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Julho de 2012
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Universidade do Minho
Escola de Direito
Antnio Rui Braga Lemos Soares
Direito: Evoluo e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Esprito do Direito Portugus no Sculo das Luzes
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Trabalho realizado sob a orientao doProfessor Doutor Paulo Jorge da Fonseca Ferreira da Cunha e da Professora Doutora Maria Clara Calheiros de Carvalho
Julho de 2012
Universidade do Minho
Escola de Direito
Antnio Rui Braga Lemos Soares
Direito: Evoluo e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Esprito do Direito Portugus no Sculo das Luzes
Tese de Doutoramento em Cincias Jurdicas GeraisEspecialidade de Cincias Jurdicas Gerais
iii
Para a queridssima Sofia
A Virgem est plida e olha para o menino. O que seria necessrio pintar neste
rosto um encantamento ansioso que no apareceu seno uma vez sobre uma figura
humana. Porque Cristo o seu menino: a carne da sua carne, o fruto das suas entranhas.
Cresceu nela durante nove meses e dar-lhe- o seu seio [...] e, por momentos, a tentao
to forte que ela esquece que ele Deus. Aperta-o nos seus braos e diz: Meu
pequenino.
Mas noutros momentos ela suspende esse movimento e pensa: Deus est aqui. E
fica possuda pelo horror religioso, por este Deus mudo, por esta criana terrificante.
Todas as mes ficam assim suspensas, por um momento, diante deste fragmento rebelde
da sua carne que o seu filho, sentem-se em exlio diante desta vida nova que se faz a
partir da sua e habitadas por pensamentos estranhos. Nenhuma criana, porm, foi to
cruelmente e to rapidamente arrancada me: aquela criana Deus e ultrapassa
sempre tudo o que Maria possa imaginar.
Penso que tambm h momentos, rpidos e fugidios, nos quais ela sente, ao mesmo
tempo, que Cristo seu filho e que ele Deus. Ao olhar para ele, pensa: este Deus meu
menino. Esta carne divina a minha carne. Ele feito de mim, tem os meus olhos e esta
forma da sua boca a forma da minha. Parece-se comigo. Ele Deus e parece-se
comigo.
Nenhuma mulher teve, desse modo, o seu Deus s para ela, um Deus pequenino
que se pode tomar nos braos e cobri-lo de beijos, um Deus quentinho que sorri e que
respira, um Deus que se pode tocar e que ri! num destes momentos que eu pintaria
Maria, se fosse pintor1.
Tabuao, 2012.
1 Carta enviada por Jean-Paul Sartre do seu cativeiro, aos padres que admirava. Trata-se de uma meditao sobre a pintura
que gostaria de fazer no Natal. Traduo de Frei Bento Domingues.
iv
v
Agradecimentos
Os meus primeiros agradecimentos so, com naturalidade, para a Universidade do
Minho, na pessoa do actual Reitor, Senhor Professor Doutor Antnio Cunha. A
instituio a quem devo quase toda a minha formao acadmica superior e da qual,
atravs da Escola de Direito, presidida pelo Senhor Professor Doutor Mrio Ferreira
Monte, recebi desde sempre o maior auxlio. Uma palavra de gratido envio, sem
dvida, ao Senhor Professor Doutor Lus Manuel Couto Gonalves pelo incentivo
constante que sempre me manifestou desde os meus cada vez mais saudosos tempos de
discente.
Presto o mais sentido reconhecimento ao meu orientador de sempre, Senhor
Professor Doutor Paulo Ferreira da Cunha, o qual, para mais, foi sempre de uma
compreenso extrema para comigo ao longo deste tempo em que tive a rara
oportunidade de conviver, intelectualmente, com um dos maiores pensadores do Direito
hodierno. O Mestre, na verdadeira acepo da palavra, desde que entrei para a
Universidade em 1993.
Senhora Professora Doutora Maria Clara Calheiros de Carvalho, tambm minha
orientadora de doutoramento, a quem tive a honra de conhecer j em funes lectivas na
Universidade do Minho e com a qual tenho trabalhado directamente no Departamento de
Cincias Jurdicas Gerais, envio o meu muito obrigado por tantos anos de aprendizagem
e de convvio acadmico absolutamente enriquecedor.
Envio Senhora Professora Doutora Joana Aguiar e Silva o mais sentido bem-haja,
pelo tempo de colaborao acadmica e pela imensa ajuda que me prestou, desde o
primeiro dia (literalmente) em que me tornei assistente estagirio da Escola de Direito da
Universidade do Minho e que tanto contribuiu, com os seus ensinamentos, para a
elaborao desta tese, tendo demonstrado para comigo uma inaudita pacincia at ao
ltimo dia, de todo imerecida da minha parte.
No me sendo possvel saudar todos os Professores da minha Escola de Direito,
pelo que me penitencio desde j, no poderia deixar de protestar a minha gratido a
outros Professores que comigo cooperaram com a maior disponibilidade. Os Senhores
Professores Doutores: Jos Viriato Capela da minha Universidade, Antnio Manuel
Hespanha da Universidade de Lisboa, Miguel Ayuso Torres da Universidad de Madrid,
Eugnio Santos da Universidade do Porto, Jos Manuel Subtil da Universidade de
Lisboa e Joo Cerqueira da minha Universidade so bons exemplos do que digo.
vi
Estou muito grato Senhora Dona Carmelinda Vilaa, Senhora Dona Alice
Cracel, Senhora Dr. Ana Maria Magalhes Ferreira, Senhora Dr. Sandra Gameiro
Amorim, Senhora Dr. Thays Cunha, Senhora Dr. Ana Sirage Coimbra e Senhora
Dona Sandra Henriques.
Muito reconhecido estou Biblioteca Pblica de Braga e aos seus distintos
funcionrios, pela simpatia e amizade com que sempre me receberam naquela insigne
instituio. Um especial agradecimento devo ao Sr. Gonalves pela preciosa ajuda que
sempre me disponibilizou na descoberta de tantos livros, num verdadeiro exemplo do
que servir o pblico. Atribuo o mesmo reconhecimento Sr. Dona Paula Pedra pela
ajuda que me prestou na transcrio dos processos que constam desta tese.
Gostaria de agradecer a todos os alunos de quem tive o prazer de ser docente desde
o ano lectivo de 2000/2001. De todos guardo uma recordao excelente e a certeza de
que o futuro lhes ser to risonho, como merecem.
O ltimo grupo de agradecimentos que endereo estritamente pessoal e deveria
ser, em boa verdade, o primeiro. Envio-o minha famlia, nas pessoas dos senhores
meus pais, inexcedveis ao longo de toda uma vida de apoio que nunca me foi
obnubilado, como bvio, no desenvolvimento desta tese. Um merecido agradecimento
que , naturalmente, extensvel a minha mulher e a meu irmo que partilharam comigo
todos os bons e os maus momentos deste perodo. Do mesmo modo, remeto as minhas
fraternas saudaes s minhas distintssimas colegas de curso, amigas de metade da vida
e para toda a vida, Dr. Sara Vaz Saleiro Lima e Dr. Sandra Duarte Ferreira, pelos anos
de amizade e de camaradagem verdadeiramente universitria que me proporcionaram.
Anos inolvidveis estes, que jamais foram, ou podero ser, minimamente, retribudos da
minha parte.
vii
Resumo da tese
Foi nossa inteno saber nesta tese se, num sculo de tantas e to importantes
alteraes como foi o sculo XVIII no mundo, teria ocorrido no Direito portugus um
processo de continuidade ou de ruptura. Verificmos que nos foi impossvel obter uma
resposta unvoca para esta questo. Com efeito, o mundo jurdico nacional foi objecto de
variadas transformaes que nos permitiu concluir que ocorreram, sim, sucessivas
continuidades e rupturas sobrepostas. Sumariemos, numa pgina, o que julgamos terem
sido as primeiras e o que pensamos terem sido as segundas.
Foi de continuidade a prevalncia da Lei como principal fonte do Direito
portugus, o que decorria da influncia de doutrinas estrangeiras que tiveram eco, entre
ns, desde o dealbar do pas. A mesma continuidade que vislumbrmos na total
aceitao dos nossos tribunais dos desgnios legalistas em alguns processos que
analismos. Uma total continuidade ser de observar, no elemento supra-estrutural das
reformas desenvolvidas no pas no sculo XVIII que vinham do tempo de D. Joo V e
continuaram depois de D. Jos. O mesmo se poder dizer da quase ausncia de oposio
a estas reformas, salvo quando afectaram directamente a integridade econmica e at
fsica de alguns sectores minoritrios, como a aristocracia e que apenas foram
manifestados depois do afastamento de Pombal. Os eventuais elementos de ruptura eram
perscrutveis, desde muito antes do reinado de D. Jos, logo foram muito mais de
continuidade.
J nos pareceram ter sido de ruptura outros aspectos. Desde logo, antes nos chegou
uma ruptura filosfica do que jurdica, se se manteve a continuidade da Lei como
principal fonte de Direito, j houve uma clara ruptura nos contedos legislativos muito
mais interventivos, reafirmados, doutrinalmente, depois da reforma da Universidade de
Coimbra de 1772. No aspecto juspoltico a mesma ruptura afigura-se-nos total, a partir
da publicao da obra atribuda a Pombal intitulada Deduo cronolgica e analtica de
1767. Mello Freire representou, na polmica do Novo Cdigo de Direito Pblico a
continuidade do absolutismo desptico e Ribeiro dos Santos, situou-se numa curiosa
encruzilhada da Histria: entre um tradicionalismo poltico que no viveu e um
liberalismo que percebeu chegar, mas a que tambm no assistiu.
viii
ix
Abstract
Our interest was to identify in this thesis, during a century of so many important changes
in the world as was the eighteenth century, if a process of continuity or rupture occurred
in Portuguese law. We found that we were unable to obtain an unambiguous answer to
this question. Indeed, the national legal world was subject to varied changes that allowed
us to conclude that successive continuities and overlapping ruptures occurred. We
summarize those which we believe were the first and the latter.
The continued prevalence of the Law was the main source of Portuguese law, which
stemmed from the influence of foreign doctrines that echoed among us since the dawn of
the country. The same continuity that we see in the full acceptance of our courts in the
legalistic designs of some processes that we examined. A total continuity will be
observed in the supra-structural reforms undertaken in the country in the eighteenth
century that remote from the time of King John V and persisted after King Joseph. The
same could be said of almost no opposition to these reforms, except when directly
affected by the economic and physical integrity of some minority sectors, such as
aristocracy and were manifested only after the removal of Pombal. The potential
elements of rupture were scrutinized long before the reign of King Joseph, therefore
were of much more continuity.
