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    MINAYO, MCS., and COIMBRA JUNIOR, CEA. orgs. Antropologia, sade e envelhecimento [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 209 p. ISBN: 85-7541-008-3. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Antropologia, sade e envelhecimento

    Maria Ceclia de Souza Minayo Carlos E. A. Coimbra Jr

  • 1Antropologia, Sadee Envelhecimento

  • FUNDAO OSWALDO CRUZPresidente Paulo Gadelha

    Vice-Presidente de Ensino, Informao e Comunicao Nsia Trindade Lima

    EDITORA FIOCRUZDiretora

    Nsia Trindade Lima

    Editor ExecutivoJoo Carlos Canossa Mendes

    Editores CientficosGilberto Hochman e Ricardo Ventura Santos

    Conselho EditorialAna Lcia Teles RabelloArmando de Oliveira SchubachCarlos E. A. Coimbra Jr.Gerson Oliveira PennaJoseli Lannes VieiraLigia Vieira da SilvaMaria Ceclia de Souza Minayo

    COLEO ANTROPOLOGIA E SADEEditores Responsveis: Carlos E. A. Coimbra Jr.

    Maria Ceclia de Souza Minayo

  • Antropologia, Sade eEnvelhecimento

    Maria Ceclia de Souza MinayoCarlos E. A. Coimbra Jr.organizadores

    2 reimpresso

  • 4Copyright2002 dos autoresTodos os direitos desta edio reservados FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

    ISBN: 85-7541-008-31 edio: 2002 | 1 reimpresso: 2004 | 2 reimpresso: 2011

    Projeto Grfico e Editorao Eletrnica: Anglica MelloCapa: Danowski DesignIlustrao da Capa: A partir do desenho de Hans Arp para a capa de L' Art Comtemporain, no 3, 1930, ParisReviso: Irene Ernest DiasCopidesque: Ana Tereza de Andrade

    ESTA PUBLICAO CONTOU COM PARCIAL APOIO FINANCEIRO DO PROGRAMADE PS-GRADUAO EM SADE PBLICA DA ESCOLA NACIONAL DE SADEPBLICA/FIOCRUZ, ATRAVS DO PROGRAMA DE APOIO PS-GRADUAO(PROAP/CAPES).

    Catalogao-na-fonteCentro de Informao Cientfica e TecnolgicaBiblioteca Lincoln de Freitas Filho

    2011EDITORA FIOCRUZAv. Brasil, 4036 1o andar sala 112 Manguinhos21040-361 Rio de Janeiro RJTels: (21) 3882-9039 e 3882-9007Fax: (21) 3882-9006e-mail: [email protected]/editora

    Minayo, Maria Ceclia de Souza (org.)Antropologia, sade e envelhecimento. / Organizado por Maria Ceclia

    de Souza Minayo e Carlos E. A. Coimbra Jr. Rio de Janeiro: EditoraFIOCRUZ, 2002.

    212p. (Coleo Antropologia & Sade)

    1. Envelhecimento. 2. Direito dos idosos. 3. Sade do idoso. 4.Envelhecimento da populao. 5. Relaes familiares.

    CDD - 20.ed. 362.6

    M663a

  • 5AUTORES

    Alda Britto da MottaDoutora pela Universidade Federal da Bahia e professora do Departamento de Sociologia damesma Universidade.

    Ana Zahira BassitDoutora em Sade Pblica. Professora Titular do Curso de Psicologia da Universidade BrazCubas de Moji das Cruzes (SP).

    Carlos E. A. Coimbra Jr. (organizador)PhD em Antropologia pela Universidade de Indiana. Pesquisador Titular da Escola Nacional deSade Pblica (Ensp/Fiocruz) e editor da revista Cadernos de Sade Pblica.

    Clia Pereira CaldasDoutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal doRio de Janeiro. Professora Adjunta do Departamento de Sade Pblica da Faculdade de Enfer-magem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Vice-Diretora da Universidade Aberta daTerceira Idade.

    Cornelia EckertDoutora em Antropologia pela Universit de Paris e professora do Departamento de Antropo-logia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre).

    Edinilsa Ramos de SouzaDoutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica (Ensp/Fiocruz). Pesquisado-ra Titular da Fundao Oswaldo Cruz e coordenadora executiva do Centro Latino-Americanode Estudos sobre Violncia e Sade (Claves/Fiocruz).

    Elizabeth UchaPhD em Antropologia pela Universidade de Montral. Professora Adjunta do Departamento dePsiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.Pesquisadora Titular do Laboratrio de Epidemiologia e Antropologia Mdica do Centro dePesquisas Ren Rachou/Fiocruz e tambm do Ncleo de Estudos em Epidemiologia e Antropo-logia do Envelhecimento (Cenepi/FNS/MS).

    Esther Jean Matteson LangdonPhD pela Tulane University, com ps-dotorado na Universidade de Indiana. Professora doPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina(Florianpolis).

  • 6 Joslia O. A. FirmoMestre em Epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutoranda pelo Pro-grama de Ps-Graduao em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica (Ensp/Fiocruz). Pesquisadora do Laboratrio de Epidemiologia e Antropologia Mdica do Centro dePesquisas Ren Rachou/Fiocruz e do Ncleo de Estudos em Epidemiologia e Antropologia doEnvelhecimento (Cenepi/FNS/MS).

    Liana Furtado XimenesEspecializao em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica (Ensp/Fiocruz). Mestrandaem Sade da Criana e da Mulher pelo Instituto Fernandes Figueiras/Fiocruz.

    Maria Ceclia de Souza Minayo (organizadora)Sociloga, Antroploga e Sanitarista. Pesquisadora Titular da Fundao Oswaldo Cruz e coorde-nadora cientfica do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violncia e Sade (Claves/Fiocruz)e editora cientfica da revista da Associao Brasileira de Ps-Gradiao em Sade Coletiva,Cincia & Sade Coletiva. tambm Representante Regional para a Amrica Latina do FrumMundial de Cincias Sociais e Medicina.

    Maria Fernanda F. de Lima-CostaDoutora em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com ps-doutora-dos em Epidemiologia, na Johns Hopkins University e na University of London. PesquisadoraTitular da Fundao Oswaldo Cruz, chefiando o Laboratrio de Epidemiologia e AntropologiaMdica do Centro de Pesquisas Ren Rachou/Fiocruz. tambm professora de Epidemiologia doDepartamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG e coordenadora do Ncleo de Estudosem Epidemiologia e Antropologia do Envelhecimento (Cenepi/FNS/Ministrio da Sade).

    Paulo Csar AlvesDoutor em Sociologia pela Universidade de Liverpool. Professor Titular do Departamento deSociologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador do Ncleo de Estudos emCincias Sociais e Sade (Ecsas/Ufba). tambm pesquisador do CNPq.

    Rita Maria HeckDoutora em Enfermagem. Professora de Enfermagem em Sade Pblica/Sade Coletiva daFaculdade de Enfermagem e Obstetrcia da Universidade Federal de Pelotas (RS) e coordenado-ra do Ncleo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem.

    Russel Parry ScottPhD em Antropologia pela University of Texas. Professor de Antropologia da UniversidadeFederal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Ncleo de Famlia, Gnero e Sexualidade.Integra tambm a Comisso Nacional de Populao e Desenvolvimento e participa no Ncleode Sade Pblica da UFPE.

    Suely Ferreira DeslandesDoutora em Cincias (Sade Pblica) pela Escola Nacional de Sade Pblica (Ensp/Fiocruz).Pesquisadora do Instituto Fernandes Figueiras/Fiocruz e assessora da Coordenao Nacionalde DST/Aids.

  • 7SUMRIO

    Prefcio ............................................................................................................. 9

    IntroduoMaria Ceclia de Souza Minayo & Carlos E. A. Coimbra Jr. .................... 11

    1. Envelhecimento e Sade: experincia e construo culturalElizabeth Ucha, Joslia O. A. Firmo &Maria Fernanda F. de Lima-Costa ............................................................. 25

    2. Envelhecimento e Sentimento do CorpoAlda Britto da Motta ................................................................................... 37

    3. O Idoso em Processo de Demncia: o impacto na famliaClia Pereira Caldas ................................................................................... 51

    4. A Cultura do Medo e as Tenses do Viver a Cidade: narrativa e trajetria de velhos moradores de Porto Alegre

    Cornelia Eckert ........................................................................................... 73

    5. Envelhecimento e Juventude no Japo e no Brasil: idosos, jovens e a problematizao da sade reprodutiva

    Russel Parry Scott ..................................................................................... 103

    6. Envelhecimento, Relaes de Gnero e o Papel das Mulheres na Organizao da Vida em uma Comunidade Rural

    Rita Maria Heck & Esther Jean Matteson Langdon ................................ 129

  • 87. Nervoso e Experincia de Fragilizao: narrativa de mulheres idosasPaulo Csar Alves ..................................................................................... 153

    8. Histria de Mulheres: reflexes sobre a maturidade e a velhiceAna Zahira Bassit ..................................................................................... 175

    9. O Idoso sob o Olhar do OutroEdinilsa Ramos de Souza, Maria Ceclia de Souza Minayo,Liana Furtado Ximenes & Suely Ferreira Deslandes ............................... 191

  • 9Prefcio

    Em um estudo realizado pelo Centro de Documentao da Unati/Uerj relativo produo cientfica brasileira apenas com os trabalhos de dissertaes e teses sobre otema terceira idade, foram observados alguns dados interessantes. A pesquisa j iden-tificou 511 trabalhos, sendo 78% correspondentes a dissertaes de mestrado e 22% ateses de doutorado. As primeiras obras catalogadas referem-se a 7% de trabalhosidentificados na dcada de 70, cerca de 30% nos anos 80 e os restantes nos anos 90 e em2000 e 2001.

