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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA AONDE QUER QUE EU VÁ TE LEVO COMIGO: DO LUTO PARA A LUTA DE MÃES DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DESAPARECIDOS Raquel Sanches Slusarski Martins TIA: 3085253-6 Disciplina: Trabalho de Graduação Interdisciplinar Orientador: Prof º. Dr. Marcelo Moreira Neumann São Paulo 2012

Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

AONDE QUER QUE EU VÁ TE LEVO COMIGO: DO LUTO PARA

A LUTA DE MÃES DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DESAPARECIDOS

Raquel Sanches Slusarski Martins TIA: 3085253-6

Disciplina: Trabalho de Graduação Interdisciplinar

Orientador: Prof º. Dr. Marcelo Moreira Neumann

São Paulo

2012

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Raquel Sanches Slusarski Martins

AONDE QUER QUE EU VÁ TE LEVO COMIGO: DO LUTO PARA

A LUTA DE MÃES DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DESAPARECIDOS

Trabalho apresentado como requisito parcial

para a obtenção de avaliação da disciplina

Trabalho de Graduação Interdisciplinar II,

da Universidade Presbiteriana Mackenzie,

Centro de Ciências Biológicas e da Saúde,

curso Psicologia.

Orientador: Prof º. Dr. Marcelo Moreira Neumann.

São Paulo

2012

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Dedico este trabalho a todos os meus familiares e

amigos que compreenderam quando precisei abdicar de

momentos em que poderíamos estar juntos, ao meu

Orientador Marcelo que é um excelente profissional e

por suas ideias e/ou sugestões terem sido fundamentais

e aqueles que contribuíram efetivamente para a

consecução deste.

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RESUMO

A presente pesquisa se propôs a trazer à tona as formas e as concepções do

desaparecimento de crianças e adolescentes, além de compreender quais as

consequências que tal acontecimento suscita na vida das famílias e as possíveis

similaridades do luto destas mães com o vivenciado por mães que de fato perderam seus

filhos a partir de sua constituição psicológica, bem como verificar qual a relação entre

os termos luto e luta, contribuindo assim, para a expansão dos estudos relacionados ao

tema na literatura.

O termo Desaparecido é designado para casos em que uma pessoa afastou-se de

um determinado ambiente de convívio familiar ou de algum grupo de referência

emocional-afetiva e que não comunicou sua vontade de partir do lugar onde estava e

não retornou mais a este, sem que houvesse razão aparente, desaparecendo sem deixar

indícios. Diante de perdas o sentimento de luto emerge como uma reação prevista,

sendo um processo único, que faz com que o sujeito procure os sentidos seja da perda,

do adoecimento ou da morte de um ente querido ou de alguém com o qual mantêm

relações de proximidade.

Tal pesquisa contou com a colaboração de cinco mães que têm seus filhos

desaparecidos e duas que perderam efetivamente seus filhos em uma entrevista semi-

estruturada e audiogravada após assinarem o Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido composta por um questionário com temas relacionados à infância,

adolescência e vida adulta.

Palavras Chaves: Desaparecimento, Crianças e Adolescentes, Mãe, Luto, Luta.

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SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................................................ 6

2. Referencial Teórico ..................................................................................................9

2.1. Desaparecido e Desaparecido Civil .........................................................................9

2.2. As Formas e Concepções de Desaparecido .......................................................... 13

2.3. Influência da Mídia ............................................................................................... 19

2.4. Luto ...................................................................................................................... 21

2.5. Luto e Melancolia ................................................................................................ 31

3. Justificativa ............................................................................................................38

4. Objetivos ................................................................................................................ 38

4.1. Objetivo Geral ...................................................................................................... 38

4.2.Objetivo Específico ............................................................................................... 38

5. Método .................................................................................................................... 39

5.1. Tipo e Delineamento de Pesquisa ........................................................................ 39

5.2. Amostra ................................................................................................................ 39

5.3. Instrumentos ..........................................................................................................39

5.4. Procedimentos ...................................................................................................... 40

5.5. Considerações éticas ..............................................................................................40

5.6. Análise dos Dados ................................................................................................ 41

6. Descrição das Entrevistas ...................................................................................... 42

7. Resultados e Discussão dos Dados Obtidos .......................................................... 43

8. Considerações Finais ............................................................................................. 76

9. Referências Bibliográficas .....................................................................................78

10. Anexos ...................................................................................................................81

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1. INTRODUÇÃO

O termo Desaparecido geralmente é definido pela ideia de “ato ou efeito de

desaparecer” ou como “ato ou efeito de deixar de ser visto”. Além disso, os dicionários

ainda trazem a noção jurídica de desaparecimento que é entendido como o ato de

desaparecimento de um indivíduo de seu domicílio. Tal noção, liga-se a ideia de que no

ato do desaparecimento, não houve um procurador ou representante legal para

administrar os bens (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, os relatos noticiados sempre referem-se a possíveis causas externas

que recaem sobre o indivíduo tais como: um assalto, um homicídio, dentre outros. Há

ainda diversos sinônimos de desaparecer que remetem a situação, mas se reportando

sempre ao indivíduo como sujeito do ato do desaparecimento, assim, o desaparecer é

definido da seguinte maneira: ocultar-se, sumir, esconder-se, ausentar-se, morrer,

perder-se, retirar-se (OLIVEIRA, 2007).

Desta forma, em meio a diferentes conotações acerca de tal fenômeno, no caso

de crianças e adolescentes desaparecidos, é válido salientar a importância do dever de

todos com relação à prevenção da ocorrência de ameaça ou violação dos direitos destes.

Assim, toda criança e adolescente têm e devem usufruir do direito à liberdade, ao

respeito e à dignidade enquanto pessoas humanas em processo de desenvolvimento e

como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis

(ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).

Portanto, considerando tais acepções, como assegura o Estatuto da Criança e do

Adolescente (2010), a investigação do desaparecimento de crianças ou adolescentes

deve ser feita imediatamente após ter sido realizada a notificação aos órgãos

competentes que deverão ficar incumbidos de dar prosseguimento às medidas

necessárias.

A psicologia enquanto uma ciência que realiza um trabalho com seres humanos

e suas vidas, consequentemente também se depara com a morte. A morte é entendida de

acordo com o desenvolvimento humano, visto que desde a mais tenra infância as

pessoas entram em contato com perdas, entretanto, o significado da morte só é

compreendido de fato a partir da adolescência (HOHENDORFF & MELLO, 2009).

Na fase adulta, tal situação é vista como algo passível de ocorrer, mas é na

velhice que sua probabilidade parece ser mais aceita, pois tal etapa é considerada como

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a última no ciclo do desenvolvimento humano. Além das peculiaridades do

desenvolvimento humano, a cultura e as perdas vivenciadas pelas pessoas, favorecem a

representação acerca da finitude humana. Embora a morte seja considerada como

natural, universal e inevitável, o homem não é capaz de imaginar a sua própria morte, o

que faz com que na sociedade a maioria das pessoas passem a evitá-la. Desta maneira,

há uma falta de preparo para lidar e/ou aceitar a finitude humana (HOHENDORFF &

MELLO, 2009).

A morte por ser um acontecimento que abarca o desenvolvimento e está presente

no cotidiano de todos, contempla um contexto sócio histórico de negação. Isto ocorre

em virtude da existência de diversos motivos para tal negação, haja vista que com o

advento de novos conhecimentos e técnicas obtidas, a medicina visa enganar a morte,

atribuindo este fenômeno como sendo algo natural especificamente na velhice. Na

Antiguidade, a morte era encarada com um certo romantismo, embora os mortos fossem

temidos e procurava-se mantê-los afastados. Já na Idade Média, o homem convivia com

a morte de maneira mais tranquila, sem muitos receios e as crianças podiam participar

de seus rituais (HOHENDORFF & MELLO, 2009).

No que diz respeito aos tempos modernos, a morte passou a ser negada e

entendida como a representação de fracasso e a suspensão dos projetos de vida

(HOHENDORFF & MELLO, 2009).

Quanto mais tardiamente a morte ocorre no ciclo de vida, menores são as

chances de estresse dos familiares e pessoas próximas, visto que a morte em uma idade

mais avançada é entendida como algo natural. Entretanto, mesmo que a morte de um

idoso seja encarada como parte integrante do ciclo de vida, não acontecerá isento de

algum grau de estresse. Inevitavelmente, a morte em qualquer fase do desenvolvimento

humano, é vivenciada com tristeza e estresse, isto se dá em parte pelo despreparo que

nossa sociedade tem para com tal assunto, requisitando, deste modo, que o profissional

que lide com este tema esteja preparado para auxiliar quem necessite (HOHENDORFF

& MELLO, 2009).

A morte precisa ser uma preocupação para a psicologia, mesmo que seja evitada

em nossa sociedade, pois esta negação não deve existir por parte do psicólogo

(KOVÁCS, 1989 apud HOHENDORFF & MELLO, 2009).

No que se refere à palavra luto, esta é compreendida como: sentimento de pesar

ou tristeza por morte de alguém; vestes escuras que a família e amigos da pessoa

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falecida usam durante certo tempo como sinal do seu pesar ou tristeza; tempo que dura

o uso dessas vestes (MICHAELIS, 2008).

Quando alguém está de luto, normalmente é devido à perda de um ente querido

por morte, entretanto, o enlutamento contempla diversas situações. Além disso, o luto

não está restrito a morte em si, mas também a intensidade do investimento afetivo que

se constitui entre o eu e o que é ou quem é perdido, e pode ser compreendido como uma

reação diante da ruptura dos vínculos estabelecidos. Desta forma, quanto maior o

vínculo e o investimento libidinal designado a um objeto, maior será a energia utilizada

para se desprender quando se perde este (OLIVEIRA, 2008).

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2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. DESAPARECIDO E DESAPARECIDO CIVIL

Segundo Oliveira (2007) o Desaparecido Civil pode ser designado como uma

pessoa que afastou-se de um determinado ambiente no qual mantinha convívio familiar

ou de algum grupo de referência emocional-afetiva e que não comunicou sua vontade de

partir do lugar onde estava e não retornou mais a este, sem que houvesse razão aparente,

desaparecendo sem deixar indícios. Desta forma, é preciso saber como proceder, visto

que surgem três problemas que devem ser desvelados, ou seja, saber o que ocorreu,

saber o que fazer e saber a quem procurar.

Neste sentido, buscar o auxílio de estruturas legais como a instituição policial,

por exemplo, pode ser a primeira alternativa, já que supõem-se que o desaparecimento

tenha sido em mediações de algum espaço público (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, recorrer aos serviços prestados pela polícia em casos em que há um

membro da família desaparecido, tem sido um grande entrave, haja vista que além da

ausência das investigações policiais, a família encontra-se desprovida de aparato

jurídico e psicológico que possam amenizar suas angustias e aflições. Isto pode ter

relação com a extensa rede de significados criados em torno do termo desaparecido

civil, o que tem inviabilizado e postergando a consolidação de um estatuto legal que

oriente a atuação estatal e normatize as atividades policias (OLIVEIRA, 2007).

Em virtude de o termo desaparecido apresentar diversas designações que fazem

menção a objetos, situações, pessoas, práticas desaparecidas, sendo o ato ou o efeito de

desaparecer ou deixar de ser visto, trás à tona a impossibilidade de encontrar uma única

palavra que possa definir o que é o desaparecido, visto que o seu significado possui

conotações diferentes para as pessoas em geral, para a justiça, para a família do

desaparecido, para a polícia e até mesmo para o próprio desaparecido quando

encontrado (FIGARO-GARCIA, 2010).

Isto pode ser observado também no site da Secretaria Especial dos Direitos

Humanos (SEDH) órgão vinculado à Presidência da República no qual há uma gama de

significados para o desaparecimento de crianças e adolescentes (NEUMANN, 2010).

Não obstante, em função da ausência de preparo policial e de legislação

exclusiva sobre o assunto, não é raro que em alguns casos os registros de ocorrências

não tenham sido bem atendidos pelas instâncias policias que solicitam ao familiar que

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retorne somente após o período de 24 ou 48 horas, sugerindo ainda que a própria família

realize as buscas ou alegando que isto não faz parte das atribuições da polícia

(OLIVEIRA, 2007).

O Boletim de Ocorrência (B.O.) é um registro de um fato que é narrado por uma

pessoa, seja na condição de vítima ou de testemunha de algo que levou a violação de

seus direitos enquanto cidadão ou a violação dos direitos de outro. Entretanto, se a

família realiza as buscas pelo seu filho (a) por conta própria e não efetua uma queixa

formal, então para a polícia ele não é considerado um desaparecido (FÍGARO-

GARCIA, 2010).

Isto faz com que diversas denúncias não sejam registradas nas delegacias, que

são mais comumente denominadas de subnotificação e referem-se a situações em que a

família não realiza o registro policial. Isto ocorre quando os agentes policiais se recusam

a fazer tal registro em função de não ser de sua incumbência, além de situações em que

a família excede 48 horas para fazer o registro esperando que a pessoa desaparecida

regresse em função da instrução policial que ratifica a necessidade de se aguardar em

torno de um dia ou mais (OLIVEIRA, 2007).

Desta forma, geralmente, quando se recorre aos serviços policiais para encontrar

uma pessoa desaparecida, há uma orientação de que o registro deve ser feito

posteriormente a 24 horas ou 48 horas do acontecimento. Entretanto, tal prática opõe-se

as próprias orientações confeccionadas por diversas instituições da polícia civil de uma

série de Estados no que diz respeito à precaução de violência contra crianças e

adolescentes. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estipula em

seu artigo 87, inciso IV que serão destinados a crianças e adolescentes a prestação de

serviços quanto à identificação em casos de desaparecimento de pessoas (OLIVEIRA,

2007).

No entanto, isto não aplica-se aos serviços policiais, visto que mesmo com a

implantação da lei ou com uma nova recomendação proferida, a cultura de 24 horas ou

48 horas permanece. E não são somente as crianças e adolescentes que mesmo com

apoio do ECA não usufruem deste respaldo, visto que no Estatuto está previsto um

direito, mas não quem irá garantir o cumprimento da lei e no caso dos adultos menos

ainda, pois segundo as agências estatais, a procura por pessoas com 18 anos ou mais,

só deverá proceder se o desaparecimento tiver ocorrido quando a pessoa ainda era

menor de idade, deste modo, não há legalmente (exceto em caso de flagrante de delito)

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um instrumento que assegure as investigações policiais, sendo, portanto, uma função da

família (OLIVEIRA, 2007).