Other aspects already seemed to be of rupture. First, before we witnessed a
philosophical rather than a legal rupture, the continuity of the law as the main source of
law was maintained, there was a clear break in the content of doctrinally reaffirmed,
more interventional legislation after the University of Coimbra reform in 1772. In the
legal-political respect, to us the same rupture seems to be complete, from the publication
of Pombals work entitled Deduo cronolgica e analtica de 1767 (Analytical and
Chronological Deduction of 1767). Mello Freire represented the permanence of despotic
absolutism in the controversy of the New Code of Public Law and Ribeiro dos Santos,
stood in a curious crossroads in history: between a traditional politician who did not live
and a liberalism that he realized was coming, but which he did not witness.
x
xi
NDICE
INTRODUO 1
CAPTULO I
O ILUMINISMO: UMA POCA DECISIVA PARA A HISTRIA DA
HUMANIDADE.UMA REVOLUO FILOSFICA SEM PRECEDENTES,
QUE ANTECIPOU A CONTEMPORANEIDADE
1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos dias 6
1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da nossa,
em particular 19
1.3. .Riscos assumidos e a nossa posio de princpio
21
CAPTULO II
UMA MUDANA FILOSFICA NA EUROPA QUE PRECEDEU QUALQUER
PUTATIVA ALTERAO JUSFILOSFICA OCORRIDA NO DIREITO
PORTUGUS
2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de um tempo
nico 26
2.2. Portugal no complexo xadrez europeu da poca anterior s Luzes 29
2.3. A aparente tranquilidade do final do sculo XVII na Europa e um primeiro
balano do sculo XVIII 39
2.4. A influncia americana na Revoluo europeia 44
CAPTULO III
ALGUNS NOMES E IDEIAS QUE DEFINIRAM OS NOVOS TEMPOS
3.1. Uma nova era que se avizinha 47
xii
3.2. Hobbes 49
3.3. Locke 71
3.4. Montesquieu 88
3.5. Voltaire 105
3.6. Rousseau 125
3.7. Edmund Burke e a crtica Revoluo francesa 141
3.8. Kant 156
CAPTULO IV
A ILUSTRAO COMO PONTE ENTRE DOIS MUNDOS. O DIREITO A
MEIO DA PONTE
4.1. A extraordinria novidade de antigos preceitos 163
4.2. O espantoso balano de um sculo, em que o impossvel se tornou
possvel 176
4.3. Liberdades Velhas e um Admirvel Mundo Novo 184
4.4. O Direito a meio da ponte 192
4.5. A travessia da ponte sobre o Rubico? 197
CAPTULO V
PORTUGAL E AS LUZES.UMA DIFCIL, MAS INEVITVEL RELAO
5.1. Os difceis alvores das Luzes em Portugal 200
5.2. A influncia europeia. Uma inevitabilidade histrica que decorria dos
primeiros sculos da Histria de Portugal 205
5.3. Portugal e a Europa: diferenas e proximidades 211
5.4. O religioso como diferena especfica entre Portugal e a Europa 233
CAPTULO VI
PORTUGAL E AS LUZES. A CONSUMAO DE UMA INEVITABILIDADE
xiii
6.1. Afirmao de uma antiga tendncia para absolutizao do
Poder Poltico 237
6.2. A Restaurao de 1640 como tnue momento de inflexo
dessa tendncia 240
6.3. Portugal do sculo XVIII: entre Inquisio e Renovao 242
CAPTULO VII
AS LUZES CHEGARAM FILOSOFIA PORTUGUESA
7.1. Alexandre de Gusmo. A crtica chega ao poder e antecipa-se o futuro
prximo 247
7.2. O Fim das Cortes no decurso do Reinado de D. Joo V 253
7.3. Uma Legislao que parece anunciar uma ruptura 258
7.4. Antes de Pombal 261
7.5. Obras portuguesas que demonstram uma inicitica presena do iderio das
Luzes entre ns. Apontamentos para a Educao de um Menino Nobre de Martinho de
Mendona de Pina e de Proena Homem 266
7.6. A Lgica Racional e Dedutiva de Manuel de Azevedo Fortes 288
7.7. Lus Antnio Verney e o Verdadeiro Mtodo de Estudar. Influncia muito
importante do futuro Pombalismo 292
7.8. O Verdadeiro Mtodo de Estudar 298
CAPTULO VIII
UM TERRAMOTO OU UMA MERA CONTINUIDADE DA HISTRIA DO
DIREITO PORTUGUS
8.1. A importncia de toda a obra de Verney para os grandes marcos da poltica
de Sebastio Jos de Carvalho e Melo 311
8.2. Antnio Ribeiro Sanches e as Cartas Sobre a Educao da Mocidade 316
8.3. O marqus de Pombal. L homme ni est un ange ni bte 321
8.4. Pombalismo e Iluminismo 334
8.5. Lisboa como Utopia 344
xiv
8.6. A Deduo Cronolgica e Analtica como Ruptura Poltica 354
8.7. A Reforma da Universidade de Coimbra e a tentativa de ruptura no ensino do
Direito. O Compndio Histrico da Universidade de Coimbra de 1771 e os Estatutos
Novos de 1772 364
8.8. O Iluminismo em Portugal 382
CAPTULO IX
ANTNIO RIBEIRO DOS SANTOS. UM ESBOO BIOGRFICO DOS
PRIMEIROS ANOS
9.1. Antnio Ribeiro dos Santos. Os primeiros anos de vida. Um mundo em
mudana 390
9.2. Ribeiro dos Santos em Lisboa. Matrcula em Coimbra. Primeira Divergncia
acadmica com Mello Freire 392
9.3. Ribeiro dos Santos, Bibliotecrio da Universidade de Coimbra 395
9.4. Antnio Ribeiro dos Santos. Lente da Faculdade de Cnones e Scio da
Academia Real das Cincias de Lisboa 397
9.5. Dissdio com o Principal Mendona. Desterro para o Porto e regresso a
Coimbra 400
CAPTULO X
O PROJECTO DE NOVO CDIGO DE DIREITO PBLICO DE PORTUGAL
DE PASCOAL JOS DE MELLO FREIRE DOS REIS
10.1. Paschoal Jos de Mello Freire dos Reis 406
10.2. O Projecto Novo Cdigo de Direito Pblico de Portugal de Pascoal Jos de
Mello Freire dos Reis. Prolegmenos 408
10.3.O Projecto de Novo Cdigo de Direito Pblico: uma continuidade do Direito
portugus de Setecentos? 414
10.4. Anlise de alguns preceitos do Projecto de Novo Cdigo de Direito Pblico
de Mello Freire 416
10.4.1. Dos Direitos Reais 416
xv
10.4.2. Direitos e obrigaes dos sbditos no Novo Cdigo de Direito Pblico de
Portugal 418
10.4.3. Um Estado asfixiante e omnipotente antecipado no Projecto de Novo
Cdigo de Direito Pblico de Portugal 424
10.4.4. A Lei como Fonte de Direito. O meio jurdico capaz de alterar
o Mundo 429
10.4.5. Um Estado interventivo no plano do bem-estar social das famlias: a
Economia no Projecto de Novo Cdigo 433
CAPTULO XI
A FORMIDVEL SABATINA SETECENTISTA ENTRE A DICOTOMIA
CONTINUIDADE/RUPTURA
11.1. Antnio Ribeiro dos Santos na Junta de Censura e Reviso do Novo Cdigo
de Direito Pblico de Portugal 437
11.2. Mello Freire e Ribeiro dos Santos. As vises da
Historiografia jurdica 440
11.3. A Formidvel Sabatina Setecentista 443
11.3.1. A Origem do Poder 445
11.3.2. As Leis Fundamentais do Reino 448
11.3.3. O Juramento do Prncipe na sua exaltao 451
11.3.4. Foros e Liberdades dos Povos 453
11.3.5. Faltam os estamentos do Estado 455
11.3.6. As Cortes 456
11.4. Algumas dvidas acerca de Antnio Ribeiro dos Santos nos seus ltimos
anos de vida que no conseguimos resolver 459
CAPTULO XII
CONCLUSES 462
xvi
ANEXOS
1. Um processo de Justificao de Nobreza de 1772 465
2.Um Processo Cvel de 1782 467
3. Um processo-crime de 1784 476
Legislao utilizada 488
BIBLIOGRAFIA CITADA 490
1
INTRODUO
O sculo XVIII portugus foi e continua a ser alvo de inmeros ensaios e teses de
valor1 na Universidade nacional. Porm, esta poca mantm para ns importantes
questes e suscita-nos, muitas vezes, as mais vivas perplexidades. As matrias
filosficas, polticas, culturais e naturalmente jurdicas, podem ser ainda objecto das
mais dspares meditaes por parte dos especialistas, sendo difcil ou impossvel mesmo
obter algum consenso em muitos temas.
No particular espectro do Direito Portugus e da sua evoluo neste perodo,
entendemos como algo simplista, embora lgica e coerente, a fundamentao maioritria
acerca da transio doutrinal que adveio ao universo jurdico com a filosofia das Luzes2
e as suas inevitveis consequncias no Direito Portugus. Pensamos ser uma narrativa
perfeitamente racional mas, perguntamo-nos desde a primeira vez que estudamos o
tema, se esta explanao no ser demasiadamente esquemtica, deixando de parte
pormenores caractersticos do pas. Questionamo-nos se o complexo de alteraes que
sobreveio ao Direito Portugus com a Ilustrao, se pode equiparar ao percurso seguido
por outras naes europeias no mesmo perodo, mormente, quando conhecido que o
circunstancialismo nacional do sculo XVIII divergia muito do que se verificava em
outros lugares da Europa.
O desgnio desta tese , pois, discernir os eixos principais que determinaram uma
hipottica transformao das mais importantes doutrinas e prticas jurdicas no decurso
de Setecentos em Portugal (que se identificam, por norma, com a transio do
predomnio do Direito Natural Clssico, para a supremacia doutrinal do Direito Natural
Moderno, como tradicional ser entendido na Histria da Filosofia do Direito),
alteraes que confluram no perodo filosfico-jurdico que se denomina de
Jusracionalismo.
Perscrutaremos at que ponto e, se possvel, com que dimenso prtica, esta
especifica conjuntura histrica ocorrida no mundo do Direito que preparou o devir da
realidade jurdica da actualidade , conveio a uma qualquer Ruptura com a tradio
1 No fazendo sequer referncia aos mestres mais antigos da Histria do Direito Portugus, que aqui sero largamente
citados no decurso do nosso trabalho, merece natural realce a obra coordenada por Pedro Calafate no volume III da sua Histria do
Pensamento Filosfico Portugus, direco de Pedro Calafate, Lisboa, Crculo de Leitores, 2002. 2 Utilizaremos, indistintamente, as expresses: Ilustrao, Iluminismo, Aufklrung e Luzes, quando nos referirmos
ao movimento de ideias mais representativo do sculo XVIII.