    Tais referncias foram organizadas em duas grandes reas: cincias sociais ehumanas (sociologia, antropologia, psicologia, servio social, educao e comunica-o social) e rea biomdica e sade pblica (polticas de sade, servios de sade,epidemiologia, medicina, nutrio, enfermagem e educao fsica). Os temas destestrabalhos giram em torno de alguns eixos: o idoso de hoje diante do mundo urbano,industrializado, informatizado, evocando seu passado por meio da memria, vivenciandoexperincias de inmeras transformaes nos mais diversos campos da vida. O enve-lhecimento e a velhice, em especial, so tratados por meio de representaes sociaisdos prprios idosos, de seus familiares, de cuidadores e de profissionais de sade. Ospontos de reflexo se concentram na identidade, no sentido existencial, na personalida-de e na auto-estima. Como aspectos mais especficos, aparecem de forma recorrente aperspectiva feminina no envelhecimento, com destaque para a sexualidade, a menopau-sa, a solido, o uso de medicamentos e alguns agravos sade.

    A maioria quase absoluta da produo, independentemente do enfoque desdeaqueles de abordagem mais estereotipada e marcada pelos rtulos dominantes, em queo envelhecimento um problema de Estado ou de sade, e, portanto, deve ser reguladoe tratado, at aqueles que reservam um espao de reflexo e aes alternativas para estesegmento etrio da populao, reconhecendo as perdas sem, no entanto, nunca tratarestes fatos tristes como sinnimo da velhice , no incorpora uma dimenso que julgocontempornea e de necessria reflexo. Existe pouca viso futurista, na qual profun-das transformaes sociais se fazem presentes, conseqncia no apenas da ampliaonumrica dos idosos na sociedade, mas particularmente das mudanas biolgicas coma ampliao dos conhecimentos da engenharia gentica, o que mudar no apenas osindicadores demogrficos, mas tambm a expectativa de vida, e, principalmente, a ex-tenso do limite do tempo de vida, ou o relgio biolgico.

    Apesar da discusso da compresso da morbidade termo cunhado por Fries(1981), que significa desenvolver estratgias que visem a levar a vida para o limiar maisprximo possvel do limite mximo da espcie humana ter sido introduzida na rea degerontologia a partir dos anos 80, essa perspectiva ainda bastante tmida. Nos dias

  • 10

    atuais, o relgio biolgico da espcie humana atinge entre 90 e 95 anos; estes valoresso aceitos por vrios estudiosos, mas nas prximas dcadas possvel que o relgiobiolgico se amplie, alcanando de 120 a 130 anos.

    O desafio que agora se coloca o incio da delimitao de cenrios nos quais osavanos da gentica e da biotecnologia permitiro ao ser humano alcanar os 120 a 130anos de forma independente, livre de doenas, com a expectativa de vida atingindo olimite biolgico mximo.

    As transformaes sero fantsticas, e elas esto muito prximas. Teremos indiv-duos se aposentando aos 60 anos e iniciando um novo ciclo de trabalho por mais 30 ou 40anos. Na rea da educao, teremos possivelmente formao profissional e cursos uni-versitrios especificamente para cidados de mais de 60 anos. A ampliao da relaomulheres versus homens na sociedade ser ainda maior, e suas conseqncias aindapouco projetadas. Os novos medicamentos podero debelar muitas mortes hoje imposs-veis de serem evitadas, mas a grande mudana, devido aos avanos dos frmacos, serrealizada certamente no aspecto da sexualidade com a introduo dos novos medicamen-tos que permitiro uma vida sexual por mais 50 ou 60 anos em relao ao padro atual.Possivelmente, teremos, em um futuro prximo, famlias com cinco ou seis geraes,muitas delas com vrias geraes desempregadas, devido ao processo de globalizao, eos mais idosos do cl sendo o grande sustentculo, pelo fato de possurem uma aposen-tadoria e terem conseguido uma nova reinsero no mercado de trabalho.

    A produo cientifica brasileira, conforme o estudo realizado pela Unati se con-centra basicamente na rea das polticas de sade, da medicina ou do campocomportamental. Estudos que visem a entender os rtulos que a sociedade quer impora este grupo etrio, como os desvendados por este livro, so de fundamental importn-cia para podermos pensar no novo idoso das prximas dcadas. Nosso desafio atual, ea reside a importncia dessa coletnea, entender de forma correta o idoso de hoje paraento podermos traar os cenrios das importantes transformaes que se avizinham.A constatao que o estudo da Unati aponta que a produo cientifica brasileira seamplia em termos numricos, mas que ainda carece de uma reflexo mais qualificada eaguada. Este livro poder abrir alguns caminhos para os novos pesquisadores queinvertam a estatstica da atual produo cientfica brasileira, muito centrada em umconhecimento medicalizante, estigmatizante, normalizadora e pouco inovadora. Ao sequestionar o que foi produzido na rea, e eu sou um destes autores, no estou queren-do desqualificar a produo brasileira vigente, apenas sinalizo a necessidade de seexplorarem novos horizontes, com base em projees j bem configuradas e que estobem mais prximas de se tornarem realidade.

    Renato VerasDiretor da Universidade Aberta da Terceira Idade/Uerj

  • 11

    INTRODUO

    IntroduoEntre a Liberdade e a Dependncia: reflexes

    sobre o fenmeno social do envelhecimentoMaria Ceclia de Souza Minayo & Carlos E. A. Coimbra Jr.

    ReinauguraoNossa idade velho ou moo pouco importa.

    Importa nos sentirmos vivos e alvoroadosmais uma vez, e revestidos de beleza, a exatabeleza que vem dos gestos espontneos e do

    profundo instinto de subsistir enquanto as coisasem redor se derretem e somem como nuvens

    errantes no universo estvel.Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhosgulosos a um sol diferente que nos acorda para

    os descobrimentos.Esta a magia do tempo.

    Esta a colheita particular que se exprime noclido abrao e no beijo comungante, no

    acreditar na vida e na doao de viv-la emperptua procura e perptua criao.

    E j no somos apenas finitos e ss.Carlos Drummond de Andrade

    Somos sempre o jovem ou o velho em relao a algum.Pierre Bourdieu

    Existe uma praxe na antropologia segundo a qual o pesquisador deve explicitaras razes, as condies e o processo de suas investigaes. Esse relato das condiesde seu trabalho permite ao leitor relativizar seus achados e localizar sua perspectiva por conseguinte, tambm se posicionar. Por isso, consideramos de bom tom apresentar osmotivos que nos levaram a organizar um livro sobre o envelhecimento que cruzasseos olhares da antropologia e das cincias da sade.

    Pelas regras de classificao dos ciclos da vida que vigoram em nossa socieda-de, o Brasil precocemente entrou na rota do envelhecimento populacional. Nessa estra-da que acolhe os caminhantes grisalhos e sulcados pela vida, o trnsito vai aos poucosficando congestionado, a ponto de j serem mais de 31 mil os brasileiros remanescentesdo sculo XIX. cada vez maior a populao que, parafraseando o poeta, vai

  • 12

    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    reinaugurando, ano a ano, seu frgil projeto de felicidade aps os 60, entre o gastodezembro e o florido janeiro, entre a desmistificao e a expectativa, tornando a acredi-tar, a ser bons meninos e, como bons meninos, reclamando a graa dos presentescoloridos (Andrade, 1966:56).

    O Brasil dobrou o nvel de esperana de vida ao nascer em relativamente poucasdcadas, numa velocidade muito maior que os pases europeus, os quais levaram cercade 140 anos para envelhecer. Para se ter idia do que isso significa, a esperana de vidaao nascer dos brasileiros era de 33,7 anos em 1900; 43, em 1950; 65, em 1990; chegaquase a 70 anos na entrada do novo sculo; e prev-se que ultrapasse os 75 anos em2025. De 1950 a 2025 ter crescido 15 vezes, quando o restante da populao terconseguido um incremento de 5 vezes. Apesar de todo esse incremento, a maioria daspessoas nessa faixa etria est entre os 60 e os 69 anos, constituindo ainda menos de10% da populao total (Veras, 1995), quando na Europa, por exemplo, so as faixasacima de 70 anos as que mais crescem. No entanto, um pas j considerado velhoquando 7% de sua populao so constitudos por idosos.

    A previso dos demgrafos de que no ano 2020 existam cerca de 1,2 bilhode idosos no mundo, dentre os quais 34 milhes de brasileiros acima de 60 anos, que,nesse caso, correspondero sexta populao mais velha do planeta, ficando atrsapenas de alguns pases europeus, do Japo e da Amrica do Norte. Por tudo isso, muito importante ouvir a lgica interna desse grupo socioetrio e contar com elepara a realizao de seus anseios e para a construo de um padro de vida que lhesseja adequado.

    O que nos chamou a ateno, ao programarmos o trabalho aqui apresentado, que, at o momento, quase sempre outros atores tm falado pelos idosos. Se a focaliz-los existem vrios tipos de lentes, as fotografias das cmeras curiosas costumam no iralm de luzes, sombras e cores que as aparncias revelam. E como os que observam soparte da perspectiva que adotam, o que fica das imagens so a contundncia dos sinaisde desgaste dos corpos, os vincos nas faces, a voz mais cadenciada, o andar maisvagaroso ou trpego, a queda inexorvel dos msculos e a fragilidade dos movimentos.Esse retrato, que feio em relao aos padres de beleza que adotam o jovem comosmbolo, costuma receber um veredicto de quem o produz e de quem o contempla. overedicto que assinala a velhice como problema e como doena.

    Nosso interesse foi tentar ir alm; fazer novas perguntas, olho no olho dos que estoem plena estrada, na chuva para se molhar, e que por isso resistem ao rtulo que a socie-dade quer lhes impor. Mais que isso, entender tambm os vus que cobrem a destinaoantecipada ao lugar social estereotipado que o aparente cuidado social lhes reservou: orecolhimento interior (eufemismo para o afastamento do trabalho); a inatividade (rotulaodos aposentados e aposentadas); a preveno das possveis doenas (medicalizao daidade) ou as festinhas da terceira idade (infantilizao dessa etapa da vida).