Posteriormente, com o advento da Lei nº 11.259 que alterou o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA) sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da

Silva em 30 de dezembro de 2005, foi estipulado um novo aparato jurídico que propõe

a necessidade de investigação imediata em caso de desaparecimentos de crianças e

adolescentes:

§ 2o A investigação do desaparecimento de crianças ou adolescentes será

realizada imediatamente após notificação aos órgãos competentes, que deverão

comunicar o fato aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de

transporte interestaduais e internacionais, fornecendo-lhes todos os dados necessários

à identificação do desaparecido." (Brasil, Lei No. 11.259, de 30 de dezembro de 2005).

Entretanto, mesmo diante de inúmeros dados de agências nacionais e

internacionais de segurança salientar que os homicídios de crianças subtraídas

acontecem nas três primeiras horas e meia, o Estado não tem realizado exceto em alguns

poucos casos isolados, campanhas informativas a respeito da importância de os

familiares fazerem o registro de queixas de desaparecimento desde os primeiros

momentos (OLIVEIRA, 2007).

Em função disto, é possível se pensar na quantidade expressiva de

subnotificações do número de desaparecidos nas delegacias de policia no Brasil, sendo

necessário, portanto, que a orientação de 24 ou 48 horas deixe de ser uma prática

corriqueira para que seja possível averiguar precisamente qual o número exato de

pessoas que desaparecem no Brasil, mesmo que seja por algumas horas ou dias. Além

disso, não basta apenas o registro de um boletim de ocorrência, pois é preciso ir mais

além para que as investigações contemplem os motivos que possam ter propiciado o

desaparecimento (OLIVEIRA, 2007).

De acordo com Oliveira (2007) o desaparecido é toda pessoa que encontra-se em

local desconhecido e que sua condição de vida e morte é ignorada, se associando a esta

categoria todo e qualquer indivíduo, até mesmo quando se está ciente desde o primeiro

momento do que ocorreu, o que aplica-se ao caso de catástrofes, de fugitivos de

sistemas prisionais, dentre outros (OLIVEIRA, 2007).

Os desparecidos civis são, portanto, todos aqueles que são intimados

publicamente através de registros em boletins de ocorrência (BOs) caracterizados pelo

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desconhecimento (justificado pelos denunciantes) dos motivos precursores do

desaparecimento, da condição de vida ou morte da pessoa desaparecida, bem como de

seu paradeiro, o que diferencia “pessoas desaparecidas” de “desaparecido civil”. Além

disso, o adjetivo civil contempla uma diferença da nomenclatura referida pelo direito

brasileiro de desaparecido, que está norteado para suposição de morte.

Assim, o termo desaparecidos civis refere-se a quem sumiu sem deixar indícios

criando uma situação de incerteza, mas que não há qualquer suspeita formal em relação

as suas atividades, há a suposição de que esteja com vida, entretanto, em local incerto e

para tanto precisa ser localizado e assim, mais do que a transmissão de bens, busca-se

uma vida. Além disso, os desaparecidos civis também são aqueles cujo denunciante

relatou ter fugido do lar ou ter se perdido, mas em nenhuma destas situações há certeza

de que se tenha ocorrido um crime (OLIVEIRA, 2007).

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2.2. AS FORMAS E AS CONCEPÇÕES DE DESAPARECIMENTO

Dentre as definições legais de pessoas desaparecidas que encontravam-se em

vigor até 1991 no Brasil, referiam-se ao “ausente” e ao “desaparecido” com ênfase na

administração e transferência de bens, não sendo, portanto, necessária ações eficazes

para buscas. Além disso, no que se refere aos desaparecidos civis, outra Unidade da

Federação esboçou criar uma legislação específica norteando a investigação imediata do

desaparecido em casos de pessoas com até dezessete anos de idade. Considerando que

este foi um avanço importante para abordar a questão de desaparecidos, há a ainda

alguns empecilhos, tais como a dificuldade em universalizar a lei, transformando-a em

uma prática e habilitar os agentes públicos para sua posterior operacionalização

(OLIVEIRA, 2007).

O desaparecimento seja de crianças, adolescentes e adultos é visto comumente

dentro da perspectiva de questões provenientes de atritos, desentendimentos, conflitos

familiares e de violência doméstica, sendo por seguinte em função destes aspectos, tido

como de menor importância. No entanto, este é um acontecimento que desencadeia uma

série de mudanças expressivas em uma fração significativa das famílias brasileiras

(OLIVEIRA, 2007).

Além disso, há as mais variadas suposições que visam justificar o fenômeno do

desaparecimento e a que mais tem sido ressaltada, é a de que os desaparecimentos são

provenientes da violência urbana. Desde 1999, as possíveis causas atribuídas para os

desaparecimentos tem seguido a ideia de que a ênfase deve ser na família,

principalmente no que se refere à violência doméstica e intrafamiliar (GERALDES,

1999 apud OLIVEIRA, 2007).

E de acordo com dados publicados pelas secretarias de segurança, indica-se que

uma parte considerável dos desaparecidos são crianças e adolescentes que fugiram de

casa. Deste modo, a hipótese de violência urbana é refutada, pois ao se averiguar os

dados, observa-se que a maior parte dos desaparecidos são crianças e adolescentes e que

desaparecem por sua “própria vontade” sendo, portanto, uma fuga (OLIVEIRA, 2007).

Algumas das crianças e adolescentes que desaparecem, de certa forma

“comunicam” seu desaparecimento, visto que na grande maioria trata-se de fugas de

casa, e deste modo, fornecem indícios de que vão fugir ao deixarem cartas de despedida

ou até mesmo verbalizam tal intenção. Além disso, passam a apresentar

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comportamentos de fuga, pois começam a “desaparecer” de atividades corriqueiras

como a escola. Em alguns casos, a fuga de casa já ocorreu diversas vezes, a criança ou o

adolescente são localizados ou deixam ser encontrados, retornam para casa e após um

período de tempo, tornam a desaparecer novamente. Entretanto, os indícios de

desaparecimento podem ser diversos ou inexistir (FIGARO-GARCIA, 2007).

No que diz respeito aos casos de fuga, maus tratos e abuso sexual, estes ocorrem

mais frequentemente em casa e juntamente com a violência doméstica, está presente a

questão da homossexualidade não anunciada à família em virtude do medo, o fato de ser

garota de programa ou prostituta e desejar que a família não saiba, além de ser usuário

ou viciado em drogas, dentre outras situações (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, a fuga só é tida como um desaparecimento para a polícia quando a

família abre um Boletim de Ocorrência acerca de tal situação, visando o auxílio da

polícia para localizar o paradeiro de seu filho (FIGARO-GARCIA, 2007).

Contudo, mesmo com a predominância dos dados de que o foco deve ser a

família, não se pode desconsiderar a violência urbana, mas tornar uma ou outra

perspectiva como central, repercutirá de diferentes maneiras, visto que se a violência

urbana for tida como o foco, é necessário que se incentive mais as políticas de rondas

policiais, dispor de equipes de identificação e investigação, dentre outros aspectos. No

entanto, se a ênfase recai sobre a família, as ações são de outro âmbito, pois quando

observados os motivos mais assíduos de desaparecimentos, nota-se que as causas são

tanto internas, ou seja, de dentro de casa quanto externas provenientes da rua

(OLIVEIRA, 2007).

Além disso, os atos criminosos executados por terceiros que podem resultar em

violência física e/ou sexual e até a morte também podem propiciar o desaparecimento

de crianças e adolescentes (FIGARO-GARCIA, 2007).

Nos casos de pessoas que se “perderam” e de vítimas de acidentes, há uma

possível ausência de culpa da família ou de estranhos (sem contar os casos em que se

exista indícios de negligência). Já no sequestro, indica-se a presença de um fator

externo, que pode não ser praticado essencialmente por pessoas estranhas e/ou

desconhecidos. Desta forma, pode-se verificar que dentro da primeira perspectiva, a

família é apontada como a principal responsável pelos desaparecimentos, já na segunda

de que a maior parte dos desaparecimentos tem (ou tende a ter) relações permeadas por

conflitos interpessoais, a terceira trás a ideia de que dada a veracidade das hipóteses

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anteriormente assinaladas, consequentemente nos deparamos com uma estrutura

familiar marcada por relações de dominação patriarcal onde filhos e filhas e a esposa

estão subordinados ao homem, ou seja, ao pai (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, uma quarta evidência traz a tona que o desaparecimento é um

fenômeno que abrange diferentes causas, ou seja, é multicausal. Assim, no tocante ao

papel da família na produção de desaparecidos civis, estão as relações de violência e de

dominação. Quanto ao Estado, nota-se a necessidade da criação de instrumentos legais

que garantam os direitos essenciais de segurança. E do ponto de vista do desaparecido, é

possível considerar que a fuga seja uma solução para difíceis condições de vida no

ambiente doméstico (OLIVEIRA, 2007).

O desaparecimento dentro de uma perspectiva social, pode ser ocasionado em

função de uma ação praticada por terceiros ou em uma situação de desastre. Além disso,

pode ser proveniente de um sumiço que pode estar relacionado ao desejo de sumir ou a

presença de alguma doença ou ainda das peculiaridades de uma idade mais avançada

(NEUMANN, 2010).

Como o Estado deve intervir ou proceder nas decisões particulares de um sujeito

maior e responsável por seus atos, não está claro, mas aqueles que mantêm ou

mantiveram relação fazendo parte do circulo de vida do desaparecido devem usufruir do

direito de receber alguma informação. No caso de crianças e adolescentes,

juridicamente não se prevê que o sujeito menor de dezoito anos seja responsável (dentro

de algumas limitações) pelos seus atos (OLIVEIRA, 2007).

Além disso, a criança e o adolescente são considerados como uma pessoa em

situação peculiar de desenvolvimento dada sua imaturidade física e mental, por isso

necessitam de proteção, haja vista que na fase adulta estes aspectos já foram

desenvolvidos (exceto em alguns casos) e consequentemente são responsáveis por seus

atos (NEUMANN, 2010).

Nos dias atuais, é possível categorizar cinco situações de desaparecimentos,

dentre elas estão: o desaparecimento político ou forçado; o desaparecimento envolvendo

acidentes ou catástrofes; as fugas para escapar do sistema punitivo; as definições do

sistema jurídico brasileiro: o desaparecido e o ausente; os registros de desaparecimento

de pessoas em delegacias ou outras agências estatais e os desaparecidos com vínculos

familiares. O desaparecimento político tornou-se amplamente conhecido no decorrer da

história política do Brasil e da América Latina em função da influência de intelectuais e

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defensores dos direitos humanos que por meio da realização de alguns trabalhos de

autores tornaram público as perseguições que sofriam, as prisões e os repentinos

desaparecimentos de líderes e militantes políticos de oposição ao regime ditatorial em

vigor (OLIVEIRA, 2007).

Especificamente no Brasil, o período de regime militar foi de 1964 a 1985 e

levou a perseguição de diversas pessoas que foram presas, torturadas e assassinadas,

além disso, muitas morreram em decorrência de ações militares e paramilitares ou

tiveram destino incerto. O objetivo principal era todos que pudessem aviltar a

estabilidade do país, ou seja, políticos de oposição, intelectuais, jornalistas, sindicalistas

entre outros denominados de subversivos. Os políticos que eram aprisionados não

tinham um auxílio legal e quando mortos, eram enterrados em valas comuns ou em

locais incertos, o que tem reflexos até os dias de hoje, dada a inviabilidade de

localização e exatidão de seus paradeiros (OLIVEIRA, 2007).

Como tal situação acabou se disseminando para outros países da America

Latina, internacionalmente iniciou-se um vasto movimento a fim de asseverar as

garantias mínimas do livre exercício dos direitos políticos e a liberdade de pensamento,

dentre outras garantias legais já determinadas, sobretudo a Declaração Universal dos

Direitos Humanos. Desta forma, o Estado aparece como protagonista direto ou indireto

na produção dessas situações de desaparecimento. De modo geral, quando se refere a

desaparecidos políticos ou forçados deve-se atentar para a existência de uma

autorização expressa ou para a tolerância do Estado para com tal prática e a existência

de um conflito explicito ou implícito de natureza política, étnica, social ou religiosa

(OLIVEIRA, 2007).

Quanto ao desaparecimento em caso de eventos catastróficos ou acidentes, há o

envolvimento de pessoas que foram vítimas de alguma fatalidade e que não foram

encontradas, que provavelmente estão mortas ou ainda não foram identificadas em meio

aos corpos já resgatados. Além disso, nem sempre é possível afirmar exatamente quais

pessoas permaneciam no local no momento do acidente (OLIVEIRA, 2007).

Um dos termos bastante comum entre os jargões policiais é o foragido, que é

utilizado para referir-se a uma pessoa fugitiva que está em um local desconhecido ou

também a alguém que praticou determinado delito e fugiu para algum lugar cujo destino

é impreciso com o intuito de evitar o cumprimento de uma pena (OLIVEIRA, 2007).

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No âmbito jurídico, o desaparecido é visto como aquele que a morte é certa, cujo

o corpo ainda não foi encontrado, o que de certa maneira rompe com as esperanças das

famílias que procuram informações e/ou notícias de seus parentes ou conhecidos

desaparecidos, uma vez que para o senso comum o desaparecido é alguém que ainda

está vivo e portanto, busca-se apoio para encontrá-lo, pois pode estar em situação de

perigo (OLIVEIRA, 2007).

Já nos casos cuja morte não se pode afirmar e que não se tem nenhuma

informação acerca dos motivos do desaparecimento, em termos jurídicos denomina-se

de “ausente”. Contudo, o termo ausente não aplaca as angustias da família, pois alude a

ideia de que a pessoa encontra-se apenas “ausente”, ou seja, ameniza a situação de

desaparecimento de determinada pessoa, reduzindo os riscos de vida por não indicar

uma normatização clara de ação policial para o caso, além de não contemplar um

estatuto que abarque tal situação. Outro ponto a ser destacado, é que na concepção

jurídica, o ausente tem a função mais de viabilizar a transmissão patrimonial ao invés de

facilitar nas buscas pelo desaparecido, visto que a prioridade concentra-se na gerência

dos bens deixados pelo desaparecido (OLIVEIRA, 2007).

