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Julho de 2012 Minho 2012 U Universidade do Minho Escola de Direito António Rui Braga Lemos Soares Direito: Evolução e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Espírito do Direito Português no Século das Luzes António Rui Braga Lemos Soares Direito: Evolução e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Espírito do Direito Português no Século das Luzes

António Rui Braga Lemos Soares - repositorium.sdum.uminho.pt³nio... · respira, um Deus que se pode tocar e que ri! É num destes momentos que eu pintaria ... presidida pelo Senhor

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  • Julho de 2012

    Min

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    012

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    Universidade do Minho

    Escola de Direito

    Antnio Rui Braga Lemos Soares

    Direito: Evoluo e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Esprito do Direito Portugus no Sculo das Luzes

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  • Trabalho realizado sob a orientao doProfessor Doutor Paulo Jorge da Fonseca Ferreira da Cunha e da Professora Doutora Maria Clara Calheiros de Carvalho

    Julho de 2012

    Universidade do Minho

    Escola de Direito

    Antnio Rui Braga Lemos Soares

    Direito: Evoluo e Continuidade. Um Ensaio em torno do Sentido e do Esprito do Direito Portugus no Sculo das Luzes

    Tese de Doutoramento em Cincias Jurdicas GeraisEspecialidade de Cincias Jurdicas Gerais

  • iii

    Para a queridssima Sofia

    A Virgem est plida e olha para o menino. O que seria necessrio pintar neste

    rosto um encantamento ansioso que no apareceu seno uma vez sobre uma figura

    humana. Porque Cristo o seu menino: a carne da sua carne, o fruto das suas entranhas.

    Cresceu nela durante nove meses e dar-lhe- o seu seio [...] e, por momentos, a tentao

    to forte que ela esquece que ele Deus. Aperta-o nos seus braos e diz: Meu

    pequenino.

    Mas noutros momentos ela suspende esse movimento e pensa: Deus est aqui. E

    fica possuda pelo horror religioso, por este Deus mudo, por esta criana terrificante.

    Todas as mes ficam assim suspensas, por um momento, diante deste fragmento rebelde

    da sua carne que o seu filho, sentem-se em exlio diante desta vida nova que se faz a

    partir da sua e habitadas por pensamentos estranhos. Nenhuma criana, porm, foi to

    cruelmente e to rapidamente arrancada me: aquela criana Deus e ultrapassa

    sempre tudo o que Maria possa imaginar.

    Penso que tambm h momentos, rpidos e fugidios, nos quais ela sente, ao mesmo

    tempo, que Cristo seu filho e que ele Deus. Ao olhar para ele, pensa: este Deus meu

    menino. Esta carne divina a minha carne. Ele feito de mim, tem os meus olhos e esta

    forma da sua boca a forma da minha. Parece-se comigo. Ele Deus e parece-se

    comigo.

    Nenhuma mulher teve, desse modo, o seu Deus s para ela, um Deus pequenino

    que se pode tomar nos braos e cobri-lo de beijos, um Deus quentinho que sorri e que

    respira, um Deus que se pode tocar e que ri! num destes momentos que eu pintaria

    Maria, se fosse pintor1.

    Tabuao, 2012.

    1 Carta enviada por Jean-Paul Sartre do seu cativeiro, aos padres que admirava. Trata-se de uma meditao sobre a pintura

    que gostaria de fazer no Natal. Traduo de Frei Bento Domingues.

  • iv

  • v

    Agradecimentos

    Os meus primeiros agradecimentos so, com naturalidade, para a Universidade do

    Minho, na pessoa do actual Reitor, Senhor Professor Doutor Antnio Cunha. A

    instituio a quem devo quase toda a minha formao acadmica superior e da qual,

    atravs da Escola de Direito, presidida pelo Senhor Professor Doutor Mrio Ferreira

    Monte, recebi desde sempre o maior auxlio. Uma palavra de gratido envio, sem

    dvida, ao Senhor Professor Doutor Lus Manuel Couto Gonalves pelo incentivo

    constante que sempre me manifestou desde os meus cada vez mais saudosos tempos de

    discente.

    Presto o mais sentido reconhecimento ao meu orientador de sempre, Senhor

    Professor Doutor Paulo Ferreira da Cunha, o qual, para mais, foi sempre de uma

    compreenso extrema para comigo ao longo deste tempo em que tive a rara

    oportunidade de conviver, intelectualmente, com um dos maiores pensadores do Direito

    hodierno. O Mestre, na verdadeira acepo da palavra, desde que entrei para a

    Universidade em 1993.

    Senhora Professora Doutora Maria Clara Calheiros de Carvalho, tambm minha

    orientadora de doutoramento, a quem tive a honra de conhecer j em funes lectivas na

    Universidade do Minho e com a qual tenho trabalhado directamente no Departamento de

    Cincias Jurdicas Gerais, envio o meu muito obrigado por tantos anos de aprendizagem

    e de convvio acadmico absolutamente enriquecedor.

    Envio Senhora Professora Doutora Joana Aguiar e Silva o mais sentido bem-haja,

    pelo tempo de colaborao acadmica e pela imensa ajuda que me prestou, desde o

    primeiro dia (literalmente) em que me tornei assistente estagirio da Escola de Direito da

    Universidade do Minho e que tanto contribuiu, com os seus ensinamentos, para a

    elaborao desta tese, tendo demonstrado para comigo uma inaudita pacincia at ao

    ltimo dia, de todo imerecida da minha parte.

    No me sendo possvel saudar todos os Professores da minha Escola de Direito,

    pelo que me penitencio desde j, no poderia deixar de protestar a minha gratido a

    outros Professores que comigo cooperaram com a maior disponibilidade. Os Senhores

    Professores Doutores: Jos Viriato Capela da minha Universidade, Antnio Manuel

    Hespanha da Universidade de Lisboa, Miguel Ayuso Torres da Universidad de Madrid,

    Eugnio Santos da Universidade do Porto, Jos Manuel Subtil da Universidade de

    Lisboa e Joo Cerqueira da minha Universidade so bons exemplos do que digo.

  • vi

    Estou muito grato Senhora Dona Carmelinda Vilaa, Senhora Dona Alice

    Cracel, Senhora Dr. Ana Maria Magalhes Ferreira, Senhora Dr. Sandra Gameiro

    Amorim, Senhora Dr. Thays Cunha, Senhora Dr. Ana Sirage Coimbra e Senhora

    Dona Sandra Henriques.

    Muito reconhecido estou Biblioteca Pblica de Braga e aos seus distintos

    funcionrios, pela simpatia e amizade com que sempre me receberam naquela insigne

    instituio. Um especial agradecimento devo ao Sr. Gonalves pela preciosa ajuda que

    sempre me disponibilizou na descoberta de tantos livros, num verdadeiro exemplo do

    que servir o pblico. Atribuo o mesmo reconhecimento Sr. Dona Paula Pedra pela

    ajuda que me prestou na transcrio dos processos que constam desta tese.

    Gostaria de agradecer a todos os alunos de quem tive o prazer de ser docente desde

    o ano lectivo de 2000/2001. De todos guardo uma recordao excelente e a certeza de

    que o futuro lhes ser to risonho, como merecem.

    O ltimo grupo de agradecimentos que endereo estritamente pessoal e deveria

    ser, em boa verdade, o primeiro. Envio-o minha famlia, nas pessoas dos senhores

    meus pais, inexcedveis ao longo de toda uma vida de apoio que nunca me foi

    obnubilado, como bvio, no desenvolvimento desta tese. Um merecido agradecimento

    que , naturalmente, extensvel a minha mulher e a meu irmo que partilharam comigo

    todos os bons e os maus momentos deste perodo. Do mesmo modo, remeto as minhas

    fraternas saudaes s minhas distintssimas colegas de curso, amigas de metade da vida

    e para toda a vida, Dr. Sara Vaz Saleiro Lima e Dr. Sandra Duarte Ferreira, pelos anos

    de amizade e de camaradagem verdadeiramente universitria que me proporcionaram.

    Anos inolvidveis estes, que jamais foram, ou podero ser, minimamente, retribudos da

    minha parte.

  • vii

    Resumo da tese

    Foi nossa inteno saber nesta tese se, num sculo de tantas e to importantes

    alteraes como foi o sculo XVIII no mundo, teria ocorrido no Direito portugus um

    processo de continuidade ou de ruptura. Verificmos que nos foi impossvel obter uma

    resposta unvoca para esta questo. Com efeito, o mundo jurdico nacional foi objecto de

    variadas transformaes que nos permitiu concluir que ocorreram, sim, sucessivas

    continuidades e rupturas sobrepostas. Sumariemos, numa pgina, o que julgamos terem

    sido as primeiras e o que pensamos terem sido as segundas.

    Foi de continuidade a prevalncia da Lei como principal fonte do Direito

    portugus, o que decorria da influncia de doutrinas estrangeiras que tiveram eco, entre

    ns, desde o dealbar do pas. A mesma continuidade que vislumbrmos na total

    aceitao dos nossos tribunais dos desgnios legalistas em alguns processos que

    analismos. Uma total continuidade ser de observar, no elemento supra-estrutural das

    reformas desenvolvidas no pas no sculo XVIII que vinham do tempo de D. Joo V e

    continuaram depois de D. Jos. O mesmo se poder dizer da quase ausncia de oposio

    a estas reformas, salvo quando afectaram directamente a integridade econmica e at

    fsica de alguns sectores minoritrios, como a aristocracia e que apenas foram

    manifestados depois do afastamento de Pombal. Os eventuais elementos de ruptura eram

    perscrutveis, desde muito antes do reinado de D. Jos, logo foram muito mais de

    continuidade.

    J nos pareceram ter sido de ruptura outros aspectos. Desde logo, antes nos chegou

    uma ruptura filosfica do que jurdica, se se manteve a continuidade da Lei como

    principal fonte de Direito, j houve uma clara ruptura nos contedos legislativos muito

    mais interventivos, reafirmados, doutrinalmente, depois da reforma da Universidade de

    Coimbra de 1772. No aspecto juspoltico a mesma ruptura afigura-se-nos total, a partir

    da publicao da obra atribuda a Pombal intitulada Deduo cronolgica e analtica de

    1767. Mello Freire representou, na polmica do Novo Cdigo de Direito Pblico a

    continuidade do absolutismo desptico e Ribeiro dos Santos, situou-se numa curiosa

    encruzilhada da Histria: entre um tradicionalismo poltico que no viveu e um

    liberalismo que percebeu chegar, mas a que tambm no assistiu.

  • viii

  • ix

    Abstract

    Our interest was to identify in this thesis, during a century of so many important changes

    in the world as was the eighteenth century, if a process of continuity or rupture occurred

    in Portuguese law. We found that we were unable to obtain an unambiguous answer to

    this question. Indeed, the national legal world was subject to varied changes that allowed

    us to conclude that successive continuities and overlapping ruptures occurred. We

    summarize those which we believe were the first and the latter.