2
jurdica portuguesa ou se, pelo contrrio, se ter concertado, muito mais, com um
fenmeno de Continuidade com essa mesma tradio, admitindo mesmo a permanncia
de alguns caracteres nacionais de pocas anteriores.
A indagao desta especfica dicotomia dever ser centrada, assim, maneira
tradicional da Histria do Direito, no corpo de fontes do Direito, nas instituies
jurdicas, no pensamento jurdico e, ainda no domnio juspoltico. A ltima matria
sofreu, na verdade, um complexo de alteraes de tal modo vertiginoso no decurso do
sculo XVIII, embora aceitemos que tal poder no ter sucedido da mesma maneira em
todas as naes, que pensamos ser impossvel omitir-lhe uma especfica referncia neste
estudo. No se nos afigura exequvel, tambm, conduzir uma anlise da dade
Continuidade/Ruptura no Direito Portugus do sculo da Ilustrao3, sem antes termos
procedido a uma breve contextualizao da realidade que se vivia em outros pases e,
bem assim, sem inserir as alteraes mais relevantes verificadas no mbito filosfico que
precederam aquelas.
Pretenderemos perceber, pois, se o Direito Portugus do perodo da Ilustrao
correspondeu, nas diversas vertentes que compreendeu, a um qualquer processo de
Ruptura com o passado ou concluiremos se, pelo contrrio, mais se aproximou de uma
Continuidade, ainda que relativa, com o mesmo passado jurdico-poltico. Numa ltima
hiptese de trabalho que constituir como que um Tertium Genus da nossa indagao,
ponderaremos alcanar se, o sculo XVIII em Portugal no constituiu, seno, um
conjunto sobreposto de rupturas e de continuidades sucessivas que, neste aspecto, muito
pouco divergiu do que sobreveio em anteriores pocas da Histria do Direito Portugus.
A questo que colocamos liga-se convico que possumos de que a Histria e o
Direito se relacionam reciprocamente e se expem, inexoravelmente, passagem do
tempo e dos Homens. Concordamos assim com a opinio de Almeida Costa ao infirmar
uma qualquer ideia de insularidade do jurdico em face de outros saberes e da
impossibilidade do estudo da Histria do Direito numa perspectiva de anlise meramente
conceitualista da cincia jurdica como durante muito tempo se pensou ser possvel
fazer4.
Iniciamos a tarefa que nos propusemos, conscientes de um aspecto muito saliente.
Estudaremos um perodo histrico-jurdico que, aparentemente, foi de absoluta ruptura
3 CATROGA, Fernando Caminhos do fim da Histria, Coimbra, Quarteto Editora, 2003, pp. 11/12. 4 COSTA, Mrio Jlio de Histria do Direito Portugus, com a colaborao de Rui Manuel de Figueiredo Marcos, 5.
edio, Coimbra, Almedina, 2011, p. 33.
3
com o passado, pelo menos com o passado Seiscentista. Podemos assinalar de imediato
como explicao desta nossa perspectiva, a caracterstica reconhecida de ter sido o
sculo das Luzes em geral, em contraste com as doutrinas do sculo XVII, o momento de
apogeu do optimismo do homem moderno. Um optimismo prometeico na ilustrativa
imagem de Fernando Catroga que, no estrito plano da historiografia, se traduziu na
convico de que a Histria, percepcionada agora como totalidade dinmica e evolutiva,
transportava um sentido multissecular que a razo filosfica ou mesmo as cincias do
homem tornaria cristalino. Tal como j sucedia no domnio da natureza, tambm no
mbito da historiografia se comeou a pensar que seria possvel alcanar uma panplia
de conhecimentos que permitiria prever e prover o futuro, nas palavras do mesmo autor
de todos conhecido porm, que a definio de Histria como uma integridade
evolutiva, passvel de ser explicada mediante previses, entrou em crise, se que se no
obnubilou mesmo, com o vrtice dos sculos. O que adveio quer da falncia das
ideologias, quer, o que ser mais relevante nesta tese, da diminuio do poder
emancipador da Razo, propalado saciedade a partir do Renascimento do sculo XVI e
das Luzes, seu corolrio jusfilosfico, no sculo XVIII5.
No sculo XXI de todo contestvel a explicao sistemtica dos fenmenos da
natureza e da sociedade, como se pensou ser possvel executar durante mais de dois
sculos. Num tempo de diversificao policntrica da cultura, parece irrealizvel mesmo
determinar um caminho nico para a Humanidade, sem cair num marcado e ultrapassado
ocidentalismocentrismo6 Mais ainda quando, desde a aurora do Iluminismo at aos
nossos dias, o tempo se encarregou de desfazer muitas das iluses, a maioria dos mitos e
grande parte das quimeras que eram difundidos pelos filsofos mais importantes daquela
poca, fazendo da maioria de ns verdadeiros pessimistas da Histria, na expresso de
Fukuyama. Assinala este autor numa obra famosa com a qual discordamos muitas vezes,
mas que, no obstante, colhe a nossa aceitao nesta passagem:
O sculo XX pode-se diz-lo, fez de todos ns profundos pessimistas histricos.
5 CATROGA, Fernando Caminhos do fim da Histria, Coimbra, Quarteto Editora, 2003, p. 13 6 FUKUYAMA, Francis O Fim da Histria e o ltimo Homem, 2. edio, reviso cientfica de Pedro M. S. Alves,
Lisboa, Gradiva, p. 27.
4
Como indivduos, podemos, decerto ser optimistas quanto s nossas expectativas pessoais,
relativamente sade e felicidade. [] Mas, quando se nos deparam questes mais latas, como
saber se tem havido, ou haver, progresso na Histria, o veredicto decididamente diferente7
O nosso escopo de, numa aproximao necessariamente aberta a outras
disciplinas (aspecto em que a Filosofia do Direito ganha destaque), ultrapassar a
dicotomia optimismo/pessimismo na anlise historiogrfica e jurdica do sculo XVIII
nacional (o que, desde j se pode avanar, no ser tarefa elementar, dada a quantidade e
mesmo a violncia dos argumentos aduzidos para elevar ou para diminuir a importncia
desta centria no nosso Direito) e perceber at que ponto o sculo da Ilustrao
constituiu, entre ns, no plano jurdico, um fenmeno de Continuidade ou de Ruptura
antes referidos. Evitaremos mesmo proferir, hic et nunc, quaisquer veredictos histricos
e preferiremos coonestar as diferentes posies que se confrontaram, os diversos autores,
as vrias doutrinas que se opuseram. Defendemos que, mais importante do que as
opinies dos historiadores do Direito que vem o Jurdico necessariamente, numa
perspectiva diacrnica , sem deixar grandes dvidas, procurar aproximar-nos o mais
possvel da poca e dos sujeitos que efectivamente viveram e pensaram o Direito no seu
tempo, tentar descobrir as suas coerncias e as suas incoerncias, as suas possveis
mudanas de posio e os seus pontos de contacto com o passado anterior s Luzes.
Por outro lado, estamos conscientes da ambivalncia que a transio do sculo
XVII para o XVIII implicou no plano filosfico e histrico. Os grandes pensadores deste
perodo hesitaram muitas vezes entre duas linhas de pensamento divergentes entre si,
que curiosamente se confrontaram, proprio sensu, com particular relevo no universo da
Historiografia. Visto que, o que importar depois do sculo XVIII, ser a superao de
qualquer fundamento teolgico da narrativa histrica o que ocorrer tardiamente e no
sem dificuldades conhecidas no nosso pas e determinar os factores operantes da
Histria como ocorria nas cincias naturais, designadamente na Fsica. Cincia que tinha
sido possvel de compreender nas suas leis causais que explicam todos os fenmenos da
natureza.
Para determinar estes factores operantes da Histria optou-se por dois caminhos
interligados.
O primeiro procurou obter todas as respostas nos factos histricos. As leis a
estabelecer s poderiam encontrar fundamento nos dados empricos proporcionados por
5
uma cincia que se pretendia cientfica. O segundo demandou encontrar um fundamento
teleolgico, normalmente a mal definida ideia de natureza, que substitusse a anterior
fundamentao teolgica da Histria8.
Questionaremos se, a transio para a poca da Ilustrao, implicou a mesma
senda nica para o Direito Portugus, idntica que se verificou em outros
ordenamentos jurdicos coevos, ou se pelo contrrio, teve caractersticas de uma relativa
originalidade nacional. O que, como evidente, correspondeu idiossincrasia prpria da
sociedade portuguesa deste perodo.
Usaremos como fronteira cronolgica o incio do sculo XIX, exclusive, mas
teremos de recorrer muitas vezes a perodos anteriores da Histria do Direito Portugus
por pensarmos, com os grandes mestres desta disciplina, no ser possvel extirpar
condicionamentos que no pertencem esfera do Direito e, dizemos ns, destruir os
condicionalismos do passado na cincia jurdica. Na verdade, sempre pensamos, ao
contrrio de ilustres historiadores do passado, no ser vivel estudar Histria do Direito
sem recorrer a consideraes de teor tico, poltico ou econmico sob pena de se
resvalar para um limitado ngulo de viso9.
8 GARDINER, Patrick Teorias da Histria, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 5. edio, 2004, pp. 4/5. 9 COSTA, Mrio Jlio de Almeida Histria do Direito Portugus, op. cit., pp. 33/34.
6
CAPTULO I
O ILUMINISMO
UMA POCA DECISIVA PARA A HISTRIA DA HUMANIDADE.
UMA REVOLUO FILOSFICA SEM PRECEDENTES, QUE
ANTECIPOU A CONTEMPORANEIDADE
Sumrio: 1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos
dias. 1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da
nossa em particular. 1.3. Riscos assumidos e a nossa posio de princpio.
1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos dias
Num plano geral, o Iluminismo a poca da Histria do Direito Portugus que
Nuno Espinosa Gomes da Silva integra, muito bem, no geral movimento de ideias das
Luzes e num terceiro grande perodo da Histria do Direito Ptrio. O perodo que
decorre decorre desde 1750 at 182010. Se aceitamos o fim cronolgico que escolhe o
grande historiador do Direito Portugus, j nos parece, com todo o respeito o afirmamos,
que a Ilustrao11 se iniciou, entre ns, mais cedo, pelo menos no domnio da Filosofia.