Durante a pesquisa realizada por Oliveira (2007) o autor destacou que

legalmente não é dever de nenhuma instituição policial (até janeiro de 2006) a

responsabilidade de buscar por desaparecidos. Fato é que no artigo 144, § 5º, da

Constituição Federal, está previsto que:

“As policias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos

corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a

execução de atividades de defesa civil” (Constituição Brasileira, 1988).

No que tange as investigações, estas deveriam ser de alçada da polícia civil que

tem como uma de suas funções: “exercer as funções de polícia judiciária e a apuração

de infrações penais” (OLIVEIRA, 2007).

Além disso, os desaparecimentos não são apenas resultados de ações criminosas,

o que faz desta forma, que não seja somente uma responsabilidade da polícia. A partir

de uma averiguação apurada das causas, é possível se deparar com subtipos de

desaparecimentos, dentre eles estão: Desaparecimento de Pessoas – para

desaparecimento enigmático (inexplicável - suspeita de homicídio, ocultação de

cadáver, etc) ou crianças perdidas; Afastamento/ Abandono do Convívio Familiar – para

casos de fuga de domicilio (auto-exposição); Evasão de Local de Custódia Legal – para

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menores fugidos de abrigos ou centros de reabilitação e convivência (auto-exposição);

Cooptação para práticas criminosas – para casos de aliciamento para o tráfico,

exploração sexual e tráfico de seres humanos (crime); Seqüestro (crime) e Vítimas de

Calamidades (NEUMANN, 2010).

Os casos denominados de auto-exposição, são aqueles que envolvem situações

de risco ou vulnerabilidade sendo, portanto, da alçada dos Conselhos Tutelares. Quanto

aos casos de sequestro, subtração de incapaz, cooptação para práticas criminosas e

desaparecimento enigmático, é de responsabilidade da Polícia Judiciária e para os casos

de vítimas de acidentes e /ou catástrofes fica incumbida a Polícia Civil (NEUMANN,

2010).

Desta forma, é preciso averiguar qual tipo de crime ocorreu e para tanto, é

preciso ter uma prova, porém, no caso de desaparecidos, estes não deixam vestígios ou

provas do que possa ter ocorrido. Mas para a lei, uma infração penal consequentemente

é uma ocorrência de um crime (OLIVEIRA, 2007).

Assim, visto que um crime é o rompimento da norma, deve-se pensar qual

norma é rompida pelo desaparecido (DURKHEIM, 1995 apud OLIVEIRA, 2007).

Desta situação decorre um problema, pois o desaparecido não cometeu um crime e não

foi vítima, não há um crime imediato, o que implica em não se ter uma válvula

propulsora para dar início às investigações. E, por conseguinte, se não há um crime, não

tem porque o Estado se mobilizar (OLIVEIRA, 2007).

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2.3. INFLUÊNCIA DA MÍDIA

No Congresso Nacional há em processo diversos projetos de lei que visam uma

intervenção mais eficaz para a situação de desparecidos civis, sendo que a grande

maioria procura garantir a divulgação de fotos de pessoas desaparecidas (em

embalagens de leite, bujões de gás, contracheques, embalagens de bebidas e cigarros

etc.). Já as outras propostas querem assegurar um tempo fixo nos meios de

comunicação mesmo com ou sem incentivos a fim de fazer uma divulgação. Quanto ao

papel da mídia, percebe-se que são divulgados poucos casos de desaparecimento, os que

obtiveram uma maior visibilidade e repercussão, foram os casos Carlinhos e Pedrinho,

que trouxeram a tona a ideia de que qualquer pessoa que tivesse o paradeiro

desconhecido, passaria a ser tida imediatamente como um desaparecido civil, mesmo

que as razões para tal acontecimento possa ser conhecida (OLIVEIRA, 2007).

Além disso, a mídia indiscutivelmente é formadora de opinião. Os veículos de

comunicação difundem seus ideais por meio de programas, notícias, entrevistas,

reportagens de cunho especial, filmes, dentre outros. Os meios de comunicação em

massa fazem parte da indústria cultural, que propaga uma visão específica de homem e

de mundo e acaba por influenciar o comportamento das pessoas, disseminando-o para a

sociedade como um todo (NEUMANN, 2010).

A indústria cultural estipula modas e formas de comportamento que rapidamente

são absorvidas, visto que por meio do consumo, promete a concretização de desejos e

felicidade, ocultando as incoerências sociais. Atualmente, as matérias de fins

jornalísticos são embasadas por uma determinada conclusão do fenômeno a ser tratado,

mas não trazem a tona este em si. Desta forma, transmitem uma interpretação

intermediada por interesses de determinados grupos que visam assegurar a posição que

possuem (NEUMANN, 2010).

Além disso, diversos noticiários definem o ocorrido estabelecendo uma ligação

com a causa. Entretanto, quando o caso não é casual, a reportagem é explorativa, pois

há uma tentativa de encontrar uma explicação para o caso. Desta forma, os problemas

sociais só adquirem conotação e impacto, quando são divulgados por grandes veículos

de comunicação (NEUMANN, 2010).

O desaparecimento de pessoas é abordado pelos meios de comunicação em

massa como o desaparecimento de qualquer outra coisa, haja vista que existe uma

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naturalização pelo fato de que é conhecimento de todos o que é um desaparecimento.

Assim, a notícia deve ser dada visando fomentar uma explicação coerente e lógica e

abrandar os sentimentos suscitados pelo acontecimento, ou ainda deve asseverar a

esperança de reencontrar o desaparecido (NEUMANN, 2010).

Quando o desaparecido é localizado, os recursos utilizados pelos meios de

comunicação dispõem da sensibilização despertada por reportagens subsequentes para

mobilizar a emoção de quem está acompanhando o desenrolar do caso. Assim, através

da divulgação e exploração atribuída ao acontecimento, cresce o número de interessados

que passam a acompanhar o caso (NEUMANN, 2010).

Deste modo, a interpretação fornecida pelos meios de comunicação ao

desaparecimento de pessoas, relaciona-se ao senso comum, cujas características são

subjetivas, pois expressa as opiniões e sentimentos particulares ou de grupos,

qualitativas, visto que cada um atribui um caráter aos acontecimentos ao seu modo,

heterogêneo, já que cada um interpreta o ocorrido tendo por base suas experiências e

generalizadoras, porque anexa opiniões e conceitos de coisas ou situações tidos como

similares e em função disto, acaba por estabelecer relações de causa e efeito (CHAUÍ,

2002 apud NEUMANN, 2010).

Page 21: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

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2.4. LUTO

As famílias não vivenciam somente o sentimento de perda de algum membro,

mas convivem também com o sentimento de abandono pela inexistência quase completa

de apoio do Estado bem como o sentimento de culpa, visto que muitos pais relatam

sentirem-se responsáveis pelo desaparecimento (OLIVEIRA, 2007).

Assim, diante da escassez de motivação para a busca, quem espera obter

informações do paradeiro do desaparecido pode começar a culpar-se pelo ocorrido. A

culpa sentida pelo indivíduo é proveniente da crença de que não estava fornecendo a

devida atenção ao membro que desapareceu, o que de alguma forma propiciou o

problema e que o fato de ter discutido ou insultado, colaborou para o desaparecimento.

Além disso, quando o desaparecido não é encontrado, cada dia sem a sua presença,

ratifica a culpa e a frustração (NEUMANN, 2010).

A culpa ainda pode estar ligada geralmente às expectativas sociais em torno dos

pais que devem assegurar a proteção de seus filhos contra todos os perigos que podem

ameaçá-los e, deste modo, sua possível morte equivale ao fiasco do exercício da função

parental (OLIVEIRA, 2008).

Isto porque a ausência do indivíduo desaparecido ocasiona diversos sentimentos

naqueles que mantêm com ele uma ligação afetiva, isto é suscitado preferencialmente

nos componentes da família. O desaparecimento culmina em uma incógnita para a

família e desemboca em uma lacuna que não é preenchida até que o desaparecido seja

encontrado (GATTÁS & FIGARO-GARCIA, 2007 apud NEUMANN, 2010).

O desaparecimento evoca sentimentos semelhantes em diferentes familiares,

visto que há uma situação de rompimento entre pessoas, que são expressos pela

saudade, o vazio e a falta do outro, a distância, a insegurança, o medo, o apego, o desejo

pelo outro, a recusa a mudança e ao esquecimento, o sofrimento e a esperança

(OLIVEIRA, 2007).

O sofrimento pela morte de um filho contempla o plano do insuperável,

entretanto, no caso de desaparecimento, não saber se o filho permanece vivo ou morto e

não ter a certeza se algum dia poderá ter notícias de seu paradeiro e posteriormente

encontrá-lo, pode provocar uma angústia infindável (FÍGARO-GARCIA, 2010).

Além disso, diante do desconhecimento do paradeiro do filho (a) e das condições

físicas em que este (a) encontra-se, como e quando irá retornar para sua casa, podem

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provocar efeitos psíquicos seja para os familiares quanto para o desaparecido após ser

localizado (FÍGARO-GARCIA, 2010).

No entanto, o regresso do filho (a) não refaz os anos passados de desalento e

desesperança, entre outros sentimentos desencadeados por sua ausência. A espera pelo

reaparecimento do filho é um fator comum para aqueles que vivenciam o

desaparecimento, ao longo do tempo a resignação pela falta do desaparecido acaba

tornando-se corriqueira (NEUMANN, 2010).

O sentimento suscitado pelo desaparecimento para alguns é muito similar ao

vivenciado no luto (NEUMANN, 2010). Além disso, o luto vivenciado por diversas

famílias de crianças e adolescentes desaparecidos parece ser aquele que mesmo sem a

presença de um corpo ainda mantêm a esperança de encontrar seus filhos (FIGARO-

GARCIA, 2010).

Deste modo, além de não contar com o apoio do Estado, a família ou os

conhecidos no que concerne o plano psíquico, defrontam-se na procura pelo

desaparecido com um paradoxo, ou seja, devem lidar tanto com as expectativas de que o

desaparecido esteja vivo, buscando informações acerca do paradeiro deste e ao mesmo

tempo lidar com o luto a fim de encontrar estabilidade psicológica (OLIVEIRA, 2007).

Entretanto, a diferença entre a morte de fato e um desaparecimento, reside no

corpo que permite propagar a materialidade de uma vida que acabou independente de

qual motivo seja. Já em um desaparecimento, a materialidade do sujeito se constitui por

meio de fotografias, de suas roupas deixadas, em objetos de uso pessoal, em seu quarto,

em seus brinquedos, ou seja, em todas as lembranças que a família persiste em manter

viva até que o contrário torne-se verdadeiro (GATTÁS & FIGARO-GARCIA, 2007).

Além disso, não é sempre que há uma solução para o desaparecimento e uma

redução do sofrimento, pois a lacuna permanece, aumentando quando há o contato com

os pertences do ente desaparecido. Os sentimentos e as fantasias presentes na morte e no

luto são vivenciados intensamente e de forma incessante pelos membros do

desaparecido. A não certificação de se o desaparecido está vivo ou morto, favorece a

esperança e sustenta a cada dia a fantasia de que seu retorno ainda é viável. E nos casos

de crianças e adolescentes desaparecidos, por exemplo, por simbolizarem uma nova

geração, asseguram a sucessão de sua família, mas na ocorrência de algo com estes, os

planos futuros da família são interrompidos (NEUMANN, 2010).

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23

A ausência de saúde e a perspectiva de morte podem mobilizar diversos

sentimentos, tais como a angústia, a insegurança, o temor, o arrependimento, a culpa, a

revolta, dentre outros. Diante da possibilidade de perdas expressivas, o sentimento de

luto emerge como uma reação prevista, sendo um processo único, que faz com que o

sujeito procure os sentidos seja da perda, do adoecimento ou da morte de um ente

querido ou de alguém com o qual mantêm relações de proximidade (KLUBLER-ROSS,

1989 apud SOUZA, et al, 2009) .

A perda bem como sua elaboração, são condições contínuas e intrínsecas do

percurso de desenvolvimento humano, que podem levar a transformações, fazendo parte

de diferentes períodos da vida, desde o desmame, na passagem da infância para a

adolescência, na vida adulta e na velhice até em transformações provenientes de

acontecimentos peculiares, como a perda de um ente querido, separações, mudanças de

casa, de cidade e mudanças no trabalho (KOVÁCS, 1992 apud SOUZA, et al, 2009) .

O processo de luto diz respeito à elaboração e resolução que pode ser advinda de

uma perda real ou fantasiosa, processo este pelo qual todas as pessoas atravessam em

algum momento de sua vida com maior ou menor intensidade, caracterizando-se como

um período de crise. O processo de luto pode desencadear uma crise, visto as possíveis

modificações na qualidade de vida e saúde das pessoas que vivenciam a perda, dentre as

quais estão os sentimentos de tristeza, isolamento e a presença de humor depressivo,

conjugados ao desinteresse, afastamento e apatia por atividades referentes ao trabalho,

ao lazer e às atividades corriqueiras. Entretanto, o contrário também é verdadeiro, pois

algumas pessoas passam a realizar suas atividades de modo hiperativo, se dedicando

ainda mais a estas, como uma forma de evitar e/ou adiar o contato com o sentimento de

dor (OBROMBERG, 2000 apud SOUZA, 2009).

Assim, o luto enquanto uma crise, suscita um desequilíbrio no que concerne a

quantidade de ajustamento necessária e os recursos que se tem de pronto disponíveis

para lidar com a situação. A perda torna necessário uma reorganização frente às

transformações que se instalam (OLIVEIRA, 2008).

Quando o indivíduo consegue elaborar o luto favoravelmente, passa a se deparar

com novos significados em relação à algumas questões de sua vida, já o contrário, ou

seja, a sua não elaboração, pode fazer com que surjam diversas complicações tanto

médicas quanto psicológicas (SOUZA, et al, 2009).

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Além disso, é um processo cuja incumbência é de adaptação a uma nova

realidade, o que não alude à ideia de aceitar uma doença crônica ou a perda de alguém

que se estima. No entanto, esta adaptação vai depender da história particular, familiar,

de fatores sociais e culturais, a habilidade de suportar frustrações, com o tipo de vínculo

formado com a pessoa que faleceu e com a circunstância da morte, que podem

influenciar na forma de como o indivíduo vivenciará o luto (SOUZA, et al, 2009).