    The continued prevalence of the Law was the main source of Portuguese law, which

    stemmed from the influence of foreign doctrines that echoed among us since the dawn of

    the country. The same continuity that we see in the full acceptance of our courts in the

    legalistic designs of some processes that we examined. A total continuity will be

    observed in the supra-structural reforms undertaken in the country in the eighteenth

    century that remote from the time of King John V and persisted after King Joseph. The

    same could be said of almost no opposition to these reforms, except when directly

    affected by the economic and physical integrity of some minority sectors, such as

    aristocracy and were manifested only after the removal of Pombal. The potential

    elements of rupture were scrutinized long before the reign of King Joseph, therefore

    were of much more continuity.

    Other aspects already seemed to be of rupture. First, before we witnessed a

    philosophical rather than a legal rupture, the continuity of the law as the main source of

    law was maintained, there was a clear break in the content of doctrinally reaffirmed,

    more interventional legislation after the University of Coimbra reform in 1772. In the

    legal-political respect, to us the same rupture seems to be complete, from the publication

    of Pombals work entitled Deduo cronolgica e analtica de 1767 (Analytical and

    Chronological Deduction of 1767). Mello Freire represented the permanence of despotic

    absolutism in the controversy of the New Code of Public Law and Ribeiro dos Santos,

    stood in a curious crossroads in history: between a traditional politician who did not live

    and a liberalism that he realized was coming, but which he did not witness.

  • x

  • xi

    NDICE

    INTRODUO 1

    CAPTULO I

    O ILUMINISMO: UMA POCA DECISIVA PARA A HISTRIA DA

    HUMANIDADE.UMA REVOLUO FILOSFICA SEM PRECEDENTES,

    QUE ANTECIPOU A CONTEMPORANEIDADE

    1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos dias 6

    1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da nossa,

    em particular 19

    1.3. .Riscos assumidos e a nossa posio de princpio

    21

    CAPTULO II

    UMA MUDANA FILOSFICA NA EUROPA QUE PRECEDEU QUALQUER

    PUTATIVA ALTERAO JUSFILOSFICA OCORRIDA NO DIREITO

    PORTUGUS

    2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de um tempo

    nico 26

    2.2. Portugal no complexo xadrez europeu da poca anterior s Luzes 29

    2.3. A aparente tranquilidade do final do sculo XVII na Europa e um primeiro

    balano do sculo XVIII 39

    2.4. A influncia americana na Revoluo europeia 44

    CAPTULO III

    ALGUNS NOMES E IDEIAS QUE DEFINIRAM OS NOVOS TEMPOS

    3.1. Uma nova era que se avizinha 47

  • xii

    3.2. Hobbes 49

    3.3. Locke 71

    3.4. Montesquieu 88

    3.5. Voltaire 105

    3.6. Rousseau 125

    3.7. Edmund Burke e a crtica Revoluo francesa 141

    3.8. Kant 156

    CAPTULO IV

    A ILUSTRAO COMO PONTE ENTRE DOIS MUNDOS. O DIREITO A

    MEIO DA PONTE

    4.1. A extraordinria novidade de antigos preceitos 163

    4.2. O espantoso balano de um sculo, em que o impossvel se tornou

    possvel 176

    4.3. Liberdades Velhas e um Admirvel Mundo Novo 184

    4.4. O Direito a meio da ponte 192

    4.5. A travessia da ponte sobre o Rubico? 197

    CAPTULO V

    PORTUGAL E AS LUZES.UMA DIFCIL, MAS INEVITVEL RELAO

    5.1. Os difceis alvores das Luzes em Portugal 200

    5.2. A influncia europeia. Uma inevitabilidade histrica que decorria dos

    primeiros sculos da Histria de Portugal 205

    5.3. Portugal e a Europa: diferenas e proximidades 211

    5.4. O religioso como diferena especfica entre Portugal e a Europa 233

    CAPTULO VI

    PORTUGAL E AS LUZES. A CONSUMAO DE UMA INEVITABILIDADE

  • xiii

    6.1. Afirmao de uma antiga tendncia para absolutizao do

    Poder Poltico 237

    6.2. A Restaurao de 1640 como tnue momento de inflexo

    dessa tendncia 240

    6.3. Portugal do sculo XVIII: entre Inquisio e Renovao 242

    CAPTULO VII

    AS LUZES CHEGARAM FILOSOFIA PORTUGUESA

    7.1. Alexandre de Gusmo. A crtica chega ao poder e antecipa-se o futuro

    prximo 247

    7.2. O Fim das Cortes no decurso do Reinado de D. Joo V 253

    7.3. Uma Legislao que parece anunciar uma ruptura 258

    7.4. Antes de Pombal 261

    7.5. Obras portuguesas que demonstram uma inicitica presena do iderio das

    Luzes entre ns. Apontamentos para a Educao de um Menino Nobre de Martinho de

    Mendona de Pina e de Proena Homem 266

    7.6. A Lgica Racional e Dedutiva de Manuel de Azevedo Fortes 288

    7.7. Lus Antnio Verney e o Verdadeiro Mtodo de Estudar. Influncia muito

    importante do futuro Pombalismo 292

    7.8. O Verdadeiro Mtodo de Estudar 298

    CAPTULO VIII

    UM TERRAMOTO OU UMA MERA CONTINUIDADE DA HISTRIA DO

    DIREITO PORTUGUS

    8.1. A importncia de toda a obra de Verney para os grandes marcos da poltica

    de Sebastio Jos de Carvalho e Melo 311

    8.2. Antnio Ribeiro Sanches e as Cartas Sobre a Educao da Mocidade 316

    8.3. O marqus de Pombal. L homme ni est un ange ni bte 321

    8.4. Pombalismo e Iluminismo 334

    8.5. Lisboa como Utopia 344

  • xiv

    8.6. A Deduo Cronolgica e Analtica como Ruptura Poltica 354

    8.7. A Reforma da Universidade de Coimbra e a tentativa de ruptura no ensino do

    Direito. O Compndio Histrico da Universidade de Coimbra de 1771 e os Estatutos

    Novos de 1772 364

    8.8. O Iluminismo em Portugal 382

    CAPTULO IX

    ANTNIO RIBEIRO DOS SANTOS. UM ESBOO BIOGRFICO DOS

    PRIMEIROS ANOS

    9.1. Antnio Ribeiro dos Santos. Os primeiros anos de vida. Um mundo em

    mudana 390

    9.2. Ribeiro dos Santos em Lisboa. Matrcula em Coimbra. Primeira Divergncia

    acadmica com Mello Freire 392

    9.3. Ribeiro dos Santos, Bibliotecrio da Universidade de Coimbra 395

    9.4. Antnio Ribeiro dos Santos. Lente da Faculdade de Cnones e Scio da

    Academia Real das Cincias de Lisboa 397

    9.5. Dissdio com o Principal Mendona. Desterro para o Porto e regresso a

    Coimbra 400

    CAPTULO X

    O PROJECTO DE NOVO CDIGO DE DIREITO PBLICO DE PORTUGAL

    DE PASCOAL JOS DE MELLO FREIRE DOS REIS

    10.1. Paschoal Jos de Mello Freire dos Reis 406

    10.2. O Projecto Novo Cdigo de Direito Pblico de Portugal de Pascoal Jos de

    Mello Freire dos Reis. Prolegmenos 408

    10.3.O Projecto de Novo Cdigo de Direito Pblico: uma continuidade do Direito

    portugus de Setecentos? 414

    10.4. Anlise de alguns preceitos do Projecto de Novo Cdigo de Direito Pblico

    de Mello Freire 416

    10.4.1. Dos Direitos Reais 416

  • xv

    10.4.2. Direitos e obrigaes dos sbditos no Novo Cdigo de Direito Pblico de

    Portugal 418

    10.4.3. Um Estado asfixiante e omnipotente antecipado no Projecto de Novo

    Cdigo de Direito Pblico de Portugal 424

    10.4.4. A Lei como Fonte de Direito. O meio jurdico capaz de alterar

    o Mundo 429

    10.4.5. Um Estado interventivo no plano do bem-estar social das famlias: a

    Economia no Projecto de Novo Cdigo 433

    CAPTULO XI

    A FORMIDVEL SABATINA SETECENTISTA ENTRE A DICOTOMIA

    CONTINUIDADE/RUPTURA

    11.1. Antnio Ribeiro dos Santos na Junta de Censura e Reviso do Novo Cdigo

    de Direito Pblico de Portugal 437

    11.2. Mello Freire e Ribeiro dos Santos. As vises da

    Historiografia jurdica 440

    11.3. A Formidvel Sabatina Setecentista 443

    11.3.1. A Origem do Poder 445

    11.3.2. As Leis Fundamentais do Reino 448

    11.3.3. O Juramento do Prncipe na sua exaltao 451

    11.3.4. Foros e Liberdades dos Povos 453

    11.3.5. Faltam os estamentos do Estado 455

    11.3.6. As Cortes 456

    11.4. Algumas dvidas acerca de Antnio Ribeiro dos Santos nos seus ltimos

    anos de vida que no conseguimos resolver 459

    CAPTULO XII

    CONCLUSES 462

  • xvi

    ANEXOS

    1. Um processo de Justificao de Nobreza de 1772 465

    2.Um Processo Cvel de 1782 467

    3. Um processo-crime de 1784 476

    Legislao utilizada 488

    BIBLIOGRAFIA CITADA 490

  • 1

    INTRODUO

    O sculo XVIII portugus foi e continua a ser alvo de inmeros ensaios e teses de

    valor1 na Universidade nacional. Porm, esta poca mantm para ns importantes

    questes e suscita-nos, muitas vezes, as mais vivas perplexidades. As matrias

    filosficas, polticas, culturais e naturalmente jurdicas, podem ser ainda objecto das

    mais dspares meditaes por parte dos especialistas, sendo difcil ou impossvel mesmo

    obter algum consenso em muitos temas.

    No particular espectro do Direito Portugus e da sua evoluo neste perodo,

    entendemos como algo simplista, embora lgica e coerente, a fundamentao maioritria

    acerca da transio doutrinal que adveio ao universo jurdico com a filosofia das Luzes2

    e as suas inevitveis consequncias no Direito Portugus. Pensamos ser uma narrativa

    perfeitamente racional mas, perguntamo-nos desde a primeira vez que estudamos o

    tema, se esta explanao no ser demasiadamente esquemtica, deixando de parte

    pormenores caractersticos do pas. Questionamo-nos se o complexo de alteraes que

    sobreveio ao Direito Portugus com a Ilustrao, se pode equiparar ao percurso seguido

    por outras naes europeias no mesmo perodo, mormente, quando conhecido que o

    circunstancialismo nacional do sculo XVIII divergia muito do que se verificava em

    outros lugares da Europa.

    O desgnio desta tese , pois, discernir os eixos principais que determinaram uma

    hipottica transformao das mais importantes doutrinas e prticas jurdicas no decurso

    de Setecentos em Portugal (que se identificam, por norma, com a transio do

    predomnio do Direito Natural Clssico, para a supremacia doutrinal do Direito Natural

    Moderno, como tradicional ser entendido na Histria da Filosofia do Direito),

    alteraes que confluram no perodo filosfico-jurdico que se denomina de

    Jusracionalismo.