    Foi dessa vontade de encontrar um espao alternativo de reflexo, em que vriaspossibilidades pudessem emergir produzindo uma compreenso mais real das vivncias,dos desejos e da avaliao de sua situao que essa vasta camada da populaobrasileira faz de si prpria , que surgiu a idia de organizar este livro. No optamos pelarealizao de uma pesquisa original de cunho etnogrfico, mas sim por reunir em uma

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    INTRODUO

    oficina de trabalho um pequeno grupo de pesquisadores estudiosos do assunto.Essa oficina foi realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 2000, e contou com a partici-pao de todos os que integram esta coletnea.

    No colquio, estabelecemos os rumos da presente publicao, que, em seu con-junto, amadureceu com base em crticas, comentrios e sugestes formuladas pelos par-ticipantes. A partir da, muitas perguntas puderam ser feitas, num processo deaprofundamento sucessivo que comeou de forma intuitiva: ser que estamos errados naresistncia aos rtulos dominantes? Ser que, por influncia da poca, estaremos sendovtimas da ideologia-mito da eterna juventude, esse vrus que corri a humanizao doenvelhecimento e da morte? Ou ser, ao contrrio, que os prprios limites do ciclo edo curso da vida esto se desfazendo, por causa do fenmeno irrefutvel do aumento daesperana de vida a partir da segunda metade do sculo XX, aqui e em todo o mundo?

    A medida da curiosidade deu lugar idia de transformar tais perguntas emquestes tericas sobre as descobertas que o envelhecimento brasileira esto sus-citando. Com certeza, as constataes podero servir de baliza para essa grande faixada populao que hoje marcha no numa estrada sem fim e sem sentido, mas para a largaporteira aberta de uma fazenda de colheitas. Nesse espao de movimento e construo,continuam a existir no apenas os frutos, mas a semente, o plantar, a alegria dos brotose todos os prazeres, dores e sofrimentos do ceifar, como em qualquer etapa da vida.

    Mas com enormes diferenas: simultaneamente o tempo do orgasmo da vida eda liberdade e o tempo da medida do possvel e da dependncia. Tudo concomitantee tudo diferenciado pela trajetria individual. isso que Ana Bassit, Alda Motta e RitaHeck & Esther Jean Langdon mostram em seus respectivos captulos. Tambm issoque j haviam evidenciado Lins de Barros (2000), Debert (2000), Peixoto (2000) e Motta(2000), dentre outros, em estudos sobre essa questo social no Brasil.

    Esses autores vm nos ensinar que, como muitas outras questes na sociedadeocidental, o assunto da velhice foi estatizado e medicalizado, transformando-se ora emproblema poltico, ora em problema de sade, seja para ser regulado por normas, sejapara ser pensado de forma preventiva, seja para ser assumido nos seus aspectos dedisfunes e distrbios que, se todos padecem, so muito mais acentuados com a idade.

    No que concerne sade, em torno da geriatria se estabeleceu um grande mercadoconsumidor, refinando os instrumentos e as medidas que rotulam o cotidiano da existn-cia dos idosos. A seu lado desenvolveram-se normas preventivas fundadas no uso nemsempre crtico da teoria do risco, to problemtica quando tenta, por meio de mdias,justificar propostas preventivistas. Dessa forma, desconhece-se a complexidade dos su-jeitos, criando-se uma esttica da vida referenciada em proibies e regras gerais. Apergunta necessria a seguinte: ser que no existe possibilidade de introduzir, nareceita do que saudvel, o ingrediente prazer de viver como mote central dessa ltimae decisiva etapa da existncia? Dizemos isso porque talvez seja esta a maior e mais con-tundente descoberta que este livro poder trazer como contribuio da antropologia.

    complexo o tema do envelhecimento, pois complexos so todos os processosvitais experimentados desde o nascimento, a infncia e a adolescncia at a vida adulta.Recusamo-nos no a reconhecer a complexidade, mas sim a colocar como farinha domesmo saco envelhecimento, doena, privao, dependncia, tristeza e frustrao.

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    Aqui se trabalha para executar um movimento que positive o envelhecimentocomo um tempo produtivo especfico da vida, emocional, intelectual e social, superan-do assim os estigmas da discriminao. Pois essa discriminao internalizada quefreqentemente leva os idosos a uma atitude de negao, buscando parecerem maisjovens para serem aceitos e acolhidos, obscurecendo suas caractersticas, seus atribu-tos e sua identidade (Lins de Barros, 2000). A positivao da identidade do idososignifica, por um lado, reconhecer o que h de importante e especfico nessa etapa davida para desfrut-lo; por outro, compreender, do ponto de vista desse grupo social, ossofrimentos, as doenas e as limitaes com toda a carga pessoal e familiar que taissituaes acarretam, embora nunca tratando tais acontecimentos dolorosos e tristescomo sinnimos de velhice.

    O envelhecimento no um processo homogneo. Cada pessoa vivencia essafase da vida de uma forma, considerando sua histria particular e todos os aspectosestruturais (classe, gnero e etnia) a eles relacionados, como sade, educao e condi-es econmicas. Os captulos que integram este livro demonstraro que os fatoresque contribuem mais e melhor para diferenciar a vivncia do envelhecimento so asredes de apoio social e comunicao, com nfase na solidariedade familiar.

    O que torna a velhice sinnimo de sofrimento mais o abandono que a doena; asolido que a dependncia. Assim, nesta introduo, quatro aspectos centrais seroenfatizados, pois traduzem a sntese do pensamento dos autores: o envelhecimento comohbrido biolgico-social; o envelhecimento como problema; o envelhecimento como ques-to pblica; o velho como ator social.

    O ENVELHECIMENTO COMO HBRIDO BIOLGICO-SOCIAL

    O que envelhecimento?, pergunta Veras (1995:25) em seu livro Pas Jovemcom Cabelos Brancos, para em seguida responder: Velhice um termo impreciso. (...)nada flutua mais do que os limites da velhice em termos de complexidade fisiolgica,psicolgica e social. O mesmo autor diz, numa tentativa de conceituao, que doponto de vista cultural, a velhice deve ser percebida diferentemente em um pas comuma expectativa de 37 anos de vida, como Serra Leoa, e outro de 78 anos de vida, como o caso do Japo (1995:26).

    Assim como Veras, os estudiosos que tm seus textos aqui publicados apresen-tam, como uma das primeiras questes a serem consideradas, a necessidade dedesnaturalizar o fenmeno da velhice e consider-la como uma categoria social e cultu-ralmente construda.

    Se, por um lado, o ciclo biolgico prprio do ser humano assemelha-se ao dosdemais seres vivos todos nascem, crescem e morrem , por outro, as vrias etapas davida so social e culturalmente construdas. Isto , as diversas sociedades constroemdiferentes prticas e representaes sobre a velhice, a posio social dos velhos nacomunidade e nas famlias e o tratamento que lhes deve ser dispensado pelos maisjovens. isso que Parry Scott analisa em seu captulo, numa instigante abordagem

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    INTRODUO

    comparativa sobre o processo de envelhecimento no Japo e no Brasil. O autor reafirmaa idia de que, para se entender o lugar social dos idosos, preciso compreender aforma como a sociedade organiza a estrutura, as funes e os papis de cada grupoetrio especfico.

    Os estudos antropolgicos demonstram que a infncia, a adolescncia, a vidaadulta e a velhice no constituem propriedades substanciais que os indivduos adqui-rem com o avano da idade cronolgica. Pelo contrrio: o processo biolgico, que reale pode ser reconhecido por sinais externos do corpo, apropriado e elaborado simbo-licamente por meio de rituais que definem, nas fronteiras etrias, um sentido poltico eorganizador do sistema social. Como lembram Aris (1981) e Elias (1990), essas frontei-ras e suas apropriaes simblicas no so iguais em todas as sociedades nem namesma sociedade, em momentos histricos diferenciados nem num mesmo tempo,para todas as classes, todos os segmentos e gneros.

    No interior das diferenciaes, no entanto, os estudos antropolgicos revelamaspectos estruturais fundamentais, de tal forma que possvel transcenderparticularismos culturais e encontrar alguns traos comuns do fenmeno que poderiamser considerados universais.

    O antroplogo Leo Simmons (1945), por exemplo, analisou a situao dos ve-lhos em 71 sociedades indgenas, tomando por base os seguintes parmetros: formasde subsistncia; direitos de propriedade; atividades econmicas; vida domstica; or-ganizao poltica; conhecimento das tradies; valores e crenas e integrao nafamlia e no sistema de parentesco. Embora seu estudo possa fazer jus a crticas de queseja demasiadamente generalista, ele aponta questes interessantes para o que seriamos desejos universais dos velhos nessas sociedades. Considerando o conjunto dosgrupos estudados, segundo Simmons, todos os velhos desejam viver o mximo poss-vel; terminar a vida de forma digna e sem sofrimento; encontrar ajuda e proteo para aprogressiva diminuio das capacidades; continuar a participar das decises que en-volvem a comunidade; prolongar, ao mximo, conquistas e prerrogativas sociais comopropriedade, autoridade e respeito.

    A manipulao de categorias etrias, no entanto, outro fenmeno comumenteobservado, geralmente exigindo um investimento poltico de definio de poderes paracada ciclo da vida, no estabelecimento de direitos, deveres e privilgios (Bourdieu,1983). Sobre esse tema, Debert diz que categorias e grupos de idade implicam a impo-sio de uma viso de mundo social que contribui para manter ou transformar as posi-es de cada um em espaos sociais especficos (Debert, 2000:53).

    No mesmo sentido, apesar de os desejos universais dos idosos citados porSimmons (1945) estarem todos voltados para sua incluso afetiva nos contextos sociais,Riffiotis (2000), tambm estudando o lugar do velho entre diferentes etnias africanas,assinala que em todas elas existe a idia de que os jovens querem que os anciosmorram. Mais que isso, existem rituais por meio dos quais a sociedade adulta os separaradicalmente da convivncia nas aldeias, quase sempre abandonando-os em cavernasou outros lugares distantes do convvio de seu povo. Essas mesmas sociedades que ossegregam, porm, igualmente colocam prova os jovens adultos que os substituiro nogoverno da comunidade, para que fiquem evidentes as dificuldades que sentiro sem o

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    apoio da experincia dos velhos. Os mitos demonstram que, em face dos dilemas dedifcil soluo, os novos dirigentes sucumbiro se no trouxerem, em seu socorro,algum daqueles ancios abandonados em cavernas para morrer. Assim, o saber ances-tral dessas sociedades evidencia a importncia da conciliao e do reconhecimentointergeracional na obteno do equilbrio necessrio organizao social.

