para Frege, um conteúdo, e este se constitui de uma única nota característica (de segundo nível), a existência.

3 Sob “Conceitografia” Frege entende aqui não apenas seu escrito de homônimo, mas o programa ali formulado da conceitografia de desenvolver um “modo de expressão adequado” que tornasse legível as relações lógicas diretamente nos sinais.

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18. Proposições seminais sobre a Lógica

G. Frege

Schriften zur Logik und Sprachphilosophie, aus dem Nachlass; hrsg. G. Gabriel. Hamburg, Felix Meiner, 2001. S. 35-73.

1. As conexões que perfazem a natureza do pensamento (Gedanke) são singularmente diferentes da associação de representações (Vorstellungen).

2. A diferença não está simplesmente em um pensamento auxiliar que justificaria a primeira conexão.

3. Pelo pensamento não são propriamente representações que são conectadas, mas coisas, propriedades, conceitos, relações.

4. O pensamento contém sempre algo sobre o caso particular (besondern Fall), pelo que este, enquanto cai sob algo geral (etwas Allgemeines), chega à consciência (Bewusstsein).

5. A expressão linguística para a singularidade do pensamento é a cópula ou a desinência pessoal do verbo.

6. Como marca característica externa para a conexão pensante (denkende Verknüpfung) pode valer que sobre ela a pergunta se ela é

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verdadeira (wahr) ou não-verdadeira (unwahr) tem um sentido. Associações de representações não são nem verdadeiras nem não-verdadeiras.

7. O que é o verdadeiro, eu tenho por não explicável.

8. A expressão linguística de um pensamento é a frase (Satz). Fala-se em sentido metafórico também da verdade de uma frase.

9. Uma frase pode ser verdadeira ou falsa apenas quando ela é a expressão de um pensamento.

10. A frase “Leo Sachse é um homem” é expressão de um pensamento apenas quando “Leo Sachse” designa algo. Assim também a frase “Esta mesa é redonda” é expressão de um pensamento quando as palavras “Esta mesa” designam para mim algo determinado, não sejam palavras vazias.

11. “2 vezes 2 é 4” permanece verdadeira, mesmo quando por causa do desenvolvimento darwiniano todos os homens então afirmassem que 2 vezes 2 fosse 5. Toda verdade é eterna e independente de ser ela é pensada e das condições psicológicas daquele que a pensa.

12. A lógica somente começa com a convicção de que há uma diferença entre verdade e inverdade.

13. Justifica-se um juízo (Urteil) ou através da remissão a verdades já conhecidas ou sem a utilização de outros juízos. Apenas o primeiro caso, o deduzir (das Folgern), é um objeto da Lógica.

14. As doutrinas do conceito (Begriff) e do juízo valem apenas como preparação para a doutrina da dedução.

15. A tarefa da lógica é a explanação das leis pelas quais um juízo é justificado por meio de outros, unicamente se aqueles são verdadeiros.

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16. A aplicação das leis lógicas pode implicar a verdade de um juízo apenas se os juízos a partir dos quais se justifica são verdadeiros.

17. As leis da lógica não podem ser justificadas por meio de investigações psicológicas.

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1ª edição, 2011.

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