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Antropologia o Que Etnocentrismo

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Etnocentrismo

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  • Everardo P. Guimares Rocha

    O QUE ETNOCENTRISMO

    1 edio 1984

    5 edio

    editora brasiliense________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • 1988

    Copyright Everardo P. Guimares Rocha

    Capa e ilustraes:

    Pineaple Fields Forever

    Reviso:

    Jos G. Arruda Filho

    Jos W.S. Moraes

    ISBN: 85-11-01124-2

    editora brasiliense s.a

    rua da consolao, 269701416 so paulo sp.Fone (011)280-1222

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  • Telex 11 33271 DBLM BR

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  • NDICE

    Pensando em partir

    Primeiros movimentos

    O passaporte

    Voando alto

    A volta por cima

    Indicaes para leitura

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  • Agradeo leitura, aos comentrios crticos e amizade de: Agenor Miranda Rocha, Ana Paula Carvalho de Oliveira, Angela Menezes Pimentel, Angeluccia Bernardes Haebert, Anthony Seeger, Carlos Alberto M. Pereira, Claudia Lebelson Sterental, Helosa Fontes Leuzinger, Jos Carlos Rodrigues, Maria Alice R. de Carvalho, Maria Madalena Digues Quintella, Patrcia Sobral de Miranda, Roberto da Matta, Rosane Manhes Prado, Rubem Rocha Filho.

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  • PENSANDO EM PARTIR

    Etnocentrismo uma viso do mundo onde o nosso prprio grupo tomado como centro de tudo e todos os outros so pensados e sentidos atravs dos nossos valores, nossos modelos, nossas definies do que a existncia. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferena; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Perguntar sobre o que etnocentrismo , pois, indagar sobre um fenmeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do esprito humano sentimento e pensamento vo juntos compondo um fenmeno no apenas fortemente arraigado na histria das sociedades como tambm facilmente encontrvel no dia-a-dia das nossas vidas.

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  • Assim, a colocao central sobre o etnocentrismo pode ser expressa como a procura de sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e razes, enfim, pelos quais tantas e to profundas distores se perpetuam nas emoes, pensamentos, imagens e representaes que fazemos da vida daqueles que so diferentes de ns. Este problema no exclusivo de uma determinada poca nem de uma nica sociedade. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.

    Como uma espcie de pano de fundo da questo etnocntrica temos a experincia de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do eu, o nosso grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. A, ento, de repente, nos deparamos com um outro, o grupo do diferente que, s vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz de forma tal que no reconhecemos como possveis. E, mais grave ainda, ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • este outro tambm sobrevive sua maneira, gosta dela, tambm est no mundo e, ainda que diferente, tambm existe.

    Este choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatao das diferenas. Grosso modo, um mal-entendido sociolgico. A diferena ameaadora porque fere nossa prpria identidade cultural. O monlogo etnocntrico pode, pois, seguir um caminho lgico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles s podem estar errados ou tudo o que eu sei est errado! Dvida ameaadora?! No, a vida deles no presta, selvagem, brbara, primitiva! Deciso hostil!

    O grupo do eu faz, ento, da sua viso a nica possvel ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do outro fica, nessa lgica, como sendo engraado, absurdo, anormal ou ininteligvel. Este processo resulta num considervel reforo da identidade do nosso grupo. No limite, algumas sociedades chamam-se por nomes que querem dizer perfeitos, excelentes ou, muito simplesmente, ser humano e ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • ao outro, ao estrangeiro, chamam, por vezes, de macacos da terra ou ovos de piolho. De qualquer forma, a sociedade do eu a melhor, a superior. representada como o espao da cultura e da civilizao por excelncia. onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A sociedade do outro atrasada. E o espao da natureza. So os selvagens, os brbaros. So qualquer coisa menos humanos, pois, estes somos ns. O barbarismo evoca a confuso, a desarticulao, a desordem.

    O selvagem o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O outro o aqum ou o alm, nunca o igual ao eu.

    O que importa realmente, neste conjunto de idias, o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo no propriedade, como j disse, de uma nica sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um carter ativista e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruio de outros povos.

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  • A atitude etnocntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreenso destas maneiras exacerbadas e at cruis de encarar o outro. Existe realmente, paralelo violncia que a atitude etnocntrica encerra, o pressuposto de que o outro deva ser alguma coisa que no desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.

    Creio que necessrio examinar isto melhor e vou faz-lo atravs de uma pequena estria que me parece exemplar.

    Ao receber a misso de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelizao e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si prprio apenas um modernssimo relgio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e at dizer a hora sempre absolutamente certa, infalvel. Ao chegar, venceu as burocracias inevitveis e, aps alguns meses, encontrava-se em meio s sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • doutrinao. Tempos depois, fez-se amigo de um ndio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregao e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relgio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem ndio.

    A surpresa maior estava, porm, por vir. Dias depois, o ndio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma rvore altssima nas cercanias da aldeia, o ndio fez o pastor divisar, no sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relgio. O ndio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguvel em meio s penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vrios metros de altura, o relgio, agora mnimo e sem nenhuma funo, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relgio.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Passados mais alguns meses o pastor tambm se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatrios e, naquela manh, dar uma ltima revisada na comunicao que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelizao. Seu tema: A catequese e os selvagens. Levantou-se, deu uma olhada no relgio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspirao de ltima hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritrio. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e at uma flauta formavam uma bela decorao. Rstica e sbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranas. Com o p na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraado o que aquele ndio foi fazer com o meu relgio.

    Esta estria, no necessariamente verdadeira, porm, de toda evidncia, bastante plausvel, demonstra alguns dos importantes sentidos da questo do etnocentrismo.

    Em primeiro lugar, no necessrio ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funes estticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do outro, desempenhavam funes que seriam principalmente tcnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relgio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem ndio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um traduziu nos termos de sua prpria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do outro. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do outro nos termos da cultura do grupo do eu.

    Em segundo lugar, esta estria representa o que se poderia chamar, se isso fosse possvel, de um etnocentrismo cordial, j que ambos o ndio e o pastor tiveram atitudes concretas sem maiores conseqncias. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreenso do outro que se reveste de uma forma bastante violenta. Como j vimos, pode coloc-lo como primitivo, como algo a ser destrudo, como atraso ao desenvolvimento,

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  • (frmula, alis, muito comum e de uso geral no etnocdio, na matana dos ndios).

    Assim, por exemplo, um famoso cientista do incio do sculo, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermnio dos ndios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e colonizao das regies do serto que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vrios outros lugares, a lgica do extermnio regulou, infinitas vezes, as relaes entre a chamada civilizao ocidental e as sociedades tribais. Isso lembra o comentrio, tristemente exemplar, de uma criana, de um grande centro urbano, que, de tanto ouvir absurdos sobre o ndio, seja em casa, seja nos livros didticos, seja na indstria cultural, acabou por defini-los dizendo: o ndio o maior amigo do homem.

    Em terceiro lugar, a estria ainda ensina que o outro e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, so apenas uma representao, uma imagem distorcida que manipulada como bem entendemos. Ao outro negamos aquele mnimo de autonomia necessria para falar de si mesmo. Tudo se ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • passa como se fssemos autores de filmes e livros de fico cientfica onde podemos falar e pensar o quanto cruel, grotesca e monstruosa uma civilizao de marcianos que capturou nosso foguete. Tambm, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simptico, inteligente e super-poderoso que com incrvel percia salva a Terra de uma coliso fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano no diz nada, posso pensar dele o que quiser.

    Assim, de um ponto de vista do grupo do eu, os que esto de fora podem ser brabos e traioeiros bem como mansos e bondosos. Alis, brabos e mansos so dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o humor de determinados animais e o estado de vrias tribos de ndios ou de escravos negros.

    A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, manipulada por uma srie de representaes que oscilam entre estes dois plos, sendo denegrida ou exaltada como o marciano ao sabor das intenes que se tenha. Isto no s ao longo da histria, mas tambm em diferentes contextos no ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • presente. A expresso fulano muito louco pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da histria o louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi feito portador de uma palavra sagrada e respeitada.

    Aqueles que so diferentes do grupo do eu os diversos outros deste mundo por no poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela tica etnocntrica e segundo as dinmicas ideolgicas de determinados momentos.

    Na nossa chamada civilizao ocidental, nas sociedades complexas e industriais contemporneas, existem diversos mecanismos de reforo para o seu estilo de vida atravs de representaes negativas do outro. O caso dos ndios brasileiros bastante ilustrativo, pois alguns antroplogos estudiosos do assunto j identificaram determinadas vises bsicas, determinados esteretipos, que so permanentemente aplicados a estes ndios.