    Perscrutaremos at que ponto e, se possvel, com que dimenso prtica, esta

    especifica conjuntura histrica ocorrida no mundo do Direito que preparou o devir da

    realidade jurdica da actualidade , conveio a uma qualquer Ruptura com a tradio

    1 No fazendo sequer referncia aos mestres mais antigos da Histria do Direito Portugus, que aqui sero largamente

    citados no decurso do nosso trabalho, merece natural realce a obra coordenada por Pedro Calafate no volume III da sua Histria do

    Pensamento Filosfico Portugus, direco de Pedro Calafate, Lisboa, Crculo de Leitores, 2002. 2 Utilizaremos, indistintamente, as expresses: Ilustrao, Iluminismo, Aufklrung e Luzes, quando nos referirmos

    ao movimento de ideias mais representativo do sculo XVIII.

  • 2

    jurdica portuguesa ou se, pelo contrrio, se ter concertado, muito mais, com um

    fenmeno de Continuidade com essa mesma tradio, admitindo mesmo a permanncia

    de alguns caracteres nacionais de pocas anteriores.

    A indagao desta especfica dicotomia dever ser centrada, assim, maneira

    tradicional da Histria do Direito, no corpo de fontes do Direito, nas instituies

    jurdicas, no pensamento jurdico e, ainda no domnio juspoltico. A ltima matria

    sofreu, na verdade, um complexo de alteraes de tal modo vertiginoso no decurso do

    sculo XVIII, embora aceitemos que tal poder no ter sucedido da mesma maneira em

    todas as naes, que pensamos ser impossvel omitir-lhe uma especfica referncia neste

    estudo. No se nos afigura exequvel, tambm, conduzir uma anlise da dade

    Continuidade/Ruptura no Direito Portugus do sculo da Ilustrao3, sem antes termos

    procedido a uma breve contextualizao da realidade que se vivia em outros pases e,

    bem assim, sem inserir as alteraes mais relevantes verificadas no mbito filosfico que

    precederam aquelas.

    Pretenderemos perceber, pois, se o Direito Portugus do perodo da Ilustrao

    correspondeu, nas diversas vertentes que compreendeu, a um qualquer processo de

    Ruptura com o passado ou concluiremos se, pelo contrrio, mais se aproximou de uma

    Continuidade, ainda que relativa, com o mesmo passado jurdico-poltico. Numa ltima

    hiptese de trabalho que constituir como que um Tertium Genus da nossa indagao,

    ponderaremos alcanar se, o sculo XVIII em Portugal no constituiu, seno, um

    conjunto sobreposto de rupturas e de continuidades sucessivas que, neste aspecto, muito

    pouco divergiu do que sobreveio em anteriores pocas da Histria do Direito Portugus.

    A questo que colocamos liga-se convico que possumos de que a Histria e o

    Direito se relacionam reciprocamente e se expem, inexoravelmente, passagem do

    tempo e dos Homens. Concordamos assim com a opinio de Almeida Costa ao infirmar

    uma qualquer ideia de insularidade do jurdico em face de outros saberes e da

    impossibilidade do estudo da Histria do Direito numa perspectiva de anlise meramente

    conceitualista da cincia jurdica como durante muito tempo se pensou ser possvel

    fazer4.

    Iniciamos a tarefa que nos propusemos, conscientes de um aspecto muito saliente.

    Estudaremos um perodo histrico-jurdico que, aparentemente, foi de absoluta ruptura

    3 CATROGA, Fernando Caminhos do fim da Histria, Coimbra, Quarteto Editora, 2003, pp. 11/12. 4 COSTA, Mrio Jlio de Histria do Direito Portugus, com a colaborao de Rui Manuel de Figueiredo Marcos, 5.

    edio, Coimbra, Almedina, 2011, p. 33.

  • 3

    com o passado, pelo menos com o passado Seiscentista. Podemos assinalar de imediato

    como explicao desta nossa perspectiva, a caracterstica reconhecida de ter sido o

    sculo das Luzes em geral, em contraste com as doutrinas do sculo XVII, o momento de

    apogeu do optimismo do homem moderno. Um optimismo prometeico na ilustrativa

    imagem de Fernando Catroga que, no estrito plano da historiografia, se traduziu na

    convico de que a Histria, percepcionada agora como totalidade dinmica e evolutiva,

    transportava um sentido multissecular que a razo filosfica ou mesmo as cincias do

    homem tornaria cristalino. Tal como j sucedia no domnio da natureza, tambm no

    mbito da historiografia se comeou a pensar que seria possvel alcanar uma panplia

    de conhecimentos que permitiria prever e prover o futuro, nas palavras do mesmo autor

    de todos conhecido porm, que a definio de Histria como uma integridade

    evolutiva, passvel de ser explicada mediante previses, entrou em crise, se que se no

    obnubilou mesmo, com o vrtice dos sculos. O que adveio quer da falncia das

    ideologias, quer, o que ser mais relevante nesta tese, da diminuio do poder

    emancipador da Razo, propalado saciedade a partir do Renascimento do sculo XVI e

    das Luzes, seu corolrio jusfilosfico, no sculo XVIII5.

    No sculo XXI de todo contestvel a explicao sistemtica dos fenmenos da

    natureza e da sociedade, como se pensou ser possvel executar durante mais de dois

    sculos. Num tempo de diversificao policntrica da cultura, parece irrealizvel mesmo

    determinar um caminho nico para a Humanidade, sem cair num marcado e ultrapassado

    ocidentalismocentrismo6 Mais ainda quando, desde a aurora do Iluminismo at aos

    nossos dias, o tempo se encarregou de desfazer muitas das iluses, a maioria dos mitos e

    grande parte das quimeras que eram difundidos pelos filsofos mais importantes daquela

    poca, fazendo da maioria de ns verdadeiros pessimistas da Histria, na expresso de

    Fukuyama. Assinala este autor numa obra famosa com a qual discordamos muitas vezes,

    mas que, no obstante, colhe a nossa aceitao nesta passagem:

    O sculo XX pode-se diz-lo, fez de todos ns profundos pessimistas histricos.

    5 CATROGA, Fernando Caminhos do fim da Histria, Coimbra, Quarteto Editora, 2003, p. 13 6 FUKUYAMA, Francis O Fim da Histria e o ltimo Homem, 2. edio, reviso cientfica de Pedro M. S. Alves,

    Lisboa, Gradiva, p. 27.

  • 4

    Como indivduos, podemos, decerto ser optimistas quanto s nossas expectativas pessoais,

    relativamente sade e felicidade. [] Mas, quando se nos deparam questes mais latas, como

    saber se tem havido, ou haver, progresso na Histria, o veredicto decididamente diferente7

    O nosso escopo de, numa aproximao necessariamente aberta a outras

    disciplinas (aspecto em que a Filosofia do Direito ganha destaque), ultrapassar a

    dicotomia optimismo/pessimismo na anlise historiogrfica e jurdica do sculo XVIII

    nacional (o que, desde j se pode avanar, no ser tarefa elementar, dada a quantidade e

    mesmo a violncia dos argumentos aduzidos para elevar ou para diminuir a importncia

    desta centria no nosso Direito) e perceber at que ponto o sculo da Ilustrao

    constituiu, entre ns, no plano jurdico, um fenmeno de Continuidade ou de Ruptura

    antes referidos. Evitaremos mesmo proferir, hic et nunc, quaisquer veredictos histricos

    e preferiremos coonestar as diferentes posies que se confrontaram, os diversos autores,

    as vrias doutrinas que se opuseram. Defendemos que, mais importante do que as

    opinies dos historiadores do Direito que vem o Jurdico necessariamente, numa

    perspectiva diacrnica , sem deixar grandes dvidas, procurar aproximar-nos o mais

    possvel da poca e dos sujeitos que efectivamente viveram e pensaram o Direito no seu

    tempo, tentar descobrir as suas coerncias e as suas incoerncias, as suas possveis

    mudanas de posio e os seus pontos de contacto com o passado anterior s Luzes.

    Por outro lado, estamos conscientes da ambivalncia que a transio do sculo

    XVII para o XVIII implicou no plano filosfico e histrico. Os grandes pensadores deste

    perodo hesitaram muitas vezes entre duas linhas de pensamento divergentes entre si,

    que curiosamente se confrontaram, proprio sensu, com particular relevo no universo da

    Historiografia. Visto que, o que importar depois do sculo XVIII, ser a superao de

    qualquer fundamento teolgico da narrativa histrica o que ocorrer tardiamente e no

    sem dificuldades conhecidas no nosso pas e determinar os factores operantes da

    Histria como ocorria nas cincias naturais, designadamente na Fsica. Cincia que tinha

    sido possvel de compreender nas suas leis causais que explicam todos os fenmenos da

    natureza.

    Para determinar estes factores operantes da Histria optou-se por dois caminhos

    interligados.

    O primeiro procurou obter todas as respostas nos factos histricos. As leis a

    estabelecer s poderiam encontrar fundamento nos dados empricos proporcionados por

  • 5

    uma cincia que se pretendia cientfica. O segundo demandou encontrar um fundamento

    teleolgico, normalmente a mal definida ideia de natureza, que substitusse a anterior

    fundamentao teolgica da Histria8.

    Questionaremos se, a transio para a poca da Ilustrao, implicou a mesma

    senda nica para o Direito Portugus, idntica que se verificou em outros

    ordenamentos jurdicos coevos, ou se pelo contrrio, teve caractersticas de uma relativa

    originalidade nacional. O que, como evidente, correspondeu idiossincrasia prpria da

    sociedade portuguesa deste perodo.

    Usaremos como fronteira cronolgica o incio do sculo XIX, exclusive, mas

    teremos de recorrer muitas vezes a perodos anteriores da Histria do Direito Portugus

    por pensarmos, com os grandes mestres desta disciplina, no ser possvel extirpar

    condicionamentos que no pertencem esfera do Direito e, dizemos ns, destruir os

    condicionalismos do passado na cincia jurdica. Na verdade, sempre pensamos, ao

    contrrio de ilustres historiadores do passado, no ser vivel estudar Histria do Direito

    sem recorrer a consideraes de teor tico, poltico ou econmico sob pena de se

    resvalar para um limitado ngulo de viso9.

    8 GARDINER, Patrick Teorias da Histria, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 5. edio, 2004, pp. 4/5. 9 COSTA, Mrio Jlio de Almeida Histria do Direito Portugus, op. cit., pp. 33/34.

  • 6

    CAPTULO I

    O ILUMINISMO

    UMA POCA DECISIVA PARA A HISTRIA DA HUMANIDADE.

    UMA REVOLUO FILOSFICA SEM PRECEDENTES, QUE

    ANTECIPOU A CONTEMPORANEIDADE

    Sumrio: 1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos

    dias. 1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da

    nossa em particular. 1.3. Riscos assumidos e a nossa posio de princpio.

    1.1. O Sculo XVIII. Uma perene influncia que dura at aos nossos dias

    Num plano geral, o Iluminismo a poca da Histria do Direito Portugus que

    Nuno Espinosa Gomes da Silva integra, muito bem, no geral movimento de ideias das

    Luzes e num terceiro grande perodo da Histria do Direito Ptrio. O perodo que

    decorre decorre desde 1750 at 182010. Se aceitamos o fim cronolgico que escolhe o

    grande historiador do Direito Portugus, j nos parece, com todo o respeito o afirmamos,

    que a Ilustrao11 se iniciou, entre ns, mais cedo, pelo menos no domnio da Filosofia.