    O ENVELHECIMENTO COMO PROBLEMA

    No imaginrio social a velhice sempre foi pensada como uma carga econmica seja para a famlia, seja para a sociedade e como uma ameaa s mudanas. Essanoo tem levado as sociedades a subtrarem dos velhos seu papel de pensar seuprprio destino. No entanto, nunca faltaram excees a tais prticas, o que pode serexemplificado com o reconhecimento pelas sociedades indgenas da figura do paj ouxam ancio ou, nas sociedades ocidentais, dos poderosos, ricos e famosos quandogozam de sade fsica, mental e econmica. As excees, porm, no podem esconderas grandes dificuldades socioeconmicas que os idosos, particularmente os pobres,sofrem nos mais diferentes contextos de vida. Por isso mesmo, a velhice por elesauto-assumida como problema, na mesma medida em que sofrem por causa dela e oimaginrio social assim a define.

    A forma mais comum de discriminao cultural tem sido o estigma de descartvel,passado ou peso social. Como muito bem aponta Guimares, nos dicionrios emo-cionais da populao, velhice sinnimo de decadncia, de decrepitude e de perda dedignidade (Guimares, 1997:7).

    O trabalho de Ucha e colaboradores que integra este volume evidencia,empiricamente, a forma negativa de concepo do envelhecimento por parte dos mora-dores de uma cidade do interior mineiro, em contraposio s vises muito mais gene-rosas que os idosos tm de si prprios. Os pesquisadores demonstram a distncia entrea observao externa e o conceito formulado por eles, mesmo em situao de enfermida-de e de dependncia fsica. A viso depreciativa dos mais velhos tem sido, atravs dostempos modernos, alimentada profundamente pela ideologia produtivista que susten-tou a sociedade capitalista industrial, para a qual, se uma pessoa no capaz de traba-lhar e de ter renda prpria, de pouco ou nada serve para sua comunidade ou seu pas.

    No Brasil, o fenmeno do envelhecimento at pouco tempo atrs vinha sendotratado como questo da vida privada, por representar nus para a famlia, como assun-to de caridade pblica, no caso dos pobres e indigentes, e, de forma bastante reducionista,como questo mdica. claro que essa viso continua confirmada pelas prticas sociaisde cuidado com os idosos. Mas o rpido crescimento dessa faixa da populao passoua preocupar tambm muitas outras instituies sociais.

    No caso da famlia, por exemplo, nos ltimos cinqenta anos, houve profundastransformaes no seu desenho demogrfico, nos seus ambientes, na sua composioe no seu tamanho, pari passu com a acelerada urbanizao. Na medida em que diminuemos espaos residenciais e o nmero dos membros que entram no mercado de trabalho,

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    comparativamente aumentam os que se retiram. Criam-se novas demandas de cuidados,necessidades de adaptao da arquitetura das casas, isolamento dos parentes em asi-los, ou maior exigncia de dedicao dos mais novos para proporcionar melhor qualida-de de vida aos que se tornam dependentes. Sem falar no fato de que no so poucas asdificuldades de convivncia entre as vrias geraes que cada vez se distanciam maisculturalmente, numa sociedade em que os padres de comportamento tambm tmmudado aceleradamente, como mostra o trabalho de Cornelia Eckert.

    Tambm para a medicina e para a sade pblica, o envelhecimento tem seapresentado como problema. As mudanas na pirmide populacional, que vai alar-gando seu pice numa mdia de 2,5% de crescimento anual, geram preocupaes parao sistema de sade, porque mesmo sem ter solucionado os problemas sanitriosrelativos infncia, adolescncia e aos trabalhadores, ambos tero de se equiparpara dar respostas eficientes relativas preveno de enfermidades e ateno aosenfermos idosos.

    Por isso, em geral, os formuladores de polticas no Brasil referem-se ao custosocial da populao idosa, calculado como trs vezes mais alto que o da populaoem geral (Veras, 1995). Demonstram tambm que esse custo mais elevado onera,sobretudo, o sistema de sade, pois o crescimento da esperana de vida, historica-mente, vem acompanhado, no mundo inteiro, de um aumento das doenas crnicasno infecciosas, como diabetes melito, distrbios cardiovasculares, articulares, res-piratrios e de movimento; doenas incapacitantes, como demncia senil, doena deAlzheimer, doena de Parkinson; alm do incremento das ocorrncias de depressese de falhas cognitivas.

    Os captulos escritos por Clia Caldas e Paulo Csar Alves exemplificam a di-menso dos sofrimentos de grupos especficos de idosos e de seus cuidadores, qua-se sempre familiares, que os acompanham at o final da vida. Esses sofrimentos costu-mam ser muito mais dramticos para a populao pobre, que acaba lotando os asilospblicos e conveniados, quase todos em situao de flagrante abandono ou padecen-do, cronicamente, da falta de equipamentos e de pessoal especializado.

    No Rio de Janeiro (capital com a maior proporo de idosos no pas), Veras(1995) observou que 17% da sua amostra consideravam sua sade ruim ou muito ruim,e os casos de distrbio mental eram mais freqentes nesse grupo. Embora 82,5% daspessoas entrevistadas se dissessem saudveis ao responderem a questes auto-referi-das, os problemas de sade foram mencionados como prejudicais qualidade de suavida cotidiana. Cerca de 64,4% delas apresentavam morbidades mltiplas. Ora, essesdados podem ser lidos sob duas faces: de um lado, para esse grupo etrio, os transtor-nos da velhice no so considerados doenas; de outro, servem para dimensionar otamanho dos problemas a serem enfrentados pelo sistema de sade na esfera da pre-veno e do tratamento.

    O estudo de Veras chama a ateno, igualmente, para o peso das condiessocioeconmicas adversas, da pouca instruo e da escassez de atendimento no recru-descimento dos problemas fsicos e mentais na velhice. O fato de 60% da populao idosahoje serem compostos por mulheres indica tambm a necessidade de um atendimentodiferenciado por gnero. No conjunto, Veras (1995) assinala nesse grupo etrio do Rio de

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    Janeiro elevada prevalncia de distrbios cardiovasculares e articulares; deficinciasvisuais e auditivas e distrbios mentais, como depresso e problemas cognitivos.

    No caso brasileiro, a idia de que os velhos constituem um problema social vemsendo construda sobremodo pelo Estado. Na sociedade ocidental contempornea, oEstado o grande regulador do curso da vida, do nascimento morte, passando pelasfases de escolarizao, de atividade no mercado de trabalho e de aposentadoria. Porcausa disso, a idade cronolgica um princpio cultural de extrema relevncia no mo-derno aparato jurdico-poltico, que concentra no indivduo a atribuio de direitos edeveres; e no mercado de trabalho, a base da economia. Essa forma de organizaodifere, por exemplo, das comunidades indgenas e camponesas fundadas economica-mente na unidade familiar.

    A idia do envelhecimento como problema se expressa na constante divulga-o dos dficits nos clculos da previdncia social, uma vez que o direito aposentado-ria (um direito dos idosos) se universalizou. O discurso sobre o peso social que hoje osvelhos constituem tem nessa instncia pblica um lugar entronizado. reforado pelaidia de que a situao do aumento dessa populao insustentvel com a manutenodo direito universal da aposentadoria. Portanto, o aparato do Estado tende a ver deforma catastrfica as prprias instituies poltico-sociais que criou para atender osidosos. Veras (1995:23) aponta assim a dimenso do problema:

    Uma vez que mais da metade da populao idosa do Brasil ter entre 60 e 69anos, as decises relativas idade de aposentadoria, disponibilidade e direito penso, assim como outras questes relacionadas fora de trabalho, afetarosignificativamente a economia brasileira no prximo sculo.Talvez o dilema dos formuladores de poltica seja exatamente a impregnao, em

    seu horizonte mental, da idia de envelhecimento como problema, sobretudo no senti-do econmico de apropriao de bens e servios por um nmero cada vez maior depessoas mais velhas. Ora, essa idia de falncia da previdncia social, da qual usufruemos idosos, como a grande vil da poltica social no pas deve ser relativizada. Pelomenos o que mostra estudo recente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada(Ipea) sobre a universalizao de direitos sociais no Brasil. Os pesquisadores constata-ram que mais da metade das aposentadorias e penses da Previdncia Social, na zonarural das regies Sul e Nordeste, dirigida a mulheres vivas, solteiras ou separadas.Vivendo sem companheiros, elas so responsveis pelo sustento da casa e dos depen-dentes, contando apenas, para a sobrevivncia sua e do grupo, com esse benefcio.

    No Nordeste, 58,6% das mulheres aposentadas e pensionistas so chefes defamlia. No Sul, 49,4% delas o so. Embora a quantia recebida do INSS seja mnima, pelofato de essas idosas rurais terem acumulado, ao longo de suas vidas, uma srie dedesvantagens como a dupla jornada e o trabalho sem remunerao, a extenso daaposentadoria rural a essas mulheres, depois da Constituio de 1988, mudou suatrajetria, ao reconhecer seu direito de cidadania e sua autonomia financeira.

    O estudo do Ipea conclui que a aposentadoria rural hoje um fator essencial dereduo da pobreza no campo. Isso tambm mostra o trabalho de Rita Heck, que integraesta coletnea, no caso do interior do Rio Grande do Sul. Mas essa autora evidencia

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    que, alm do significado econmico de subsistncia, a liberao financeira (ainda quemuito modesta) vem acompanhada de um sentido cultural de independncia da tutelafamiliar, sobretudo para as mulheres, trazendo-lhes uma qualidade e uma alegria de vidacomo nunca tiveram em outras etapas da existncia. Os exemplos acima referem-se, deforma muito particular, ao envelhecimento em situaes de pobreza e privao, mas,mesmo assim, aqui se expressa um significado positivo dessa etapa da vida, apontandopara uma viso diferenciada em relao aos esteretipos sociais.