Foi o Iluminismo um movimento de pensamento muito abrangente, que Antnio
Braz Teixeira descreve, agora no estrito plano jusfilosfico e no seguimento da
perspectiva tradicional sobre a matria, de maneira elucidativa. Define em poucas
palavras um conjunto de alteraes muito importantes para o Direito que ocorreram com
a Ilustrao. Alteraes que, numa ptica estritamente juspoltica, foram caracterizadas
10 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da Histria do Direito Portugus, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 4. edio
revista e aumentada, p. 435. 11TEIXEIRA, Antnio Braz Filosofia jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, direco de Pedro
Calafate, Lisboa, Crculo de Leitores, 2002, p. 66, in fine.
7
por uma hipertrofia absolutista, mas que, contraditoriamente ou no, manifestaram um
vincado elemento demoflico.
Refere o autor portugus:
Esta nova atitude filosfico-cultural que se vai firmando ao longo do nosso sculo XVIII
e a nova antropologia em que assenta reflectiram-se, naturalmente, no modo de entender e
pensar o direito e a realidade jurdica.
Na verdade, o racionalismo e o naturalismo que caracterizam a antropologia iluminista e a
tendncia para a quantificao, a simplificao e a generalizao que, igualmente,
individualizam esta forma de pensamento conduziam a ma atitude eminentemente
antropocntrica, em oposio ao teocentrismo ou teologismo escolstico, e a um conceito
decididamente formal e abstractizante de razo, igual e imutvel em todos os homens, tempos e
lugares, qualitativamente diversa da razo de Deus, e que, conquanto tivesse nos dados dos
sentidos ou na sensao a fonte ou a imagem do conhecimento, era meio seguro, claro e
insofismvel de conhecimento e norma bastante da aco e da moralidade, que, por via
puramente dedutiva, se poderia retirar dos seus princpios naturais.
Esta nova antropologia impunha importantes modificaes no tradicional modo
aristotlico-tomista de entender o direito. Assim, do seu antropocentrismo e do seu particular
tipo de razo e racionalismo resultava que a fonte do direito natural, mais do que a razo ou a
vontade divinas, era a prpria razo humana, pelo que se trataria antes de um jusracionalismo do
que de um jusnaturalismo12.
O que, deve dizer-se, ocorreu, salvo particularismos nacionais, em quase todas as
naes que sofreram a influncia da Aufklrung. Na verdade, todos os reinos europeus,
em menor ou maior grau, bem como todas as novas naes do novo mundo,
comportaram a forte influncia da Ilustrao. Estas ltimas naes so, na sua prpria
gnese, fruto das Luzes e das suas consequncias. Sobre o Iluminismo, que foi a poca
em que o Jusracionalismo atingiu o seu apogeu na Europa, escreve Gilissen, no mesmo
sentido do historiador do Direito portugus:
O sculo XVIII o sculo das Luzes, da Aufklrung. o sculo em que a Europa
francesa pela Cultura, Artes, Letras, Filosofia. So inmeros os pensadores e escritores deste
sculo cuja influncia foi considervel e persistente sobre os factos e sobre o pensamento, tanto
poltico como jurdico do sculo XIX e at do sculo XX. As ideias de soberania da nao, isto
8
, a soberania do povo, de separao dos poderes, de preponderncia da lei, da legalidade das
infraces e das penas, dos direitos do homem, direitos naturais subjectivos e inalienveis,
tomaram corpo no sculo XVIII; clara expresso do liberalismo nascente, estas ideias
dominaram desde ento a concepo do Direito e do Estado.
O Bill of Rights em Inglaterra, em 1689, as constituies dos Estados americanos em
1776-1777, a constituio federal dos Estados Unidos em 1787, a declarao francesa dos
Direitos do Homem e as constituies da poca da Revoluo (1791, 1793 e 1795), actos
legislativos ainda hoje em vigor directa ou indirectamente, transpuseram estas ideias polticas e
filosficas para a realidade jurdica13.
O exerccio a desenvolver nesta obra, admite, partida, que o sculo XVIII foi, ele
prprio, um sculo de mudanas profundas em vrios domnios. O que pretendemos
descortinar se, no especfico universo jurdico portugus, aquelas alteraes se
produziram de maneira similar ao que se verificou em outros pases e, no caso
afirmativo, determinar em que moldes e com que dimenso prtica tal ter ocorrido.
Como terminmos de apontar, o sculo das Luzes em sentido amplo, implicou
alteraes de vulto em praticamente todas as reas. Todo o passado e todo o presente
sero, a partir daqui, sujeitos a uma crtica profunda baseada na pr-determinao de
uma superao da tradio estabelecida.
Daqui decorrer, naturalmente, a aparente ideia comum de ultrapassar o
estabelecido pela Histria. Por exemplo, a filosofia decorrente da Religio ser
contestada e procurar-se- substitu-la pelo racionalismo; a Economia deixar de ser
entendida como um simples captulo da Moral e ganhar foros de autonomia
epistemolgica, sendo construda sobre dados empricos expressos pela Matemtica; o
Direito deixar de ser resta saber, at que ponto tal ter sucedido em pases como
Portugal directa derivao da lex divina como os autores clssicos e os filsofos
medievais tinham defendido, mas descenderia da lex humana. Para todos aqueles que
continuavam a acreditar na ideia de Direito Natural, enquanto complexo de princpios
superior que deveria fundamentar e legitimar o Direito Positivo, o suporte axiolgico do
Jurdico deixar de se consubstanciar nos mandamentos divinos e passar a sustentar-se,
filosoficamente, na descoberta atravs da razo das mximas gerais conformes com a
natureza humana.
13 GILISSEN, John, Introduo Histrica ao Direito, traduo de A. M. Hespanha e de L. M. Macasta Malheiros, 3.
edio, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 366/367.
9
esta a poca, em sntese, em que se assiste ao dealbar na Europa do designado
Jusnaturalismo racionalista ou do Jusracionalismo como tambm chamado pela
Doutrina jurdica. Uma corrente Jusnaturalista muito menos concentrada na justificao
divina ou tica da autoridade do que na fundamentao dos direitos e das liberdades dos
cidados em face do poder absoluto do Estado. Da a profuso de declaraes de direitos
do homem e do cidado que ocorrero no final do sculo da Ilustrao em alguns
pases14.
Um ponto h que no parece oferecer discusso e que pertinente recordar: o
mundo ocidental legatrio, desde a Antiguidade clssica, de uma caracterstica que,
prima facie, parecer comum a todo o planeta ao longo da Histria. Uma caracterstica
que, todavia, constituiu e isto sem pretendermos resvalar em alguma forma de
etnocentrismo ou de cronocentrismo histricos, que proscrevemos15 uma
especificidade deste mesmo mundo ocidental. Especificidade, a qual, no sculo de que
tratamos se desenvolveu de maneira superlativa: a da autonomia epistemolgica do
Direito. Autonomia verificada desde h muitos sculos e plenamente reafirmada em face
de outras ordens normativas de enorme relevncia para a sociedade16 como a Moral ou
como a Religio. Ordens normativas que tm muita importncia mesmo para o Direito,
mas que so, definitivamente, no jurdicas17.
Ser verosmil reconhecer, por outro lado, que as civilizaes da China18 ou da
ndia tenham sido na Antiguidade muito mais requintadas e evoludas do que as da
Europa19. Como tambm certo que foram realidades polticas bastante mais antigas e
que os europeus pouco mais fizeram diante delas, durante muitos sculos, do que figura
de meros brbaros.
14 AMARAL, Diogo Freitas do Histria do Pensamento Poltico Ocidental, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 183/184. 15 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, traduo de Teresa
Loureiro, 3. edio, Lisboa, Gradiva, 2009, p. 14. 16 Da maior importncia ser consultar as pginas do Digesto, o que nos permite comparar o Direito da poca Clssica com o
mundo jurdico da actualidade e perceber a perspectiva jusfilosfica multidimensional e aberta a outros saberes por parte dos
romanos. Uma perspectiva muito diferente da nossa. A qual, todavia, conseguiu uma aproximao nica e fundamental ao Ser do
Direito. Cfr. ULPIANUS verso do Corpus Iuris Civilis, Theodor Momsen e Paul Krueger, Dublin/Zurique, Weidman, et passim;
CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 50/51. 17 LE FUR, Louis Les Caractres essentiels du Droit en comparaison avec les autres rgles de la vie social, in Archives
de Philosophie du droit et de Sociologie Juridique, Paris, Syrey, n. 3/4, 1935, p. 27. 18 Um conceito mais abrangente ser possvel de ser suscitado, que ultrapassa o mero mbito do continente europeu. o que
fazem os grandes mestres do Direito Comparado ou da Geografia Jurdica, ao utilizar a expresso Famlia de Direito Ocidental,
AGOSTINI, Eric Direito Comparado, traduo para portugus de Fernando Couto, Porto, Rs, 1988, pp. 194 e ss.. 19 Sobre os ordenamentos jurdicos das civilizaes da antiguidade, vg., por todos, GILISSEN, John, Introduo Histrica ao
Direito, op. cit., pp. 51 e ss..
10
Contudo, tambm parece indiscutvel que foi a Europa com o seu avano tcnico e
intelectual20, registvel pelo menos desde a Idade-Mdia e efectivado a partir do sculo
XV com os Descobrimentos portugueses e com a redescoberta da imprensa, como se
sabe, a imprensa foi descoberta em 1455 por Gutenberg21. Porm, preferimos utilizar a
expresso redescoberta, j que na China desde tempos remotos se utilizava um
processo muito parecido ao que o inventor alemo legou Europa j no decurso da
Modernidade. O que prova do avano do Oriente em face do Ocidente durante um
vasto perodo22, que tomou a iniciativa e se apoderou do comando poltico e econmico
do Mundo. Realidade que perdurou at ao sculo passado.
Aquela especificidade ocidental no domnio jusfilosfico que se poder traduzir
sob os signos actuais da plena autonomia do mundo jurdico, da Liberdade, da Cidadania
e da ideia de Humanidade, teve uma origem determinada. Nasceu da confluncia de trs
heranas distintas, por vezes contraditrias at, mas complementares entre si: a da
Filosofia Grega, a do Direito Romano e a da tica Judaico-Crist. Foram estas, at
hoje, as verdadeiras traves-mestras culturais do mundo ocidental. Trs legados que se
desenvolveram em momentos determinados da Histria. Na Antiguidade Clssica, na
Idade-Mdia, no Renascimento, na Reforma protestante e na Contra-Reforma catlica,
nas Luzes que estudaremos aqui, embora circunscritos ao especfico caso portugus, ou
nas Revolues americana e francesa de 1776 e de 1789 respectivamente23.