    Eu mesmo realizei, h alguns anos, um estudo sobre as imagens do ndio nos livros didticos de Histria do Brasil. Estes livros tm importncia ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • fundamental na formao de uma imagem do ndio, pois so lidos e, mais ainda, estudados por milhes de alunos pr-universitrios nos mais diversos recantos do pas. Alguns destes livros alcanam tiragens altssimas e j tiveram mais de duzentas edies. Atravs deles circula um saber altamente etnocntrico honrosas excees sobre os ndios.

    Os livros didticos, em funo mesmo do seu destino e de sua natureza, carregam um valor de autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da verdade. Sua informao obtm este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu contedo passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser visto como algo rigoroso, srio e cientfico. Os estudantes so testados, via de regra, em face do seu contedo, o que faz com que as informaes neles contidas acabem se fixando no fundo da memria de todos ns. Com ela se fixam tambm imagens extremamente etnocntricas.

    Alguns livros colocavam que os ndios eram incapazes de trabalhar nos engenhos de acar por serem indolentes e preguiosos. Ora, como aplicar adjetivos tais como indolente e preguioso ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • algum, um povo ou uma pessoa, que se recuse a trabalhar como escravo, numa lavoura que no a sua, para a riqueza de um colonizador que nem sequer seu amigo: antes, muito pelo contrrio, esta recusa , no mnimo, sinal de sade mental.

    Outro fato tambm interessante que um nmero significativo de livros didticos comea com a seguinte informao: os ndios andavam nus. Este escndalo esconde, na verdade, a nossa noo absolutizada do que deva ser uma roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e esconder. A estria do nosso amigo missionrio serviu para a constatao das dificuldades de definir o sentido de um objeto o relgio ou o arco fora dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada garante que os ndios andem nus a no ser a concepo que eles mesmos teriam de nudez e vestimenta.

    Assim, como o outro algum calado, a quem no permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz, manipulado de acordo com desejos ideolgicos, o ndio , para o livro didtico, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras palavras, o ndio alugado na Histria do ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Brasil para aparecer por trs vezes em trs papis diferentes.

    O primeiro papel que o ndio representa no captulo do descobrimento. Ali, ele aparece como selvagem, primitivo, pr-histrico, antropfago, etc. Isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram superiores e civilizados.

    O segundo papel do ndio no captulo da catequese. Nele o papel do ndio o de criana, inocente, infantil, almas-virgens, etc., para fazer parecer que os ndios que precisavam da proteo que a religio lhes queria impingir.

    O terceiro papel muito engraado. E no captulo Etnia brasileira. Se o ndio j havia aparecido como selvagem ou criana, como iriam falar de um povo o nosso formado por portugueses, negros e crianas ou um povo formado por portugueses, negros e selvagens? Ento aparece um novo papel e o ndio, num passe da mgica etnocntrica, vira corajoso, altivo, cheio de amor liberdade.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Assim so as sutilezas, violncias, persistncias do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A indstria cultural TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rdio est freqentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indstria cultural criado sistematicamente um enorme conjunto de outros que servem para reafirmar, por oposio, uma srie de valores de um grupo dominante que se auto-promove a modelo de humanidade.

    Nossas prprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades so, muitas vezes, repletas de resqucios de atitudes etnocntricas. Rotulamos e aplicamos esteretipos atravs dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferena. As idias etnocntricas que temos sobre as mulheres, os negros, os empregados, os parabas de obra, os colunveis, os doides, os surfistas, as dondocas, os velhos, os caretas, os vagabundos, os gays e todos os demais outros com os quais temos familiaridade, so uma espcie de conhecimento um ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • saber, baseado em formulaes ideolgicas, que no fundo transforma a diferena pura e simples num juzo de valor perigosamente etnocntrico.

    Mas, existem idias que se contrapem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes a de relativizao. Quando vemos que as verdades da vida so menos uma questo de essncia das coisas e mais uma questo de posio: estamos relativizando. Quando o significado de um ato visto no na sua dimenso absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o outro nos seus prprios valores e no nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar ver as coisas do mundo como uma relao capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformao. Ver as coisas do mundo como a relao entre elas. Ver que a verdade est mais no olhar que naquilo que olhado. Relativizar no transformar a diferena em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas v-la na sua dimenso de riqueza por ser diferena.

    A nossa sociedade j vem, h alguns sculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • cincia sobre a diferena entre os seres humanos. Esta cincia chama-se Antropologia Social. Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao outro, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela tambm possui o compromisso da procura de super-lo. Diferentemente do saber de senso comum, o movimento da Antropologia no sentido de ver a diferena como forma pela qual os seres humanos deram solues diversas a limites existenciais comuns. Assim, a diferena no se equaciona com a ameaa, mas com a alternativa. Ela no uma hostilidade do outro, mas uma possibilidade que o outro pode abrir para o eu.

    Assim, gostaria, agora, de acompanhar alguns movimentos pelos quais passou a Antropologia neste jogo de refletir sobre a diferena. Entender alguns movimentos deste jogo acompanhar a superao do etnocentrismo na arena do intelecto e da razo e na arena da emoo e do sentimento. Acredito at que, num certo nvel, esta superao que ocorre na cincia que a ponta de lana do conhecimento do outro possa, no plano da sociedade mais geral, ser traduzida num humanismo de olhar mais conseqente. A ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • diferena das escolhas humanas se fixa, no conhecimento antropolgico, no mnimo, como alternativa e testemunho de muitos outros, aqui e pelo mundo afora, cujas formas de existncia sero sempre a presena do humano em sua singularidade.

    O percurso que, na Antropologia, busca a superao do etnocentrismo implicou diferentes movimentos e pode, com maior ou menor grau de dificuldade, ser observado a partir de vrios ngulos. Optei por traar o caminho em torno de algumas vises do conceito de cultura dentro da Antropologia. Algum j disse que o antroplogo aquele que pensa sobre as questes da cultura humana. De fato, seguindo a pista dada pelos diferentes conceitos de cultura de que a Antropologia dispe perceberemos como esta foi vista de maneiras mais etnocntricas que cederam espao a outras vises mais relativizadoras.

    Antes, porm, de ver isto tudo os conceitos de cultura nas teorias formais da Antropologia , convm fazer rpida passagem pelo panorama de uma poca que acho ter sido fundamental para a constituio de um sentimento da Antropologia. Trata-se dos ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • sculos XV, XVI e XVII com suas navegaes, expedies, espantos, colonizaes, alucinaes, sacaes e aberturas. E um momento bsico de encontro com o outro. O velho mundo buscando coisas cujas dimenses talvez nem soubesse. O novo mundo um tanto indefeso frente ao furaco que comeava a envolv-lo. Povos assustados com o olhar o outro frente a frente. Momento marcante a exigir que se comeasse a pensar a diferena, porque esta j se impunha na fora de sua radicalidade.

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  • PRIMEIROS MOVIMENTOS

    As aulas apenas comearam. E de manh e a agitao nos corredores da Escola de Sagres menina dos olhos do rei cessa completamente. A exposio do professor acompanhada com a mxima ateno e versa sobre os limites do mundo. O mestre, compenetrado e falante, faz uma anlise das diferentes teorias sobre o que poderia ser encontrado pelo navegante que se aventurasse em linha reta mar adentro. Buracos sem fundo, monstros, serpentes, quedas no vazio e a quase total impossibilidade de voltar. Mesmo com as novas tecnologias, dizia o professor aos seus alunos pilotos e comandantes supertreinados, o risco era imenso. A bssola e o astrolbio de complexo manejo eram armas ainda pequenas frente a perigos tamanhos.

    Neste Portugal do final do sculo XV e incio do sculo XVI discute-se e especula-se, nos centros avanados de estudo, sobre as possibilidades tericas

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  • e os desenvolvimentos tcnicos necessrios dilatao do imprio e conseqente alterao das fronteiras do mundo conhecido. O que existe para alm da Europa? Quem habita os espaos do outro mundo? Como navegar, que era preciso, mesmo sem viver, que a j no era mais preciso!

    As novas tcnicas empolgavam os alunos. Os financiamentos eram conseguidos para pesquisas e exploraes. As verbas da grande potncia corriam soltas para a ampliao do universo e do domnio portugus at sobre coisas as quais ainda no se sabia o que seriam.

    Assim, aqui nascia, para o pensamento ocidental, um conjunto radical de novas questes, interesses, paradoxos. O mundo do eu se via obrigado, frente ao outro, a pensar a diferena. O que significaria o novo mundo? Seriam seres humanos os seus habitantes ou uma verso extraterrestre modelo sculo XVI? Tal como um E. T. o nativo do novo mundo teria alma? Lei? Poder? Poltica? Deus? Rei? Amor? Amizade? Casamento? At o prprio Cames numa passagem de Os Lusadas, poema pico aos

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  • navegantes e s aventuras portuguesas, escrevia sobre estas dvidas:

    Que gente ser esta? Em si diziam; Que costumes, que lei, que rei teriam?.