Desta forma, mesmo que o luto possua algumas propriedades comuns e

universais, é preciso ter atenção para cada caso em específico, visto que cada situação

abrange uma singularidade. Assim, é possível que em alguns casos haja um desvio do

processo normal do luto, o que pode fazer com que o indivíduo vivencie a perda de

forma exacerbada e limitante, trazendo consequências e/ou prejudicar outros setores da

vida, tais como: a habilidade individual e os aspectos cognitivos, afetivos e sociais,

além do aparecimento de possíveis episódios de alterações físicas e psicológicas

(SOUZA, et al, 2009).

Deste modo, é possível pensar nas duas formas de internalização, ou seja,

introjeção e incorporação. A internalização se refere a algo que é oferecido pelo

ambiente, mas que não está o tempo inteiro disponível e é importante para compreender

como o indivíduo lida com a falta (ROUCHY & DESROCHE, 2005).

A introjeção é um processo no qual o indivíduo pode sustentar-se

narcisicamente, oferecendo a si mesmo a função psíquica anteriormente fornecida pelo

ambiente e isto é enriquecedor para o ego (ROUCHY & DESROCHE, 2005).

Já a incorporação, impede o processo de luto, levando a fantasia de que o

indivíduo está completo e de que irá recuperar o objeto perdido, a fim de suprir a falta.

Além disso, a incorporação compensa uma falta de autonomia, de algo que está ausente

no ambiente e é um mecanismo de defesa (ROUCHY & DESROCHE, 2005).

O processo de luto pode provocar uma série de reações nos planos intelectual:

déficit e memória e concentração, confusão, desorganização, intelectualização,

desorientação, negação, sensação de despersonalização; emocional: choque,

entorpecimento, raiva, culpa, alívio, depressão, irritabilidade, solidão, saudade,

descrença, tristeza, ansiedade, medo; físico: alterações de apetite, sono e peso,

inquietação, dispnéia, palpitação, perda de libido, choro, consumo de substâncias

psicotrópicas, álcool e fumo, “vazio” no estômago, “aperto” no peito, “nó na garganta”,

hipersensibilidade ao barulho, falta de ar, fraqueza muscular, falta de energia, boca seca,

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25

suscetibilidade à doenças, em especial às relacionadas à baixa imunidade; espiritual:

perda ou aumento na fé religiosa, questionamentos sobre fé, valores, Deus e social:

perda de identidade, isolamento, afastamento (FRANCO, 2002 apud OLIVEIRA,

2008).

Em função de atualmente na sociedade ocidental ser habitual negar os

sentimentos relacionados ao luto por morte, acaba tornando-se árduo para o homem

enfrentar as questões referentes à morte, essencialmente a condição de perda e os

sentimentos mobilizados. Nesta conjectura, a morte é a certificação da finitude humana

e o contato com esta, culminaria em um suposto fracasso diante da vida, o que, deste

modo, leva a necessidade de afastamento e também recusa em aceitá-la como um

fenômeno natural e previsto, que é transformado em uma catástrofe que deve ser evitada

a qualquer custo, ou então adiada (SOUZA, et al, 2009).

Além disso, quando a lei natural se inverte, como em casos da morte de um

filho, por exemplo, é tida como fora do tempo. O luto vivenciado pelos pais assume

dimensões muito intensas de sofrimento, visto que afeta o plano individual, a relação

com o parceiro (a), as relações familiar e social, pois os pais sentem-se como se uma

parte de si mesmos tivesse sido perdida. O luto mesmo dentro de seu percurso normal,

não indica que tal processo não seja doloroso ou que não necessite de esforço para se

adaptar as novas proporções que a vida assume por parte de cada um dos indivíduos

afetados, além disso, o núcleo familiar, também se depara com o impacto em seu

funcionamento e em sua identidade (BOLZE & CASTOLDI, 2005).

Geralmente, o luto enfrentado pelos pais e mães é o luto crônico. Mesmo que o

sofrimento tenda a diminuir com o passar do tempo, não há nada que interrompa a

ligação com o filho morto, desta forma, o enlutamento devido à morte de um filho, é

para sempre. Além disso, estágios específicos do desenvolvimento levam aos pais a

pensar que momento da vida a criança estaria vivenciando, se estivesse viva. Eventos

como: datas de aniversário, irmãos e amigos do filho falecido que se formam, casam,

continuam dando sequencia as etapas vitais e podem trazer à tona novamente

sentimentos vivenciados na época da perda e por isso, constitui um caráter de

cronificação (OLIVEIRA, 2008).

Assim, o suporte psicológico nestes casos de lutos crônicos é fundamental, visto

que pode evitar que os pais venham a desenvolver distúrbios sejam eles psicológicos ou

até psiquiátricos (BOLZE & CALTOLDI, 2005).

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26

A problemática do luto consiste na dificuldade e/ou relutância as mudanças que

ocorrem. Além disso, mesmo nas diferentes formas de se vivenciar o luto, não é raro

que não fique claro o que realmente foi perdido, em virtude da grande quantidade de

perdas secundárias, o que pode prejudicar ainda mais o processo de elaboração

(OLIVEIRA, 2008).

A adaptação vai depender dos recursos disponíveis pela família, entretanto, em

algumas situações é necessário uma intervenção psicológica, que pode ser de cunho do

aconselhamento ou psicoterapia. No aconselhamento, o trabalho realizado tem por

objetivo restabelecer o padrão de vida muito parecido ao existente antes da perda,

contando com os recursos psíquicos do enlutado e com o aparato da rede social na qual

o sujeito está inserido, como família e amigos (BOLZE & CASTOLDI, 2005).

Além disso, a família beneficia-se diante da oportunidade de expressar suas

angústias e tristezas, de certificar-se da normalidade de reações fisiológicas ao luto e de

retomar sua condição de vida e começar a pensar em novas direções (BOLZE &

CASTOLDI, 2005).

E é importante se destacar, que o tema referente à morte e o luto possui uma

ligação com o viver, além disso, não contempla somente a alçada de profissionais que

trabalham na área da saúde ou aquele que possui uma doença crônica, curável ou

incurável que acarreta a morte, visto que as perdas são acontecimentos significativos

que precisam abarcar uma problematização cuidadosa e contextualizada em sua

abordagem (SOUZA, et al, 2009).

Há diversos estudos que abordam a morte como tema central e dentre os autores

que se dedicaram a compreender as vicissitudes desta, a autora que mais se sobressai em

decorrência de suas contribuições, é Kübler-Ross que posteriormente aos seus anos de

prática profissional com pacientes oncológicos sem perspectivas de cura, denominou

cinco estágios que contemplam o processo de luto. Dentre eles estão: Negação e

Isolamento, Raiva, Barganha, Depressão e Aceitação (OLIVEIRA, 2008).

A negação e o isolamento caracterizam-se como mecanismos de defesa

temporários do ego contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e a duração

desses mecanismos variam, pois depende da forma de como a pessoa que sofre e as

outras pessoas de seu meio conseguem enfrentar a perda. A raiva é suscitada pela

impossibilidade de o ego manter a negação e o isolamento indefinidamente, além disso,

a raiva faz com que os relacionamentos tornem-se conflituosos e todo ambiente no qual

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o indivíduo está inserido, passa a ser hostilizado por ele. Paralelamente a raiva, podem

emergir sentimentos como revolta, inveja e ressentimento (OLIVEIRA, 2008).

Frequentemente a barganha é realizada com Deus, contemplando normalmente

um caráter de súplica. Neste estágio, há uma tentativa do enlutado abrandar seu

sofrimento por meio da fantasia de que poderia contornar a perda oferecendo algo de si

como pagamento. A depressão surge quando a pessoa dá-se conta da realidade da perda

e neste estágio, normalmente surgem sintomas de desânimo, desinteresse, apatia,

tristeza e choros frequentes (OLIVEIRA, 2008).

Por fim, na aceitação, a pessoa não sente mais desespero e nem nega a realidade

da perda e pode atribuir um novo significado a relação com o objeto perdido e

prosseguir adiante, reinvestindo a libido em futuras ou outras relações (OLIVEIRA,

2008).

Pelo fato de a perda não limitar-se somente a um indivíduo, mas também a

diversas pessoas ao seu redor, essencialmente o grupo familiar, estes estágios podem ser

vivenciados em diferentes momentos por cada membro. A morte no núcleo familiar é

um acontecimento que pode ocasionar ansiedade e temor, propiciando ainda o

surgimento de conflitos que até então encontravam-se ocultados (OLIVEIRA, 2008).

Além disso, cada componente da família esboçará uma reação de luto, variando

em função de alguns elementos que podem prejudicar ou impossibilitar a elaboração da

perda, tais como o tipo de relação entre o enlutado e o falecido (principalmente quando

era uma relação marcada por uma ambivalência ou de extrema dependência); o tipo de

morte (especialmente nos casos cuja morte é algo incerto, como nos casos de

desaparecimento, em que o enlutado não sabe se o ente querido está vivo ou morto e

onde encontra-se); perdas múltiplas e a falta de uma rede de apoio continente e segura

(em casos em que não se comenta sobre tal acontecimento). Os pais devem ser o foco

principal nas situações da morte de uma criança, pois além de uma perda na família,

sofrem com o rompimento da continuidade que espera-se da vida. Desta forma, os pais

podem evitar, abolir ou não demonstrar sentimentos de dor e/ou condolência por causa

de uma negação em excesso da morte, pois ao perder um filho, perdem uma parte de si

próprios, de seus sonhos e planos (OLIVEIRA, 2008).

A raiva também aparece em alguns casos, principalmente nos casos de mortes

inesperadas, onde não há como se despedir do ente querido. A denominada síndrome do

luto não antecipado, ocorre, pois, os pais enlutados nunca preveem a morte de um filho,

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28

o que faz com que a realização de rituais de despedidas e fechamentos não se

concretize. Assim, os sentimentos esperados e que são provocados em um luto normal

passam a ser postergados, tanto em relação ao tempo quanto à intensidade (OLIVEIRA,

2008).

Entretanto, é preciso considerar o vínculo que era mantido entre a criança e seus

pais e no caso do luto parental, é preciso atentar-se para fatores como: a natureza e

significado singulares do relacionamento; o papel e as características particulares da

criança dentro do sistema familiar; questões pendentes; se ocorreram perdas secundárias

(quantas e quais); formas de enfrentamento; personalidade e saúde mental dos pais;

assim como nível de maturidade e inteligência; idade; experiências anteriores de perda;

aparato social/cultural/religioso; circunstâncias da morte; nível sócio-econômico;

realização de funerais, abuso de substâncias e alterações físicas como sono e

alimentação por exemplo (OLIVEIRA, 2008).

As situações que nos remetem a pensar na morte, mesmo que esta não tenha

ocorrido de fato, ocasionam sentimentos de dor, ruptura, interrupção e tristeza

(OLIVEIRA, 2008). Uma das experiências que causam mais sofrimento ao ser humano

é a separação entre vivos, entituladas de “situações-limite”, em que a dor e o sofrimento

são assoladores. Além disso, estas situações podem ser mais receosas do que a morte

em si, por serem vivenciadas conscientemente em toda sua intensidade (KOVÁCS

1992, apud OLIVEIRA, 2008).

O desaparecimento físico e sem causas aparentes de um familiar, é uma

separação entre vivos, visto que mesmo que a ausência do ente querido seja concreta,

não há certificações definitivas sobre a perda, bem como nem a vida e nem a morte são

certas. Desta forma, o desaparecimento caracteriza-se como um rompimento sem aviso,

sem explicação, sem conclusão. Assim, diferentemente dos casos de morte, não há uma

comprovação acerca do que de fato tenha acontecido com o ente querido. Portanto, o

objeto de amor não está presente, mas não se sabe se voltará ou nunca mais será visto

(OLIVEIRA, 2008).

O trabalho realizado com pessoas enlutadas por causa de um ente desaparecido,

é muito parecido ao trabalho com pacientes enlutados pela morte de um ente querido,

entretanto, é um trabalho especificamente árduo em função da ausência de certezas e às

fantasias ligadas aos motivos do desaparecimento (OLIVEIRA, 2008).

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29

De acordo com Boss (2001) apud Oliveira (2008) as reações de luto são

propensas a serem mais intensas e podem levar a um quadro denominado de luto

ambíguo:

“...a perda é desconcertante e as pessoas se veem desorientadas e

paralisadas. Não sabem como se portar nessa situação. Não podem

solucionar o problema porque não sabem se este (o

desaparecimento) é definitivo ou temporário (...) a incerteza

impede que as pessoas se adaptem à ambiguidade de sua perda,

reorganizando os papéis e as normas de suas relações com os

outros queridos (...) se agarram à esperança de que as coisas

voltem a ser como eram antes (...) lhes são privados os rituais que

geralmente dão suporte a uma perda clara, tais como funerais

depois de uma morte na família.” (p.20)

Desta forma, o luto nos casos de desaparecimentos, pode emergir como uma

reação normal à circunstância dada a sua complexidade, visto que a solução para a

perda depende fundamentalmente de fatores externos daqueles que vivenciam. Além

disso, a desorganização diante do desaparecimento de um ente querido, abrange várias

esferas da vida dos enlutados (BOSS, 2001 apud OLIVEIRA, 2008).

Entretanto, como saliente Boss (2001) apud Oliveira (2008):

“Ao contrário da morte, uma perda ambígua pode nunca permitir

que a pessoa que sofre alcance o desapego necessário para

encerrar adequadamente seu luto (...) é sentida como uma perda,

mas não é de fato. As pessoas intercalam esperança e desespero,

depois retomam esperança e assim sucessivamente.” (p.23)

Assim, nos casos de desaparecimentos não há possibilidade de enlutar-se e

concomitantemente de não enlutar-se, visto que a dor vivenciada pelos enlutados

convive corriqueiramente com a fé e a esperança de reencontro. Para os familiares de

uma pessoa desaparecida, as emoções alternam-se entre a esperança e o desespero e em

alguns casos, esperam durante anos sem obter novas informações da localização do ente

desaparecido (OLIVEIRA, 2008).

A materialidade de um corpo e a escassez de informações tornam-se

complicadores para a saúde física, psíquica e social dos envolvidos. Em algumas

pesquisas realizadas sobre o tema, observou-se que os relacionamentos intrafamiliares

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30

passam a ser afetados, visto que os membros das famílias relatam perder a confiança em

seus companheiros e há a presença de raiva e hostilidade para com os demais familiares.

Quanto aos relacionamentos extrafamiliares, os sentimentos citados foram: vergonha,

embaraço, choque, tristeza e falta de apoio da rede social.