As ideias acerca do Direito e do Estado foram assim, em todos os tempos e lugares,
natural consequncia de outras concepes do esprito humano, no seu modo de perceber
a realidade: desde a percepo do Cosmos e do Homem, at compreenso da sociedade
e da vida24.
20 A pujana econmica europeia alargou o seu domnio a todos os continentes e teve uma natural influncia nos vrios
ordenamentos jurdicos com que contactou. Em alguns ramos de Direito sobretudo no Ambito do Direito Privado o sistema
Romano-Germanico e o sistema da Common Law, caractersticos do mundo ocidental, impuseram-se independentemente das
diversas solues concretas, desde Hamburgo at Jacarta. A propsito deste tema, vg., GORDLEY, James The Philosophical
Origins of Modern Contract Doctrine, Londres, Oxford University Press, 1991, p. 1. 21 Sobre Gutenberg, consulte-se, http://www.britannica.com/EBchecked/topic/249878/JohannesGutenberg. [consultada
em 14/03/2011]. 22 Acerca da publicao do primeiro jornal na China impresso num tipo mvel no ano de 1041, vg., http:// wikipedia.
org/wiki/Imprensa#Prim.C3.B3rdios. [consultada 14/03/2011]. 23 CUNHA, Paulo Ferreira da Sntese de Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2009, p. 49. 24 MONCADA, Lus Cabral de Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra, Coimbra Editora, 2. edio, reimpresso,
volume I [a partir daqui, sempre que citarmos esta obra no indicaremos o volume, por apenas fazermos referncia ao primeiro] pp.
9/10.
11
Consideramos, por outro lado, que parecem existir sculos que so mais
pequenos do que outros.
vulgar, por exemplo, na Historiografia ocidental, ponderar que o sculo XVIII se
iniciou apenas em 1715 com a morte de Lus XIV e terminou precocemente em 1789,
com a Revoluo francesa. O sculo XX teria nascido em 1914, com o deflagrar da I.
Guerra Mundial ou em 1917, com o eclodir da Revoluo de Outubro na Rssia. O
mesmo sculo teria findado prematuramente em 1989, com a queda do Muro de Berlim;
ou em 1991 com a imploso da Unio Sovitica. Neste ltimo ponto haver por ora
maior consenso, mas, mesmo assim, esta ou outra viso da realidade histrica ser
certamente questionvel de futuro, se o no j na actualidade25.
Outros sculos, porm, parecem durar muito mais do que 100 anos. Permanece a
sua perene influncia at actualidade e, quem sabe, se no continuar a verificar-se esta
ascendncia intelectual e filosfica, durante muito mais tempo. Parece-nos ser o caso do
sculo XVIII. Georges Gusdorf chama a ateno para este facto, embora num contexto
diverso do que terminmos de expor, ao propor a indagao historiogrfica desta poca
mediante o que designa de limites longos e no de limites curtos. Defende o mesmo
autor a diviso da centria de Setecentos, em duas fases essenciais.
A primeira destas fases corresponder ao que designa de crise da conscincia
europeia, que identifica pela existncia de uma elevada tenso intelectual no seio da
intelligentzia de vrios dos pases europeus. Tenso provocada pelo advento de um
vasto complexo de ideias novas pelo menos na sua formulao, que no na sua origem
histrica , que questionava, como nunca, os principais conceitos filosficos, polticos e
religiosos at a institudos26.
Exemplifiquemos. Em Frana, a morte do Rei-Sol suscitou o despertar sem
precedentes de uma actividade literria e filosfica de sentido crtico, de um modo que o
mesmo Gusdorf denomina de fermentao preparatria. Fermentao preparatria de
grandes alteraes filosficas, jurdicas e institucionais que ocorrero na segunda metade
do sculo das Luzes.
Movimento preparatrio de ndole similar ao referido ser de identificar em outros
pases europeus. Desde logo nos Pases-Baixos com a obra de Hugo Grcio (1583/1645).
25 indiscutvel que as divises temporais em Histria e em Histria do Direito colocam, mais do que tudo, problemas a
qualquer historiador. Podem muitas vezes limitar perspectivas e colocar bstculos ao grande objectivo e real interesse destes estudos
na actualidade. Sobre a apreenso do sentido do presente, atravs da compreenso do passado, AGUILERA BARCHET, Bruno
Introduccin Juridica a la Historia del Derecho, Madrid, Civitas, 1994, p. 120. 26 GUSDORF, Georges Les Principes de la Pense au Sicle ds Lumires, Paris, Payot, 1971, p. 54.
12
A afirmao peremptria segundo a qual o Direito Natural existiria, mesmo que se
admitisse a inexistncia de Deus27, manifesta uma tentativa de independncia e de
ruptura com a ordem estabelecida pelos sculos. Tratou-se mesmo da explanao da
primeira fractura de relevo com qualquer fundamento teolgico daquele mesmo Direito.
Esta perspectiva laica coloca Grcio numa posio de certa forma polmica no devir
filosfico. Para uns, uma figura de transio entre duas pocas: a Modernidade, que
encerraria e a Contemporaneidade, que anteciparia; para outros autores, poder-se-
considerar mesmo como o verdadeiro pai das Luzes28. Segundo cremos, deve
reconhecer-se a evoluo que a ideia de Direito Natural teve desde a Idade-Mdia at
obra de Grcio, mas deve em simultneo, atender-se aos pontos de confluncia entre a
Escolstica medieval e o racionalismo da Modernidade29. A Neo-Escolstica peninsular
teria funcionado como mediadora privilegiada entre estas duas importantes escolas
jurdicas. A mesma neo-escolstica que estaria, surpreendentemente, no cerne de vrias
doutrinas juscivilsticas da actualidade30.
Na Alemanha, o pensamento de autores nascidos ainda no sculo XVII, como
Samuel Puffendorf (1632/1694), Jacob Thomasius (1622/1684), ou Cristian Wolff
(1679/1754), determinar uma comum perspectiva de pensamento e contribuir para a
aquisio entre a intelectualidade germnica de uma muito importante matriz
racionalista, identificvel no plano da sapincia universal. O primeiro destes autores
pretendeu a edificao de um complexo de regras vinculativas para todo o Homem,
afirmando a existncia de direitos naturais e prescrevendo a ideia de que todo o Direito
positivado tem como funo reprimir os maus instintos do ser humano, que designa de
imbecilitas e que considera a parte essencial da sua natureza. O fundamento do Direito
Natural no ser mais que uma derivao de quaisquer axiomas evidentes, provenientes
da teologia, mas antes ter sua origem na auscultao desta mesma natureza, na parte
que o autor chama de socialitas.
Thomasius procurou distinguir as ordens Jurdica e Moral. Enquanto o Direito
regularia as relaes com os outros, o plano tico referir-se-ia apenas conscincia do
27 Como refere o autor holands numa passagem lapidar, est autem jus naturale adeo immutabile, ut neo a Deo quidem
mutari queat, GRCIO, Hugo De jure belli ac pacis, Tbingen: J. C. B. Mohr, 1950, I, I, 5, p. 42. 28 MARQUES, Mrio Reis Grandes Linhas de evoluo do Pensamento e da Filosofia Jurdicas, in Instituies de
Direito, Filosofia e Metodologia do Direito, coordenao de Paulo Ferreira da Cunha, volume I, Coimbra, Almedina, 1998, p. 236. 29 esta a posio de Gordley que coloca Grcio numa posio intermdia entre duas pocas, a par de outros autores como
Pufendorf. Sobre a matria, vg., GORDLEY, James The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, op. cit., 1991, p. 6. 30 Idem The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, op. cit., 1991, pp. 8/9.
13
sujeito, aos deveres que cada indivduo tem consigo prprio e no para com os demais.
Assim sendo, se os deveres jurdicos se reportam a um foro externo, os deveres morais
referem-se ao foro interno de cada indivduo. Se os primeiros so susceptveis de
imposio coerciva, os segundos so incoercveis.
Cristian Wolff fundamenta o seu sistema nos direitos originrios decorrentes da
natureza imutvel do Homem; direitos como os da igualdade, da liberdade, da
segurana, ou da legtima defesa31. O que se nos afigura muito significativo que,
enquanto as grandes alteraes propugnadas por este e pelos outros autores que
enuncimos ainda no tinham a sua aplicao positiva nos vrios ordenamentos
jurdicos, ganhavam j acelerado terreno nas principais Universidades europeias.
Em Inglaterra, a polmica suscitada pelo Desmo enquanto religio natural que
admite a existncia de um Deus criador mas que nega a ideia de revelao, bem como a
adopo progressiva nos meios cultos de uma nova sensibilidade, muito influenciada
pelo cientismo de Newton (1642/1727), produziram o despoletar desta mesma crise mais
cedo do que no restante continente europeu.
Ao contrrio, no nosso pas, a influncia iluminista chegaria mais tarde do que a
outros pases.
O que dizemos no nos leva a propender para a ideia de que esta influncia
iluminista se possa resumir ao ltimo quartel do sculo XVIII, porque a percepcionamos
desde meados do mesmo sculo, pelo menos.
Corroboramos, assim, a posio de Antnio Brz Teixeira quando distingue trs
diferentes ciclos na especfica reflexo tico-jurdica nacional no decurso do sculo
XVIII: um primeiro momento que decorre desde a dcada de 30 at ao fim da dcada de
60; um segundo estdio de influncia iluminista ser o imediatamente ulterior reforma
da Universidade de Coimbra; um terceiro perodo reporta-se ao final do sculo32,
derradeiro flego do Iluminismo em Portugal que se ter alargado nas suas
consequncias at Revoluo liberal portuguesa de 24 de Agosto de 1820 e
Constituio de 23 de Setembro de 182233.
Na opinio do mesmo autor, no primeiro ciclo de influncia da Ilustrao em
Portugal observa-se a emergncia de uma forte reflexo pedaggica, a presena de uma
31 MARQUES, Mrio Reis Grandes Linhas de evoluo do Pensamento e da Filosofia Jurdicas, in Instituies de
Direito, Filosofia e Metodologia do Direito, volume I, coordenao de Paulo Ferreira da Cunha, op.cit. pp. 237/238. 32 TEIXEIRA, Antnio Braz A Filosofia Jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, op. cit.,, p. 67. 33 MIRANDA, Jorge [introduo] As Constituies Portuguesas. De 1822 ao Texto Actual da Constituo, 4. edio,
Lisboa, Livraria Petrony, 1997, p. 29.
14
ntida concepo racionalista no plano antropolgico, o surgimento de uma corrente
jusnaturalista de teor contratualista e percebe-se, outrossim, o intento de autonomizar a
tica da teologia.
Num segundo momento, os projectos pedaggicos elaborados no perodo joanino
recebem plena consagrao poltica, a que se deve aduzir a imposio da nova
concepo de Direito Natural, antes referida.