    Quantas questes se colocavam para aquela gente naquele tempo. Aqui se inicia a busca dos modelos explicativos da diferena. Muita violncia, espanto e perplexidade iriam regular as relaes entre povos, sociedades e culturas to impressionantemente diferentes a ponto de uma negar, freqentemente, outra a prpria natureza humana.

    Destes encontros, entre a sociedade do eu e a sociedade do outro, o sculo XVI constituiu-se em uma das arenas principais. Ningum entendia nada, num certo sentido, mas ali esboava-se algo que seria uma constante: as formas pelas quais as diferenas foram pensadas. Isto a Antropologia Social ou Cultural; um esforo de compreenso da diferena, de comparao entre as sociedades sem pensar que uma delas deva ser a dona da verdade. Em que pese a Antropologia ter nascido no chamado mundo ocidental seu esforo no sentido de no torn-lo ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • absoluto. O objetivo deste livro sobre o etnocentrismo o de mostrar como, pouco a pouco, ele foi sendo superado, se no para todos ao menos dentro da Antropologia.

    Vamos procurar ver as principais formas pelas quais a Antropologia pensou a diferena ao longo de sua imensa literatura e da amplitude de seus estudos e reflexes. Do palco do encontro inicial no sculo XVI fica marcada a idia de uma forte perplexidade. E esta perplexidade que vai, pouco a pouco, cedendo lugar a novos conjuntos de idias, sempre mais matizados, procurando compreender as diferenas que, a cada vez, vo assumindo novas formas.

    O primeiro destes pensamentos, ocorridos na Antropologia e que procuram explicar a diferena, conhecido como Evolucionismo.

    A noo de evoluo um marco fundamental para o pensamento antropolgico. Vai aparecer como idia bsica para toda uma grande fase da teoria antropolgica e, na histria dos saberes sobre o ser humano, tem um lugar de destaque, quase que como uma ncora, para os trabalhos e estudos que ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • procuravam fazer da Antropologia uma cincia. Assim, a diferena que se travestia em espanto e perplexidade, nos sculos XV e XVI, encontra, nos sculos XVIII e XIX, uma nova explicao: o outro diferente porque possui diferente grau de evoluo.

    Mas, o que , exatamente, evoluo? Evoluo, no seu sentido mais amplo, equivale a desenvolvimento. a transformao progressiva no sentido da realizao completa de algo latente. o caminho da manifestao plena do que estava oculto. Evoluo, em outras palavras, o desenvolvimento obrigatrio de uma determinada unidade que revela, pelo processo evolutivo, uma segunda forma, mostrando, ento, sua potencialidade. um processo permanente onde uma unidade qualquer se transforma numa segunda que, por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.

    A noo de evoluo pode estar ligada ao orgnico, ao nvel biolgico do desenvolvimento. Este compromisso da idia de evoluo com o crescimento e a formao dos organismos. tem no livro A Origem das Espcies, de Darwin, em plena metade do sculo XIX, sua formulao clssica. Mas, a esta noo ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • orgnica, biolgica, de evoluo j se juntavam os pensamentos e discusses filosficas dos chamados iluministas do sculo XVIII.

    Tudo isso forma um campo intelectual, um espao correto para um tipo de pensamento que, ento, iria contagiar todos os estudos sobre as sociedades humanas. O evolucionismo biolgico e o evolucionismo social se encontram e o segundo passa ser o novo modelo explicador da diferena entre o eu e o outro. O resultado disso, claro, vai ser a permanncia do etnocentrismo agora traduzido na sociedade do eu como o estgio mais adiantado e a sociedade do outro como o estgio mais atrasado. Mas isto o fim da estria e importante que possamos ver mais a fundo o sistema de idias que se monta em torno da idia de evoluo.

    Para o evolucionismo antropolgico a noo de progresso torna-se fundamental, pois no seu rumo que a histria do homem se faz. Acredita-se na unidade bsica da espcie humana e o fator tempo passa a ser bastante importante. Progresso, evoluo, avano no tempo. O homem a caminho. A direo a de um estdio superior de civilizao.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Saindo de estdios mais primitivos numa trajetria de permanente progresso onde o tempo a teia onde se tece a evoluo. Assim, a origem da humanidade tem de ser num passado longnquo para que as etapas se sucedam na direo de uma civilizao mais e mais avanada, mais e mais absoluta em suas conquistas.

    E foi toda uma gerao de antroplogos que, em meados do sculo XIX na Inglaterra, Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor e, nos Estados Unidos, Lewis Morgan , comeou a produzir seus estudos consciente de que a presena do homem sobre a terra remontava a uma idade muito antiga. Sabedores desta origem remota dos antepassados procuravam escalonar as etapas de evoluo das sociedades que encontravam pelo mundo.

    A lgica do raciocnio simples. Numa palavra: transformar sociedades contemporneas em retratos do passado. Explicando melhor, a Inglaterra do sculo XIX era, de fato, contempornea dos aborgenes australianos, por exemplo. Ao afirmar que todas as formaes sociais humanas tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido, na direo do ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • progresso, os evolucionistas pensavam que os australianos haviam parado num estdio primitivo e os ingleses avanado para um estdio civilizado. claro que quem assim pensava eram os ingleses, que em plena poca da rainha Vitria, o sculo XIX, a era vitoriana, espalhavam militarmente seu imprio pelo mundo inteiro. Tambm podiam pensar assim norte-americanos e outros europeus que se sentiam fazendo parte de uma civilizao absoluta, para eles, a melhor por definio.

    Mas, restava ainda um problema terico. A escolha e a definio dos critrios pelos quais seria possvel medir o estdio de avano de cada uma das sociedades existentes. Era necessrio um instrumento comparativo tipo um medidor de progresso. Sim, porque se compararmos Brasil, Estados Unidos e Uruguai e o medidor for futebol, por exemplo, teramos o Brasil como o mais civilizado, o Uruguai como intermedirio e os Estados Unidos no estdio primitivo. Se o medidor for o nmero de grupos de rock a ordem j outra e assim tantas ordenaes da hierarquia das culturas quanto os medidores escolhidos.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Faz-se, ento, fundamental a criao de algo que fizesse as vezes de critrio, tendo aceitao, lgica e possibilidade para o estudo comparativo. Acredito que a soluo est no prprio conceito de cultura adotado pelos evolucionistas. Este conceito , talvez, o mais famoso da Antropologia e, dentre mais de cento e cinqenta definies da cultura que a disciplina produziu, pode-se dizer que , no mnimo, um clssico. Ele aparece no livro A Origem das Culturas de Sir Edward Tylor que, logo na primeira pgina, diz o seguinte:

    Cultura ou civilizao, no seu sentido etnogrfico estrito, este todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte, leis, moral, costumes e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade.

    Se pensarmos nesta definio podemos constatar que transparece uma viso da cultura como uma srie de itens identificveis, unitrios, separados, que formam um todo complexo. Tambm transparece uma espcie de princpio geral, uma lei, dentro da cultura, como se os problemas colocados aos seres humanos fossem, em toda parte, os mesmos. Aqui, ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • bom lembrar o missionrio do primeiro captulo. O que Arte? Lei? Moral?, etc. Sabemos que so relativos. Que, em certas sociedades, os contedos destas idias talvez nem existam. Para os evolucionistas, no entanto, estas idias eram ntidas e claras. Extradas dos seus contextos eles as absolutizavam e assumiam como se as idias de sua prpria sociedade fossem no apenas universais como as melhores e mais bem acabadas.

    Postulavam uma unidade entre as culturas como se todas tivessem de dar conta de problemas idnticos e que, mais cedo ou mais tarde, os primitivos chegariam s formas da civilizao. Assumiam que os itens da cultura se assemelhavam onde quer que se encontrasse a cultura. O que fosse importante para sua sociedade a sociedade do eu seria importante para todas as demais as sociedades do outro. Lembram um pouco o que dizia uma autoridade h alguns anos: o que bom para os Estados Unidos bom para o Brasil.

    Ainda mais, postulavam uma permanncia, uma eterna valorizao destes itens para qualquer cultura, de modo a que estes e outros itens pudessem ser ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • pensados como uma linha de evoluo a partir de um plo primitivo e, por via do progresso, chegando ao plo civilizado.

    A mudana nas sociedades se daria pela inveno, conseqncia do aperfeioamento do esprito cientfico. Este esprito teria, evidentemente, soprado muito mais na sociedade do eu de modo a que, por trs do ser civilizado, fssemos encontrando sries de homens at seu irmo mais primitivo. Isto faz com que os evolucionistas pudessem pensar o selvagem sem conhec-lo de perto, pois ele era visto como uma fase passada de mim mesmo. Algo assim como se fosse possvel saber a reao das crianas apenas porque um dia fomos crianas. uma questo de sentar e meditar: se eu fosse um primitivo... como faria isto ou aquilo?.