    Foi o Iluminismo um movimento de pensamento muito abrangente, que Antnio

    Braz Teixeira descreve, agora no estrito plano jusfilosfico e no seguimento da

    perspectiva tradicional sobre a matria, de maneira elucidativa. Define em poucas

    palavras um conjunto de alteraes muito importantes para o Direito que ocorreram com

    a Ilustrao. Alteraes que, numa ptica estritamente juspoltica, foram caracterizadas

    10 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da Histria do Direito Portugus, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 4. edio

    revista e aumentada, p. 435. 11TEIXEIRA, Antnio Braz Filosofia jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, direco de Pedro

    Calafate, Lisboa, Crculo de Leitores, 2002, p. 66, in fine.

  • 7

    por uma hipertrofia absolutista, mas que, contraditoriamente ou no, manifestaram um

    vincado elemento demoflico.

    Refere o autor portugus:

    Esta nova atitude filosfico-cultural que se vai firmando ao longo do nosso sculo XVIII

    e a nova antropologia em que assenta reflectiram-se, naturalmente, no modo de entender e

    pensar o direito e a realidade jurdica.

    Na verdade, o racionalismo e o naturalismo que caracterizam a antropologia iluminista e a

    tendncia para a quantificao, a simplificao e a generalizao que, igualmente,

    individualizam esta forma de pensamento conduziam a ma atitude eminentemente

    antropocntrica, em oposio ao teocentrismo ou teologismo escolstico, e a um conceito

    decididamente formal e abstractizante de razo, igual e imutvel em todos os homens, tempos e

    lugares, qualitativamente diversa da razo de Deus, e que, conquanto tivesse nos dados dos

    sentidos ou na sensao a fonte ou a imagem do conhecimento, era meio seguro, claro e

    insofismvel de conhecimento e norma bastante da aco e da moralidade, que, por via

    puramente dedutiva, se poderia retirar dos seus princpios naturais.

    Esta nova antropologia impunha importantes modificaes no tradicional modo

    aristotlico-tomista de entender o direito. Assim, do seu antropocentrismo e do seu particular

    tipo de razo e racionalismo resultava que a fonte do direito natural, mais do que a razo ou a

    vontade divinas, era a prpria razo humana, pelo que se trataria antes de um jusracionalismo do

    que de um jusnaturalismo12.

    O que, deve dizer-se, ocorreu, salvo particularismos nacionais, em quase todas as

    naes que sofreram a influncia da Aufklrung. Na verdade, todos os reinos europeus,

    em menor ou maior grau, bem como todas as novas naes do novo mundo,

    comportaram a forte influncia da Ilustrao. Estas ltimas naes so, na sua prpria

    gnese, fruto das Luzes e das suas consequncias. Sobre o Iluminismo, que foi a poca

    em que o Jusracionalismo atingiu o seu apogeu na Europa, escreve Gilissen, no mesmo

    sentido do historiador do Direito portugus:

    O sculo XVIII o sculo das Luzes, da Aufklrung. o sculo em que a Europa

    francesa pela Cultura, Artes, Letras, Filosofia. So inmeros os pensadores e escritores deste

    sculo cuja influncia foi considervel e persistente sobre os factos e sobre o pensamento, tanto

    poltico como jurdico do sculo XIX e at do sculo XX. As ideias de soberania da nao, isto

  • 8

    , a soberania do povo, de separao dos poderes, de preponderncia da lei, da legalidade das

    infraces e das penas, dos direitos do homem, direitos naturais subjectivos e inalienveis,

    tomaram corpo no sculo XVIII; clara expresso do liberalismo nascente, estas ideias

    dominaram desde ento a concepo do Direito e do Estado.

    O Bill of Rights em Inglaterra, em 1689, as constituies dos Estados americanos em

    1776-1777, a constituio federal dos Estados Unidos em 1787, a declarao francesa dos

    Direitos do Homem e as constituies da poca da Revoluo (1791, 1793 e 1795), actos

    legislativos ainda hoje em vigor directa ou indirectamente, transpuseram estas ideias polticas e

    filosficas para a realidade jurdica13.

    O exerccio a desenvolver nesta obra, admite, partida, que o sculo XVIII foi, ele

    prprio, um sculo de mudanas profundas em vrios domnios. O que pretendemos

    descortinar se, no especfico universo jurdico portugus, aquelas alteraes se

    produziram de maneira similar ao que se verificou em outros pases e, no caso

    afirmativo, determinar em que moldes e com que dimenso prtica tal ter ocorrido.

    Como terminmos de apontar, o sculo das Luzes em sentido amplo, implicou

    alteraes de vulto em praticamente todas as reas. Todo o passado e todo o presente

    sero, a partir daqui, sujeitos a uma crtica profunda baseada na pr-determinao de

    uma superao da tradio estabelecida.

    Daqui decorrer, naturalmente, a aparente ideia comum de ultrapassar o

    estabelecido pela Histria. Por exemplo, a filosofia decorrente da Religio ser

    contestada e procurar-se- substitu-la pelo racionalismo; a Economia deixar de ser

    entendida como um simples captulo da Moral e ganhar foros de autonomia

    epistemolgica, sendo construda sobre dados empricos expressos pela Matemtica; o

    Direito deixar de ser resta saber, at que ponto tal ter sucedido em pases como

    Portugal directa derivao da lex divina como os autores clssicos e os filsofos

    medievais tinham defendido, mas descenderia da lex humana. Para todos aqueles que

    continuavam a acreditar na ideia de Direito Natural, enquanto complexo de princpios

    superior que deveria fundamentar e legitimar o Direito Positivo, o suporte axiolgico do

    Jurdico deixar de se consubstanciar nos mandamentos divinos e passar a sustentar-se,

    filosoficamente, na descoberta atravs da razo das mximas gerais conformes com a

    natureza humana.

    13 GILISSEN, John, Introduo Histrica ao Direito, traduo de A. M. Hespanha e de L. M. Macasta Malheiros, 3.

    edio, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 366/367.

  • 9

    esta a poca, em sntese, em que se assiste ao dealbar na Europa do designado

    Jusnaturalismo racionalista ou do Jusracionalismo como tambm chamado pela

    Doutrina jurdica. Uma corrente Jusnaturalista muito menos concentrada na justificao

    divina ou tica da autoridade do que na fundamentao dos direitos e das liberdades dos

    cidados em face do poder absoluto do Estado. Da a profuso de declaraes de direitos

    do homem e do cidado que ocorrero no final do sculo da Ilustrao em alguns

    pases14.

    Um ponto h que no parece oferecer discusso e que pertinente recordar: o

    mundo ocidental legatrio, desde a Antiguidade clssica, de uma caracterstica que,

    prima facie, parecer comum a todo o planeta ao longo da Histria. Uma caracterstica

    que, todavia, constituiu e isto sem pretendermos resvalar em alguma forma de

    etnocentrismo ou de cronocentrismo histricos, que proscrevemos15 uma

    especificidade deste mesmo mundo ocidental. Especificidade, a qual, no sculo de que

    tratamos se desenvolveu de maneira superlativa: a da autonomia epistemolgica do

    Direito. Autonomia verificada desde h muitos sculos e plenamente reafirmada em face

    de outras ordens normativas de enorme relevncia para a sociedade16 como a Moral ou

    como a Religio. Ordens normativas que tm muita importncia mesmo para o Direito,

    mas que so, definitivamente, no jurdicas17.

    Ser verosmil reconhecer, por outro lado, que as civilizaes da China18 ou da

    ndia tenham sido na Antiguidade muito mais requintadas e evoludas do que as da

    Europa19. Como tambm certo que foram realidades polticas bastante mais antigas e

    que os europeus pouco mais fizeram diante delas, durante muitos sculos, do que figura

    de meros brbaros.

    14 AMARAL, Diogo Freitas do Histria do Pensamento Poltico Ocidental, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 183/184. 15 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, traduo de Teresa

    Loureiro, 3. edio, Lisboa, Gradiva, 2009, p. 14. 16 Da maior importncia ser consultar as pginas do Digesto, o que nos permite comparar o Direito da poca Clssica com o

    mundo jurdico da actualidade e perceber a perspectiva jusfilosfica multidimensional e aberta a outros saberes por parte dos

    romanos. Uma perspectiva muito diferente da nossa. A qual, todavia, conseguiu uma aproximao nica e fundamental ao Ser do

    Direito. Cfr. ULPIANUS verso do Corpus Iuris Civilis, Theodor Momsen e Paul Krueger, Dublin/Zurique, Weidman, et passim;

    CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 50/51. 17 LE FUR, Louis Les Caractres essentiels du Droit en comparaison avec les autres rgles de la vie social, in Archives

    de Philosophie du droit et de Sociologie Juridique, Paris, Syrey, n. 3/4, 1935, p. 27. 18 Um conceito mais abrangente ser possvel de ser suscitado, que ultrapassa o mero mbito do continente europeu. o que

    fazem os grandes mestres do Direito Comparado ou da Geografia Jurdica, ao utilizar a expresso Famlia de Direito Ocidental,

    AGOSTINI, Eric Direito Comparado, traduo para portugus de Fernando Couto, Porto, Rs, 1988, pp. 194 e ss.. 19 Sobre os ordenamentos jurdicos das civilizaes da antiguidade, vg., por todos, GILISSEN, John, Introduo Histrica ao

    Direito, op. cit., pp. 51 e ss..

  • 10

    Contudo, tambm parece indiscutvel que foi a Europa com o seu avano tcnico e

    intelectual20, registvel pelo menos desde a Idade-Mdia e efectivado a partir do sculo

    XV com os Descobrimentos portugueses e com a redescoberta da imprensa, como se

    sabe, a imprensa foi descoberta em 1455 por Gutenberg21. Porm, preferimos utilizar a

    expresso redescoberta, j que na China desde tempos remotos se utilizava um

    processo muito parecido ao que o inventor alemo legou Europa j no decurso da

    Modernidade. O que prova do avano do Oriente em face do Ocidente durante um

    vasto perodo22, que tomou a iniciativa e se apoderou do comando poltico e econmico

    do Mundo. Realidade que perdurou at ao sculo passado.

    Aquela especificidade ocidental no domnio jusfilosfico que se poder traduzir

    sob os signos actuais da plena autonomia do mundo jurdico, da Liberdade, da Cidadania

    e da ideia de Humanidade, teve uma origem determinada. Nasceu da confluncia de trs

    heranas distintas, por vezes contraditrias at, mas complementares entre si: a da

    Filosofia Grega, a do Direito Romano e a da tica Judaico-Crist. Foram estas, at

    hoje, as verdadeiras traves-mestras culturais do mundo ocidental. Trs legados que se

    desenvolveram em momentos determinados da Histria. Na Antiguidade Clssica, na

    Idade-Mdia, no Renascimento, na Reforma protestante e na Contra-Reforma catlica,

    nas Luzes que estudaremos aqui, embora circunscritos ao especfico caso portugus, ou

    nas Revolues americana e francesa de 1776 e de 1789 respectivamente23.