Num terceiro e definitivo ciclo de influncia da Ilustrao, ser j perceptvel a
tentativa de retomar vrias das ideias aristotlico-tomistas, o que parece anunciar uma
ideia de refluxo jusfilosfico das Luzes e de correspectiva continuidade com o passado
anterior a Setecentos34.
Contudo, observmos uma diferena de ritmo no conhecimento e na adeso a
vrias das ideias que caracterizaram a Ilustrao. Em Portugal, a influncia do Desmo,
que antes se mencionou a propsito de Inglaterra, far-se- tambm sentir mas tal
suceder muito depois do que se passou na restante Europa e com caracteres muito
prprios. Caracteres que no se nos afiguram susceptveis de prenunciar uma qualquer
ruptura com a tradio catlica do pas mas, que, ao contrrio, a parecem reafirmar.
A obra mais importante sobre a matria s foi publicada em 1845, por Silvestre
Pinheiro Ferreira, e aqui se sublinha a insuficincia da religio natural em face da
religio revelada. Observe-se, por exemplo, o que se escreve no . 82;
Observmos j que em todos os povos e em diferentes pocas, antes e depois da pregao
do Evangelho, apresentaram-se vrios homens extraordinrios como enviados de Deus, para
transmitir uma Religio revelada. Mas nenhum desses homens cumpriu a palavra. Todos esses
sistemas religiosos foram maculados de doutrinas e prticas mais ou menos revoltantes. Deus
permitiu at, na imperscrutvel sabedoria dos seus decretos, que a Lei de Moiss, onde no
encontramos nenhuma mxima que fira os princpios essenciais da moral, deixasse ainda muito a
desejar quanto pureza dos sentimentos sociais e religiosos compatvel com a fragilidade
humana auxiliada pela assistncia da graa. So concesses, disse Jesus Cristo, que Moiss fez
dureza do corao dos povos, a quem esta lei era destinada. O Divino Mestre disse tambm:
No vim para destruir a Lei (revelada por Moiss) e os Profetas; vim sim para aperfeio-la.
Sim, Jesus Cristo veio trazer aos homens uma doutrina inteiramente digna da Divindade que
falava pela sua boca e se encontra consignada no seu Evangelho. Aqui, no h uma mxima que
34 TEIXEIRA, Antnio Braz A Filosofia Jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, volume III, direco
de Pedro Calafate, op.cit., p. 67, in fine.
15
no esteja de acordo com os princpios da mais pura razo; nem uma instituio que no seja
conforme os mais delicados sentimentos e moral mais austera35.
A mesma superioridade da f crist defendida por Pinheiro Ferreira verificvel
em muitos outros pargrafos do seu estudo. o paradigmtico caso do . 376;
Observmos acima que todos os erros relativos aos Mistrios provm de que os
heresiarcas ou os incrdulos, ao darem s palavras das frases enunciativas dos Mistrios, ora o
sentido prprio, ora o sentido figurado que tm na lngua, tornaram essas frases compreensveis
e apresentando um sentido ora plausvel, ora absurdo36.
O mesmo se poder dizer do . 379, entre muitas outras passagens possveis de
citar;
As doutrinas que Deus quis revelar aos homens, podem ser incompreensveis para eles,
atendendo aos estreitos limites da sua razo; mas elas no poderiam conter contradies; pois
quem diz contradio, diz mentira, e Deus a verdade suprema37.
Em Portugal38, no estrito plano jurdico e na sua vertente universitria, tudo parecia
continuar de acordo com o ensino tradicional de cunho escolstico e tomista. No
parecia haver aparente notcia dos desenvolvimentos doutrinais que ocorriam no mundo
do Direito. Notcia que, no obstante, nos chegaria com todo o aparato bem entrado o
sculo XVIII, graas ao directo e alto patrocnio da Coroa de alguns autores muito
conhecidos at aos nossos dias, como o caso de Lus Antnio Verney (1713/1792)39,
talvez o mais famoso de todos.
obra deste, se podem somar os anteriores e esparsos contributos de alguns
autores nacionais de grande mrito em outras reas do saber. Autores que escreveram
35 FERREIRA, Silvestre Pinheiro Teodiceia ou Tratado elementar de religio natural, prefcio de Antnio Brz Teixeira,
traduo de Rodrigo Cunha, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, . 82, p. 71. 36 Idem . 376, p. 126. 37 Ibidem . 379, p. 127. 38 Sobre a recepo da Escola Racionalista de Direito Natural em Portugal, vg., MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo O
Jusracionalismo Setecentista em Portugal, in Direito Natural, Poltica e Justia, Nmero Especial, volume I, II. Colquio
Internacional do Instituto Jurdico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, organizao de Paulo Ferreira
da Cunha, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 179 e ss.. 39 ANDRADE, Antnio Alberto Banha de Verney e a projeco da sua obra, Lisboa, Biblioteca Breve, Ministrio da
Cultura e da Cincia, 1980, p. 9.
16
sobre Direito, ainda que indirectamente, em obras de outro teor. o caso do engenheiro
Manuel de Azevedo Fortes (1660/1749)40 e do historiador e pedagogo Martinho de
Mendona de Pina e Proena Homem (1693/1743)41. Embora sem terem alcanado, nos
seus estudos, o mesmo impacto que a obra de Verney adquiriria no universo jurdico
portugus algumas dcadas depois e sem terem inovado na matria jurdica, no que quer
que seja, so figuras de inegvel mrito.
No mundo jurdico, as principais alteraes ocorreriam, to-s, no ltimo quartel
de Setecentos. Ou seja, pensamos que a Ilustrao nos ter chegado com algum atraso
histrico; atraso que mais se evidenciou no plano jurdico.
A instituio da cadeira de Direito Natural como disciplina autnoma ser apenas
inserida no curriculum de Coimbra pela reforma dos estudos universitrios desenvolvida
no reinado de D. Jos. Uma reforma que pretendeu aplicar um novo mtodo de ensino
do Direito: o mtodo do Usus Modernus Pandectarum. O que, sem significar que esta
Reforma, isoladamente, tenha obtido todos os resultados pretendidos, demonstra, pelo
menos, um assinalvel esforo estadual para a desenvolver.
A predominncia doutrinal de Wolff chegar-nos-ia, assim, muito depois do que
sucedeu nos restantes pases da Europa. Foi imposta no plano institucional apenas depois
da reforma da Universidade de Coimbra, encetada a partir da dcada de setenta do
sculo das Luzes com a publicao do Compndio Histrico da Universidade de
Coimbra. prova plena do que afirmmos, quanto aceitao tardia de uma nova
metodologia nos estudos jurdicos no nosso pas, bem como a sua manuteno durante
dcadas, a adopo at ao sculo XIX do manual de Carlos Antnio Martini
(1726/1800)42 como obra mais importante para o estudo autnomo da matria de Direito
40 Manuel de Azevedo Fortes nasceu em 1660 e morreu em 1749. Integrou a corrente das Luzes em Portugal e foi engenheiro
do exrcito portugus, desenvolvendo inovadores trabalhos na rea da fortificao militar. Foi autor do primeiro trabalho de Lgica
escrito em portugus, rompendo o monoplio da lngua latina no nosso pas. Denominou o seu estudo de Lgica Racional
Geomtrica e Analtica (que trataremos infra com algum detalhe) que foi publicado em 1744. Nesta sua obra procurou alcanar um
compromisso filosfico entre o racionalismo de Descartes e o sensismo propugnado pelas teorias de Locke. Designadamente no que
concerne teoria das ideias. Como veremos, nas poucas pginas que dedica ao universo Jurdico, Azevedo Fortes em nada se afasta
da perspectiva tradicional, de origem grega, romanista e escolstica, maioritria no pas. A biografia deste interessante autor
portugus ser consultvel in http://cvc instituto camoes.pt/filosofia/ilu3.html [consultada em 14/03/2010]. Maiores
desenvolvimentos sobre a sua relevncia para a filosofia portuguesa do Iluminismo podero obter-se in BERNARDO, Lus Manuel
A. V. O Projecto Cultural de Manuel De Azevedo Fortes, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, et passim. 41 Acerca desta interessante e pouco conhecida personagem da Ilustrao nacional, v.g, Idem O essencial sobre Martinho
de Mendona, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, et passim. 42 Carlos Antnio Martini (1726/1800). Regeu Direito Natural na Universidade Catlica de Viena, colaborou no Cdigo da
Imperatriz Maria Teresa (1717/1780), conhecido como Codex Theresianus, iniciado em 1752 e concludo em 1766, que definiu os
direitos civis na ustria tpica maneira do Iluminismo. Foi professor de Jos II (1741/1790) e de Leopoldo II (1747/1792), ambos
17
Natural. Isto, no deixou de ter consequncias de muito vulto no desenvolvimento de
vrios preceitos juspolticos, alguns deles identificveis nas obras de Martini (que os
dspotas iluminados procuraram aplicar o mais possvel nos seus pases): a igualdade de
todos perante a lei (meio essencial de promover o nivelamento social de todos os
sbditos ante o dspota e de eliminar quaisquer privilgios anteriores da nobreza e do
clero), a misso do soberano de prover a felicidade dos sbditos (uma tpica
caracterstica das Luzes a de que o Estado o principal responsvel por criar condies
materiais para a felicidade geral); a tolerncia religiosa (mesmo nos pases de mais
arreigada disciplina religiosa isso sucedeu43) e certa liberdade de conscincia, a
condenao da tortura44, ou a abolio da escravatura decorria o reinado de D.Jos em
Portugal, quando em 12 de Fevereiro de 1761, a escravatura foi abolida na Metrpole e
na ndia45.
Se isto estava de acordo com as novas e racionalistas ideias sobre o Direito
procuravam superar as teses escolsticas no sculo XVIII, j se poderia considerar
obsoleto 100 anos mais tarde.
Numa segunda fase que penetrar j no sculo XIX em muitos pases, o complexo
ideolgico que apenas fermentava na primeira metade de Setecentos na Frana, teve a
oportunidade de se aplicar pela via revolucionria nos pases culturalmente mais
prximos desta como Portugal. Efectivao que j sucedia, ipso facto, desde dcadas
antes de qualquer movimento revolucionrio proprio sensu, nas cortes absolutistas de
Frederico II da Prssia (1712/1786), de Catarina II da Rssia (1729/1796), ou de Maria
Teresa de ustria (1717/1780), s para dar os exemplos mais conhecidos.