No caso de desaparecimento de uma criança, as crises vivenciadas por uma

família pode desorganizar todo o sistema familiar. Além disso, a auto-estima dos pais

está vinculada ao exercício dos papéis socialmente designados de pai e mãe, e diante do

desparecimento de um filho (a), estes possuem uma maior vulnerabilidade a

comentários e julgamentos de cunho moral. E não reconhecer o desaparecimento como

de fato uma perda, pode ser um dificultador para a família, especialmente para os pais,

pois somente o reconhecimento da perda e quando esta é integrada, que a pessoa pode

dar prosseguimento a sua vida (OLIVEIRA, 2008).

Os rituais têm o objetivo de assinalar a perda de alguém importante que

integrava parte da família e devem facilitar a expressão de sentimentos, auxiliar o

enlutado a dar sentido a perda e fazer com que o falecido seja lembrado. A

impossibilidade de realizar rituais pode inviabilizar o início do processo de elaboração

da perda e das mudanças essenciais posteriormente a esta (OLIVEIRA, 2008).

Page 31: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

31

2.5. LUTO E MELANCOLIA

Freud (2006) um dos primeiros estudiosos a introduzir o conceito de luto em

suas pesquisas, cita que os seres humanos possuem duas maneiras de lidar com a perda

de um objeto de amor, ou através do luto ou pela melancolia. No processo de luto,

devido à separação e o rompimento de vínculos, há uma forte resposta emocional, sendo

esta resposta em função de uma perda real de um objeto de amor, provido de um intenso

investimento libidinal. Na perda do objeto, aquele que se encontra de luto, deve retirar

gradualmente a libido de toda e qualquer ligação que mantinha com este.

Os sentimentos tais como angústia, solidão, medo e tristeza normalmente fazem

parte quando há a perda de algo ou de alguém e requerem um tempo de elaboração, haja

vista que culminam em privação (aquilo que se tinha não tem mais) e mudanças (perda

de controle frente ao ocorrido e da nova situação). Deste modo, os sentimentos de

segurança e previsibilidade da vida são abalados. Assim, pode-se concluir que o luto é

uma reação a ruptura de vínculos e isto é algo normal e esperado. De acordo com Parkes

(1998) apud Oliveira (2008):

“... a dor do luto é tanto parte da vida quanto a alegria de viver; é,

talvez, o preço que pagamos pelo amor, o preço do compromisso.”

(p.22).

O luto é um processo que caracteriza-se pela tristeza e a dor, que podem ser

manifestadas e dissipadas viabilizando por seguinte que o indivíduo desinvista a libido

do objeto de amor perdido, fazendo com que torne-se livre para desenvolver futuras

relações (FREUD, 2006).

Se algo ou alguém não existe mais, a libido deve ser retirada do objeto perdido para

ser re-investida, para que possa permitir uma re-significação da relação com o que ou

quem foi perdido (OLIVEIRA, 2008).

Entretanto, embora o luto provoque um afastamento de atitudes normais em relação

a vida, em hipótese alguma deve ser entendido como uma condição patológica e

submetê-lo a tratamento médico, visto que este processo possui um tempo determinado,

alternando de acordo com o grau de ligação afetiva que o indivíduo tinha com o objeto,

podendo ser superado. Além disso, pode ser danosa qualquer interferência para com ele

ou até mesmo ser inútil (FREUD, 2006).

Page 32: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

32

Os traços mentais que caracterizam o luto e o diferem da melancolia são um

profundo desânimo, o desinteresse pelo mundo externo, a ausência da capacidade de

amar e a interrupção das atividades em geral. Na situação de luto profundo, a reação que

se tem frente à perda de alguém que se ama, estas características citadas anteriormente

cessam, visto que o luto não invoca esse alguém, a capacidade de tomar um novo objeto

de amor (o que equivaleria a sua substituição) e o afastamento de toda atividade que não

esteja relacionada a pensamentos sobre ele (FREUD, 2006).

No que tange a melancolia, não há uma perda apenas do objeto, mas também a

de si mesmo, visto que o amor sobre o que ou quem se perdeu não pode ser desprezado

e o enlutado se identifica com este, incorporando-o. Desta forma, a pessoa agarra-se ao

objeto perdido a fim de negar a perda, visto que a separação implica na dor e isto faz

com que essa pessoa tenha uma disposição patológica (FREUD, 2006).

Assim, o enlutado continua conectado ao que foi perdido, o que prejudica ou

inviabiliza o estabelecimento de novas relações. Desta forma, a melancolia se constitui

através de uma impossibilidade de substituição do objeto de amor, já que isto seria o

mesmo que aceitar a perda de si mesmo (FREUD, 2006).

Isto porque na vivência melancólica, há uma impossibilidade de o indivíduo

enlutar-se pelo que foi perdido em virtude de estar indissociado de tal objeto muito

antes de sua perda. Desta forma, o problema proveniente da não-elaboração, é a

(con)fusão que se dá entre enlutado e objeto perdido, o que faz que, com o passar do

tempo, o eu do sobrevivente possa sucumbir (ZIMMERMAN, 2001 apud OLIVEIRA,

2008).

No processo de luto, o denominado “teste de realidade” mostra ao indivíduo que

o objeto não existe mais, sendo, portanto, indispensável à renúncia dos laços

estabelecidos com este, para que assim, com o passar do tempo, a energia libidinal

possa ser re-investida em um novo objeto. O trabalho de luto, visa admitir a perda

vivida na realidade, elaborar a dor provocada por esta, adaptar-se ao meio ambiente

onde o objeto perdido não está mais presente e recolocar-se emocionalmente em relação

a este, podendo dar prosseguimento à vida. Entretanto, as mudanças requerem tempo e

não são exclusivamente individuais, mas também sociais, fundamentalmente no âmbito

familiar, visto que todos são afetados pela perda (PARKES, 1998 apud OLIVEIRA,

2008).

Page 33: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

33

Tal processo não se dá na melancolia, visto que a pessoa permanece fixada ao

objeto perdido, negando a perda e não se permite formar novos vínculos (OLIVEIRA,

2008).

A melancolia, também pode ser entendida como uma reação frente à perda de

um objeto de amor, entretanto, existe uma perda de natureza mais ideal, visto que o

objeto talvez possa não ter de fato morrido, mas sim ser perdido enquanto objeto de

amor. Em outros casos, a pessoa sente justificada sustentar a crença de que uma perda

dessa espécie ocorreu, não pode, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo assim,

o indivíduo também não pode conscientemente se dar conta sobre o que perdeu. Isto

possivelmente se dê desta maneira, mesmo que o indivíduo esteja ciente da perda que

causou à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não

o que perdeu nesse alguém. Desta maneira, isto fornece o entendimento de que a

melancolia de algum modo está relacionada a uma perda objetal retirada da consciência,

em oposição ao luto, onde nada existe de inconsciente em relação à perda (FREUD,

2006).

No luto, a inibição e a perda de interesse são decorrentes do trabalho de luto pelo

ego absorvido, já na melancolia, a perda desconhecida levará a um trabalho interno

similar e será responsável pela inibição melancólica. A diferença reside no fato de que

a inibição do melancólico aparenta ser enigmática, pois não se pode ver o que é que está

sendo absorvido tão completamente. Além disso, o melancólico apresenta um outro

fator que está ausente no luto, ou seja, uma diminuição excessiva de sua auto-estima e

um empobrecimento de seu ego em grande escala (FREUD, 2006).

No luto o mundo é que torna-se pobre e vazio, já na melancolia, é o próprio ego.

O indivíduo apresenta seu ego como sendo desguarnecido de valor, incapaz de qualquer

realização e moralmente desprezível, ele se repreende e se envelhece, aguardando ser

expulso e punido. Além disso, humilha-se diante de todos e sente compaixão por seus

próprios parentes por estarem vinculados a alguém tão desprezível. Tal quadro de um

delírio de inferioridade (especialmente moral) é somado pela insônia e pela recusa em

se alimentar o que é psicologicamente notável por uma superação do instinto que

compele todo ser vivo a se apegar à vida (FREUD, 2006).

Além disso, não há correspondência entre o grau de autodegradação e sua real

justificação. No quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego em função de

motivos de ordem moral, é a característica mais marcante. É possível notar, que as auto-

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34

recriminações feitas pelo melancólico, são recriminações referentes a um objeto amado

que foram por assim dizer deslocadas desse objeto para o ego do próprio indivíduo.

Desta forma, são pessoas que passam sempre a impressão de que sentem-se

desconsideradas e que foram tratadas com grande injustiça. Isso só é viável, porque as

reações expressas em seu comportamento ainda derivam de uma constelação mental de

revolta que em meio a um determinado processo, passou para o estado de melancolia

(FREUD, 2006).

Tal processo, não é difícil de ser reconstruído, visto que em um dado momento,

há uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa especifica, e em função de

uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação

objetal foi destroçada. Deste modo, o resultado não foi à retirada da libido desse objeto

e um deslocamento da mesma para um novo, mas sim para algo diferente. Assim, a

catexia objetal mostra-se com pouco poder de resistência e foi liquidada, mas, a libido

livre não foi deslocada para outro objeto, pois foi retirada para o ego. Entretanto, foi

utilizada para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado (FREUD,

2006).

Assim, uma perda objetal levou a perda do ego e a um conflito entre o ego e a

pessoa amada, em uma separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto

alterado pela identificação. As pré-condições e os efeitos deste processo, podem

apresentar duas possibilidades, a primeira de que uma forte fixação no objeto amado

deve ter estado presente e a segunda opostamente a esta, de que a catexia objetal deve

ter tido pouco poder de resistência (FREUD, 2006).

Esta contradição leva a reflexão de que a escolha objetal é feita tendo uma base

narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se deparar com obstáculos, pode voltar para

o próprio narcisismo. A identificação narcisista com o objeto acaba tornando-se um

substituto da catexia erótica, em consequência, apesar do conflito com a pessoa amada,

não é necessário renunciar à relação amorosa (FREUD, 2006).

A substituição da identificação pelo amor objetal é um fundamental mecanismo

nas afecções narcisistas, visto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha

objetal, que é a primeira forma e uma forma expressa de maneira ambivalente pela qual

o ego escolhe um objeto. O ego visa incorporar a si esse objeto, e conforme a fase oral

e/ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se encontra, deseja fazer isso

devorando-o (FREUD, 2006).

Page 35: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

35

A melancolia, pega emprestado do luto alguns dos seus traços e do processo de

regressão desde a escolha objetal narcisista para o narcisismo. De um lado, é semelhante

ao luto, ou seja, uma reação à perda real de um objeto amado, mas acima disto, é

marcada por um determinante que encontra-se ausente no luto normal ou se estiver

presente, transforma o luto em patológico. A perda de um objeto de amor é uma

importante ocasião para que a ambivalência nas relações amorosas se torne efetiva e

manifesta (FREUD, 2006).

Deste modo, onde há uma probabilidade para a neurose obsessiva, o conflito

oriundo da ambivalência empresta um cunho patológico ao luto, obrigando-o a se

expressar sob a forma de auto-recriminação, ou seja, a própria pessoa enlutada é

culpada pela perda do objeto amado, que ela a desejou. Esses estados depressivos

decorrentes da morte de uma pessoa amada, mostra o que o conflito em função da

ambivalência pode conseguir por si mesmo quando também não há uma retração

regressiva da libido (FREUD, 2006).

Na melancolia, as ocasiões que originam a doença vão em sua grande maioria,

além da perda por morte, incluindo as situações de desconsideração, desprezo, ou

desapontamento que podem conduzir para a relação sentimentos opostos de amor e

ódio, ou ainda salientar uma ambivalência já existente. Esse conflito suscitado pela

ambivalência, que surge algumas vezes mais em decorrência de experiências reais,

outras vezes mais em função de fatores constitucionais, não deve ser desconsiderado

entre as pré- condições da melancolia. Caso o amor pelo objeto é um amor que não pode

ser renunciado, embora o próprio objeto deseje se refugiar na identificação narcisista,

então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, abusando-o, degradando-o e

fazendo-lhe sofrer e tirando a satisfação sádica de seu sofrimento. Na melancolia, a

autotortura é agradável e significa assim como no fenômeno correspondente na neurose

obsessiva, uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um

objeto, que voltam ao próprio eu do indivíduo (FREUD, 2006).

E pela via da autopunição, o indivíduo consegue se vingar do objeto original e

torturar o ente amado através de sua doença, a qual recorre com o propósito de evitar a

necessidade de manifestar abertamente sua hostilidade em relação a ele, visto que a

pessoa que ocasionou a desordem emocional do indivíduo e em que sua doença se

centraliza, geralmente está em seu ambiente imediato. A catexia erótica do melancólico

no que refere-se ao seu objeto padeceu deste modo, de uma dupla vicissitude: parte dela

Page 36: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

36

regressa à identificação e a outra sob a influência do conflito devido à ambivalência, foi

conduzida de volta à etapa de sadismo que encontra-se mais próxima do conflito

(FREUD, 2006).

E é exatamente esse sadismo que resolve o enigma da tendência ao suicídio, que

faz a melancolia ser tão interessante e tão perigosa. Imenso é o amor de si mesmo do

ego (selflove), que é possível identificar como sendo o estado primevo do qual provém

a vida instintual e tão extensa é a quantidade de libido narcisista que é liberada diante do

medo surgido de uma ameaça à vida, que não pode-se compreender como esse ego

permite sua própria destruição. Fato é que nenhum neurótico acolhe pensamentos de

suicídio que não fundamente-se em impulsos assassinos contra outros, que ele volta

contra si mesmo, entretanto, não é possível explicar quais forças interligam-se para

levar a diante essa intenção (FREUD, 2006).

A análise da melancolia demonstrou que o ego só pode se matar se em função do

retorno da catexia objetal, poder tratar a si mesmo como um objeto e se for capaz de

direcionar contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto e que se equipara a

reação original do ego para objetos do mundo externo. Tanto na paixão intensa quanto

no suicídio, o ego é dominado pelo objeto, mesmo que seja de formas totalmente

opostas (FREUD, 2006).

A melancolia, assim como o luto desaparece após um certo período de tempo,

ausentando-se de todo e qualquer vestígio de grandes alterações. No luto é necessário

tempo para que o domínio do teste de realidade seja feito, dada à realização deste

trabalho, o ego consegue libertar sua libido do objeto perdido. Supõe-se que na

melancolia o ego se ocupe com um trabalho análogo durante este período, entretanto,

em nenhum dos casos dispõe-se de qualquer compreensão interna (insight) da economia

do curso dos eventos (FREUD, 2006).