    Diz uma anedota que Sir James Frazer, importante antroplogo da poca, ao ser perguntado se falaria algum dia com um selvagem, respondeu muito simples e sinceramente: Deus me livre!. De fato, a sua teoria dispensava qualquer contato com o outro, qualquer trabalho de campo, pois que tudo j estava pronto. Era uma questo de encaixar as ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • culturas nos estdios j predeterminados da evoluo. O etnocentrismo estava em achar que o outro era completamente dispensvel como elemento de transformao da teoria. A relativizao no tinha espao. Lembra o cowboy que perdeu seu cavalo e desesperado sentou e meditou: se eu fosse um cavalo ... para onde eu teria ido? Claro, ele nunca achou o cavalo. Assim como os evolucionistas ao dispensarem o trabalho de campo e a relativizao, acreditando-se capazes de ter todo o conhecimento do outro dentro de si mesmos, acabaram impossibilitados de achar alguns cavalos importantes.

    Dessa maneira, temos dois marcos bsicos. No extremo inferior os povos primitivos e no extremo superior os povos ditos civilizados. Cada item da cultura serve para demonstrar o percurso do primitivismo civilizao e encontrar para as sociedades um lugar neste caminho. Os itens culturais faziam papel de rgua com a qual se media a distncia histrica entre os povos.

    A contribuio de um dos antroplogos mais famosos da poca Lewis Morgan foi exatamente calcular as sociedades segundo seu grau de evoluo.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Estudando invenes, descobertas e instituies ele procurou ordenar os estdios evolutivos em perodos que caracterizam as fases passadas pelas culturas humanas. Para Morgan, a acumulao do saber e o progresso das faculdades mentais e morais dos homens vo marcando as mudanas de estdios no caminho da evoluo.

    Avaliando itens culturais tais como: governo, meios de subsistncia, arquitetura, religio, propriedade, famlia, etc., divide os cem mil anos de histria humana em trs perodos bsicos selvageria, barbrie e civilizao. No preciso dizer que a sociedade dele mesmo ocupava exemplarmente o lugar destinado mais alta civilizao.

    Dessa forma, aqui no evolucionismo, encontramos ainda, fortemente entrincheirada, a viso etnocntrica. Mas, paradoxalmente, neste mesmo evolucionismo se armam as bases que viro, pouco a pouco, minando o etnocentrismo dentro da Antropologia. Como pode ser isto? Como um dos movimentos tericos mais marcados pela ideologia da superioridade pode trazer dentro de si mesmo os germes da superao desta ideologia?________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Acredito que a resposta simples. Ou, pelo menos, a hiptese que coloco aqui simples. A ausncia de um pensamento sistemtico sobre o outro, a viso catica do outro; o medo oculto, o espanto, a falta ou excesso de significaes do outro, podem ser mais etnocntricos do que a reflexo sobre o outro. Se o eu negava, num primeiro momento, participar da mesma natureza humana do outro, v-lo como atrasado e primitivo, mas dotado de uma natureza humana da qual tambm participo, j apresenta alguma diferena. Menos evoludo mas, nem deus nem diabo, um outro to humano quanto o eu.

    Aqui fica um dilema interessante: dois sistemas de idias o espanto do sculo XVI e o evolucionismo do sculo XIX so igualmente inadequados, pois que ambos so etnocntricos na sua maneira de ver o outro. Entretanto, entre si, apresentam diferenas e, me parece que nesse sentido, o evolucionismo, por se propor a pensar o outro e discuti-lo como scio do clube da humanidade, j traz em si alguma semente de relativizao. certo que a escolha, por assim dizer, entre o ruim e o pior ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • sempre muito difcil. Sabemos que ambos no so bons mas pode-se tambm ver qual se distancia mais.

    Assim, num resumo, temos o que foi o evolucionismo como primeiro eixo sistemtico de pensamento sobre o outro dentro da Antropologia, tivemos tambm um pequeno quadro do encontro fundamental, em termos da experincia do eu e do outro, que foram os sculos XV, XVI e XVII com seus novos e velhos mundos. Ainda comparamos as duas coisas em termos do que poderiam ter significado.

    Agora relativizando; claro que a poca do novo mundo, o evolucionismo e a comparao entre ambos muito mais, mas muito mais mesmo, complexa do que isto. Tanto aqui, como de resto em todas as coisas sobre as quais procuramos saber, encontra-se uma lgica parecida: quanto mais sabemos mais sabemos o quanto falta saber. A magia, neste processo, reside a mesmo: na conscincia de quo pouco se sabe.

    E vai ser, exatamente, esta conscincia que vai levar a Antropologia a explodir os esquemas simplificadores do evolucionismo e a ampliar, ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • multiplicando muito, seu campo de estudos, que passa rapidamente a alcanar limites jamais pensados at ento. Relativiza-se mais e com isto complexifica-se o outro como objeto de estudo. Neste processo, a sociedade do eu comea at a questionar-se a si prpria. o que veremos a seguir.

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  • O PASSAPORTE

    Agora tudo comea a acontecer muito rica, confusa e rapidamente. O sculo XX traz para a Antropologia um conjunto vasto e complexo de novas idias formuladas por um grupo brilhante de pesquisadores. Tudo isto vai, paulatinamente, exorcizando o fantasma do etnocentrismo de dentro da disciplina. bem verdade que, ao nvel do senso comum, das ideologias, dos cotidianos da sociedade ocidental, a viso etnocntrica dos diversos outros deste mundo muito pouco se abala com as revolues da Antropologia. Relativizar uma palavra que, at hoje, muito pouco saiu das fronteiras do conhecimento produzido pela Antropologia.

    Mas, acompanhando o etnocentrismo dentro da nossa cincia do outro, dentro da disciplina que estuda a diferena, encontramos, felizmente, muitas conquistas.

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  • A ordem natural em que eu devo explicar estas conquistas , por uma questo de clareza, a ordem de um tempo linear, feito de causa e conseqncia, com um fato atrs do outro, algum influenciando algum, uma coisa resultando na outra. Melhor dizendo, deveria fazer uma historinha, normalzinha, certinha, com tudo se encaixando no seu lugar devido. Desde os momentos primitivos do etnocentrismo aos momentos civilizados da relativizao. Deveria, em suma, como vocs j devem ter notado, fazer tal como fizeram os evolucionistas.

    E agora? Me prendi num paradoxo. Explicar o avano da Antropologia em direo superao do etnocentrismo procedendo, nesta explicao, como os evolucionistas que to pouco relativizaram.

    Com este paradoxo tocamos bem fundo no que a problemtica etnocntrica e nas dificuldades de sairmos das suas intrincadas malhas. Para no contar esta historinha da Antropologia, tipo uma fbula malfeita, necessrio relativizar a prpria noo de tempo como histria, como passagem linear dos acontecimentos. O mais interessante que a prpria Antropologia vai ser capaz de relativizar a noo ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • ocidental de tempo, assim como a noo ocidental de indivduo, assim como outras tantas noes to fundamentais sociedade do eu.

    A Antropologia consegue, hoje, ver que sociedades diferentes podem ter concepes da existncia tanto diversas entre si quanto igualmente boas para cada uma. Assim, vou poder falar de etnocentrismo e de relativizao sem precisar fazer uma historinha linear, didtica e evolucionista. Vamos, de outra maneira, falar de um jogo o jogo da Antropologia onde as jogadas, por mais que possam ter alguma ordem cronolgica, tm maior valor pela posio dos jogadores e a criatividade dos lances.

    Escolhidos os campos, o apito soou e a sada pode ter sido dada por um alemo chamado Franz Boas. Gnio inquieto, curioso, instigante, procurou investigar muitas reas do conhecimento humanstico dando toques de primeira linha em inventiva e criatividade. Ao seu nome se liga toda uma escola de pensamento que ficou conhecida como difusionismo ou escola americana. Este alemo, no incio do sculo, vai trabalhar nos Estados Unidos e influencia todo um importante grupo de alunos que desenvolve um ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • trabalho fortemente inspirado na fertilidade do seu pensamento. Vamos a ele ento.

    Com Boas, suas idias e seus alunos, a Antropologia se transforma substancialmente. Nesta transformao, que relativiza as j bem estabelecidas noes evolucionistas, as idias de cultura e histria tambm se modificam. Como vimos, a articulao destas idias era um dos eixos da forma de pensar o outro dentro do evolucionismo.

    O grande passo que parece estar vinculado ao trabalho de Boas o de iniciar uma reflexo que veio a relativizar o conceito de cultura. Num programa onde o evolucionismo tomava a cultura ocidental, do eu, como absoluta e, a partir de seus padres, organizava toda uma classificao das culturas do outro, Franz Boas criou a sua revoluo.