Paradoxalmente ou no, os grandes princpios, os grandes ideais, que se
propalaram no perodo ps-revolucionrio na Europa, parecem comear por se aplicar na
poca de despotismo esclarecido, ou at antes. Neste sentido, a Revoluo ser o
prolongamento das principais ideias que a Ilustrao j afirmava junto do poder poltico
filhos da anterior e como ela Imperadores do Sacro Imprio e Reis da Hungria e da Bomia, vg., MERA, Paulo Estudos de
Histria do Ensino Jurdico em Portugal (1772-1902), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, n.r. 39, p. 22. 43 A 25 de Maio de 1773 publicou, a propsito do que dizemos, o governo portugus a lei que terminava com sediciosa
distino entre cristos-novos e cristos-velhos. Sobre a matria, vg., SERRO, Joaquim Verssimo O Marqus de Pombal:
o homem e o estadista, in Histria de Portugal, direco de Joo Medina, volume VII, Barcelona, 2001, p. 307. 44 Aqui se deve destacar a figura de Cesare Beccaria (1738/1794). Criminologista italiano foi um seguidor de Rousseau e das
suas ideias sobre a benignidade da Natureza Humana. Por isso mesmo, bateu-se pela proporcionalidade e suavizao das penas e
pela absoluta proibio da tortura como meio de prova, vg., AMARAL, Diogo Freitas do Histria do Pensamento Poltico
Ocidental, Coimbra, op. cit., p. 248. 45 http //oficina da oficina da histria.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html. [visto em 4/5/2010].
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institudo46. O que, como antes se observou, no sucedeu da mesma maneira em toda a
parte e no teve as mesmas consequncias em todos os pases.
Se foi s na segunda metade do sculo que, para Gusdorf, a filosofia das Luzes nas
suas diversas variantes, ganhou foros de plena independncia e de latente consagrao
juspoltica, com a publicao das principais obras de autores como Montesquieu
(1689/1755), Voltaire (1699/1778), Quesnay (1694/1774)47, Diderot (1713/1784),
DAlembert (1717/1783), Rousseau (1712/1778) Beccaria (1738/1794), entre outros, a
verdade que o movimento filosfico em causa se insinuava desde finais do sculo
XVII em pases como a Inglaterra.
Em simultneo, este movimento correspondeu, num plano juspoltico, ao pleno
estabelecimento do despotismo esclarecido como regime poltico vigente na maioria dos
pases da Europa, outra vez com a excepo do Reino-Unido.
As ideias de importantes intelectuais e a sua ulterior aplicao evidenciaro uma
brusca acelerao da Histria cultural. Acelerao que a Revoluo acentuaria de
maneira exponencial mediante a condensao de grande parte de diversos complexos
ideolgicos, e s dramticas mudanas a que deu lugar nos dois sculos que se lhe
seguiram48. Estes foram sculos, em que a face do mundo, a composio das sociedades,
a economia, as relaes entre os povos e o mundo jurdico, se alteraram mais do que nos
dois milnios anteriores49. Depois do perodo helenstico na Antiguidade clssica, aps o
Cristianismo e o Renascimento, no houve outra poca na Histria do esprito europeu
to agitada de ideias e to rica de tendncias, muitas vezes contraditrias nos seus
pressupostos, como a que correspondeu ao sculo das Luzes50.
Por isso mesmo ser muito difcil caracterizar, em poucos traos, o que foi o
Iluminismo. O que dizemos verificou-se por dois motivos. Primeiro, porque foi enorme o
nmero de tendncias que se digladiaram, tantas foram as foras em confronto at se
chegar ao eplogo, em alguns pases, das Revolues ulteriores de 1776 e de 1789.
46 Franois Quesnay foi mdico de Lus XV, mas destacou-se, sobretudo como economista. O Dr. Quesnay foi um frreo
defensor do Despotismo Iluminado, que deveria ter como principal objectivo promover o acrscimo do rendimento nacional atravs
do fomento agrcola, Idem Histria do Pensamento Poltico Ocidental, op. cit., p. 247. 47 Diderot e DAlembert: filsofo e matemtico franceses foram os principais arautos do Iluminismo, atravs da
Enciclopdia, ou Dicionrio comentado das Cincias, Artes e Profisses, como tambm era designado (1751/1772). A orientao
geral da Enciclopdia , em si mesma, o melhor retrato do sculo em que foi elaborada: materialista, testa, anti-monrquica,
anticlerical e absolutamente crente na Cincia e no Progresso da Humanidade, Ibidem Histria do Pensamento Poltico Ocidental,
op. cit., pp. 247/248. 48 MONCADA, Lus Cabral de Filosofia do Direito e do Estado, op. cit., p. 197. 49 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., pp. 12/13. 50 SILVA, Nuno Espinosa Gomes da Histria do Direito Portugus, op. cit., pp. 437 e ss..
19
Segundo, devido impossibilidade de determinar com um mnimo de certeza histrica o
momento preciso em que cessou a influncia da Ilustrao, o que, de novo, no sucedeu
em simultneo em todos os lugares.
1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da
nossa, em particular
A propsito do que escrevemos suscita Rmond um dos problemas de maior
gravidade que se coloca a qualquer historiador que se dedique ao estudo de um sculo
to multifacetado e rico culturalmente como foi o sculo XVIII, mesmo que apenas
centrado no especfico domnio jurdico:
Como meter uma tal superabundncia de acontecimentos dentro dos limites necessrios,
sem subverter as evolues, contrariar os tempos, escamotear preparaes e maturaes?51.
Esta uma adversidade que, como bvio, muito longe estar de ser a nica.
Outra destas adversidades prende-se com as mltiplas influncias que foram prevalentes
durante o sculo que estudamos. Influncias que se no circunscrevem ao aspecto
meramente jurdico, mas que ocorreram, sobremaneira, no elemento juspoltico,
alterando-o para sempre.
Refere Gilissen, a propsito:
A Escola do Direito Natural cujos principais representantes so ento Grcio,
Puffendorf, Domat e Pothier domina o pensamento no scs. XVII e XVIII. sob a influncia e
nos quadros do pensamento jurdico desta escola que so efectuadas as grandes codificaes do
sc. XVIII e incios do sc. XIX, sobretudo na Alemanha e em Frana.
No domnio poltico, comea a dominar o princpio da soberania nacional, que elaborado
sobretudo na Inglaterra e em Frana, no decurso dos scs XVII e XVIII, sob a influncia de
Locke, Rousseau, Voltaire e Montesquieu. Este princpio leva preponderncia da lei como
fonte de Direito, sendo a lei a expresso da vontade da nao soberana.
51 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., p. 13.
20
Ao mesmo tempo, as liberdades pblicas so afirmadas em importantes declaraes,
tendentes a reconhecer e a garantir os direitos subjectivos dos cidados (em Inglaterra o Bill of
Rights de 1689; nos Estados Unidos os Bill of Rights em certas constituies de Estados,
nomeadamente na Virgnia (1776), e as primeiras emendas da Constituio federal (1791); em
Frana, a Declarao Universal dos Direitos e do Cidado, em 1789, retomada em
numerosas constituies)52.
Ren Rmond traa uma linha de pensamento que nos parece de muito interesse no
domnio historiogrfico. Poder-se- seguir, tambm, segundo cremos, no que concerne
ao estudo jurdico do sculo XVIII portugus, que ora iniciamos.
Salienta o autor os inevitveis riscos que se correm na demanda da verdade
histrica. Menciona, desde logo, o perigo de sistematizao de ideias posteriori.
Como o historiador conhecedor da sequncia de factos ulteriores ao momento que
pretende estudar, pode ter a tentao de aplicar aos acontecimentos uma metodologia
racional que os contemporneos foram de todo incapazes de vislumbrar sequer.
Consideramos que o sculo de que tratamos foi vtima, diversas vezes, desta
circunstncia muito comum. Isto ocorre, sobretudo, porque a realidade histrica da
poca que se estuda no comportava essas ideias, no momento em que os factos tiveram
lugar. Ao dirigir o seu olhar de um ponto de vista elevado para o decurso dos
acontecimentos, o historiador pode perder a contingncia dos encadeamentos, bem como
o improviso e o imprevisto das situaes concretas da poca. Ser, pois, fundamental
[para este importante pensador, e para ns, modestamente], reafirmar o alcance da
conjuntura devolver importncia ao acontecimento ideia que defendemos desde
sempre e recuperar a relevncia das individualidades. Em suma, impe-se reabilitar o
fortuito e restituir o devido realce ao singular. Esta perspectiva no implicar, em
momento algum, que no exista continua Rmond e ns continuamos a subscrever a
sua posio uma certa lgica nos acontecimentos.
Como o autor, infirmamos quaisquer teses que pretendem limitar o historiador a
um mero relator de factos, sem qualquer interligao subjacente, ou confin-lo a uma
espcie de testemunha de um processo escatolgico que terminar espera-se que bem,
h mais de um sculo no fim dos tempos; contrariamos o reconhecimento de um
determinismo da histria orientado para a consecuo de um fim nico e derradeiro, bem
como a prpria dissoluo do saber do historiador numa infinidade de fenmenos
52 GILISSEN, John Introduo Histrica ao Direito, op. cit., p. 16.
21
asspticos. Pelo facto de no se reduzir a historiografia mera lgica dos nossos
sistemas de pensamento e de interpretao, no se poder afirmar, em momento algum,
que a experincia histrica se isente, por isso, de toda e qualquer racionalidade. Ser,
pois, possvel, admitir ao mesmo tempo, que a Histria apresenta algumas grandes
orientaes e que os processos pelos quais estas se manifestam e se realizam comportam,
em cada momento, uma pluralidade de combinaes possveis.
Ao historiador caber, assim, discernir as linhas mestras de cada tempo e desenhar
os eixos principais de uma determinada evoluo de sculos53.
1.3.Riscos assumidos e a nossa posio de princpio
esta a nossa posio de princpio acerca da Histria em geral e da Histria do
Direito em particular54. No entanto, estamos conscientes de alguns riscos que corremos:
dado o teor do labor que pretendemos realizar, por um lado, e dadas as polmicas vrias,
que, ainda nos nossos dias envolvem muitos dos factos e das personagens histricas que
referiremos, por outro. O sculo XVIII traa uma linha divisria para a historiografia e
para a historiografia jurdica portuguesa em particular.
Parece, de facto, no ser possvel encontrar um Tertium Genus entre as vises
apocalpticas de um sculo inteiro55 propugnadas por alguns e as mirficas odes
laudatrias que outros historiadores teceram ao mesmo sculo, ou, pelo menos, ao
53 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., p. 13. 54 Disciplina jurdica e histrica, em simultneo, que integramos na classificao das Cincias Jurdicas Humansticas. Este
conceito foi desenvolvido, desde h muito, por Paulo Ferreira da Cunha. Continua, quanto a ns, mais actual do que nunca por
permitir uma utilssima aproximao das diversas cincias jurdicas a outras realidades epistemolgicas que apenas podero valorizar
muitssimo aquelas, CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia do Direito, op. cit., pp. 117 e ss.. 55 Ideia obscura do sculo XVIII portugus que se centra, sobretudo, na figura polmica de Sebastio de Carvalho e Melo.