De acordo com Freud (2006), diversos estudiosos psicanalíticos compreendem

que o conteúdo da mania não difere em nada do da melancolia, visto que as duas

desordens lutam com o mesmo “complexo”, mas certamente, na melancolia o ego

sucumbe ao complexo, já na mania domina-o ou coloca-se de lado.

Caso o objeto não tenha uma importância muito grande para o ego, sua perda

não será o bastante para suscitar tanto o luto quanto a melancolia. Assim, a

característica de apartar pouco a pouco a libido, deve, portanto, ser designada

igualmente ao luto e à melancolia, sendo possivelmente apoiada pela mesma situação

Page 37: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

37

econômica e prestando aos mesmos propósitos em ambos. Entretanto, como já citado

anteriormente, a melancolia possui algo a mais que o luto normal, haja vista que a

relação com o objeto não é simples e é complicada pelo conflito em função de uma

ambivalência. Desta forma, as causas da melancolia abrangem um aparato muito maior

do que os do luto, na maior parte das vezes, ocasionado pela perda real do objeto, por

sua morte (FREUD, 2006).

Na melancolia há inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e

o amor degladiam-se, pois um quer separar a libido do objeto e o outro defender a

posição da libido contra o assédio. O lugar proeminente destas lutas isoladas pode ser

designado ao sistema Inconsciente, região dos traços de memórias de coisas. No luto

existem também esforços para separar a libido que são enviados a esse sistema, mas não

há nada que impeça que tais processos sigam o percurso normal através do Pré-

Consciente até a Consciência. Contudo, provavelmente em função de um certo número

de causas ou a uma combinação delas, está bloqueado para o trabalho da melancolia

(FREUD, 2006).

Assim como o luto obriga o ego a desistir do objeto, considerando-o morto e

oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver, do mesmo modo também cada luta

isolada da ambivalência extende-se a fixação da libido ao objeto, depreciando-o,

denegrindo-o, por assim dizer matando-o (FREUD, 2006).

Há a possibilidade de que o processo no Inconsciente tenha um fim, seja após a

fúria ter cessado ou após o objeto ter sido abandonado como desprovido de valor.

Porém, não se pode afirmar qual destas possibilidades é a regular ou a mais comum para

que a melancolia chegue a um fim e nem a influencia que este término exerce sobre o

futuro rumo do caso, mas o ego pode retirar daí a satisfação de saber que é o melhor dos

dois, que é superior ao objeto (FREUD, 2006).

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38

3. JUSTIFICATIVA

3.1. Justificativa científica

A partir do levantamento das bibliografias relacionadas ao assunto, foi encontrada

uma lacuna: a escassez de material e informação acerca do luto vivenciado por mães de

crianças e adolescentes desaparecidos e que abranjam uma correlação com o luto de

mães que perderam de fato seu(s) filho(s) seja em qualquer situação, visto que há ainda

ausência de dados fidedignos que possam informar quantas pessoas de fato encontram-

se desaparecidas atualmente no país. Desta forma, com este estudo, procura-se expandir

a discussão e os estudos relacionados ao desaparecimento e luto já presentes na

literatura.

3.2. Justificativa social

O luto seja ele vivenciado por quem possui uma materialidade que comprove a

morte de um ente querido ou por quem tal acontecimento ainda é uma incógnita, pode

ter grande repercussão na saúde física e psíquica, principalmente se não for fornecido o

devido aparato a quem necessita e no caso de famílias cujo um ente está desaparecido,

isto pode ter consequências ainda mais acentuadas.

Desta forma, o presente estudo poderá contribuir com maiores informações sobre as

características do luto e sobre como proceder em caso de desaparecimento de crianças e

adolescentes. Sendo assim, será possível divulgar mais o assunto para a comunidade, e

de alguma forma, contribuir para que um maior número de pessoas possa identificar o

problema e buscar por auxílio e/ou tratamentos.

4.OBJETIVOS

4.1. Objetivo Geral

Os objetivos principais desta pesquisa são: compreender como é elaborado o luto

de mães de crianças e adolescentes desaparecidos e comparar com o luto de mães que

perderam de fato seu(s) filho(s) a partir da constituição psicológica desses indivíduos,

além de analisar as consequências que este acontecimento ocasiona na vida das famílias.

4.2. Objetivos Específicos

O objetivo secundário é divulgar mais informações sobre os Desaparecidos de

forma geral, principalmente no que diz respeito às causas e consequências que tal

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39

fenômeno desencadeia, a fim de que se possa atuar preventivamente na Comunidade e,

por fim, contribuir com as políticas públicas.

5. MÉTODO

5.1. Tipo e delineamento de pesquisa

O presente estudo utilizará a abordagem qualitativa, que apresenta-se como um

método que nos permite ouvir, compreender e apreender as ideias dos participantes de

modo subjetivo e singular, propiciando ainda sua contextualização sócio-histórica.

Além disso, não é uma abordagem que tem como princípio interpretar, descrever e

comparar os discursos e conteúdos trazidos pelos participantes (BATISTA &

CAMPOS, 2007).

Outra peculiaridade, reside no fato de que fornece profundidade aos dados, os

detalhes e as experiências singulares e que esta abordagem não visa generalizar os

resultados para populações mais amplas, diferentemente dos estudos

quantitativos/estatísticos, que destacam-se por generalizações e predominâncias

estatísticas na análise dos fenômenos (SAMPIERI, COLLADO & LUCIO, 2006).

O delineamento da pesquisa será com enfoque exploratório, a fim de expandir os

estudos já existentes a respeito do tema e divulgar mais informações acerca deste

(SAMPIERI, COLLADO & LUCIO, 2006).

5.2. Amostra

A amostra será composta por aproximadamente cinco mães que perderam de

fato seu filho (a) em diferentes situações e cinco mães que tenham seu filho (a)

desaparecido e que não há nenhum indício que comprove sua morte.

5.3. Instrumentos

Será utilizado um roteiro de entrevista (ANEXO III) elaborado pela própria

pesquisadora que abarcará temas como: infância (como era a relação com os pais,

irmãos e amigos além de questões ligadas a escolaridade), adolescência (se namorou

durante este período, como era a relação com seus pais, amigos, se frequentava lugares

dos quais gostava e sobre a escola) e idade adulta (como é o relacionamento com o

parceiro, familiares, amigos, quais as expectativas atualmente e para o futuro). A

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40

pesquisa ainda contará com transcrição e análise das entrevistas, e considerações críticas

sobre o conteúdo.

5.4. Procedimentos

Será utilizada uma amostra por conveniência, que baseia-se em uma amostra não

representativa da população a ser estudada, ou seja, os participantes são escolhidos de

acordo com a disponibilidade de tempo e a facilidade de encontrar aqueles que aceitem

a participar e contribuir com o estudo.

A pesquisadora entrará em contato por telefone ou pessoalmente primeiramente

com as Instituições e/ou Associações que trabalhem com a população em foco, se

apresentará como aluna do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana

Mackenzie e explicará o objetivo da pesquisa, salientando que há a possibilidade do

entrevistado desistir a qualquer momento mesmo após concordar em participar como

colaborador. Desta forma, o Termo de Consentimento (ANEXO I) será entregue para

que o responsável destas Instituições assine e posteriormente indique os participantes. O

contato e a entrevista com os que se dispuserem a participar, será realizado na própria

instituição desde que neste local seja possível preservar a privacidade e o sigilo da

identidade dos participantes e onde serão esclarecidas todas as dúvidas suscitadas a

respeito da pesquisa, se autorizarem, assinarão o Termo de Consentimento livre e

Esclarecido (ANEXO II) e serão informados que a entrevista será audiogravada e

posteriormente serão transcritos os principais pontos das gravações. Neste documento é

garantido a autenticidade da concordância dos procedimentos que serão realizados e da

autorização do sujeito em participar desta pesquisa. Além disso, destaca que os dados

obtidos serão publicados unicamente com fins didáticos e que caso os sujeitos que

tenham concordado em participar queiram desistir, podem fazê-lo a qualquer momento

e solicitar que seus dados sejam retirados, pedido este que deve ser cumprido

obrigatoriamente pela pesquisadora. Este documento contará ainda com duas vias,

sendo que uma delas permanecerá com o participante e a outra com a pesquisadora.

A entrevista será individual e terá duração de aproximadamente uma hora, além

disso, caso seja necessário, poderá ser feita mais de uma entrevista.

5.5. Considerações Éticas

Page 41: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

41

Os participantes serão informados quanto aos objetivos e métodos da pesquisa e

fornecerão seu consentimento por escrito para participação no estudo, através da Carta

de Informação ao Sujeito de Pesquisa e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(ANEXO 2), conforme as determinações éticas que norteiam a pesquisa com seres

humanos. Além disso, o presente projeto atende à Resolução 196/96, do CNS do MS,

que garante aos participantes total sigilo e possibilidade de desistência a qualquer

momento, além do projeto ser submetido à avaliação e aprovação da Comissão Interna

de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade

Presbiteriana Mackenzie.

A pesquisa pode causar danos mínimos aos sujeitos, entretanto, caso o

participante sinta-se desconfortável ou emocionado ao falar sobre determinados temas

durante a entrevista e optar por desistir, caberá à pesquisadora a não dar

prosseguimento, e se for o caso, será indicado atendimento psicológico na Clínica da

Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Além disso, será solicitado que o participante entre em contato com o

pesquisador responsável, através do número disponível na Carta de Informação ao

Sujeito de Pesquisa.

5.6. Análise dos dados

A análise dos dados obtidos por meio do roteiro de entrevista, será feita com

base na denominada análise discursiva, visto que se trata de uma pesquisa exploratória,

cuja finalidade é de possibilitar expandir os estudos já existentes e o contato com temas

até então pouco conhecidos ou já abordados sob outras formas. Deste modo, será

utilizado o conteúdo dos discursos dos sujeitos de pesquisa para desvelar os significados

atribuídos por estes a determinadas questões, e assim serão extraídos os pontos

principais da fala destes, a fim de construir categorias que abranjam uma mesma

unidade de sentido, ou seja, serão agrupadas as informações que tenham o mesmo

conteúdo semântico, mas que podem ser expressas de formas diferenciadas e peculiares

por cada indivíduo (SAMPIERE, COLLADO & LUCIO, 2006). Assim, as categorias de

análise serão definidas a posteriori, e dependerão, portanto, dos conteúdos expressos

pelos participantes na fase da entrevista. Caso tenham interesse, as Instituições e os

participantes da pesquisa poderão ter acesso ao trabalho que será disponibilizado por

email.

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6. DESCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS

As entrevistas a princípio deveriam ser realizadas com cinco mães de crianças e

adolescentes desaparecidos e com cinco mães que de fato perderam seus filhos.

Entretanto, cabe-se ressaltar, que no contato com as Instituições que trabalham

especificamente com a questão do luto e perdas, não foi permitida a efetivação destas.

Assim, com o grupo de mães que perderam de fato seu filho (a) em diferentes situações,

foram feitas apenas duas entrevistas, uma das mães não possui vínculo com nenhuma

Instituição, porém faz terapia há cinco anos e meio e a outra mãe entrevistada frequenta

uma Instituição de Desaparecidos, pois tem um filho que desapareceu além de outro que

já faleceu. Além disso, é importante destacar, que uma das mães que tem o filho

desaparecido que tinha na época do acontecimento vinte e oito anos com quem foi

realizada uma das entrevistas e a esposa de um rapaz também desaparecido, foram

excluídas da amostra em função de não estarem dentro dos critérios desta.

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7. RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS

Com o intuito de comparar o luto de mães de crianças e adolescentes

desaparecidos com o luto de mães que de fato perderam seus filhos, observou-se a

presença de algumas questões que foram suscitadas a partir dos resultados obtidos.

Foi possível se deparar em diversos momentos, com a associação entre as

palavras luta e luto em artigos disponíveis na literatura e na própria fala das mães:

“Eu transformei a minha dor em uma luta, não só pela minha filha,

por milhares de mães que assim como eu também passam pelo

mesmo problema, o desaparecimento de seus filhos”. (I.E.S.S., está

com a filha desaparecida há 16 anos).

“Eu acho que ter um filho desaparecido é uma constante luta, você

luta cada dia pra uma sobrevivência, sua própria sobrevivência e

todo dia você tem que lutar pra não perder a esperança, porque se

não, se você perder a esperança, você perde todo o sentido da

vida”. (V.L.S.R., está com a filha desaparecida há 20 anos).

A palavra luta tem sua origem do latim lucta, cujo significado é luta, pugna,

esforço, originalmente um vocábulo desportivo, já o termo luto também originalmente

do latim Luctus, significa dor, pesar, aflição (ORIGEM DA PALAVRA, 2012). Desta

forma, aparentemente tal associação não possui nenhuma relação, mas propicia a

reflexão de que a dor vivenciada no luto seja por mães que têm seu filho desaparecido

ou por mães que perderam seus filhos, leva a um constante esforço, uma luta para

prosseguir a vida sem a presença de um ente querido.

Além disso, alguns estudos quantitativos sugerem que o tempo de duração do

luto, até seis meses é um processo de luto normal, e após esse período, o luto seria

patológico. Entretanto, há autores que salientam a qualidade da dor, as funções

psicológicas afetadas pelo luto em cada ser humano, além de que é válido destacar, que

o significado do termo luto, tem ocasionado controvérsias até os dias atuais. No idioma

inglês, para alguns autores, o luto deveria limitar-se a designar o luto patológico, sendo

o termo pesar para a reação tida como normal. Já outros acreditam que o termo luto

deveria se voltar àqueles processos que têm uma evolução favorável. Entretanto, o

termo pesar diz respeito apenas a sequencia de estados subjetivos que seguem a perda e

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acompanham o luto, desta forma, o luto, é todo o processo psíquico provocado pela

perda do objeto (FREITAS, 2000).

Neste sentido, considerando a possível relação entre duas palavras

aparentemente opostas, Freud (1901) salienta que o material linguístico comumente

utilizado em nossa língua materna parece estar amparado contra o esquecimento, mas

com frequência, sucumbe a uma outra desordem denominada como “lapso da fala”. A

perturbação que ocorre na fala se revela no lapso e pode ser causada primeiramente pela

influência de outro componente do mesmo dito, ou seja, por uma antecipação e/ou

perseveração ou ainda por uma outra formulação das ideias contemplada na frase ou no

contexto que se tem intenção de enunciar. A perturbação poderia também ser advinda de

um outro tipo, resultado de influências externas à palavra, frase ou contexto, e derivar

de elementos que não se pretende enunciar e de tal excitação só adquiri-se

conhecimento justamente por meio da própria perturbação.