    Foi ele o primeiro a perceber a importncia de estudar as culturas humanas nos seus particulares. Cada grupo produzia, a partir de suas condies histricas, climticas, lingsticas, etc., uma determinada cultura que se caracterizava, ento, por ser nica, especfica. Este relativismo cultural, essa ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • pluralidade de culturas diferentes, visto por Boas , se compararmos, uma ruptura importante do centramento, da absolutizao da cultura do eu, no pensamento evolucionista. claro, o resultado disso s podia ser um: tudo passa a ser infinitamente mais complicado no estudo das culturas humanas.

    Toda vez que um campo de conhecimento se abre, se lana de frente para a complexidade, ele tambm se relativiza. As possibilidades de explicao, por no serem mais de um s tipo, passam a se contrapor, a necessitarem de refinamento maior no seu debate. Esta complexificao quase sempre fecunda. No caso, ampliou conhecimentos e enriqueceu enfoques atravs dos quais as diversas culturas do outro passaram a ser percebidas e estudadas.

    O esforo de relativizar problematiza qualquer saber. As ideologias, em especial as extremadas, odeiam qualquer possibilidade de relativizao. Elas so centradas em seu prprio monlogo e a descentralizao quebra sua auto-referncia abrindo espao a uma multiplicidade de pontos de vista, solues e perguntas. Assim, as culturas humanas ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • emergem da classificao evolucionista pura e simples que literalmente explode. Tornam-se mais difceis, refratrias a estas explicaes, complexas enfim. Passam a apresentar aspectos, nuanas, caractersticas at ento insuspeitveis.

    De qualquer forma, a Antropologia cresce e se transforma muito com isto, e ainda bem, pois verdadeiro que o caminho de um pensamento que se quer cientfico percorrido nesta justa medida.

    Mas, esta relativizao, que acontece na Antropologia pela mo de Franz Boas, faz com que seu papel, neste processo de fuga ao etnocentrismo, seja um pouco paradoxal. parecido com o de algum que estilhaa um bolo de idias superorganizadas como o evolucionismo e, no seu lugar, deixa os estilhaos como possibilidades a serem exploradas, mas no um novo bolo de idias superorganizadas. Em outras palavras, Boas no organizou e apresentou para a posteridade uma teoria da cultura que permitisse, a algum que fizesse uma histria das idias antropolgicas, torn-la como um contedo evidente do seu trabalho.

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  • O conceito de cultura no fica nitidamente cristalizado no seu trabalho. O interesse do seu pensamento se manifesta mais em levantar hipteses novas do que em torn-las sistematicamente formuladas. Era um homem de deixar pistas frteis, instigante, inquieto, com interesses demasiadamente mltiplos para se conter num conjunto de idias bem arrumadas e acabadas.

    Nessa linha, saiu pesquisando sobre nada mais nada menos que: Antropologia Fsica, Lingstica, Folclore, Geografia, Migraes, Organizao Social e, nisto tudo, a idia de cultura se renova, se transforma, foge, reencontrada diferentemente adiante, etc.

    Na inquietao e curiosidade do seu pensamento a cultura humana, ou melhor, as diversas culturas humanas (para Boas elas eram diferentes, plurais) vo ser vistas como relacionadas, ora com o ambiente que envolve o grupo, ora com as lnguas por eles faladas, ora com os indivduos corpo e esprito que criam estas culturas.

    Preocupado com o estudo da histria concreta, particular de cada cultura ao invs de, como o ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • evolucionismo, ter uma histria nica, geral, onde teriam de caber todas as culturas, voltou-se, definitivamente, para o mundo do outro. A categoria de histria perdia, com ele, o seu H maisculo to fundamental aos evolucionistas. O h, agora, era minsculo. No havia uma nica histria que se acumulava, inapelavelmente, em direo sociedade do eu. O outro tambm passa a poder contar sua histria que no iria desembocar, necessariamente, na avanada sociedade do eu.

    Enfatiza os processos de mudana, de troca e emprstimo cultural como capazes de repercutir nos caminhos trilhados por cada cultura humana. Todas estas idias, suas sutilezas, relativizaes e complexidades, se afinal acabaram por no expressar uma ntida teoria da cultura ao menos expressaram a riqueza de uma reflexo que assumiu os riscos de relativizar os limites, os parmetros, as fronteiras do prprio campo de onde partiu.

    Assim, como conseqncia de um pensamento to frtil, toda uma gerao de antroplogos vai ser influenciada e vai desenvolver, em direes distintas,

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  • pistas, toques e intuies que, de alguma maneira, se ancoravam nos escritos e nos projetos de Boas.

    Vamos acompanhar mais um pouco este importante caminho de fuga ao etnocentrismo tal como aconteceu na escola americana. Os alunos de Boas levam adiante seu pensamento, recebem influncias de outras idias que j nasciam na Europa e mantm bem vivo o jogo da Antropologia. Aqui, com estes alunos, avanamos algumas dcadas a caminho do final da primeira metade do sculo XX. Sem seguir cronologias rgidas voltaremos depois a outras importantes reviravoltas que aconteciam na Europa. Do etnocentrismo relativizao, em toda parte, em diferentes planos e estratgias, a Antropologia d andamento ao jogo entre o eu que faz Antropologia e o outro que cada vez mais pode nela intervir.

    Quem ler Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, um clssico da Antropologia brasileira, vai aprender muita coisa sobre a cultura brasileira. Vai aprender que a Antropologia Social se faz, em larga medida, na observao de universos microscpicos, pela anlise de pequenos quadros do cotidiano, pelo ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • estudo meticuloso do detalhe da prtica social. Vai aprender o quanto se pode revelar da cultura brasileira a partir de um sistemtico interesse pelo que os brasileiros fazem e pensam para criar um tipo de existncia e uma forma particular de ser na vida que faz desta uma cultura nica, singular. Vai ver que a Antropologia conhece uma cultura menos pelas suas manifestaes oficiais, pblicas, grandiloqentes que pelas suas manifestaes descontradas, privadas, peculiares. Vai, enfim conhecer um grande livro. Vai se sentir ali como brasileiro, vai se reconhecer no detalhe, no cotidiano, na microscopia.

    Mas, vai, tambm, o leitor de Casa Grande & Senzala, sentir uma oscilao na forma pela qual a cultura brasileira como um todo explicada. Em certos momentos, vai achar que a cultura brasileira pode ser explicada pelo clima, geografia e ambiente. Em outros, vai achar que ela se explica pelas raas e pela personalidade dos povos que a formaram. Ainda poder achar que a lngua que aqui se fala a chave para entender a cultura. Vai ouvir falar de trocas, difuso, traos e elementos culturais se misturando para formarem a brasilidade.________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Da lngua geografia, do povo raa, da personalidade famlia, tudo aparece e tem seu espao numa hesitao e num arrojo tpicos do grande aluno de Franz Boas que foi Gilberto Freyre.

    Casa Grande & Senzala tem muito a ver com Boas por, pelo menos, dois motivos. O primeiro esta oscilao e criatividade que Gilberto Freyre to bem captou de seu professor. O segundo pela incrvel capacidade de Boas para a formao de grandes alunos que perpetuaram suas vises da cultura humana e do fazer da Antropologia.

    Assim, pelo menos trs e at talvez mais grupos de alunos desenvolveram e exploraram algumas das idias principais lanadas como sementes pelos trabalhos do professor.

    So, na verdade, vises da cultura que, comparando ao evolucionismo, a relativizam por colocar elementos prprios vida do povo que produz essa cultura como chave para seu entendimento. Em outras palavras, so estudos que comeam a fugir do etnocentrismo por conseguirem ver que o ambiente

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  • onde vive uma sociedade deve ser, por exemplo, fator importante para explicar sua cultura.

    Um grupo de alunos parte, pois, para investigar a relao ente a cultura e o ambiente geogrfico, ecolgico, fsico , buscando a explicao para a cultura e a histria das sociedades humanas. Um segundo parte para relacionar a mentalidade, a psicologia dos indivduos com a cultura por eles vivida. a famosa escola personalidade e cultura. Um terceiro grupo investiga as relaes entre linguagem e cultura.

    Vamos examin-los um pouco mais de perto. Estes grupos so muito importantes, pois, atravs deles, mais e mais a Antropologia escapava ao etnocentrismo e relativizava. O outro j era olhado com a preocupao de entend-lo segundo seus prprios problemas, caractersticas, segundo sua prpria lgica.

    Comearei pela escola personalidade e cultura, que no s produziu boa Antropologia como tambm best-sellers. Ruth Benedict e Margaret Mead, dois dos seus nomes mais famosos, venderam muitos livros ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • nos Estados Unidos, onde foram escritos e editados, e no resto do mundo, onde foram traduzidos. Foi uma escola que relativizou e muito. Comparou a sociedade americana com sociedades tribais fazendo um trabalho de ida ao outro e volta ao eu. Estabeleceu frtil dilogo com as teorias produzidas pela Psicologia. Em suma, instigou, agitou e renovou dentro da Antropologia. Mas, o que , enfim, esta corrente de pensamento que tanto sucesso fez extrapolando at o mundo acadmico e sendo lida por muita gente?