    As ideias acerca do Direito e do Estado foram assim, em todos os tempos e lugares,

    natural consequncia de outras concepes do esprito humano, no seu modo de perceber

    a realidade: desde a percepo do Cosmos e do Homem, at compreenso da sociedade

    e da vida24.

    20 A pujana econmica europeia alargou o seu domnio a todos os continentes e teve uma natural influncia nos vrios

    ordenamentos jurdicos com que contactou. Em alguns ramos de Direito sobretudo no Ambito do Direito Privado o sistema

    Romano-Germanico e o sistema da Common Law, caractersticos do mundo ocidental, impuseram-se independentemente das

    diversas solues concretas, desde Hamburgo at Jacarta. A propsito deste tema, vg., GORDLEY, James The Philosophical

    Origins of Modern Contract Doctrine, Londres, Oxford University Press, 1991, p. 1. 21 Sobre Gutenberg, consulte-se, http://www.britannica.com/EBchecked/topic/249878/JohannesGutenberg. [consultada

    em 14/03/2011]. 22 Acerca da publicao do primeiro jornal na China impresso num tipo mvel no ano de 1041, vg., http:// wikipedia.

    org/wiki/Imprensa#Prim.C3.B3rdios. [consultada 14/03/2011]. 23 CUNHA, Paulo Ferreira da Sntese de Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2009, p. 49. 24 MONCADA, Lus Cabral de Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra, Coimbra Editora, 2. edio, reimpresso,

    volume I [a partir daqui, sempre que citarmos esta obra no indicaremos o volume, por apenas fazermos referncia ao primeiro] pp.

    9/10.

  • 11

    Consideramos, por outro lado, que parecem existir sculos que so mais

    pequenos do que outros.

    vulgar, por exemplo, na Historiografia ocidental, ponderar que o sculo XVIII se

    iniciou apenas em 1715 com a morte de Lus XIV e terminou precocemente em 1789,

    com a Revoluo francesa. O sculo XX teria nascido em 1914, com o deflagrar da I.

    Guerra Mundial ou em 1917, com o eclodir da Revoluo de Outubro na Rssia. O

    mesmo sculo teria findado prematuramente em 1989, com a queda do Muro de Berlim;

    ou em 1991 com a imploso da Unio Sovitica. Neste ltimo ponto haver por ora

    maior consenso, mas, mesmo assim, esta ou outra viso da realidade histrica ser

    certamente questionvel de futuro, se o no j na actualidade25.

    Outros sculos, porm, parecem durar muito mais do que 100 anos. Permanece a

    sua perene influncia at actualidade e, quem sabe, se no continuar a verificar-se esta

    ascendncia intelectual e filosfica, durante muito mais tempo. Parece-nos ser o caso do

    sculo XVIII. Georges Gusdorf chama a ateno para este facto, embora num contexto

    diverso do que terminmos de expor, ao propor a indagao historiogrfica desta poca

    mediante o que designa de limites longos e no de limites curtos. Defende o mesmo

    autor a diviso da centria de Setecentos, em duas fases essenciais.

    A primeira destas fases corresponder ao que designa de crise da conscincia

    europeia, que identifica pela existncia de uma elevada tenso intelectual no seio da

    intelligentzia de vrios dos pases europeus. Tenso provocada pelo advento de um

    vasto complexo de ideias novas pelo menos na sua formulao, que no na sua origem

    histrica , que questionava, como nunca, os principais conceitos filosficos, polticos e

    religiosos at a institudos26.

    Exemplifiquemos. Em Frana, a morte do Rei-Sol suscitou o despertar sem

    precedentes de uma actividade literria e filosfica de sentido crtico, de um modo que o

    mesmo Gusdorf denomina de fermentao preparatria. Fermentao preparatria de

    grandes alteraes filosficas, jurdicas e institucionais que ocorrero na segunda metade

    do sculo das Luzes.

    Movimento preparatrio de ndole similar ao referido ser de identificar em outros

    pases europeus. Desde logo nos Pases-Baixos com a obra de Hugo Grcio (1583/1645).

    25 indiscutvel que as divises temporais em Histria e em Histria do Direito colocam, mais do que tudo, problemas a

    qualquer historiador. Podem muitas vezes limitar perspectivas e colocar bstculos ao grande objectivo e real interesse destes estudos

    na actualidade. Sobre a apreenso do sentido do presente, atravs da compreenso do passado, AGUILERA BARCHET, Bruno

    Introduccin Juridica a la Historia del Derecho, Madrid, Civitas, 1994, p. 120. 26 GUSDORF, Georges Les Principes de la Pense au Sicle ds Lumires, Paris, Payot, 1971, p. 54.

  • 12

    A afirmao peremptria segundo a qual o Direito Natural existiria, mesmo que se

    admitisse a inexistncia de Deus27, manifesta uma tentativa de independncia e de

    ruptura com a ordem estabelecida pelos sculos. Tratou-se mesmo da explanao da

    primeira fractura de relevo com qualquer fundamento teolgico daquele mesmo Direito.

    Esta perspectiva laica coloca Grcio numa posio de certa forma polmica no devir

    filosfico. Para uns, uma figura de transio entre duas pocas: a Modernidade, que

    encerraria e a Contemporaneidade, que anteciparia; para outros autores, poder-se-

    considerar mesmo como o verdadeiro pai das Luzes28. Segundo cremos, deve

    reconhecer-se a evoluo que a ideia de Direito Natural teve desde a Idade-Mdia at

    obra de Grcio, mas deve em simultneo, atender-se aos pontos de confluncia entre a

    Escolstica medieval e o racionalismo da Modernidade29. A Neo-Escolstica peninsular

    teria funcionado como mediadora privilegiada entre estas duas importantes escolas

    jurdicas. A mesma neo-escolstica que estaria, surpreendentemente, no cerne de vrias

    doutrinas juscivilsticas da actualidade30.

    Na Alemanha, o pensamento de autores nascidos ainda no sculo XVII, como

    Samuel Puffendorf (1632/1694), Jacob Thomasius (1622/1684), ou Cristian Wolff

    (1679/1754), determinar uma comum perspectiva de pensamento e contribuir para a

    aquisio entre a intelectualidade germnica de uma muito importante matriz

    racionalista, identificvel no plano da sapincia universal. O primeiro destes autores

    pretendeu a edificao de um complexo de regras vinculativas para todo o Homem,

    afirmando a existncia de direitos naturais e prescrevendo a ideia de que todo o Direito

    positivado tem como funo reprimir os maus instintos do ser humano, que designa de

    imbecilitas e que considera a parte essencial da sua natureza. O fundamento do Direito

    Natural no ser mais que uma derivao de quaisquer axiomas evidentes, provenientes

    da teologia, mas antes ter sua origem na auscultao desta mesma natureza, na parte

    que o autor chama de socialitas.

    Thomasius procurou distinguir as ordens Jurdica e Moral. Enquanto o Direito

    regularia as relaes com os outros, o plano tico referir-se-ia apenas conscincia do

    27 Como refere o autor holands numa passagem lapidar, est autem jus naturale adeo immutabile, ut neo a Deo quidem

    mutari queat, GRCIO, Hugo De jure belli ac pacis, Tbingen: J. C. B. Mohr, 1950, I, I, 5, p. 42. 28 MARQUES, Mrio Reis Grandes Linhas de evoluo do Pensamento e da Filosofia Jurdicas, in Instituies de

    Direito, Filosofia e Metodologia do Direito, coordenao de Paulo Ferreira da Cunha, volume I, Coimbra, Almedina, 1998, p. 236. 29 esta a posio de Gordley que coloca Grcio numa posio intermdia entre duas pocas, a par de outros autores como

    Pufendorf. Sobre a matria, vg., GORDLEY, James The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, op. cit., 1991, p. 6. 30 Idem The Philosophical Origins of Modern Contract Doctrine, op. cit., 1991, pp. 8/9.

  • 13

    sujeito, aos deveres que cada indivduo tem consigo prprio e no para com os demais.

    Assim sendo, se os deveres jurdicos se reportam a um foro externo, os deveres morais

    referem-se ao foro interno de cada indivduo. Se os primeiros so susceptveis de

    imposio coerciva, os segundos so incoercveis.

    Cristian Wolff fundamenta o seu sistema nos direitos originrios decorrentes da

    natureza imutvel do Homem; direitos como os da igualdade, da liberdade, da

    segurana, ou da legtima defesa31. O que se nos afigura muito significativo que,

    enquanto as grandes alteraes propugnadas por este e pelos outros autores que

    enuncimos ainda no tinham a sua aplicao positiva nos vrios ordenamentos

    jurdicos, ganhavam j acelerado terreno nas principais Universidades europeias.

    Em Inglaterra, a polmica suscitada pelo Desmo enquanto religio natural que

    admite a existncia de um Deus criador mas que nega a ideia de revelao, bem como a

    adopo progressiva nos meios cultos de uma nova sensibilidade, muito influenciada

    pelo cientismo de Newton (1642/1727), produziram o despoletar desta mesma crise mais

    cedo do que no restante continente europeu.

    Ao contrrio, no nosso pas, a influncia iluminista chegaria mais tarde do que a

    outros pases.

    O que dizemos no nos leva a propender para a ideia de que esta influncia

    iluminista se possa resumir ao ltimo quartel do sculo XVIII, porque a percepcionamos

    desde meados do mesmo sculo, pelo menos.

    Corroboramos, assim, a posio de Antnio Brz Teixeira quando distingue trs

    diferentes ciclos na especfica reflexo tico-jurdica nacional no decurso do sculo

    XVIII: um primeiro momento que decorre desde a dcada de 30 at ao fim da dcada de

    60; um segundo estdio de influncia iluminista ser o imediatamente ulterior reforma

    da Universidade de Coimbra; um terceiro perodo reporta-se ao final do sculo32,

    derradeiro flego do Iluminismo em Portugal que se ter alargado nas suas

    consequncias at Revoluo liberal portuguesa de 24 de Agosto de 1820 e

    Constituio de 23 de Setembro de 182233.

    Na opinio do mesmo autor, no primeiro ciclo de influncia da Ilustrao em

    Portugal observa-se a emergncia de uma forte reflexo pedaggica, a presena de uma

    31 MARQUES, Mrio Reis Grandes Linhas de evoluo do Pensamento e da Filosofia Jurdicas, in Instituies de

    Direito, Filosofia e Metodologia do Direito, volume I, coordenao de Paulo Ferreira da Cunha, op.cit. pp. 237/238. 32 TEIXEIRA, Antnio Braz A Filosofia Jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, op. cit.,, p. 67. 33 MIRANDA, Jorge [introduo] As Constituies Portuguesas. De 1822 ao Texto Actual da Constituo, 4. edio,

    Lisboa, Livraria Petrony, 1997, p. 29.

  • 14

    ntida concepo racionalista no plano antropolgico, o surgimento de uma corrente

    jusnaturalista de teor contratualista e percebe-se, outrossim, o intento de autonomizar a

    tica da teologia.