    O ENVELHECIMENTO COMO QUESTO PBLICA

    Na sociedade ocidental, no somente o ciclo da vida socialmente padronizadocomo tambm seu curso passa, cada vez mais, a ser regulado pelo Estado, a despeitodas potencialidades e dos problemas de cada um. A infncia, a adolescncia e a juven-tude so tempo de escolarizao; a idade adulta o tempo associado procriao e participao no mercado de trabalho; a velhice, o tempo da aposentadoria. Essainstitucionalizao crescente das fases da vida envolve todas as dimenses do mundodomstico, do trabalho e, tambm, do consumo.

    Para Wright Mills (1974), um dos mais importantes problemas para a sociologia a compreenso do movimento de transformao de um fato particular em questopblica. No caso do envelhecimento, isso supe enfatizar o sentido das mudanas queesse grupo social, crescente em nmero, em vigor e em organizao, provoca na reorga-nizao do poder, do trabalho, da economia e da cultura, atribuindo novo significado aoseu espao tradicionalmente percebido como o da decadncia fsica e da inatividade.Como questo pblica, o fenmeno do envelhecimento deve ser focalizado positiva-mente para o desenvolvimento humano. Portanto, pensar a velhice como questo p-blica bem diferente de trat-la como problema social.

    Seguindo o pensamento de Mills (1974), importante descobrir quais seriam osformuladores de um novo sentido do envelhecimento e que interesses tm nessadestinao, uma vez que quem o formula publicamente ocupa, geralmente, posioprivilegiada para faz-lo e para representar os interesses dos outros. H que descartaros agentes tradicionais ou preciso compreender sua mudana de enfoque? No casodos idosos, os porta-vozes mais legitimados tm sido os especialistas da geriatria, sejapela apropriao do avano da cincia, seja pelo prprio reconhecimento social da suaprtica mdica. Mas tambm no interior desse grupo, as certezas so poucas, comoressalta Guimares (1997:7):

    todos sabem que a gerontologia e seus diversos ramos tm sido at ento umacincia tmida, adolescente; um barco carente de bons timoneiros e do sopro dosmelhores ventos. Ainda assim, o conhecimento cientfico tem possibilitado avan-os considerveis que tornam factvel um envelhecimento saudvel a ponto depodermos antever o prximo sculo como o sculo dos velhos. Nossa responsa-bilidade tende a aumentar na mesma proporo da importncia atual e futura denossa atuao.

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    Ora, se no apenas a geriatria (que tende a focalizar as doenas consideradasprprias da idade) a grande lder da transformao do idoso em ator poltico, seu papelno pode deixar de ser reconhecido, juntamente com a combinao de vrios outrosatores da histria social no ps-Segunda Guerra Mundial. A expresso mais cabaldesse seu papel na redefinio de espaos a idia contempornea de terceira idade,uma nova construo social acrescentada s etapas da vida, referida entre a vida adultae a velhice propriamente dita. Nomeando a populao entre 60 e 75 anos na Europa,onde a esperana de vida vem alcanando 80 e 90 anos, essa inveno se socializouno mundo. Veio a reboque de grandes avanos cientficos na rea de preveno etratamento de doenas crnicas, estabelecendo parmetros cada vez mais definidos dodesenvolvimento humano e conquistando descobertas que se concretizam emtecnologias de tratamento reconhecidamente eficazes e precisas.

    interessante notar que a maioria dos medicamentos mais modernos, por meiodos quais a indstria farmacutica mais lucra, esto voltados para o envelhecimento comqualidade de vida ou para manter o mito da imortalidade ou da eterna juventude,com base em pesquisas farmacolgicas e genticas de ponta.

    Seria uma simplificao e um reducionismo dizer que o grande propulsor dastransformaes do papel atual do idoso na sociedade seja o mercado, mas no convmdesconhecer seu lugar. preciso lembrar que a terceira idade uma nova categoriasocial que designa o envelhecimento ativo e independente. Geralmente, essa etapa davida se compe de uma populao disposta quando tem condies econmicasmnimas para faz-lo ociosidade criativa (De Masi, 2000) e prtica de mltiplasatividades fsicas e culturais. Assim, torna-se impossvel desconhecer o seu papelcomo consumidora, pois crescem pari passu a constatao desse fenmenodemogrfico, o turismo, a moda, a cosmtica, a medicina de reabilitao e a fisioterapia,a indstria de alimentao especfica, novos padres de construo, uma literaturaespecfica, alm de todas as prticas, instituies e agentes voltados para esse pblicocativo e em expanso.

    A chamada terceira idade se diferenciaria da quarta, de 75 a 85; ou da quinta,compreendendo os velhos acima desse patamar (Peixoto, 2000), como os pases euro-peus j vm classificando sobretudo porque os sintomas e expresses de dependn-cia fsica e mental vo se acentuando e so muito mais freqentes nas ltimas duasfaixas, em que os servios se concentram no desenvolvimento de medicamentos, resi-dncias, equipamentos e pessoal especializado para atendimento mdico e social.

    Na verdade, a situao da terceira idade e do acelerado envelhecimentopopulacional, no Brasil e no mundo, inclui-se nos temas a gosto da globalizao e dacultura que produzida neste novo momento histrico, sobretudo pelas mudanas queprovoca e pelas potencialidades que encerra. Como um fenmeno sobre o qual ainda hpouca reflexo, necessita, para sua compreenso, de uma perspectiva construtivista,em que as teorias e as propostas englobem os prprios atores delas destinatrios. Mas,tomada como questo pblica, ela uma espcie de cone dos avanos que a socieda-de alcanou, mesmo tendo em conta todas as diferenas entre pases desenvolvidos esubdesenvolvidos, entre classes, gneros e etnias.

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    No caso nacional, a terceira idade revela os seguintes avanos positivos: o con-trole de muitas doenas infecto-contagiosas e potencialmente fatais; a diminuio dastaxas de fecundidade; a queda da mortalidade infantil, graas ampliao das redes deabastecimento de gua e esgoto; o aumento da cobertura vacinal e da ateno bsica sade; a acelerada urbanizao; a universalizao da previdncia social e as profundastransformaes nos processos produtivos e de organizao do trabalho e da vida.

    Todas essas mudanas, na realidade, induzem a que se coloque em pauta umanova datao e um novo imaginrio sobre as etapas da vida at ento vigentes eutilizadas para marcar os rituais de passagem, assim como os direitos e deveres pbli-cos e privados. O envelhecimento como questo pblica retira esse tema do domnioindividual e privado sem neg-lo, colocando-o num mbito muito mais abrangente: naesfera da grande poltica e das polticas sociais. preciso que, daqui para a frente, nonos esqueamos de que, no Brasil, esse grupo etrio rene e reunir uma populaomaior que qualquer sindicato de categoria e at mesmo que qualquer central sindical.

    O IDOSO COMO ATOR SOCIAL

    Por mais incrvel que possa parecer, h duas categorias sociais opostas e emconstruo olhando para o futuro do pas. A primeira a juventude, essa etapa entrea adolescncia e o mundo adulto que, exatamente pela fora de expanso da expectativade vida e das exigncias escolares, cada vez tende a ampliar seu tempo e a criar umaidentificao especfica. A segunda a velhice, que no pode ser nominada nem tratadacomo h 50 anos, quando a expectativa de vida era apenas de 43 anos. Portanto, esteltimo e mais novo ator individual e coletivo est redefinindo as relaes familiares;construindo a medida de sua participao social; influenciando os rumos da poltica e,em conseqncia, criando, a partir de si, uma nova imagem e delineando uma preciosaetapa da vida, portadora de uma tica e de uma esttica prprias.

    Num estudo recente, Simes (2000) reconstruiu a histria da constituio domovimento dos aposentados brasileiros. Com os termos luta, mobilizao e novacategoria estruturando seu discurso ordenador desde o incio dos anos 80 e culminandona segunda metade dos anos 90, os idosos se reuniram e foram para as ruas reivindicarreconhecimento de seus direitos previdencirios, aumento das aposentadorias e parti-cipao na gesto de seus interesses, com assento nos conselhos nacionais de Sadee de Seguridade Social.

    Na liderana da maior categoria do pas, encontravam-se antigos lderes sindicaise de movimentos sociais. Nesse embate, os idosos brasileiros, nas duas ltimas dcadas,inauguraram um espao prprio de ao, de cidadania e de incluso. Modificaram o cenrioda organizao social e se estabeleceram como um grupo de interlocuo poltica osvelhos elegem, destituem, dialogam, denunciam, recorrem Justia, incomodam e se fazemouvir. Transformaram-se, como obra prpria, em atores sociais e em atores polticos.

    O estudo de Simes (2000) faz uma distino interessante. Ao mesmo tempo quecresce e se estrutura o movimento dos aposentados, tambm se incrementam e se

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    multiplicam os grupos e os movimentos da chamada terceira idade. Os lderes dosaposentados no gostam muito dessas outras formas de expresso. Costumam dizerque as iniciativas da dita terceira idade no so dirigidas a interesses da coletividadee atendem apenas a anseios individuais, oferecendo atividades culturais como as uni-versidades abertas, os grupos de encontro, de lazer, de solidariedade, de atividadesfsicas e de excurses, entre outros.