Sobre a possvel campanha difamatria sofrida por este, logo desde o incio do seu consulado, vg., SERRO, Joaquim Verssimo
Marqus de Pombal: o homem e o estadista in Histria de Portugal, volume VII, direco e coordenao de Joo Medina,
Barcelona, Ediclube, 2001, p. 278. 55 Estas odes laudatrias, e panegricas mesmo tiveram muito a ver com a dinmica legislativa que, sem dvida, Sebastio
Jos de Carvalho imprimiu ao seu governo e ao anticlericalismo de que sempre deu mostras. Anticlericalismo que, como se sabe, foi
muito apreciado nos sculos vindouros em Portugal, por grupos polticos que se situavam, precisamente, nos antpodas do
despotismo iluminado do ministro do Rei D. Jos. Tal significou a legalizao de muitas injustias e possibilitou ainda que estas
disposies no fossem, minimamente, respeitadoras dos direitos dos sbditos.
22
ltimo quartel da mesma centria56. O que se manifesta, ainda na actualidade em
diversos domnios epistemolgicos. Por exemplo no domnio da Literatura, Jos Jorge
Letria sublinha esta dificuldade num breve comentrio figura de Sebastio Jos de
Carvalho e Melo. Como refere na contracapa do seu interessante livro Mal por mal antes
Pombal, publicado em 2012:
A figura de Pombal no consente nem recomenda neutralidade ou indiferena, por ser
excessiva, imensa, omnipresente57.
Adverte Paulo Ferreira da Cunha, com toda a acuidade, a propsito de qualquer
indagao jusfilosfica e historiogrfico-jurdica, que sempre existir o perigo do
preconceito, que pode substituir a correcta explicao historiogrfica. Preconceito que
coloca no centro do universo um particularismo que o nosso (a nossa terra, a nossa
raa, a nossa perspectiva, as nossas ideias), entendido como o nico vlido, frente a
todos os demais; os quais, as mais das vezes, nem sequer se conhecem. Este
egocentrismo designado na antropologia de etnocentrismo. A este perigo, acrescer um
outro vcio comum: o de acreditar que o presente qualquer que este seja ser, pelo
simples facto de o ser, muito mais civilizado e evoludo do que o passado. o que se
designa de cronocentrismo58.
Concordamos que estas duas comuns limitaes, a que bem se poder somar o
elitismo59, colocadas a qualquer historiador do Direito, so irms gmeas de uma mesma
realidade a proscrever: o preconceito, ou os preconceitos antes referidos. Procuraremos,
evitar quaisquer dos obstculos indicados pelo nosso antigo Professor de Histria e
Filosofia do Direito e Mestre de sempre. Mas isto sem que tal implique, em momento
algum, escamotear que o historiador do Direito no deixa de ser um Homem concreto e
determinado. Com uma idade a que no pode escapar; nascido num local especfico do
planeta numa famlia determinada com limitaes bvias com fantasmas vrios que
por vezes o assaltaro, apesar de todas as cautelas, acometido por inmeras desiluses;
56 LETRIA, Jos Jorge Mal por mal antes Pombal. Uma memria de Sebastio Jos de Carvalho e Melo, Lisboa, Clube
do autor, 2012, contracapa, s.p.
56CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia Antropolgica? in Heterodoxias. I. As Artes entre as Letras, Porto,
2010,organizao e direco do mesmo autor, Porto, 2010, pp. 2/3. 57 Idem Sntese de Filosofia do Direito, op. cit., p. 87. 58 MACEDO, Jorge Borges de Estrangeirados, um conceito a rever, Lisboa, Edies do Templo, nota prvia, 1984., s.
p.
23
mas ainda, e sempre, detentor de algumas poucas iluses que a realidade e os anos ainda
no destruram por completo. Com ideias prprias, muitas vezes alteradas pelo tempo e
sobretudo, persuadido de que tudo se trata, afinal, no sendo pouco, de um longo e rduo
caminho que s se pode seguir, de uma nica e conhecida maneira: caminhando.
Na opinio de Jorge Borges de Macedo, o caminho de que falvamos ter de
seguir algumas regras determinadas, que se no podero desprezar em momento algum.
Desde logo, nunca se devem fixar sequncias, que impem a concluso antes da anlise,
de maneira a confirmar as correspondncias pretendidas.
Como refere:
[] se a orientao determinista falhou, at no campo das cincias da natureza o que
nos nossos dias apenas se poder confirmar com os extraordinrios desenvolvimentos
tecnolgicos , por se mostrar insuficiente, estril ou falsa, muito mais o tem sido no campo das
cincias humansticas, o nico domnio da realidade onde a conscincia , em simultneo, agente
e observador da aco, para alm das inevitveis confluncias60.
E, na mesma nota prvia ao seu estupendo estudo, Estrangeirados um conceito a
rever conclua:
Nesses termos, a finalidade da histria como cincia constituir de uma forma inteligvel
e objectiva, a experincia acumulada pelas diferentes problemticas e solues que a existncia
do humano tem engendrado e proposto. E a funo do historiador tornar compreensvel o
passado, transferindo a vivncia coerente da poca que estuda para aquela em que, pela mo
dele, volta a ser pensada, como experincia apercebida, como garantia de rigor e de prova, assim
como poder de comunicao para a experincia que se est vivendo61.
Numa perspectiva de todo diversa da de Rmond e admitindo o determinismo
histrico que antes se criticava, no entender de Manfred as dificuldades para o
historiador continuam a manifestar-se sem comiserao;
60 Idem, nota prvia, s.p. 60 MANFRED, Albert Rousseau, Mirabeau, Robespierre. Trs figuras da Revoluo Francesa, Lisboa, Edies Avante,
1975, p. 20.
24
O historiador est sempre prisioneiro dos documentos precisos, irrecusveis, sobre os
quais pode apoiar-se. Esta obrigao de contar com os materiais histricos de que dispe o
investigador determina precisamente a escolha dos heris. So demasiado escassas as
informaes, demasiado escassos os dados documentais dignos de confiana sobre os simples
actores de uma revoluo. Dispe-se de uma documentao incomparavelmente mais rica, no
que respeita aos chefes de fila de um grande processo revolucionrio62.
Deste modo, e pese embora todas as precaues expostas, no rejeitaremos emitir
os necessrios juzos pessoais sobre o nosso objecto de indagao. Contudo, f-lo-emos
apenas quando tal seja de todo necessrio para o decurso do nosso estudo. Trata-se de
juzos que, como se perceber, sero aqui sim, sem desconhecer ou descurar as vrias
posies expressas pela Historiografia jurdica nossos e s nossos. Outra coisa no
seria, alis, de pressupor ou de esperar, num tempo em que a necessria objectividade,
sempre requerida a qualquer historiador, no colide como nunca nos parece ter
colidido alguma vez com o juzo do prprio, seja ele qual for, desde que fundamentado
devidamente. De facto, sem juzos de valor no poderia existir, sequer, qualquer
indagao historiogrfica sria. E muito menos ainda, julgamos, poderia decorrer uma
aceitvel investigao do tipo da nossa, em pleno sculo XXI.
Nas certssimas palavras de Leo Strauss, escritas h mais de sessenta anos e
expressas, portanto, num dos momentos mais dramticos que a civilizao ocidental
conheceu, como foi o do fim da II. Guerra Mundial e o do tardio ocaso (apenas
conseguido, como se sabe, com o derramamento de muito sangue, suor e lgrimas, nas
palavras proferidas por Sir Winston Churchill, na Cmara dos Comuns do Parlamento de
Inglaterra e dirigidas a todo o povo britnico, atravs dos microfones da BBC, em 13 de
Maio de 1940)63 de algumas das ideologias totalitrias e desumanas, que a ela tinham
dado origem:
A rejeio de juzos de valor pe em risco a objectividade histrica. Em primeiro lugar,
impede que se chamem as coisas pelo seu nome. Em segundo lugar, pe em risco o tipo de
objectividade que legitimamente exige que se suspendam as avaliaes, designadamente a
objectividade da interpretao. O historiador que assume partida que os juzos de valor so
62 Discurso disponvel, por exemplo, in Portal da Histria, http://www.arqnet.pt/portal/discursos/maio02.html, [consultado
em 14/03/2010].
25
impossveis no pode levar a srio o pensamento do passado que se baseava no pressuposto que
os juzos de valor objectivos so possveis, isto , praticamente todo o pensamento das geraes
anteriores. Por saber de antemo que esse pensamento se baseia numa iluso fundamental, o
historiador v-se privado do incentivo necessrio para tentar compreender o passado como este
se compreendeu a si mesmo64.
Intentaremos, pois, perceber a realidade do Direito Portugus do sculo XVIII,
como ela se entendeu a si prpria e, desta maneira, evitar possveis pr-juzos que
afectem a nossa correcta indagao dos acontecimentos e das doutrinas filosficas que
lhes serviram de esteio. Antes de nos debruarmos sobre as especficas circunstncias, e
seu alcance jurdico, que determinaram a possvel adeso nacional ao novo iderio
jusfilosfico do Iluminismo e sobre putativa ruptura ou continuidade que este iderio
provocou com a tradio jurdica nacional, importa referir alguns aspectos prvios do
sculo XVIII na Europa.
64 STRAUSS, Leo Direito Natural e Histria, com introduo de Miguel Morgado, Lisboa, Edies 70, 2009, p. 55.
26
CAPTULO II
UMA MUDANA FILOSFICA NA EUROPA QUE PRECEDEU QUALQUER
PUTATIVA ALTERAO JUSFILOSFICA OCORRIDA NO DIREITO
PORTUGUS
Sumrio: 2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de
um tempo nico. 2.2. Portugal no complexo xadrez da poltica europeia anterior s
Luzes. 2.3. A aparente tranquilidade do final do sculo XVII na Europa e um primeiro
balano do sculo XVIII. 2.4. A influncia americana na Revoluo europeia.
2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de um tempo
nico
Interessa-nos determinar, antes de tudo, ainda que em traos muito largos, quais
foram as caractersticas principais que o sculo da Ilustrao produziu. So
caractersticas que continuam ainda a definir muito do que a realidade jurdica e
filosfica dos nossos dias65.
Como chama a ateno Cabral de Moncada, a poca esteve longe de ter constitudo
uma realidade homognea. Parece ter sido, por vezes, o sculo