    Vou dar um exemplo da sua penetrao e tentar explicar rapidamente seus fundamentos.

    Estava trabalhando, como professor do segundo grau de um famoso colgio do Rio de Janeiro, s vsperas da copa do mundo de futebol. Todos sabamos que as aulas batiam com o horrio das transmisses televisivas dos jogos. Todos estvamos, portanto, com problemas. Os alunos, quase sempre a principal fora renovadora de uma escola, comearam a agitar um abaixo-assinado direo pedindo a suspenso das aulas durante os jogos do Brasil, os

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  • importantes para o Brasil, a abertura da Copa, os clssicos entre outras selees, etc., etc.

    Eu, particularmente, estava torcendo muito pelo sucesso da reivindicao. Nem tanto pela matao de aula, mas porque, realmente, futebol muito importante para mim. Tanto jogar quanto assistir. Neste esprito, me encontrava na sala dos professores, durante o recreio, conversando com colegas, quando o diretor da escola entra assumindo ares indignados. Comea a deitar falao sobre o abaixo-assinado (era contra) dizendo que a educao no poderia parar por causa de partidas de futebol e outras jias do pensamento como esta. Todos, constrangidos, ouvamos.

    Quando acabou o primeiro tempo e j ia comear o segundo, foi interrompido pela voz fina porm firme e decidida de uma velha professora. Era, de fato uma velha e importantssima professora. Fora fundadora da escola, diretora, e sua biografia se fundia com a histria do colgio. Quando falou todos pararam para ouvi-la. Disse que era muito difcil manter as aulas, pois a copa do mundo era to importante no pas que ningum iria mesmo comparecer escola. E fechou ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • brilhantemente sua interveno concluindo que o futebol era um fato to incorporado personalidade brasileira que a mobilizao em torno de uma copa do mundo era inevitvel, pois fazia parte integrante do carter e do temperamento nacional.

    A nossa querida professora talvez no tivesse se dado conta do tipo de terminologia (carter, temperamento, personalidade) que estava utilizando. Mas ns apoiamos veementemente suas palavras que, no caso, salvaram nossa copa do mundo. Eu, particularmente interessado em Antropologia, agradeci, mentalmente, a eficcia dos argumentos da escola personalidade e cultura que permitiu esta rpida e persuasiva anlise do futebol como fato cultural no Brasil.

    Assim, duas so as principais marcas desta escola. A primeira seria a de instalar um profundo dilogo entre Antropologia e Psicologia, discutindo as formas de interao entre indivduo e sociedade. A segunda marca seria a incrvel penetrao conseguida pela escola, o seu destino popular por assim dizer.

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  • Da mesma forma como as diferenas entre as culturas humanas so, freqentemente, traduzidas em termos de superioridade e inferioridade hipteses evolucionistas tambm encontramos, no raro, as diferenas vistas como questo de personalidade, carter, temperamento hipteses da escola personalidade e cultura.

    A idia central da escola , grosso modo, estabelecer a relao entre a cultura e as personalidades individuais. Como se a cultura fizesse a escolha daquilo que iria minimizar, acentuar ou ignorar nas vidas humanas. Algumas caractersticas dos indivduos, da sua personalidade teriam um valor positivo ou negativo para a cultura que o incentivaria ou reprimiria. A cultura, ento, vai ser definida pelo padro de caractersticas sistematicamente impressas nas personalidades individuais. O conjunto das personalidades assim marcadas d o tom, a colorao, o feitio que a cultura vai adquirir.

    A cultura marca as caractersticas que quer nos indivduos ali formados como se pode ou no se pode ser e ela mesma se torna funo do ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • temperamento e da personalidade dos seus membros. A cultura marca e marcada. Indivduo e cultura se influenciam mutuamente. As idias de personalidade e temperamento so como fatores capazes de determinar a base normativa da cultura.

    Um dos problemas maiores desta corrente de pensamento, como de resto dos demais grupos que desenvolveram as idias de Boas, aquilo que chamamos reducionismo. Ou seja, a dificuldade de explicar alguma coisa que contm vrias outras a partir de uma nica das coisas contidas. Melhor dizendo, explicar o todo a cultura por uma de suas partes, no caso, a personalidade. Outro problema a dificuldade de trabalhar o complicadssimo conceito de personalidade com o complicadssimo conceito de cultura, ainda mais usando um para explicar o outro e o outro para explicar o um.

    O mesmo problema o reducionismo se d com o grupo que seguiu a pista de relacionar a cultura com a linguagem. Explicar a primeira pela segunda era o projeto, difcil e extremamente interessante, de um grupo que encarava a cultura privilegiando a lngua nela falada como o instrumento determinante ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • para o seu entendimento. Neste grupo estava o antroplogo e lingista Edward Sapir, visto por muitos como o mais brilhante dentre os alunos de Boas.

    Se a escola personalidade e cultura instaurou um criativo debate entre Antropologia e Psicologia, o grupo cultura e linguagem buscou no debate entre a Antropologia e a Lingstica a principal fonte de seu pensamento.

    A importncia e a atualidade deste grupo est em ter dado muita substncia e base para uma srie de estudos de lingstica e comunicao que procuraram relacionar, por exemplo, o emprego da linguagem e as diferenas de classes sociais nas chamadas sociedades complexas, industriais, contemporneas. As idias deste grupo muito contriburam para o avano de disciplinas como a sociolingstica e a etnolingstica. Ambas so disciplinas que, exatamente, tm como projeto fazer a juno entre a lngua, por um lado, e, por outro, a cultura, o grupo tnico ou a sociedade.

    A idia bsica que vincula as relaes entre cultura e linguagem uma idia complexa e abstrata. ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Vamos tentar pens-la juntos. Quando um professor de lngua estrangeira nos alerta para que no tentemos traduzir o que vamos falar, para que no pensemos na nossa lngua, mas que procuremos estruturar nosso pensamento j na lngua que estamos aprendendo, este professor est tocando no vnculo entre cultura, pensamento e linguagem. Ele est, de certa forma, dizendo que aprender uma lngua estrangeira aprender uma outra maneira de ver o mundo, de dar sentido diverso lgica da apreenso da realidade que nos cerca.

    Imaginemos que a realidade fosse como um mar. Neste mar cada lngua lana uma rede de pesca como se fossem pescadores do alto dos barcos. As redes batem ngua e formam desenhos diferentes, recortando formas diversas ao se chocarem com a gua. Cada rede, ao se chocar com o mar, o transforma em algo particular segundo aquilo que nele se desenhou. Cada lngua, pois, ao se deparar com a realidade a transforma em algo, tambm particular, segundo aquilo que ela elaborou como significativo. Assim, a estrutura prpria de uma lngua qualquer , para aqueles que a falam, o fator determinante que ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • organiza sua viso do mundo que os cerca. A lngua substanciaria a realidade e, para eles, modelaria a ordem cultural. , a lngua, como um vu que faz a mediao entre a cultura e o mundo da realidade.

    Os problemas levantados por este grupo, que procurou pensar, a partir de Boas, as relaes entre cultura e linguagem, tocaram bem fundo questes serissimas para o entendimento do ser humano. Questes ligadas aos significados das coisas, natureza dos smbolos, aos cdigos por ns empregados e muitas outras nesta linha se encontram na ordem do dia de diversas disciplinas das cincias humanas, da filosofia, das terapias e investig-las mais a fundo uma tarefa imensa e fascinante.

    Um terceiro e tambm importante grupo de alunos de Boas partiu para relacionar a cultura e o ambiente. Este grupo encabeado por um antroplogo chamado Julien Steward. Aqui fica pressuposta a noo de que o ambiente o fator determinante que restringe as opes culturais. A cultura passa a ser como que uma resposta possvel e adequada ao meio onde se estabelece. Existe uma interao onde elementos de ordem ecolgica ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • constrangem, tornam-se precondio, para a ordem cultural. Os elementos culturais tero nos ecolgicos, no ambiente, no meio, o seu determinante fundamental para a mudana, numa espcie de jogo de readaptaes e respostas.

    Nesta viso da cultura entram em cena problemas como a tecnologia empregada no meio ambiente, os modelos de comportamento e explorao de uma rea ecolgica e a busca de equilbrio entre a esfera ambiental e a cultural.

    A importncia deste grupo a de ter colocado questes de equilbrio, preservao e mtua dependncia entre as culturas e destas com o ambiente onde se erigem.

    Ainda outras linhas, pistas, intuies de formas de estudo da cultura e da histria humana poderiam ser vistas como devedoras do trabalho e da abertura de pensamento propiciada por Boas. Mas, j fomos longe demais.