    Num segundo momento, os projectos pedaggicos elaborados no perodo joanino

    recebem plena consagrao poltica, a que se deve aduzir a imposio da nova

    concepo de Direito Natural, antes referida.

    Num terceiro e definitivo ciclo de influncia da Ilustrao, ser j perceptvel a

    tentativa de retomar vrias das ideias aristotlico-tomistas, o que parece anunciar uma

    ideia de refluxo jusfilosfico das Luzes e de correspectiva continuidade com o passado

    anterior a Setecentos34.

    Contudo, observmos uma diferena de ritmo no conhecimento e na adeso a

    vrias das ideias que caracterizaram a Ilustrao. Em Portugal, a influncia do Desmo,

    que antes se mencionou a propsito de Inglaterra, far-se- tambm sentir mas tal

    suceder muito depois do que se passou na restante Europa e com caracteres muito

    prprios. Caracteres que no se nos afiguram susceptveis de prenunciar uma qualquer

    ruptura com a tradio catlica do pas mas, que, ao contrrio, a parecem reafirmar.

    A obra mais importante sobre a matria s foi publicada em 1845, por Silvestre

    Pinheiro Ferreira, e aqui se sublinha a insuficincia da religio natural em face da

    religio revelada. Observe-se, por exemplo, o que se escreve no . 82;

    Observmos j que em todos os povos e em diferentes pocas, antes e depois da pregao

    do Evangelho, apresentaram-se vrios homens extraordinrios como enviados de Deus, para

    transmitir uma Religio revelada. Mas nenhum desses homens cumpriu a palavra. Todos esses

    sistemas religiosos foram maculados de doutrinas e prticas mais ou menos revoltantes. Deus

    permitiu at, na imperscrutvel sabedoria dos seus decretos, que a Lei de Moiss, onde no

    encontramos nenhuma mxima que fira os princpios essenciais da moral, deixasse ainda muito a

    desejar quanto pureza dos sentimentos sociais e religiosos compatvel com a fragilidade

    humana auxiliada pela assistncia da graa. So concesses, disse Jesus Cristo, que Moiss fez

    dureza do corao dos povos, a quem esta lei era destinada. O Divino Mestre disse tambm:

    No vim para destruir a Lei (revelada por Moiss) e os Profetas; vim sim para aperfeio-la.

    Sim, Jesus Cristo veio trazer aos homens uma doutrina inteiramente digna da Divindade que

    falava pela sua boca e se encontra consignada no seu Evangelho. Aqui, no h uma mxima que

    34 TEIXEIRA, Antnio Braz A Filosofia Jurdica, in Histria do Pensamento Filosfico Portugus, volume III, direco

    de Pedro Calafate, op.cit., p. 67, in fine.

  • 15

    no esteja de acordo com os princpios da mais pura razo; nem uma instituio que no seja

    conforme os mais delicados sentimentos e moral mais austera35.

    A mesma superioridade da f crist defendida por Pinheiro Ferreira verificvel

    em muitos outros pargrafos do seu estudo. o paradigmtico caso do . 376;

    Observmos acima que todos os erros relativos aos Mistrios provm de que os

    heresiarcas ou os incrdulos, ao darem s palavras das frases enunciativas dos Mistrios, ora o

    sentido prprio, ora o sentido figurado que tm na lngua, tornaram essas frases compreensveis

    e apresentando um sentido ora plausvel, ora absurdo36.

    O mesmo se poder dizer do . 379, entre muitas outras passagens possveis de

    citar;

    As doutrinas que Deus quis revelar aos homens, podem ser incompreensveis para eles,

    atendendo aos estreitos limites da sua razo; mas elas no poderiam conter contradies; pois

    quem diz contradio, diz mentira, e Deus a verdade suprema37.

    Em Portugal38, no estrito plano jurdico e na sua vertente universitria, tudo parecia

    continuar de acordo com o ensino tradicional de cunho escolstico e tomista. No

    parecia haver aparente notcia dos desenvolvimentos doutrinais que ocorriam no mundo

    do Direito. Notcia que, no obstante, nos chegaria com todo o aparato bem entrado o

    sculo XVIII, graas ao directo e alto patrocnio da Coroa de alguns autores muito

    conhecidos at aos nossos dias, como o caso de Lus Antnio Verney (1713/1792)39,

    talvez o mais famoso de todos.

    obra deste, se podem somar os anteriores e esparsos contributos de alguns

    autores nacionais de grande mrito em outras reas do saber. Autores que escreveram

    35 FERREIRA, Silvestre Pinheiro Teodiceia ou Tratado elementar de religio natural, prefcio de Antnio Brz Teixeira,

    traduo de Rodrigo Cunha, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, . 82, p. 71. 36 Idem . 376, p. 126. 37 Ibidem . 379, p. 127. 38 Sobre a recepo da Escola Racionalista de Direito Natural em Portugal, vg., MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo O

    Jusracionalismo Setecentista em Portugal, in Direito Natural, Poltica e Justia, Nmero Especial, volume I, II. Colquio

    Internacional do Instituto Jurdico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, organizao de Paulo Ferreira

    da Cunha, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 179 e ss.. 39 ANDRADE, Antnio Alberto Banha de Verney e a projeco da sua obra, Lisboa, Biblioteca Breve, Ministrio da

    Cultura e da Cincia, 1980, p. 9.

  • 16

    sobre Direito, ainda que indirectamente, em obras de outro teor. o caso do engenheiro

    Manuel de Azevedo Fortes (1660/1749)40 e do historiador e pedagogo Martinho de

    Mendona de Pina e Proena Homem (1693/1743)41. Embora sem terem alcanado, nos

    seus estudos, o mesmo impacto que a obra de Verney adquiriria no universo jurdico

    portugus algumas dcadas depois e sem terem inovado na matria jurdica, no que quer

    que seja, so figuras de inegvel mrito.

    No mundo jurdico, as principais alteraes ocorreriam, to-s, no ltimo quartel

    de Setecentos. Ou seja, pensamos que a Ilustrao nos ter chegado com algum atraso

    histrico; atraso que mais se evidenciou no plano jurdico.

    A instituio da cadeira de Direito Natural como disciplina autnoma ser apenas

    inserida no curriculum de Coimbra pela reforma dos estudos universitrios desenvolvida

    no reinado de D. Jos. Uma reforma que pretendeu aplicar um novo mtodo de ensino

    do Direito: o mtodo do Usus Modernus Pandectarum. O que, sem significar que esta

    Reforma, isoladamente, tenha obtido todos os resultados pretendidos, demonstra, pelo

    menos, um assinalvel esforo estadual para a desenvolver.

    A predominncia doutrinal de Wolff chegar-nos-ia, assim, muito depois do que

    sucedeu nos restantes pases da Europa. Foi imposta no plano institucional apenas depois

    da reforma da Universidade de Coimbra, encetada a partir da dcada de setenta do

    sculo das Luzes com a publicao do Compndio Histrico da Universidade de

    Coimbra. prova plena do que afirmmos, quanto aceitao tardia de uma nova

    metodologia nos estudos jurdicos no nosso pas, bem como a sua manuteno durante

    dcadas, a adopo at ao sculo XIX do manual de Carlos Antnio Martini

    (1726/1800)42 como obra mais importante para o estudo autnomo da matria de Direito

    40 Manuel de Azevedo Fortes nasceu em 1660 e morreu em 1749. Integrou a corrente das Luzes em Portugal e foi engenheiro

    do exrcito portugus, desenvolvendo inovadores trabalhos na rea da fortificao militar. Foi autor do primeiro trabalho de Lgica

    escrito em portugus, rompendo o monoplio da lngua latina no nosso pas. Denominou o seu estudo de Lgica Racional

    Geomtrica e Analtica (que trataremos infra com algum detalhe) que foi publicado em 1744. Nesta sua obra procurou alcanar um

    compromisso filosfico entre o racionalismo de Descartes e o sensismo propugnado pelas teorias de Locke. Designadamente no que

    concerne teoria das ideias. Como veremos, nas poucas pginas que dedica ao universo Jurdico, Azevedo Fortes em nada se afasta

    da perspectiva tradicional, de origem grega, romanista e escolstica, maioritria no pas. A biografia deste interessante autor

    portugus ser consultvel in http://cvc instituto camoes.pt/filosofia/ilu3.html [consultada em 14/03/2010]. Maiores

    desenvolvimentos sobre a sua relevncia para a filosofia portuguesa do Iluminismo podero obter-se in BERNARDO, Lus Manuel

    A. V. O Projecto Cultural de Manuel De Azevedo Fortes, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, et passim. 41 Acerca desta interessante e pouco conhecida personagem da Ilustrao nacional, v.g, Idem O essencial sobre Martinho

    de Mendona, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, et passim. 42 Carlos Antnio Martini (1726/1800). Regeu Direito Natural na Universidade Catlica de Viena, colaborou no Cdigo da

    Imperatriz Maria Teresa (1717/1780), conhecido como Codex Theresianus, iniciado em 1752 e concludo em 1766, que definiu os

    direitos civis na ustria tpica maneira do Iluminismo. Foi professor de Jos II (1741/1790) e de Leopoldo II (1747/1792), ambos

  • 17

    Natural. Isto, no deixou de ter consequncias de muito vulto no desenvolvimento de

    vrios preceitos juspolticos, alguns deles identificveis nas obras de Martini (que os

    dspotas iluminados procuraram aplicar o mais possvel nos seus pases): a igualdade de

    todos perante a lei (meio essencial de promover o nivelamento social de todos os

    sbditos ante o dspota e de eliminar quaisquer privilgios anteriores da nobreza e do

    clero), a misso do soberano de prover a felicidade dos sbditos (uma tpica

    caracterstica das Luzes a de que o Estado o principal responsvel por criar condies

    materiais para a felicidade geral); a tolerncia religiosa (mesmo nos pases de mais

    arreigada disciplina religiosa isso sucedeu43) e certa liberdade de conscincia, a

    condenao da tortura44, ou a abolio da escravatura decorria o reinado de D.Jos em

    Portugal, quando em 12 de Fevereiro de 1761, a escravatura foi abolida na Metrpole e

    na ndia45.

    Se isto estava de acordo com as novas e racionalistas ideias sobre o Direito

    procuravam superar as teses escolsticas no sculo XVIII, j se poderia considerar

    obsoleto 100 anos mais tarde.

    Numa segunda fase que penetrar j no sculo XIX em muitos pases, o complexo

    ideolgico que apenas fermentava na primeira metade de Setecentos na Frana, teve a

    oportunidade de se aplicar pela via revolucionria nos pases culturalmente mais

    prximos desta como Portugal. Efectivao que j sucedia, ipso facto, desde dcadas

    antes de qualquer movimento revolucionrio proprio sensu, nas cortes absolutistas de

    Frederico II da Prssia (1712/1786), de Catarina II da Rssia (1729/1796), ou de Maria

    Teresa de ustria (1717/1780), s para dar os exemplos mais conhecidos.