Ambos os modos de formação de lapsos da fala, possuem em comum a

simultaneidade da excitação, já o que os diferencia, é situar a origem da perturbação

dentro ou fora da frase ou contexto. Entretanto, fica evidente que apenas no primeiro

caso há qualquer perspectiva de se extraírem dos fenômenos dos lapsos da fala

conclusões acerca de um mecanismo que vincule os sons e palavras entre si, de forma a

que eles influam reciprocamente em sua articulação. No que concerne à interferência de

influências externas à frase ou ao contexto do que é dito, é necessário saber quais são os

elementos interferentes, e posteriormente o mecanismo dessa perturbação pode

evidenciar as prováveis leis da formação da fala (FREUD, 1901).

Freud (1901) trás ainda a ideia de que a teoria da desigualdade da valência

psíquica dos sons só é válida para explicar as perturbações do som assim como as

antecipações e perseverações de sons. Outro aspecto destacado pelo autor, consiste no

fato de que a semelhança também pode provocar um desvio quando outra palavra

semelhante está um pouco abaixo do limiar da consciência, sem que se destinasse a ser

pronunciada, como ocorre na substituições, para tanto, é preciso no caso de o falante ser

outra pessoa, que se saiba com clareza tudo o que se passou nos pensamentos deste. O

mesmo ressalta o trabalho da condensação na formação do conteúdo manifesto nos

sonhos a partir dos pensamentos oníricos latentes, sendo assim, qualquer similaridade

entre dois elementos do material inconsciente, ou seja, entre as próprias coisas ou entre

Page 45: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

45

as representações da palavra, é utilizada como oportunidade para a criação de um

terceiro elemento, que é uma representação mista ou de compromisso.

Este terceiro elemento no conteúdo do sonho, representa ambos seus

componentes e é por se derivar dessa forma, que ele diversas vezes mostra algumas

características contraditórias, sendo assim, a formação de substituições e contaminações

que acontecem nos lapsos da fala, é o inicio do trabalho de condensação que encontra-se

em cuidadosa atividade na construção do sonho. É muito comum substituir entre si

palavras de sentido oposto, visto que elas já estão associadas em nossa consciência

linguística e encontram-se muito próximas uma das outras e é fácil trazer à tona a errada

por engano (FREUD, 1901).

Uma característica que não falta aos fenômenos que são correlatados, é a

atividade de certas influências psíquicas, antes de tudo, elas possuem um determinante

positivo sob a forma do fluxo desinibido de associações sonoras e associações de

palavras evocadas pelos sons falados. A isto acrescenta-se um fator negativo sob a

forma de anulação ou relaxamento dos efeitos inibidores da vontade sobre esse fluxo,

assim como da atenção, que se reafirma nesse ponto como função da vontade. Assim, o

fator positivo que favorece o lapso da fala (o fluxo desinibido de associações), bem

como o fator negativo (o relaxamento da atenção inibidora), tem invariavelmente um

efeito conjunto de forma que os dois fatores adquirem maneiras diferentes de encarar

um processo semelhante (FREUD, 1901).

Deste modo, com o relaxamento da atenção inibidora ou em virtude desse

relaxamento, o fluxo desinibido de associações entra em atividade. Além disso, para

Freud (1901), há uma influência perturbadora que é proveniente de algo externo ao

enunciado pretendido e tal elemento é um pensamento singular que permaneceu

inconsciente, que se revela no lapso da fala e frequentemente só pode ser trazida a

consciência por meio de uma análise minuciosa ou então é um motivo psíquico mais

geral que se volta contra o enunciado inteiro.

O grupo familiar é tido como um sistema que se inter-relaciona com sistemas

mais vastos da comunidade, da sociedade e da cultura. O luto afeta a família em

diversos aspectos, inclusive pelos canais de relação com esses sistemas. Desta forma,

para enfrentar a morte na família, é necessário uma reorganização do sistema familiar e,

assim, a construção de uma nova identidade, um novo parâmetro de equilíbrio (SILVA,

2006).

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46

Contudo, é preciso considerar que a perda de um filho é um tipo de luto singular,

deste modo, perder um filho exige dos pais um ajuste emocional para lidar com a

situação e com as mudanças no sistema familiar. Assim, outra vertente que se observou,

foi o fato de que algumas mães ao longo da busca pelo filho desaparecido, relataram que

no início o parceiro auxiliava na busca, fornecia apoio, e em alguns casos, com o passar

do tempo, seus casamentos foram desfeitos e o parceiro acabou constituindo outra

família, ou mesmo já separados, o parceiro não auxiliou mais, como nota-se em

algumas falas:

“Nós ficamos 23 anos casados e aí com o desaparecimento da F.,

sete anos depois nós nos separamos, porque o desaparecimento,

ele deixa várias sequelas dentro de um lar, e a separação é um dos

problemas que acontece em razão do desparecimento, porque você

fica tão envolvida em encontrar o seu filho, que de certa forma,

você acaba esquecendo do seu papel de esposa e você muitas vezes

é mal compreendida pelo seu companheiro e aí o que aconteceu

comigo foi, eu me envolvi tanto na busca pela minha filha e me

envolvi com outras mães e quando eu percebi meu marido estava

com outro relacionamento fora do casamento e eu não aceitei isso.

Ele casou novamente e a gente não mantêm contato, só restou eu e

minha filha. Ele se envolveu, só que o amor de pai é diferente do

amor de mãe, eu acredito que o homem ele é mais fraco, e ele não

consegue conviver com o tamanho do problema, e ele acaba

fugindo, foi o que aconteceu comigo, foi o que aconteceu com o pai

da minha filha.” (I.E.S.S. está com a filha desaparecida há 16

anos).

“Quando o H. desapareceu, nós éramos separados, eu era

separada do pai dele, mas ele tinha assim um amor enorme pelo

pai também e por isso que eu toquei no assunto do pai, dali a um,

dois, três meses ele estava me ajudando na busca, mas depois não,

ele também parou, mas né, é pai, eu falo que tem pai ali presente

em todos os momentos e infelizmente tem pais que são assim

mesmo, é uma semana, duas semanas, um mês, três meses e aí ele

segue a vida dele. É o que a maioria das pessoas falam, não, você

tem que seguir em frente, mas eles não sentem o que nós sentimos”.

(F.R.S. está com o filho desaparecido há 7 anos).

Page 47: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

47

Com relação as que perderam seu filho, embora não tenham se separado,

vivenciaram diversos conflitos ou notaram mudanças no relacionamento com o

parceiro:

“Meu relacionamento com meu marido é bom, mas ele se tornou

uma pessoa muito ciumenta, a sensação é que ele tem medo de me

perder e não pode me dividir com ninguém”. (R.R.M. perdeu seu

filho há 5 anos).

“Muita coisa, muita coisa mudou, meu marido mudou, no começo

ele ajudou depois não ajudou mais, arrumou outra, então, não foi

agradável e a moça tinha 15, 16 anos, pode uma coisa dessa? E

meu filho ainda não tinha sumido não quando começou essa

palhaçada, aliás meu filho que viu e me contou [O outro a senhora

já tinha perdido?] Ah sim, o outro eu perdi no ano de 75, ele tinha

15 anos, foi o primeiro filho, fazia muito tempo já, então não foi

fácil, foi uma época muito difícil.” (N.A.M., está com o filho

desaparecido há 12 anos e perdeu seu filho mais velho há 37anos).

Tais afirmações impulsionaram o questionamento sobre o por que se considera

que apenas as mães vivenciam o luto pela perda ou desaparecimento de um filho,

devendo se salientar, que vivemos em uma sociedade judaico cristã onde ainda é muito

presente a ideia de que é pelo olhar da mãe que os filhos são tidos como os mais bem

sucedidos e talentosos, que uma mãe sempre sabe melhor do que qualquer outra pessoa

do que seu filho precisa, gosta e o que o fará feliz, pois saiu dela e ninguém melhor para

conhecê-lo. Uma mãe pode tudo, esperar pelo filho acordada até de madrugada,

perguntar sobre os amigos e inclusive adentrar a privacidade do filho. Estes fatores

contemplam uma característica histórica, social e psicológica que já está sedimentada

em nossa sociedade e consequentemente intrínsecas ao ser humano (LAZAR, 2012).

A compreensão do luto materno exige a contextualização de alguns aspectos da

história do fenômeno da maternidade. O enaltecimento da imagem materna vincula-se a

Maria que concebeu sem pecado, ou seja, sem sexo, seu filho, desta forma, a ideia de

pureza, caridade, humildade e obediência está relacionada à imagem de maternidade

santificada, desvinculada da prática da sexualidade, condição da possibilidade de

redenção. A partir da história dos séculos XVII e XVIII, a notada indiferença materna,

justifica-se pelo alto índice de mortalidade infantil, visto que se a mãe se vinculasse

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48

muito intensamente ao bebê, sofreria bastante em função da possibilidade iminente de

perdê-lo pela mortalidade elevada, pelo abandono ou ainda infanticídio. Em meados do

século XVIII passou-se a ressaltar a importância da presença da mãe na educação e na

formação religiosa, e determinou-se o costume de educar a criança até os sete anos e,

que a partir dessa idade, a criança iria pertencer ao mundo dos adultos. Assim, o

conceito de infância e o respeito por esta, iniciaram-se apenas quando começou o

declínio da mortalidade infantil (FREITAS, 2000).

O amor materno não é apenas instintivo, pois é um sentimento suscetível a

imperfeições, que depende não só da história da mãe, mas também da humanidade. Ao

final do século XVIII, iniciou-se a exaltação do amor materno nos discursos filosófico,

médico e político, Rousseau, em 1872, lançou as principais ideias sobre a família

alicerçadas ao amor materno, valorizando o amor afetivo resultado do contato físico

entre mãe e filho. No século XIX, o movimento de culto a maternidade aumentou e as

condições de vida econômicas e políticas levaram o homem para fora de casa, tornando-

se a mulher a responsável pela educação, assim, sua função até então biológica, passou

a ser também social. Já no século XX, fundamentalmente sob a influência da

psicanálise, a mãe passou a ser responsabilizada pelas dificuldades e problemas que

surgem nos filhos (FREITAS, 2000).

Essa responsabilidade atribuiu à mãe, à mãe boa, o papel de personagem central

da família. A relação entre mãe e filho deve ser entendida como um sistema circular, em

constante fluxo dinâmico, pois as mensagens que partem de uma dessas pessoas

produzem efeitos na outra. Os indicativos de crescimento saudável do filho, ao longo de

seu desenvolvimento, aumentam a autoconfiança da mãe, que conquista o objetivo de

sua existência, haja vista que ao ajudar o filho a se desenvolver favoravelmente, estará

revivendo o seu próprio desenvolvimento, considerando que é possível reconstruir e

atingir novos níveis de integração. A definição dada à maternidade postula-se na

suprema capacidade criativa do ser humano, e deve ser entendida desde a fecundação

até quando encerra-se o desenvolvimento infantil. Após a infância, a maternidade

permanece e representa a transcendência por intermédio dos filhos, mas em um sentido

individual e pela nova geração, no sentido social. Designando à mãe o mais alto nível de

emoção altruísta, é preciso considerar que outros componentes emotivos da maternidade

são egoístas e narcisistas, tendo em vista que ter o próprio ego, um emissário do próprio

sangue, uma criatura que floresce como o fruto de uma árvore e garante a continuidade,

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49

é razão psicológica do desejo de ter um filho. Deste modo, os componentes afetivos,

egoístas e narcisistas são diretamente opostos à tendência maternal (FREITAS, 2000).

Apenas a mãe pode manter e compreender o sistema de expressão de seu filho,

pois para ela representa a conexão com a vida e a ampliação sucessiva de vínculos e de

sua capacidade afetiva sobre o mundo externo real. O vínculo da mãe com o filho, é

estabelecido por uma série de fatores, que pressupõe o ressurgimento das relações

primitivas da mulher com sua genitora. Deste modo, o vínculo materno com o filho não

é algo mecânico, mas sim uma entidade viva, além disso, a criança precisa certificar-se

que é objeto de orgulho e de prazer para a sua mãe e por outro lado, a mãe também

necessita sentir uma extensão de sua própria personalidade na de seu filho. O instinto e

o amor maternais, são aspectos diferentes do caráter maternal como um todo, visto que

o instinto tem origem químico-biológica, concomitantemente com a esfera psicológica.

Já no que se refere ao amor materno, este é a manifestação afetiva direta da relação

positiva com o filho e no qual a principal característica é a ternura. A agressão e

sensualidade provenientes da personalidade da mulher, são advindas e suprimidas pela

expressão afetiva central dos cuidados maternos (FREITAS, 2000).

O que permeia as relações emotivas da mãe com seu filho, depende de um certo

número de influências psicológicas indiretas, que se afastam do caráter primitivo dos

instintos. Além de que é preciso considerar, que a psique da mulher possui um aspecto

que é ausente na do sexo masculino, ou seja, o mundo psicológico da maternidade. Há

ainda a interação da sexualidade e da tendência maternal o que liga outras extremidades

tais como: atividade-passividade, agressão-masoquismo, feminilidade-masculinidade,

sendo assim, os conflitos assíduos entre essas forças influenciam-se continuamente e

prestam profundidade e riqueza psicológica à maternidade (FREITAS, 2000).

Entretanto, pode-se pensar que possivelmente os pais também vivenciam o luto

pela ausência ou perda de seus filhos, porém lidam com este de diferentes formas, isto

pode ser entendido nas seguintes falas:

“Meu marido nos primeiros momentos ficou tão transtornado, mas

homem você sabe que pensa diferente de mulher, e isso gerou

outros conflitos, porque na minha cabeça, eu achava que como eu,

ele tinha que abandonar tudo e viver em função da busca e não é

bem assim, alguém precisava trabalhar, não dá para abandonar

tudo e isso virou muitas vezes discussão em casa, muita briga, mas

a gente foi levando, quando meu marido percebeu que a coisa

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50

começou a ficar mais seria, que a gente não tinha nada concreto

sobre o desaparecimento dela, ele acabou ficando desmotivado,

então meu marido abandonou trabalho, ele passava dias e dias pra

rua em busca dela. Então ele se tornou assim uma pessoa que

perdeu totalmente a vontade de viver, sem expectativa de vida e

por um lado eu comecei de uma outra forma, a ir mais pra luta, ele

começou a regredir e aí começou a virar outro conflito porque eu

não aceitava ver ele naquela situação, porque ele sempre foi muito

ativo, ele sempre se arrumou muito, sempre foi muito vaidoso, de

repente ver ele naquela situação, começou também a me perturbar

muito e aí começava briga, briga, briga, briga e aí chegou um

determinado momento, mesmo assim eu aguentei bastante tempo,

chegou determinado ponto eu falei ai meu Deus vou seguir a vida

separada porque não vai dar não, embora a gente conviva, fizemos

uma separação, um divorcio que até hoje eu não entendi o por que

do divorcio porque eu acho que não era motivo pra tanto.”