    Estamos aqui tratando de etnocentrismo. A importncia desta viagem que fao com vocs por algumas paragens do continente da Antropologia est ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • em que ao se perceber a complexificao e a densidade cada vez maior destas paisagens percebemos tambm que ela significa relativizar. Relativizar sempre mais complicado, pois nos leva a abrir mo das certezas etnocntricas em nome de dvidas e questes que obrigam a pensar novos sentidos para a compreenso da sociedade do eu e da sociedade do outro.

    Nosso turismo antropolgico, do etnocentrismo relativizao, tem no guia Franz Boas algum capaz de nos deixar grandes lies. Relativizando com ele temos: em primeiro lugar, uma concepo da histria pluralizada, estilhaada, como uma histria de h minsculo, de cada cultura humana no que esta tinha de seu, de especfico. Em segundo lugar, uma concepo de cultura que no colocou a cultura do eu como centro, mas que procurou ver que fatores diversos determinavam, tambm diversamente, o perfil das culturas. Finalmente, o desenvolvimento de uma Antropologia inquieta, atenta, humilde e propondo dilogos com outras disciplinas em volta, se criando e se

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  • transformando pelo enfrentamento do risco que significa estudar a diferena.

    Assim, o outro comea a deixar de ser um simples retrato dos momentos primitivos do eu e passa a ocupar um lugar mais destacado como algo que transforma a teoria antropolgica e pode, de muitas maneiras, servir para dimensionar a prpria sociedade do eu.

    Mas, enquanto isso tudo de que falamos se passava, o jogo da Antropologia do sculo XX tramava na Europa novas e fascinantes jogadas. Na Inglaterra, ps-evolucionista, e na Frana o etnocentrismo ia cedendo espaos. Ali costuravam-se, talvez, os mais importantes movimentos de relativizao dentro da disciplina. Vamos ver um pouco do que se fez por l nas primeiras dcadas do sculo.

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  • VOANDO ALTO

    Diferentes atores, cenrios, enredo. A histria da passagem do etnocentrismo relativizao assume contornos insuspeitados. Para a Antropologia o momento de adquirir uma autonomia que vai render preciosos resultados. Alguns nomes fundamentais para a vida da disciplina fazem sua entrada aqui. Durkheim, Malinowski, Radcliffe-Brown so pesos pesados dentro da Antropologia e das Cincias Sociais em geral. So importantes ao ponto de ningum poder deixar de ler ao menos parte de suas obras se quiser fazer uma iniciao Antropologia.

    Todos os trs, juntamente com Boas, estavam vivos para assistir a passagem do sculo XIX para o XX. Todos eles tinham personalidades peculiares, interessantes, controvertidas. Cada um, a sua maneira, contribuiu, e muito, para o crescimento, para a maturidade e complexidade da disciplina e, o que nos

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  • interessa mais de perto, para uma viso menos etnocntrica e parcial do outro.

    Vamos comear com Radcliffe-Brown porque fica mais ntido entender as idias que vou retirar dele logo aps termos visto o evolucionismo e o difusionismo.

    Por mais distantes que paream ter sido e eu espero que isso tenha ficado claro evolucionismo e difusionismo tinham algo ainda em comum. Para estes dois movimentos uma mesma preocupao se fixou como questo fundamental, como um desafio permanente para o corpo terico da Antropologia que dava seus primeiros passos. Tanto num o evolucionismo quanto noutro o difusionismo os trabalhos produzidos, via de regra, demonstravam a permanncia de um tema. Era a histria sempre a permear os estudos e reflexes em quase toda a literatura sobre as culturas humanas.

    No se pode dizer, no entanto, que a existncia de uma preocupao com a histria indicasse, nos dois movimentos, uma idntica concepo da natureza da histria. Uma mesma preocupao com a histria no ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • se confunde com uma mesma histria das preocupaes e, dessa maneira, evolucionismo e difusionismo trataram diferentemente o problema.

    Recapitulando: para o evolucionismo a histria tinha H maisculo, era uma nica para toda a humanidade. Como se, de Ado e Eva ao Juzo Final, todos caminhassem num mesmo sentido, que era o do progresso, o da evoluo. O longo caminho da histria, que a hiptese evolucionista criava, era como uma escada onde cada sociedade acumularia progresso, desde o mais primitivo at o dito homem civilizado.

    Por outro lado, o pensamento difusionista propunha o estudo da histria concreta de cada cultura, os processos prprios de mudana, troca e emprstimo que as caracterizariam. uma histria com h minsculo, de cada cultura particular, especfica.

    A histria, no entanto, cada uma a sua maneira, permanece como tema de importncia central no estudo da cultura para as duas escolas.

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  • Radcliffe-Brown discordou desta vinculao que existia entre a compreenso do presente de uma cultura e o estudo do seu passado. O presente no precisava ser necessariamente explicado pelo passado. Em termos mais tcnicos a sincronia presente no est submetida diacronia histria.

    Estes dois termos exigem uma melhor explicao. Se estivermos jogando uma partida de xadrez e pararmos no vigsimo movimento para analis-la, duas seriam as vises possveis desta partida. Se analisarmos os movimentos e sua seqncia, desde o primeiro at o vigsimo, faramos uma anlise diacrnica. Explicaramos o estado atual da partida atravs dos seus movimentos pregressos. Se, diferentemente, efetivssemos uma anlise das foras dentro do tabuleiro, das posies das peas no vigsimo movimento, dos valores atuais dos pees, bispos, torres, etc., estaramos analisando sincronicamente.

    A diferena que a diacronia analisa o vigsimo movimento partindo da histria dos dezenove movimentos anteriores e, por eles, estabelece seu conhecimento do vigsimo. A sincronia, por seu ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • turno, centra sua anlise no momento determinado pelo vigsimo movimento e, a, se interessa pelas posies, foras e significados internos a este movimento.

    Passando para a anlise das culturas humanas, estas duas abordagens resultam em perspectivas diferentes de como conduzir um estudo antropolgico. Para os que pensavam na histria como a via explicativa do presente cultural, o centro da reflexo estava menos na compreenso terica das instituies e mais nas transformaes diacrnicas pelas quais passaram estas instituies. Mais simplesmente, para o historicista, seja ele difusionista ou evolucionista, o presente se conhece pelo passado e estudar a histria das culturas significa conhecer a verdadeira dimenso da cultura.

    Com isto, definitivamente, no concordou Radcliffe-Brown. Para ele a histria conjetural, especulativa, contrastava fortemente com sua proposta de estudo funcional das sociedades.

    Chegou mesmo a escrever que o verdadeiro conflito terico na Antropologia no acontecia nem ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • entre os diferentes tipos de difusionismo, nem entre estes e o evolucionismo. O verdadeiro ponto de ruptura, a discusso realmente importante, situava-se no plano das escolhas ou de uma abordagem historicista ou de uma abordagem funcional.

    E vai ser este adjetivo funcional que vai deixar uma marca profunda na opo da Antropologia em direo a relativizar. O funcionalismo, que genericamente pode ser visto como um movimento que recobre uma parte muito significativa da produo antropolgica, caminha inexoravelmente no sentido de empurrar o estudo do outro, da diferena, para fora do etnocentrismo.

    A razo pela qual o funcionalismo relativizou pode ser encontrada no fato de que ele iria se opor ao estudo diacrnico e se conjugar com os estudos sincrnicos. Ao fazer esta opo a Antropologia se desvincula da histria e parte para o estudo da sociedade do outro sem se preocupar com o passado desta sociedade. Isto uma relativizao fundamental na medida em que, se pensarmos bem, veremos que a preocupao com a histria , antes de tudo, uma preocupao tpica da sociedade do eu. Sim, porque ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • nem todas as sociedades buscaram valorizar o tempo linear, histrico, feito de acontecimentos sucessivos, como uma forma lgica e interessante para pensar sua prpria existncia.

    A nossa sociedade, a sociedade do eu, tem nesta forma de conceber o tempo um instrumento bsico para sua apreenso da vida. A Antropologia, neste sentido, como que contrabandeava para a sociedade do outro uma concepo do tempo, e uma preocupao com ele, que nem sempre poderia ser l encontrada.

    Quando Radcliffe-Brown desamarra a Antropologia da Histria abre um imenso espao para que a sociedade do outro se mostre tal como ela . Ao procurar ver o funcionamento de uma sociedade o estudioso, por mais mope que seja, se obriga, ao menos, a pensar esta sociedade em seus prprios termos. Com isto, a diferena deixa de ser equacionada em torno do tempo histrico, o que a levava, como no evolucionismo, inexoravelmente para uma hierarquia de sociedades atrasadas e avanadas.

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  • Assim, Radcliffe-Brown, com seu corte terico, d outras dimenses Antropologia. O jogo entre o eu e o outro deixa, agora, de ter na hierarquia sua regra nmero um. na trilha aberta por ele que a comparao dos diferentes se faz menos etnocntrica. E, como j disse, mais relativa, mais complexa. Nesta linha, vamos ver que a busca de rigor terico e preciso conceitual tm um papel importante a desempenhar no conjunto de sua obra.