    Ora, olhando a efervescncia dos dois movimentos, constata-se que no h con-tradio entre eles, mesmo porque os grupos de atividades culturais devem congregarpessoas que participam do movimento de aposentados e vice-versa. Mas h diferenasde nfase: os movimentos socioculturais costumam reunir muito mais mulheres quehomens, e os dos aposentados, mais homens que mulheres. Ambos, porm, revelam abusca do protagonismo de uma nova categoria como revelam Ana Bassit, Rita Heck& Jean Langdon, Alda Motta e Elizabeth Ucha e colaboradores que acotovela osjovens adultos, exigindo a abertura de espao e novos arranjos nas estruturas de poder.

    preciso reconhecer que, do ponto de vista econmico, os idosos e, de formadestacada, a terceira idade se configuram hoje como um mercado crescente e cada vezmais promissor no mundo dos bens de consumo, da cultura, do lazer, da esttica, dosservios de preveno, ateno e reabilitao da sade. Do ponto de vista sociolgico,constituem um emergente ator social, com poder de influir nos seus destinos, pela suasignificncia numrica e qualitativa, por meio da construo de leis de proteo, deconquista de benefcios e pela presena no cenrio poltico, no qual valem seu voto esua representao. Como um novo construtor de cultura, o idoso tem papel insubstituvelporque, radicalizando as novas situaes, nada poder ser como antes, sob pena desua excluso moral e social do projeto para o futuro do pas.

    Os chamados tempos ps-modernos trouxeram pauta algumas questes cul-turais que favorecem um novo pensamento sobre a terceira, quarta ou quinta idade. Aprimeira a relativizao da centralidade da categoria trabalho tal como foi pensada nomundo ocidental e na sociedade industrial em que, como assinala Weber (1985), foiconsiderado vocao e, como lembra Marx (1978), acabou sendo um fator de aliena-o e despersonalizao. Hoje a sociedade est mais aberta para outras formas deidentificao e madura para a crtica do homem unidimensional que fez do trabalhopara sobreviver seu nico objetivo possvel de vida. Cada vez mais se admitem outrasformas de pertencimento social e tempo para o cio criativo, possibilidade que vemjunto com a perspectiva de diminuio da jornada de trabalho, como previu Marx (1984)em A Ideologia Alem. A noo de consumidor cidado e a expanso das redes decomunicao, lazer e cultura esto contribuindo para dar fora produo e ao reco-nhecimento de outras possibilidades de identificao.

    Em segundo lugar, e em conseqncia de uma abertura propiciada, sobretudo,pelas tecnologias de comunicao e informacionais, vem se ampliando o respeito aopluralismo de comportamentos e de atividades, o que, em conseqncia, acaba porromper esteretipos ideolgicos e comportamentais. Por fim, do ponto de vista cultural,observa-se uma valorizao da subjetividade em todos os nveis do mundo da vida, dacincia e da poltica.

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    INTRODUO

    Ao questionar a idia do trabalho remunerado como a nica forma de realizaosocial e ao colocar em foco outras formas de estar no mundo e na sociedade, os temposatuais permitem aos idosos, como nunca antes, construrem sua nova identidade sobuma tica de trabalho no obrigatrio, mas de utilidade e de sentido. Isso propiciaoutros espaos de expresso a serem inventados e desfrutados, contrapondo-se pecha de descartveis ou prpria referncia a si mesmos como inteis.

    A maior abertura para o pluralismo de idias, comportamentos e atitudes confi-gura, para esses homens e essas mulheres, o espao menos preconceituoso para seusdesejos e possibilidades de realizaes, retirando de suas testas a tarja repressora, naqual est escrito que ser velho colocar o pijama de av ou o chinelinho de av, contarhistrias do passado, parar de ousar e preparar-se para a morte.

    Na verdade, no sem dor e conflitos, os papis sociais esto mudando e podemmudar mais, medida que os idosos se coloquem como atores das transformaes comque sonham. Quase tudo est por fazer. As vivncias, em maior profundidade, da pr-pria subjetividade permitiro aos velhos afrontarem as represses provocadas tantopelas prprias necessidades do trabalho quanto pelos constrangimentos familiares,sendo mais autnticos e mais felizes.

    Por fim, as novas possibilidades de comunicao, de viagens, de participaogrupal, de ampliao da cultura, do cultivo de diferentes formas de lazer permitemtambm uma existncia mais saudvel. Mesmo nos bairros e nas condies em quevivem os mais pobres, possvel dar um novo sentido e articular atividades de encon-tro, comunicao e afeto. Para tudo isso, importante mudar a idia de que velhice doena, substituindo-a por uma nova viso de um tempo no qual se pode optar commenos constrangimentos pelo rumo que se quer dar a esta ltima etapa da vida, produ-zindo dela uma sntese criadora. Essa autoria, para a qual no esto definidos os cami-nhos a priori, cabe ser inventada, tal qual tem sido feito pelos movimentos citadosaqui. Dessa forma, a contribuio especfica dos idosos ser um bem para a sociedadee estabelecer os contornos de seus prprios interesses, num mundo cheio de outrospoderosos interesses.

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    ENVELHECIMENTO E SADE

    11111Envelhecimento e Sade: experincia e

    construo culturalElizabeth Ucha, Joslia O. A. Firmo & Maria Fernanda F. de Lima-Costa

    O envelhecimento populacional no mais uma preocupao apenas dos pasesdesenvolvidos, onde este fenmeno foi observado inicialmente. Hoje, nos pases emdesenvolvimento que se verificam os maiores ndices de mudanas (UNO, 1985; Waterset al., 1989). No Brasil, o crescimento da populao idosa cada vez mais relevante, emtermos tanto absolutos quanto proporcionais (Berqu, 1999). Entre 1950 e 1991, a pro-poro de indivduos com 60 ou mais anos de idade aumentou de 3,5% para 7,3%, e aproporo daqueles com 65 anos ou mais aumentou de 1,7% para 4,5% (FIBGE, 1950/1991). Em 1991, o nmero total de indivduos idosos (65+) no pas j ultrapassava os 7milhes, e a estimativa para o ano 2025 que o nmero de idosos ultrapasse os 30milhes (Berqu, 1999; Veras, 1997).

    A situao no Brasil faz eco no panorama mundial, caracterizando-se, entretan-to, por algumas particularidades. Contrariamente aos pases desenvolvidos, onde oaumento da esperana de vida resultou de melhoria considervel das condies de vidadas populaes, no Brasil muitos indivduos esto hoje vivendo por mais tempo sem,necessariamente, dispor de melhores condies socioeconmicas ou sanitrias (Kalache,1990, 1991). Alm disso, em um pas to marcado por desigualdades, como o Brasil, oprocesso do envelhecimento pode reforar desigualdades em termos da qualidade devida e do bem-estar entre diferentes estratos da populao, contribuindo para aumentara chance de excluso dos idosos (Berqu, 1999).

    Assim, no contexto brasileiro, o acelerado crescimento da populao idosa fazsurgir um grande desafio: como garantir uma sobrevivncia digna a todos aqueles quetiveram suas vidas prolongadas em anos? A busca de solues adequadas exige a inclu-so do envelhecimento da populao brasileira como um elemento fundamental na elabo-rao das novas polticas e na agenda de investigaes cientficas do novo milnio.

    No mbito da sade, o envelhecimento populacional um fenmeno que gera novasdemandas para os servios e aumentos substanciais nos custos de programas (Neugarten,1967; Birren, 1983; Fournier, 1989; Ducharme, 1992; Veras, 1992), exigindo o conhecimentode problemas prioritrios e o desenvolvimento de aes visando sua resoluo.

    Entretanto, mesmo reconhecendo que o envelhecimento das populaes umadas questes mais relevantes na agenda de estudos contemporneos (Veras, Coutinho

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    & Coeli, 1997), os estudos epidemiolgicos com base populacional so ainda raros noBrasil e at recentemente (Lima-Costa et al., 2000) restritos a grandes metrpoles, comoSo Paulo (Ramos, 1986; Ramos & Goihman, 1989; Blay, Mari & Ramos, 1989; Ramos etal., 1993; Najas et al., 1994) e Rio de Janeiro (Veras et al., 1989; Veras, Coutinho & NeryJr., 1990; Veras & Coutinho, 1991; Veras & Murphy, 1991; Veras, 1992).

    Estudos epidemiolgicos so imprescindveis para a identificao dos proble-mas prioritrios, dos grupos de pessoas mais vulnerveis a esses problemas e dosfatores de proteo e risco que lhes so associados, de modo a orientar decisesrelativas distribuio de recursos e definio de prioridades. So ainda mais rarosestudos que possam informar sobre a maneira como as pessoas idosas residentes noBrasil tentam dar significado a esse perodo de suas vidas e sobre a forma como limita-es e perdas (freqentes nessa fase da vida) so integradas experincia de vida.Muito pouco se conhece sobre a maneira como essas pessoas percebem seus proble-mas de sade e agem diante deles ou quais so os fatores (econmicos, sociais eculturais) que podem influenciar percepes e aes nesse campo.

    Para ultrapassar o estado atual de conhecimentos, preciso levar-se em conta queo envelhecimento vivido de modo diferente de um indivduo para outro, de uma geraopara outra e de uma sociedade para outra. Essa diversidade de experincias nos convidaa distinguir entre os elementos intrnsecos ao processo do envelhecimento e aquelesmais diretamente ligados s caractersticas do indivduo, dinmica social e s polticaspblicas vigentes. Nessa perspectiva, particularidades culturais e processos lgicospredominando em cada contexto emergem como elementos essenciais para a elabora-o de polticas mais adequadas s caractersticas das populaes a serem atendidas.

    Estudos antropolgicos tornam-se imprescindveis para investigar as condi-es de vida dos idosos e identificar os fatores sociais, culturais e econmicos queintervm positiva ou negativamente na qualidade de vida desta populao. Aqui, aabordagem antropolgica foi utilizada para investigar os problemas encontrados pormulheres idosas vivendo na cidade de Bambu (MG), assim como as estratgias por elasdesenvolvidas para tentar enfrent-los.

    UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA DO ENVELHECIMENTO

    Objeto ambguo em nossos sistemas de referncia, a velhice foi tratada a partirda segunda metade do sculo XIX como uma etapa da vida caracterizada pela decadn-cia e pela ausncia de papis sociais (Debert, 1999). Inicialmente delimitado por estudosbiolgicos e fisiolgicos, o envelhecimento foi fundamentalmente associado deterio-rao do corpo e, a partir da, utilizou-se essa mesma grade de leitura para guiar pesqui-sas focalizando outras dimenses (Corin, 1985). Apenas recentemente, essa viso so-bre a velhice como um fato orgnico foi perdendo sua fora e a velhice e o envelheci-mento passaram a constituir objetos de reflexo da antropologia.