    Paradoxalmente ou no, os grandes princpios, os grandes ideais, que se

    propalaram no perodo ps-revolucionrio na Europa, parecem comear por se aplicar na

    poca de despotismo esclarecido, ou at antes. Neste sentido, a Revoluo ser o

    prolongamento das principais ideias que a Ilustrao j afirmava junto do poder poltico

    filhos da anterior e como ela Imperadores do Sacro Imprio e Reis da Hungria e da Bomia, vg., MERA, Paulo Estudos de

    Histria do Ensino Jurdico em Portugal (1772-1902), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, n.r. 39, p. 22. 43 A 25 de Maio de 1773 publicou, a propsito do que dizemos, o governo portugus a lei que terminava com sediciosa

    distino entre cristos-novos e cristos-velhos. Sobre a matria, vg., SERRO, Joaquim Verssimo O Marqus de Pombal:

    o homem e o estadista, in Histria de Portugal, direco de Joo Medina, volume VII, Barcelona, 2001, p. 307. 44 Aqui se deve destacar a figura de Cesare Beccaria (1738/1794). Criminologista italiano foi um seguidor de Rousseau e das

    suas ideias sobre a benignidade da Natureza Humana. Por isso mesmo, bateu-se pela proporcionalidade e suavizao das penas e

    pela absoluta proibio da tortura como meio de prova, vg., AMARAL, Diogo Freitas do Histria do Pensamento Poltico

    Ocidental, Coimbra, op. cit., p. 248. 45 http //oficina da oficina da histria.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html. [visto em 4/5/2010].

  • 18

    institudo46. O que, como antes se observou, no sucedeu da mesma maneira em toda a

    parte e no teve as mesmas consequncias em todos os pases.

    Se foi s na segunda metade do sculo que, para Gusdorf, a filosofia das Luzes nas

    suas diversas variantes, ganhou foros de plena independncia e de latente consagrao

    juspoltica, com a publicao das principais obras de autores como Montesquieu

    (1689/1755), Voltaire (1699/1778), Quesnay (1694/1774)47, Diderot (1713/1784),

    DAlembert (1717/1783), Rousseau (1712/1778) Beccaria (1738/1794), entre outros, a

    verdade que o movimento filosfico em causa se insinuava desde finais do sculo

    XVII em pases como a Inglaterra.

    Em simultneo, este movimento correspondeu, num plano juspoltico, ao pleno

    estabelecimento do despotismo esclarecido como regime poltico vigente na maioria dos

    pases da Europa, outra vez com a excepo do Reino-Unido.

    As ideias de importantes intelectuais e a sua ulterior aplicao evidenciaro uma

    brusca acelerao da Histria cultural. Acelerao que a Revoluo acentuaria de

    maneira exponencial mediante a condensao de grande parte de diversos complexos

    ideolgicos, e s dramticas mudanas a que deu lugar nos dois sculos que se lhe

    seguiram48. Estes foram sculos, em que a face do mundo, a composio das sociedades,

    a economia, as relaes entre os povos e o mundo jurdico, se alteraram mais do que nos

    dois milnios anteriores49. Depois do perodo helenstico na Antiguidade clssica, aps o

    Cristianismo e o Renascimento, no houve outra poca na Histria do esprito europeu

    to agitada de ideias e to rica de tendncias, muitas vezes contraditrias nos seus

    pressupostos, como a que correspondeu ao sculo das Luzes50.

    Por isso mesmo ser muito difcil caracterizar, em poucos traos, o que foi o

    Iluminismo. O que dizemos verificou-se por dois motivos. Primeiro, porque foi enorme o

    nmero de tendncias que se digladiaram, tantas foram as foras em confronto at se

    chegar ao eplogo, em alguns pases, das Revolues ulteriores de 1776 e de 1789.

    46 Franois Quesnay foi mdico de Lus XV, mas destacou-se, sobretudo como economista. O Dr. Quesnay foi um frreo

    defensor do Despotismo Iluminado, que deveria ter como principal objectivo promover o acrscimo do rendimento nacional atravs

    do fomento agrcola, Idem Histria do Pensamento Poltico Ocidental, op. cit., p. 247. 47 Diderot e DAlembert: filsofo e matemtico franceses foram os principais arautos do Iluminismo, atravs da

    Enciclopdia, ou Dicionrio comentado das Cincias, Artes e Profisses, como tambm era designado (1751/1772). A orientao

    geral da Enciclopdia , em si mesma, o melhor retrato do sculo em que foi elaborada: materialista, testa, anti-monrquica,

    anticlerical e absolutamente crente na Cincia e no Progresso da Humanidade, Ibidem Histria do Pensamento Poltico Ocidental,

    op. cit., pp. 247/248. 48 MONCADA, Lus Cabral de Filosofia do Direito e do Estado, op. cit., p. 197. 49 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., pp. 12/13. 50 SILVA, Nuno Espinosa Gomes da Histria do Direito Portugus, op. cit., pp. 437 e ss..

  • 19

    Segundo, devido impossibilidade de determinar com um mnimo de certeza histrica o

    momento preciso em que cessou a influncia da Ilustrao, o que, de novo, no sucedeu

    em simultneo em todos os lugares.

    1.2. Dificuldades de qualquer indagao historiogrfico-jurdica em geral e da

    nossa, em particular

    A propsito do que escrevemos suscita Rmond um dos problemas de maior

    gravidade que se coloca a qualquer historiador que se dedique ao estudo de um sculo

    to multifacetado e rico culturalmente como foi o sculo XVIII, mesmo que apenas

    centrado no especfico domnio jurdico:

    Como meter uma tal superabundncia de acontecimentos dentro dos limites necessrios,

    sem subverter as evolues, contrariar os tempos, escamotear preparaes e maturaes?51.

    Esta uma adversidade que, como bvio, muito longe estar de ser a nica.

    Outra destas adversidades prende-se com as mltiplas influncias que foram prevalentes

    durante o sculo que estudamos. Influncias que se no circunscrevem ao aspecto

    meramente jurdico, mas que ocorreram, sobremaneira, no elemento juspoltico,

    alterando-o para sempre.

    Refere Gilissen, a propsito:

    A Escola do Direito Natural cujos principais representantes so ento Grcio,

    Puffendorf, Domat e Pothier domina o pensamento no scs. XVII e XVIII. sob a influncia e

    nos quadros do pensamento jurdico desta escola que so efectuadas as grandes codificaes do

    sc. XVIII e incios do sc. XIX, sobretudo na Alemanha e em Frana.

    No domnio poltico, comea a dominar o princpio da soberania nacional, que elaborado

    sobretudo na Inglaterra e em Frana, no decurso dos scs XVII e XVIII, sob a influncia de

    Locke, Rousseau, Voltaire e Montesquieu. Este princpio leva preponderncia da lei como

    fonte de Direito, sendo a lei a expresso da vontade da nao soberana.

    51 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., p. 13.

  • 20

    Ao mesmo tempo, as liberdades pblicas so afirmadas em importantes declaraes,

    tendentes a reconhecer e a garantir os direitos subjectivos dos cidados (em Inglaterra o Bill of

    Rights de 1689; nos Estados Unidos os Bill of Rights em certas constituies de Estados,

    nomeadamente na Virgnia (1776), e as primeiras emendas da Constituio federal (1791); em

    Frana, a Declarao Universal dos Direitos e do Cidado, em 1789, retomada em

    numerosas constituies)52.

    Ren Rmond traa uma linha de pensamento que nos parece de muito interesse no

    domnio historiogrfico. Poder-se- seguir, tambm, segundo cremos, no que concerne

    ao estudo jurdico do sculo XVIII portugus, que ora iniciamos.

    Salienta o autor os inevitveis riscos que se correm na demanda da verdade

    histrica. Menciona, desde logo, o perigo de sistematizao de ideias posteriori.

    Como o historiador conhecedor da sequncia de factos ulteriores ao momento que

    pretende estudar, pode ter a tentao de aplicar aos acontecimentos uma metodologia

    racional que os contemporneos foram de todo incapazes de vislumbrar sequer.

    Consideramos que o sculo de que tratamos foi vtima, diversas vezes, desta

    circunstncia muito comum. Isto ocorre, sobretudo, porque a realidade histrica da

    poca que se estuda no comportava essas ideias, no momento em que os factos tiveram

    lugar. Ao dirigir o seu olhar de um ponto de vista elevado para o decurso dos

    acontecimentos, o historiador pode perder a contingncia dos encadeamentos, bem como

    o improviso e o imprevisto das situaes concretas da poca. Ser, pois, fundamental

    [para este importante pensador, e para ns, modestamente], reafirmar o alcance da

    conjuntura devolver importncia ao acontecimento ideia que defendemos desde

    sempre e recuperar a relevncia das individualidades. Em suma, impe-se reabilitar o

    fortuito e restituir o devido realce ao singular. Esta perspectiva no implicar, em

    momento algum, que no exista continua Rmond e ns continuamos a subscrever a

    sua posio uma certa lgica nos acontecimentos.

    Como o autor, infirmamos quaisquer teses que pretendem limitar o historiador a

    um mero relator de factos, sem qualquer interligao subjacente, ou confin-lo a uma

    espcie de testemunha de um processo escatolgico que terminar espera-se que bem,

    h mais de um sculo no fim dos tempos; contrariamos o reconhecimento de um

    determinismo da histria orientado para a consecuo de um fim nico e derradeiro, bem

    como a prpria dissoluo do saber do historiador numa infinidade de fenmenos

    52 GILISSEN, John Introduo Histrica ao Direito, op. cit., p. 16.

  • 21

    asspticos. Pelo facto de no se reduzir a historiografia mera lgica dos nossos

    sistemas de pensamento e de interpretao, no se poder afirmar, em momento algum,

    que a experincia histrica se isente, por isso, de toda e qualquer racionalidade. Ser,

    pois, possvel, admitir ao mesmo tempo, que a Histria apresenta algumas grandes

    orientaes e que os processos pelos quais estas se manifestam e se realizam comportam,

    em cada momento, uma pluralidade de combinaes possveis.

    Ao historiador caber, assim, discernir as linhas mestras de cada tempo e desenhar

    os eixos principais de uma determinada evoluo de sculos53.

    1.3.Riscos assumidos e a nossa posio de princpio

    esta a nossa posio de princpio acerca da Histria em geral e da Histria do

    Direito em particular54. No entanto, estamos conscientes de alguns riscos que corremos:

    dado o teor do labor que pretendemos realizar, por um lado, e dadas as polmicas vrias,

    que, ainda nos nossos dias envolvem muitos dos factos e das personagens histricas que

    referiremos, por outro. O sculo XVIII traa uma linha divisria para a historiografia e

    para a historiografia jurdica portuguesa em particular.

    Parece, de facto, no ser possvel encontrar um Tertium Genus entre as vises

    apocalpticas de um sculo inteiro55 propugnadas por alguns e as mirficas odes

    laudatrias que outros historiadores teceram ao mesmo sculo, ou, pelo menos, ao

    53 RMOND, Ren Introduo Histria do Nosso Tempo, Do Antigo Regime aos Nossos Dias, op. cit., p. 13. 54 Disciplina jurdica e histrica, em simultneo, que integramos na classificao das Cincias Jurdicas Humansticas. Este

    conceito foi desenvolvido, desde h muito, por Paulo Ferreira da Cunha. Continua, quanto a ns, mais actual do que nunca por

    permitir uma utilssima aproximao das diversas cincias jurdicas a outras realidades epistemolgicas que apenas podero valorizar

    muitssimo aquelas, CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia do Direito, op. cit., pp. 117 e ss.. 55 Ideia obscura do sculo XVIII portugus que se centra, sobretudo, na figura polmica de Sebastio de Carvalho e Melo.