    Para ele, a sincronia deveria ser analisada por conceitos bem precisos. o caso de noes como processo, estrutura e funo, que so cuidadosamente definidas para formarem um esquema interpretativo da realidade social.

    Em primeiro lugar, importante que se saiba o que, ao certo, se constitua no objeto antropolgico por excelncia. A realidade concreta a ser estudada, observada, descrita, comparada e classificada pela Antropologia um fluxo permanente, um processo: o processo social. Pode ser percebido como o encadeamento das relaes, das aes, das interaes entre seres humanos ocupando papis sociais. esta

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  • amplitude de contato que acontece na vida em sociedade.

    Por outro lado, dentro desta imensa diversidade de fatos do processo social, podemos perceber a e existncia de formas regulares, repetitivas, mais significativas que outras e que podem ser percebidas pela observao direta das aes cotidianas. Dentro do processo social a constncia de determinados tipos de relao a disposio de pessoas num certo nmero de famlias, por exemplo aponta uma outra dimenso, a da estrutura social. Nela as aes e interaes do processo social que se tornam significativamente repetitivas, recorrentes, formam redes complexas de relaes sociais onde cada um e todos se encontram envolvidos sistematicamente.

    neste quadro, compondo-se com os conceitos de processo e estrutura, que a idia de funo complementa o esquema terico. ela que ir fazer a ligao entre processo e estrutura. a ponte que permite o encadeamento lgico dos dois conceitos.

    Radcliffe-Brown achava conveniente estabelecer uma comparao entre a Antropologia e as Cincias ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • Naturais. Transportava termos das Cincias Naturais e, por analogia, os aplicava ao estudo da sociedade humana. Uma de tais analogias, to a seu gosto, serve para explicar o conceito de funo e sua relao com processo e estrutura.

    Comparava o sistema social ao corpo humano. Este, como um organismo complexo que , tem a vida como um fluxo permanente que habita este corpo. A vida caracteriza um constante processo, o processo vital, de permanncia obrigatria para a manuteno do organismo. Este organismo, por sua vez, possui uma estrutura composta de ossos, tecidos, fluidos, etc. A funo estabelece a correlao entre o processo vital e a estrutura orgnica. Assim, o corao, por exemplo, desempenha a funo de bombear o sangue atravs do corpo. Se parar de execut-la, termina o processo vital e a estrutura orgnica, enquanto estrutura viva tambm desaparece.

    Na sociedade, algumas instituies desempenham uma funo crucial na manuteno do processo e da estrutura. Se estas funes forem suprimidas aquela sociedade se transformar numa outra diferente, onde outras instituies tero, por seu ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • turno, outras funes cruciais. A sociedade no morreria, no mesmo sentido em que o corpo morre suprimida a funo do corao, mas, atacada numa funo bsica, se descaracterizaria ao ponto de se transformar profundamente.

    evidente que as colocaes tericas de Radcliffe-Brown so, alm de mais amplas, muito mais complexas, sutis, inteligentes e profundas que esta pretensa explicao. Espero que ele me perdoe. Mas, aqui procuro apenas demonstrar que, ao fazer a opo pelo estudo sincrnico, pagou o preo de uma forte relativizao. Isto significou que, ao colocar novas questes em jogo, conseqentemente teve de procurar, na produo terica, novos instrumentos para pens-las.

    O importante aqui no entrarmos em difceis e detalhadas discusses de seu pensamento, mas percebermos o quanto suas idias repercutiram num abalo do etnocentrismo.

    E, me parece, abalaram o etnocentrismo principalmente por liberarem a explicao antropolgica do outro de uma noo de tempo ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • linear, histrico, produzido na sociedade do eu. A Antropologia, ento, livre para estudar a sincronia, passa a poder esboar uma tentativa mais solta de compreender o outro. Contando, principalmente, com instrumentos tericos que eram criados, transformados ou suprimidos no contato direto do antroplogo com sociedades diversas.

    O antroplogo, obrigado a estudos sincrnicos, tem de viajar. Tem de ir morar, experimentar a existncia junto ao outro. Conhecer a diferena, experimentando-se a si prprio como diferente, por estar, por perodos significativos de tempo, fazendo trabalho de campo no mundo do outro. Neste sentido, Malinowski foi o grande viajante da Antropologia. O significado de seus estudos e da expresso trabalho de campo, para a Antropologia e para o processo de relativizao, de extrema importncia e ser visto um pouco mais adiante.

    Antes, necessrio entendermos o quanto foi penoso e fundamental, na questo do etnocentrismo e de sua superao, a conquista de um espao autnomo de movimento para a Antropologia.

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  • J vimos o papel a desempenhado pela ruptura que Radcliffe-Brown estabeleceu entre Antropologia e Histria. Colocou ele com preciso que as duas disciplinas poderiam cooperar de diversas maneiras, mas seus projetos tinham rumos diversos.

    Um outro n, um outro lado do lao, e no menos importante para a autonomia antropolgica, vai ser desatado por mile Durkheim.

    Qualquer estudante da vasta, bela e complexa obra deste grande mestre francs pode perceber que, em diferentes momentos e de vrias formas, um tema aparece e se repete. Durkheim afirma categoricamente uma ruptura: o social no se explica pelo individual. Assim como os fenmenos psquicos no se explicam pelos biolgicos, o complexo pelo simples, o superior pelo inferior, tambm o todo a sociedade no se explica pela parte o indivduo.

    Os fatos sociais so externos, autnomos, so fenmenos de natureza tal que recusam explicaes outras que no a prpria sociedade. Com isto, o social como objeto de estudo no apenas se afirma no presente, na sincronia, mas tambm se afirma como ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que etnocentrismo?

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  • entidade autnoma, independente do indivduo. Isto quer dizer que no pode ser reduzido a explicaes de natureza diferente. Fatos sociais so dotados de uma scio-lgica. So coisas no sentido de apresentarem propriedades que os marcam como algo fora das conscincias individuais. So coisas ainda no sentido de que seu conhecimento requer uma certa atitude mental. So coisas, principalmente, no sentido de sua concretude que independe da natureza, que independe do indivduo. So coisas porque autnomos.

    E, assim, nesta afirmao Durkheim investe contra o reducionismo. Contra a tentao de explicar o fato social pela conscincia individual. Investe contra a possibilidade de se diluir o objeto especfico da Sociologia e da Antropologia a simples conseqncias de outros tipos de fenmenos.

    Explicando melhor vou utilizar o prprio Durkheim que, no primeiro captulo do seu livro As Regras do Mtodo Sociolgico, intitulado Que Fato Social, procura defini-lo com muita clareza:

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  • fato social toda maneira de agir fixa ou no, suscetvel de exercer sobre o indivduo uma coero exterior; ou ento ainda, que geral na extenso de uma sociedade dada, apresentando uma existncia prpria, independente das manifestaes individuais que possa ter.

    Acompanhando esta definio vemos que o fato social (1) coercitivo, (2) extenso e (3) externo. Com isto ele queria, em primeiro lugar, demonstrar que o fato social coage, pressiona os indivduos com uma autonomia que os submete sua lgica. Em outras palavras, o fato social pressiona o indivduo, torna-se uma fora diante da qual este coagido a uma participao independente da sua vontade.

    Em segundo lugar, o fato social se estende por todo o grupamento onde ele acontece. Ningum, envolvido dentro da extenso de um determinado fato social, pode dele se ausentar. Diante de fatos sociais que me envolvam no me possvel deles me excluir.

    Em terceiro lugar, ele externo ao querer e ao poder do indivduo. Possui fora autnoma, independente e prpria, para alm das manifestaes

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  • individuais. , o fato social, algo externo a cada membro de uma sociedade enquanto uma conscincia particular. O fato social , por todos e para todos, uma coisa que ultrapassa a cada um.

    Aqui, novamente, me limito a rpidas pinceladas num aspecto do pensamento de Durkheim. A ns, que embarcamos neste turismo antropolgico procurando pensar juntos a passagem do etnocentrismo relativizao, interessa antes de tudo ver que Durkheim levantou a questo da autonomia do social.

    Na definio do fato social est cristalizada a independncia deste tipo especfico de realidade a social diante de explicaes, racionalizaes e interpretaes provindas de um nvel de lgica diverso desta realidade. O social tem seu prprio caminho; dentre os fatos humanos ele um tipo nico que no pode ser reduzido a nenhum outro tipo.

    Na verdade, parece tudo muito simples e bvio. De repente, algum Radcliffe-Brown mostra que a Antropologia tem um projeto e a Histria, outro. Algum mais Durkheim mostra que o social tem uma particularidade que no se confunde com a soma ________________________________________________Everardo P. Guimares Rocha O que