    Uma abordagem antropolgica das questes relativas velhice e ao envelheci-mento deve, desde o incio, situ-las em contextos sociais e culturais especficos. Se-

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    gundo Corin (1985), a antropologia deve interrogar sobre o papel de fatos socioculturaismais gerais na construo de uma representao da velhice enraizada nas idias dedeteriorao e perda. De acordo com essa autora, trata-se de investigar a interao entreparmetros culturais, traos individuais e marcadores biolgicos na construo de repre-sentaes da velhice e do envelhecimento.

    Duas tendncias principais reagrupam os estudos antropolgicos sobre o en-velhecimento; tendncias que so elas mesmas um reflexo da evoluo conceitual emetodolgica em antropologia (Corin, 1982; Ltourneau, 1989). A primeira caracteriza-sepor uma abordagem esttica dos fenmenos socioculturais. Ela reagrupa estudos, privile-giando a investigao de fatores que determinam a posio social dos idosos em diferen-tes sociedades e procurando analisar o impacto do desenvolvimento social sobre o esta-tuto das pessoas idosas (Corin, 1982; Fry, 1980; Keith, 1980; Ltourneau, 1989). Nessesestudos, a diminuio do prestgio e a deteriorao do estatuto dos idosos foram associ-adas ao processo de modernizao (Cowgill & Holmes, 1972). A segunda tendnciacaracteriza-se pelo aparecimento de estudos holsticos; neles, o pesquisador tentapenetrar o interior de uma cultura e descobrir como dados relativos ao envelhecimentoso organizados e adquirem significado (Ltourneau, 1989; Corin, 1982).

    Um conjunto de estudos publicados por Meyerhoff & Simic (1978) ilustra demaneira exemplar a emergncia dessa nova tendncia em antropologia. Nele, so anali-sados os aspectos estruturais, culturais e experienciais do envelhecimento em cincosociedades distintas. O envelhecimento abordado, pelos diferentes autores, como umfenmeno universal que gera problemas comuns, mas que podem ser vividos e resolvi-dos diferentemente nas diversas culturas. Esse conjunto de estudos nos convida aexaminar os problemas especficos do envelhecimento e as estratgias adaptativasutilizadas pelos idosos em termos de uma articulao entre as capacidades do indivduoe os recursos do meio.

    Arcand (1989) introduz, em perspectiva similar, uma interessante reflexo sobreo papel dos modelos culturais no aparecimento de problemas ligados ao envelhecimen-to. Segundo o autor, os cuiva, populao indgena da Colmbia, tentam negar, de todasas formas, o envelhecimento que se inscreve na prpria natureza do ser vivo. Preocupa-dos com os ideais de igualdade e homogeneidade que estruturam a sua sociedade, oscuiva evitam tudo que possa provocar uma ruptura social. Para Arcand, o modelo cuiva quase uma inverso do modelo ocidental, no qual a sociedade se d todos os meiospara acentuar a distino entre as diferentes fases da vida.

    Essa segunda tendncia na abordagem do envelhecimento coincide com o de-senvolvimento da corrente interpretativa em antropologia e, nela, a questo do signifi-cado passa a ocupar lugar central. Geertz (1973), que se situa na origem dessa corrente,considera a cultura como um universo de significados que permite aos indivduos deum grupo interpretar a prpria experincia e guiar suas aes. Esta definio ressalta aparticipao essencial da cultura na construo de todos os fenmenos humanos:percepes, emoes e aes.

    Nos estudos construdos nessa perspectiva, a abordagem esttica dos fenme-nos culturais substituda por uma abordagem processual. O envelhecimento no mais encarado como um estado ao qual o indivduo se submete passivamente, mas

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    como um fenmeno biolgico ao qual o indivduo reage com base em suas refernciaspessoais e culturais (Corin, 1982; Marshall, 1986, 1987). Esta a abordagem adotada nopresente trabalho.

    A ABORDAGEM METODOLGICA

    Com o objetivo de penetrar no universo das mulheres idosas vivendo em Bambu,foram utilizados dois mtodos complementares de coleta de dados. Em um primeiro mo-mento, foram realizadas entrevistas individuais com dez informantes-chave (dez idosos edez adultos com idades entre 35 e 45 anos) sobre as condies de vida dos idososresidentes em Bambu. Buscou-se identificar informantes que, por sua insero na comu-nidade, estivessem em situao de falar sobre ela. Em um segundo momento foramreconstrudas 30 histrias de vida com mulheres idosas (60 anos de idade ou mais)selecionadas em funo de sua insero em grupos: dez pertencentes a grupos de terceiraidade, dez a grupos religiosos e dez que no pertenciam a nenhum desses grupos.

    Nas entrevistas com informantes-chave, foram investigados a percepo dascondies de vida dos idosos, a insero dos idosos no campo familiar, os problemasprincipais (econmicos, de sade, afetivos), as estratgias utilizadas para enfrentarestes problemas (recurso aos parentes, amigos, vizinhos ou outros; recurso aos servi-os da sade, recurso aos grupos religiosos, recurso aos grupos de terceira idade) e apercepo das expectativas e dos comportamentos de diferentes categorias de pessoasem relao aos idosos.

    Para a reconstruo das histrias de vida, focalizou-se o projeto inicial de vida,a situao atual, a insero no campo familiar e social e a situao econmica nasdiferentes fases da vida, os acontecimentos significativos (transformaes decorren-tes e estratgias utilizadas), os problemas principais na atual fase da vida (de sade,econmicos, afetivos) e as estratgias utilizadas para enfrent-los (recurso a parentes,amigos, vizinhos ou outros; recurso aos servios mdicos; recurso aos grupos religio-sos; recurso aos grupos de terceira idade etc.), a percepo das atitudes e dos compor-tamentos de diferentes categorias de pessoas (parentes, amigos, profissionais, outros)em relao aos idosos, a avaliao do impacto de atitudes e de comportamentos espe-cficos sobre a qualidade de vida e as expectativas quanto velhice e ao envelhecimen-to e a avaliao da situao atual.

    As entrevistas com informantes-chave foram realizadas pelos autores, e asreconstrues das histrias de vida foram realizadas por uma senhora de 68 anos,lder de um grupo de terceira idade em Belo Horizonte. Todas as entrevistas foramgravadas, transcritas e digitadas. A leitura atenta e sistemtica do conjunto de en-trevistas permitiu a identificao de algumas categorias organizadoras e a construo degrades de codificao (Corin et al., 1992; Ucha & Vidal, 1994). Aps a transcrioe informatizao de todas as entrevistas, os textos foram marcados no computadorcom a ajuda do software Qualittat (Demicheli & Ucha, 1998), em funo de categoriasdefinidas nas referidas grades. A partir da, as categorias de informao recorrentes

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    foram identificadas, e seu contedo analisado. Finalmente, foram analisadas asinteraes entre as diferentes categorias de informao.

    RESULTADOS

    No conjunto de entrevistas com os informantes-chave, a velhice e o envelheci-mento foram associados a distintos nveis de problemas. No campo da sade, h refe-rncia ao aparecimento das doenas crnicas. Na rea econmica, h referncia dimi-nuio da renda e a um concomitante aumento dos gastos, particularmente em funodos problemas com a sade. H tambm referncia, em quase todas as entrevistas, aodeclnio funcional levando incapacidade progressiva de exercer as atividades cotidia-nas e perda da autonomia. No mbito das relaes sociais, h referncia a um comprome-timento da insero social; mortes de parentes e amigos e aposentadoria favorecem adiminuio da rede social, a perda de papis sociais, a marginalizao e o isolamento.

    De maneira geral, todos esses problemas convergem para um conjunto de per-das diversas, todas elas implicando um aumento progressivo da dependncia e a exi-gncia de diferentes nveis de suporte. Esses so os elementos centrais do discursodos informantes-chave. A imagem da velhice desenhada por eles bem negativa: ca-rncia afetiva, econmica, inutilidade, dependncia, desamparo, marginalizao e dete-riorao da sade aparecem como elementos constitutivos desta fase da vida.

    Quando so focalizadas as histrias de vida, surgem imagens bem mais positi-vas da velhice e do envelhecimento. Nenhuma das mulheres entrevistadas, sejam quaisforem suas caractersticas, reconhece seu momento de vida como inteiramente negati-vo ou definido apenas por perdas e limitaes. preciso ressaltar que o grupo demulheres entrevistadas bastante heterogneo. Treze tinham entre 60 e 69 anos e 13entre 70 e 80 anos; apenas quatro tinham mais de 80 anos e somente uma mais de 90. Amaioria delas era viva, com filhos e baixa escolaridade. Dez disseram nunca ter tidofilhos, cinco nunca ter se casado e apenas uma afirmou ter feito curso superior. Dozedizem viver com a aposentadoria de um salrio mnimo; dez afirmam possuir bens e noter problemas financeiros; o restante reagrupa situaes intermedirias entre essesdois extremos.

    D. Joaquina um senhora de 94 anos que vive acamada h alguns meses. Elanos conta que quebrou uma perna e dois meses depois quebrou a outra, mas, surpre-endentemente, define sua sade como muito boa. D. Maria tem 80 anos e diz quesempre teve problemas de coluna e que agora arranjou uma artrose: Mas nada srio,nunca tive nenhuma fratura e s tomo remdio para fortalecer o corao. D. Normadiz que seu problema o corao: Sou ofendida pelo barbeiro e de uns anos para ctenho um ressecamento na boca, mas eu trabalho, lavo a roupa da casa, passo, pas-seio muito, como bem, durmo a noite inteira, no preocupo com o que vem l dafrente.... D. Ana tem 70 anos e conta que tem angina e j fez angioplastia, mas afirmaque passa bem porque obediente e quer viver muito. Problemas de sade, emmaior ou menor grau, aparecem em quase todos os relatos. Entretanto, a avaliao da

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    mas, a aposentadoria representa tambm para elas um mnimo de autonomia: poder dedecidir onde e com o que gast-la.