    Sobre a possvel campanha difamatria sofrida por este, logo desde o incio do seu consulado, vg., SERRO, Joaquim Verssimo

    Marqus de Pombal: o homem e o estadista in Histria de Portugal, volume VII, direco e coordenao de Joo Medina,

    Barcelona, Ediclube, 2001, p. 278. 55 Estas odes laudatrias, e panegricas mesmo tiveram muito a ver com a dinmica legislativa que, sem dvida, Sebastio

    Jos de Carvalho imprimiu ao seu governo e ao anticlericalismo de que sempre deu mostras. Anticlericalismo que, como se sabe, foi

    muito apreciado nos sculos vindouros em Portugal, por grupos polticos que se situavam, precisamente, nos antpodas do

    despotismo iluminado do ministro do Rei D. Jos. Tal significou a legalizao de muitas injustias e possibilitou ainda que estas

    disposies no fossem, minimamente, respeitadoras dos direitos dos sbditos.

  • 22

    ltimo quartel da mesma centria56. O que se manifesta, ainda na actualidade em

    diversos domnios epistemolgicos. Por exemplo no domnio da Literatura, Jos Jorge

    Letria sublinha esta dificuldade num breve comentrio figura de Sebastio Jos de

    Carvalho e Melo. Como refere na contracapa do seu interessante livro Mal por mal antes

    Pombal, publicado em 2012:

    A figura de Pombal no consente nem recomenda neutralidade ou indiferena, por ser

    excessiva, imensa, omnipresente57.

    Adverte Paulo Ferreira da Cunha, com toda a acuidade, a propsito de qualquer

    indagao jusfilosfica e historiogrfico-jurdica, que sempre existir o perigo do

    preconceito, que pode substituir a correcta explicao historiogrfica. Preconceito que

    coloca no centro do universo um particularismo que o nosso (a nossa terra, a nossa

    raa, a nossa perspectiva, as nossas ideias), entendido como o nico vlido, frente a

    todos os demais; os quais, as mais das vezes, nem sequer se conhecem. Este

    egocentrismo designado na antropologia de etnocentrismo. A este perigo, acrescer um

    outro vcio comum: o de acreditar que o presente qualquer que este seja ser, pelo

    simples facto de o ser, muito mais civilizado e evoludo do que o passado. o que se

    designa de cronocentrismo58.

    Concordamos que estas duas comuns limitaes, a que bem se poder somar o

    elitismo59, colocadas a qualquer historiador do Direito, so irms gmeas de uma mesma

    realidade a proscrever: o preconceito, ou os preconceitos antes referidos. Procuraremos,

    evitar quaisquer dos obstculos indicados pelo nosso antigo Professor de Histria e

    Filosofia do Direito e Mestre de sempre. Mas isto sem que tal implique, em momento

    algum, escamotear que o historiador do Direito no deixa de ser um Homem concreto e

    determinado. Com uma idade a que no pode escapar; nascido num local especfico do

    planeta numa famlia determinada com limitaes bvias com fantasmas vrios que

    por vezes o assaltaro, apesar de todas as cautelas, acometido por inmeras desiluses;

    56 LETRIA, Jos Jorge Mal por mal antes Pombal. Uma memria de Sebastio Jos de Carvalho e Melo, Lisboa, Clube

    do autor, 2012, contracapa, s.p.

    56CUNHA, Paulo Ferreira da Filosofia Antropolgica? in Heterodoxias. I. As Artes entre as Letras, Porto,

    2010,organizao e direco do mesmo autor, Porto, 2010, pp. 2/3. 57 Idem Sntese de Filosofia do Direito, op. cit., p. 87. 58 MACEDO, Jorge Borges de Estrangeirados, um conceito a rever, Lisboa, Edies do Templo, nota prvia, 1984., s.

    p.

  • 23

    mas ainda, e sempre, detentor de algumas poucas iluses que a realidade e os anos ainda

    no destruram por completo. Com ideias prprias, muitas vezes alteradas pelo tempo e

    sobretudo, persuadido de que tudo se trata, afinal, no sendo pouco, de um longo e rduo

    caminho que s se pode seguir, de uma nica e conhecida maneira: caminhando.

    Na opinio de Jorge Borges de Macedo, o caminho de que falvamos ter de

    seguir algumas regras determinadas, que se no podero desprezar em momento algum.

    Desde logo, nunca se devem fixar sequncias, que impem a concluso antes da anlise,

    de maneira a confirmar as correspondncias pretendidas.

    Como refere:

    [] se a orientao determinista falhou, at no campo das cincias da natureza o que

    nos nossos dias apenas se poder confirmar com os extraordinrios desenvolvimentos

    tecnolgicos , por se mostrar insuficiente, estril ou falsa, muito mais o tem sido no campo das

    cincias humansticas, o nico domnio da realidade onde a conscincia , em simultneo, agente

    e observador da aco, para alm das inevitveis confluncias60.

    E, na mesma nota prvia ao seu estupendo estudo, Estrangeirados um conceito a

    rever conclua:

    Nesses termos, a finalidade da histria como cincia constituir de uma forma inteligvel

    e objectiva, a experincia acumulada pelas diferentes problemticas e solues que a existncia

    do humano tem engendrado e proposto. E a funo do historiador tornar compreensvel o

    passado, transferindo a vivncia coerente da poca que estuda para aquela em que, pela mo

    dele, volta a ser pensada, como experincia apercebida, como garantia de rigor e de prova, assim

    como poder de comunicao para a experincia que se est vivendo61.

    Numa perspectiva de todo diversa da de Rmond e admitindo o determinismo

    histrico que antes se criticava, no entender de Manfred as dificuldades para o

    historiador continuam a manifestar-se sem comiserao;

    60 Idem, nota prvia, s.p. 60 MANFRED, Albert Rousseau, Mirabeau, Robespierre. Trs figuras da Revoluo Francesa, Lisboa, Edies Avante,

    1975, p. 20.

  • 24

    O historiador est sempre prisioneiro dos documentos precisos, irrecusveis, sobre os

    quais pode apoiar-se. Esta obrigao de contar com os materiais histricos de que dispe o

    investigador determina precisamente a escolha dos heris. So demasiado escassas as

    informaes, demasiado escassos os dados documentais dignos de confiana sobre os simples

    actores de uma revoluo. Dispe-se de uma documentao incomparavelmente mais rica, no

    que respeita aos chefes de fila de um grande processo revolucionrio62.

    Deste modo, e pese embora todas as precaues expostas, no rejeitaremos emitir

    os necessrios juzos pessoais sobre o nosso objecto de indagao. Contudo, f-lo-emos

    apenas quando tal seja de todo necessrio para o decurso do nosso estudo. Trata-se de

    juzos que, como se perceber, sero aqui sim, sem desconhecer ou descurar as vrias

    posies expressas pela Historiografia jurdica nossos e s nossos. Outra coisa no

    seria, alis, de pressupor ou de esperar, num tempo em que a necessria objectividade,

    sempre requerida a qualquer historiador, no colide como nunca nos parece ter

    colidido alguma vez com o juzo do prprio, seja ele qual for, desde que fundamentado

    devidamente. De facto, sem juzos de valor no poderia existir, sequer, qualquer

    indagao historiogrfica sria. E muito menos ainda, julgamos, poderia decorrer uma

    aceitvel investigao do tipo da nossa, em pleno sculo XXI.

    Nas certssimas palavras de Leo Strauss, escritas h mais de sessenta anos e

    expressas, portanto, num dos momentos mais dramticos que a civilizao ocidental

    conheceu, como foi o do fim da II. Guerra Mundial e o do tardio ocaso (apenas

    conseguido, como se sabe, com o derramamento de muito sangue, suor e lgrimas, nas

    palavras proferidas por Sir Winston Churchill, na Cmara dos Comuns do Parlamento de

    Inglaterra e dirigidas a todo o povo britnico, atravs dos microfones da BBC, em 13 de

    Maio de 1940)63 de algumas das ideologias totalitrias e desumanas, que a ela tinham

    dado origem:

    A rejeio de juzos de valor pe em risco a objectividade histrica. Em primeiro lugar,

    impede que se chamem as coisas pelo seu nome. Em segundo lugar, pe em risco o tipo de

    objectividade que legitimamente exige que se suspendam as avaliaes, designadamente a

    objectividade da interpretao. O historiador que assume partida que os juzos de valor so

    62 Discurso disponvel, por exemplo, in Portal da Histria, http://www.arqnet.pt/portal/discursos/maio02.html, [consultado

    em 14/03/2010].

  • 25

    impossveis no pode levar a srio o pensamento do passado que se baseava no pressuposto que

    os juzos de valor objectivos so possveis, isto , praticamente todo o pensamento das geraes

    anteriores. Por saber de antemo que esse pensamento se baseia numa iluso fundamental, o

    historiador v-se privado do incentivo necessrio para tentar compreender o passado como este

    se compreendeu a si mesmo64.

    Intentaremos, pois, perceber a realidade do Direito Portugus do sculo XVIII,

    como ela se entendeu a si prpria e, desta maneira, evitar possveis pr-juzos que

    afectem a nossa correcta indagao dos acontecimentos e das doutrinas filosficas que

    lhes serviram de esteio. Antes de nos debruarmos sobre as especficas circunstncias, e

    seu alcance jurdico, que determinaram a possvel adeso nacional ao novo iderio

    jusfilosfico do Iluminismo e sobre putativa ruptura ou continuidade que este iderio

    provocou com a tradio jurdica nacional, importa referir alguns aspectos prvios do

    sculo XVIII na Europa.

    64 STRAUSS, Leo Direito Natural e Histria, com introduo de Miguel Morgado, Lisboa, Edies 70, 2009, p. 55.

  • 26

    CAPTULO II

    UMA MUDANA FILOSFICA NA EUROPA QUE PRECEDEU QUALQUER

    PUTATIVA ALTERAO JUSFILOSFICA OCORRIDA NO DIREITO

    PORTUGUS

    Sumrio: 2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de

    um tempo nico. 2.2. Portugal no complexo xadrez da poltica europeia anterior s

    Luzes. 2.3. A aparente tranquilidade do final do sculo XVII na Europa e um primeiro

    balano do sculo XVIII. 2.4. A influncia americana na Revoluo europeia.

    2.1. Uma viso antropolgica optimista como marca mais relevante de um tempo

    nico

    Interessa-nos determinar, antes de tudo, ainda que em traos muito largos, quais

    foram as caractersticas principais que o sculo da Ilustrao produziu. So

    caractersticas que continuam ainda a definir muito do que a realidade jurdica e

    filosfica dos nossos dias65.

    Como chama a ateno Cabral de Moncada, a poca esteve longe de ter constitudo

    uma realidade homognea. Parece ter sido, por vezes, o sculo