    O isolamento no identificado pelas idosas de Bambu como um elementoconstitutivo de suas vidas. D. Joaquina diz que, apesar de viva, no se sente s. Temmuitos amigos, sempre tem um de seus filhos com ela e uma vez por semana todos osseus filhos se renem em seu quarto. D. Maria tem 75 anos e diz que no sai muito porsua opo prpria, mas sente-se perfeitamente amparada pela famlia, com a qual podecontar em qualquer situao: Se faltar dinheiro, s falar. No passo falta de nada. Nadoena, eles me acodem. Em festas, sou a primeira a ser convidada. O papel da famlia tambm aqui apontado como fundamental, mas as associaes comunitrias ou religi-osas tm igualmente um papel muito importante.

    Em vrios relatos, possvel identificar uma busca ativa de redes de solidarieda-de extrafamiliares. D. Ana afirma que quem mora sozinha tem que agradar as pessoas.Ela diz no se esquecer disso e ter sempre gente por perto. A cada dia da semana, elaparticipa de uma atividade comunitria. V muitas pessoas e tem muitos amigos. Diz quesua vida cheia e que se sente feliz. A rotina de D. Vilma tambm era assim, mas seusproblemas de sade vieram modific-la: Ultimamente no posso andar. No sirvo paraficar em qualquer lugar. Ento eu fico mais em casa. A vida de D. Aparecida tambmmudou bastante depois que teve um derrame e suas idas igreja foram interrompidas.De maneira geral, a participao nos grupos de terceira idade ou outras associaescomunitrias vista como um verdadeiro remdio contra o isolamento, mas paraparticipar preciso ter sade.

    Analisando a relao entre projeto inicial e situao atual, possvel enquadrar-mos o conjunto de histrias de vida em trs subgrupos. Em um primeiro grupo, o projetoinicial foi perfeitamente realizado: Eu sonhava ter uma casa com um quintalzinho paraplantar. Com toda a luta, com todo o sofrimento, eu hoje tenho o que sonhei. Em umsegundo grupo, a situao atual contradiz o projeto inicial: A nica coisa que euqueria era casar e ter filhos. Hoje eu sou solteira, mas minha vida boa. E em umterceiro grupo, o projeto inicial foi totalmente modificado: Meu ideal era estudar...Meus projetos foram modificados. Casei e logo comecei a criar famlia.

    Entretanto, no possvel estabelecer uma correlao precisa entre qualquer umdos padres (realizao, contradio e modificao) e uma avaliao mais ou menospositiva da prpria vida. Parece ser mais na capacidade de superar eventos dolorosos,redefinir prioridades e integrar mudanas do que no alcance de uma meta preestabelecidaque se fundamenta uma avaliao positiva. No incomum, mesmo nos casos em queh contradio entre o projeto inicial e a situao atual, que as mulheres bambuiensesdefinam a terceira idade como a melhor fase de suas vidas.

    A anlise dessas histrias deixa claro que existe uma relao extremamente com-plexa entre os vrios nveis de problemas identificados pelas mulheres idosas e asestratgias por elas desenvolvidas para enfrent-los. Nos exemplos citados, fica claroque um problema de sade pode ser exacerbado ou minimizado pela inexistncia ouexistncia de suporte familiar ou comunitrio, ou que a situao financeira pode exacer-bar ou aliviar as conseqncias de um problema de sade. Assim, parece ser constitutivada prpria definio de problema a existncia ou no de recursos para solucion-lo.

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    CONCLUSO

    A anlise do conjunto de entrevistas realizadas aponta para uma diferenamarcante entre o discurso dos informantes-chave sobre a condio de vida dos idososde Bambu e o discurso das mulheres bambuienses sobre suas prprias vidas. Para agrande maioria dos informantes-chave, ser velho significa ser s, viver precariamente,ser intil, dependente, desamparado, marginalizado e doente. Nenhuma das mulheresbambuienses se reconhece nesse discurso. O conjunto de suas histrias de vida mos-tra, ao contrrio, que perdas e limitaes existem, mas que isto no especfico davelhice e que, alm disso, o impacto real de tais perdas pode ser mediado por diferenteselementos do contexto.

    A confrontao entre os dois tipos de dados analisados ope de maneira radicala definio externa e negativa do envelhecimento que dada pelos informantes-chavee a maneira pela qual as mulheres idosas de Bambu tentam atribuir significado a esteperodo de suas vidas. Tambm fica evidente a oposio entre o carter homogeneizadorque marca o discurso dos informantes e a heterogeneidade de experincias que carac-teriza as histrias de vida.

    Corin (1985) explicita claramente a relevncia dessa situao, chamando a aten-o para a conjugao entre parmetros externos (socais e culturais) e internos naconstruo de uma relao individual com o envelhecimento. Assim, uma definiocultural de velhice descrita em termos negativos (perda, falta do que valorizado soci-almente) imporia do exterior uma certa marginalizao s pessoas idosas. Segundo aautora, seria igualmente a partir dessa idia de perda (de papis sociais, de capacidadesintelectuais) que se estruturariam os programas destinados aos idosos. Gognalons-Caillard (1979) sugere que essa acentuao da viso deficitria do envelhecimento, quepredomina no Ocidente, estaria ligada maneira pela qual a velhice se situa nacontracorrente de uma sociedade centrada na produo, no rendimento, na juventudee no dinamismo.

    Nos ltimos anos, uma perspectiva crtica e, sobretudo, a adoo de uma abor-dagem holstica do envelhecimento favoreceram a emergncia de um consenso sobre anecessidade de quebrar preconceitos (Veras, 1997), rever esteretipos (Debert,1999), abandonar pressupostos (SantAnna, 1997) ou, mais precisamente ainda,desconstruir a velhice (Guedes, 1999). Nesse contexto, passa-se a interrogar a atitudealarmista e seu fundamento bsico: uma viso negativa e homogeneizadora do envelhe-cimento. Surge, ento, em torno da noo de terceira idade, um movimento de transfor-mao de representaes e prticas relativas velhice e ao envelhecimento. E, certa-mente, sero as iniciativas se inserindo nesse movimento que contribuiro para umatransformao da realidade de todos os dias e, com ela, das representaes da velhicee do envelhecimento.

    Entretanto, Debert (1999) chama a ateno para os perigos inerentes exacerba-o desta tendncia contempornea e seu papel nos processos de reprivatizao davelhice. Para a autora, a idia de que a eterna juventude um bem que pode ser conquis-tado e a base de algumas iniciativas e prticas destinadas aos idosos que negam a

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    ENVELHECIMENTO E SADE

    velhice, a doena e a morte, transformando-as em responsabilidade individual. Segun-do ela, a velhice no deve ser dissociada da doena e da morte. As histrias de vidaaqui analisadas tambm apontam nesta direo: no adianta negar, o importante inte-grar todos os recursos disponveis (individuais e coletivos) em um processo no qualcompensao pela incapacidade, redefinio de prioridades e adaptao situaopermitam aos idosos continuar, mesmo quando tm graves problemas de sade.

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    22222Envelhecimento e Sentimento do Corpo

    Alda Britto da Motta

    INTRODUO

    Provavelmente, a maior parte dos estudos sobre o envelhecimento e a velhice,pelo menos no Brasil, refere-se ao campo da sade e reas correlatas. Ao mesmo tempo,a impresso que tenho de que se fala ainda pouco sobre processos testados, resulta-dos de pesquisa, e no se chega a um nvel suficiente de concretude, nem se alcana ongulo de conexo com os envelhecentes. A sensao de encontrar neles corposclassificatoriamente naturais, ao mesmo tempo simbolicamente descorporificados emudos. Certamente por isso, a promessa de algo novo a sensao que me proporcionauma oficina de antropologia, sade e envelhecimento.

    Que posso oferecer nela? Reflexes resultantes de estudos e pesquisas, empreen-didos nos ltimos seis anos, sobre esse heterogneo segmento social que so os idosos.Teoricamente, essa heterogeneidade remete necessariamente a uma definio de catego-rias de anlise mais determinantes e elucidativas nos sistemas de relaes sociais gnero, idade/gerao e classe social em suas especificidades e tambm mtuas articu-laes. H, ainda, outras que remetem diretamente ao mbito dos modos de vida, interes-se central nos projetos, tais como vivncias, experincias e representaes.

    No que concerne metodologia, trabalhei em anos anteriores na documentaoe na anlise das atividades, em programas ou grupos de convivncia, de idososjovens (at 75 anos), de ambos os sexos e diferentes classes sociais, em Salvador, comateno tanto aos modos de vida das pessoas como s propostas de organizao dosgrupos e forma como os idosos se situam neles.

    Foram quatro diferentes tipos de grupos: trs organizados e um altamente infor-mal. Um congregando pessoas de camadas mdias e altas da sociedade; os outrosreunindo idosos das classes populares.

    Esses grupos, em suas atividades e pausas entre elas, tambm constituram ofoco de observao direta, participante quando houve a possibilidade, com registrosem dirio de campo, alm de longas entrevistas individuais feitas nos locais dos encon-tros, em nmero prximo de cem.

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    ANTROPOLOGIA, SADE E ENVELHECIMENTO

    No momento, em outro projeto, acompanho, num movimento exploratrio, osmais velhos, com idades em geral muito superiores a 80 agora individualmente, emsuas casas, onde a observao e as entrevistas esto sendo feitas. Homens e mulheresde diversos estratos sociais. O trabalho ampliou-se no segundo semestre de 2001, parapermitir uma base comparativa entre a condio social e existencial dos mais jovens ea dos de idade mais avanada e, se possvel, quebrar um pouco do mistrio que cerca osmuito velhos.

    VELHICE, NATUREZA E CULTURA

    Da mesma forma como sempre as mulheres foram ligadas natureza, comoforma de dominao e controle e toda a fase inicial do feminismo dos anos