(V.L.S.R. está com a filha desaparecida há 20 anos).

O mesmo se percebe em relação aos pais que perderam efetivamente seus filhos:

“Desde o ocorrido ele não procurou nenhum tipo de tratamento.

Não deixou eu me desfazer de nenhuma peça de roupa do nosso

filho. Ele tem mais ciúmes de mim hoje, minha terapeuta acredita

que seja por medo de me perder. Nosso relacionamento tem altos e

baixos, como qualquer relacionamento”. (R.R.M. perdeu o filho há

5 anos).

“Ele não gosta nem que fale no assunto [De ambos os casos?] Não

gosta, eu já não me importo entendeu, é uma realidade, não

adianta querer esconder, não adianta você querer esconder uma

coisa, ficar lá dentro de você, melhor você por pra fora entendeu,

mas ele não gosta, sabe o que acontece menina, é que quando você

fica muitos anos casada com a pessoa, fica difícil você separar, é

ruim porque é difícil, então fazer o que né, a gente convive, e eu

convivo normal como se não tivesse acontecido nada, porque não

adianta eu ficar aqui chorando, isso não resolve nada, é pior.”

(N.A.M. está com o filho desaparecido há 12 anos e perdeu seu

filho mais velho há 37 anos).

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Embora todos na família sintam um vazio ou até mesmo culpa diante do que

possa ter ocorrido com a criança e/ou adolescente, talvez a mãe seja a pessoa mais

atingida por este sentimento, por acreditar que poderia ter feito algo para impedir o que

aconteceu com seu filho. Em alguns casos, a culpa torna-se tão forte, que a mãe assumi

a responsabilidade pelo ocorrido com o filho, suscitando assim manifestações hostis que

podem ser direcionadas ao marido, caso ele não tenha sido um pai amoroso e tolerante

ou a alguém que tenha sido hostil com o filho (FREITAS, 2000 apud SILVA, 2006).

De acordo com os estudos de Freud (2006), pode-se concluir que a culpa é uma

expressão do conflito da ambivalência e da permanente luta entre os instintos de vida e

de morte. Assim, percebe-se que a culpa está muito presente na fala das mães que têm

seus filhos desaparecidos:

“Eu paro principalmente à noite e fico pensando meu Deus, o que

será que aconteceu pra uma pessoa ter uma atitude dessa, se foi

voluntário, será que alguém levou, sei lá, eu fico buscando

respostas que eu não tenho, que eu mesmo não posso dar. Logo nos

primeiros anos que minha filha desapareceu, eu me sentia culpada,

eu sentia que eu não soube cuidar direito, que eu não soube educar

direito, eu me sentia não sei te explicar, impotente, puta o que esse

pessoal vai falar porque ela sumiu, era isso que eles falavam ah

não soube educar, deve estar enfiada aí em algum motel por aí,

então era muito difícil falar tudo o que eu estava passando em um

grupo[Referindo-se ao grupo de terapia do qual fazia parte], eu

falei ah se for pra vim em grupo eu não venho mais não, e aí não

fui mais”. (V.L.S.R. está com a filha desaparecida há 20 anos).

Além disso, esse sentimento de culpa, nem sempre emerge no campo da

consciência:

“A L. sumiu três dias depois da Páscoa né e no dia da Páscoa eu

nem tive aquele tempo que eu pude ficar tanto assim, porque na

verdade, quando era esses dias assim, geralmente eu fazia almoço,

eles almoçavam lá eu montava a mesa, almoçava todo mundo

junto, essas coisas todas, justo nessa Páscoa eu inventei de fazer

ovo. Então eu estava fazendo ovo desde o sábado, não só pra eles

como pra vender, então eu passei meu domingo de Páscoa

abarrotada fazendo ovo. Eu ficava em casa só sábado e domingo,

mas no sábado eu lembro que eu passei o dia andando por aí

comprando barra de chocolate, juntei tudo na minha cozinha lá

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52

fazendo as coisas e no domingo eu passei fazendo a mesma coisa,

quer dizer, foi um dos finais de semana que eu praticamente não

tive aquele tempo pra poder dar atenção, sentar pra conversar e aí

mesmo assim, já era bem a noite eu sentada nos sofá ela deitou

com a cabeça no meu colo eu ainda mexi no cabelo dela como se

ela fosse uma criança”. (C.A.I. está com a filha desaparecida há 1

ano).

“E a noite, quando eu volto pra casa, a noite é pior, é o pior

horário sabe, porque você está ali sozinha, você começa a pensar,

a lembrar que seu filho estava ali com você, e vem aquela saudade,

aí eu começo a pensar, se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria,

voltaria, eu não teria ido trabalhar naquele dia, foi uma terça-

feira, essa data, acho que mesmo quando o H. voltar, acho que

essa eu não esqueço”. (F.R.S., está com o filho desaparecido há 7

anos).

Nas mães que perderam seu filho nota-se a presença deste mesmo sentimento:

“Todo o meu amor e dedicação que eu tinha por esse filho, não

tinha mais como expressar. Sou como uma alcoólatra em

recuperação vivendo um dia de cada vez. A dor da saudade foi uma

coisa com que eu tive que aprender a conviver, às vezes me

desespera saber que eu não posso mais abraçá-lo e beijá-lo, aí eu

choro até esse desespero acalmar”. (R.R.M., perdeu seu filho há

cinco 5 anos).

Desta forma, a morte de um filho enfraquece toda estrutura familiar e cada

componente da família terá uma reação diferente. A mãe, geralmente, sente culpa por

acreditar que falhou nos cuidados maternos, o que em sua concepção pode ter

colaborado para a morte do filho. Os sentimentos de dor e tristeza vivenciados pelos

enlutados são suscitados pela perda sofrida, no luto, a perda de um ente querido, faz

com que o indivíduo tenha que conseguir retirar de suas cargas libidinais, ou seja, seus

afetos, das diversas representações psíquicas do objeto perdido. Assim, em virtude de

tal inércia psíquica, supõe-se um esforço, sendo o trabalho do luto doloroso, visto que é

angustiante esquecer alguém que se amou. Já na melancolia, há também a perda de um

objeto querido, entretanto, para o enlutado, geralmente esta perda, em termos reias não

ocorreu, visto que a perda se deu no psiquismo do indivíduo que em função de diversos

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53

motivos, se viu obrigado a romper suas conexões psíquicas com um ente querido

(FREITAS, 2000).

A palavra enlutar-se é designada a um processo de mudança de esquemas pelo

qual todos experienciam em algum momento. O luto enquanto um acontecimento

estressante, envolve uma perda, e o medo e a dor fazem com que a pessoa se sinta

desamparada, além da culpa há outros sentimentos que podem emergir como uma

preocupação transitória posteriormente a perda, durante o luto. Geralmente, costuma-se

resolver tal situação à medida que regressa uma sensação de segurança, que faz com que

o indivíduo sinta-se novamente efetivo e competente. Desta forma, enlutar-se pela

morte de alguém querido, abarca uma revisão de esquemas, que é padrão de outros tipos

de mudanças incutidas pelo estresse, assim, o luto é ao mesmo tempo um processo de

abandono e de aprendizagem, pois durante este, abandonam-se certos esquemas e

aprendem-se outros (FREITAS, 2000). Como observa-se tanto no discurso das mães dos

desaparecidos quanto no das mães que perderam seus filhos:

“Pra te falar a verdade eu costumo dizer que eu tive duas vidas

sabe, eu tive uma vida antes de a minha filha desaparecer e

aprendi a viver depois que minha filha desapareceu, porque antes

quando a minha filha ainda estava comigo, eu sempre fui muito

dominada pelo meu marido, eu sempre fui muito reservada como

eu estou te falando, eu não tinha voz muito ativa, então era muito

submissa a ele. A partir do momento que minha filha sumiu, que eu

tive que ter outra visão do mundo, eu comecei aprender a viver de

verdade, eu comecei a me desligar mais, deixei de ser tão

dominada por ele e comecei ver o mundo de uma outra forma. Aí

comecei a aprender a batalhar mais pelas coisas, a ter mais

consciência realmente dos conflitos que tem a sociedade, porque

meu mundinho era assim, meu marido, meus filhos e minha casa, lá

fora não me interessava nada”. (V.L.S.R., está com a filha

desaparecida há 20 anos).

“Eu tive que aprender a conviver com esse luto inacabado, eu não

desejo isso pra ninguém, mas eu aprendi a ser uma pessoa otimista

ao longo desses 16 anos, acredito que a cada dia é uma nova

esperança que se renova, eu mudei a minha forma de agir, a minha

forma de pensar, eu aprendi a valorizar cada minuto da vida que

Deus me dá, todos os dias eu agradeço a Deus por mais um dia

estar viva entendeu, e você aprende a ser mais humilde, a ser mais

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atencioso, mais tolerante, mais observador, não que eu não fosse,

mas você começa ver a vida, quando você passa por uma perda,

você passa a ver a vida com outros olhos, e a vida tem me

ensinado, o sofrimento tem me ensinado ao longo desses 16 anos

de busca a ser, a ter um olhar mais atencioso.” (I.E.S.S., está com

a filha desaparecida há 16 anos).

“Eu comecei a entender que o dia de amaná não existe, e procuro

não pensar muito, nem pra frente nem pra traz, pois pensar acaba

dando um desespero, e procuro não pensar muito para não me

fazer mal”. (R.R.M. perdeu seu filho há 5 anos).

Além disso, os conflitos interiores e os esquemas do eu, quando fracos ou devido

a fatores circunstanciais, podem abster estes movimentos progressivos na resolução de

experiências traumáticas (FREITAS, 2000):

“Muda tudo, principalmente a sua forma de olhar o mundo, você

já acorda e é tudo diferente, então pra mim é... é tudo vamos dizer

assim, tudo diferente, é uma vida muito ansiosa sabe, eu acho que

eu me tornei uma pessoa muito ansiosa em busca sempre de uma

resposta, em busca de encontrar, eu acho que são essas as

mudanças, muda a gente mesmo psicologicamente, fisicamente,

muda tudo, muda não só a vida da gente como a das pessoas ao

nosso redor também. Então às vezes por mais que você tenha

contato com várias pessoas que te conhecem de um jeito e de

repente você vai se transformando em outra pessoa, algumas se

adaptam outras não e você mesmo inconscientemente não sabe que

mudou, eu imagino que devo estar mais ou menos assim.” (C.A.I.

está com a filha desaparecida há 1 ano).

No luto normal, as angustias vivenciadas pelo enlutado devido à perda da pessoa

amada, são dimensionadas pelas fantasias inconscientes de ter perdido também os

objetos bons internos, e o indivíduo sente, desta forma, que perduram seus objetos

internos maus, além de que seu mundo interno está fragilizado (FREITAS, 2000).

“Mudou tudo, mudou tudo, porque antes eu era uma pessoa feliz

sabe, eu brincava, eu ria sabe, eu me divertia, eu saía com o H.,

enfim, era uma família feliz, depois de que o H. desapareceu tudo

aquilo que era alegria, tudo, se transformou só em tristeza,

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tristeza, só em dor, só em lágrima. E eu falo que assim que o H.

voltar, assim que eu descobrir a onde que ele está, eu te confesso,

eu estou nascendo de novo. Mas nada, nada, nada é como era

antes, minha vida se transformou só em amargura e tristeza, não

tem mais nada, nada que me faça feliz, nada que me faça alegrar,

que me faça rir, nada”. (F.R.S., está com o filho desaparecido há 7

anos).

Assim, no luto, a inibição e a falta de interesse se dão em decorrência do

trabalho que este exige, visto que absorve o ego como um todo, fazendo com que o

mundo pareça vazio e pobre aos olhos do sujeito.

“O H. é o meu único filho, a coisa mais maravilhosa que Deus

mandou pra mim foi ele, e eu só não fiz uma besteira comigo

mesma porque eu tenho essa grande esperança aqui no meu

coração de encontrar o meu filho, se não, eu não estava mais aqui

e essa fé que eu tenho em Deus, se não eu já tinha acabado com a

minha própria vida. Eu fiquei também afastada do meu trabalho

durante 2 anos e acabei caindo em uma depressão, e é como eu

falei pra você, se eu não tivesse fé em Deus e a certeza de que eu

vou encontrar meu filho, eu já tinha cometido sabe, uma besteira

comigo mesma. Já vão fazer 6 meses que eu saí da empresa porque

eu não aguentava mais, não aguentava, porque não tem como você

fazer um serviço se você não consegue estar totalmente ali, pra

aquilo ali, você fica dividida, você está fazendo uma coisa, mas

daqui a pouco você não consegue mais se concentrar porque você

começa a pensar, meu filho, meu filho, meu filho”. (F.R.S., está

com o filho desaparecido há 7 anos).

“Talvez se eu tivesse com a minha mente tranquila, com a minha

vida em paz, podendo ver todos os meus filhos independente da

situação que cada um vive, a gente tenta se auxiliar um o outro nas

suas necessidades mais com essa situação que eu vivo hoje, eu não

tenho assim mais toda essa expectativa para o futuro, eu faço

várias coisas, não só por gostar de fazer, faço porque sinto a

necessidade de fazer alguma coisa pra mim não ficar com o meu

pensamento em outra coisa sabe, que vai me deprimir, que vai me

deixar desesperada e tal, então eu prefiro ficar em outros

ambientes sabe. Eu faço várias coisas mas certeza absoluta, hoje

em dia eu não tenho, acho que eu até tinha esse pensamento

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56

antigamente, hoje em dia eu vi que não tem, porque como que você

pega, você tem sua vida de um jeito, você tem sua vida de uma

forma, tudo certo e de repente do nada, algo de fora vem e

atrapalha toda a sua vida, como é que pode?”. (C.A.I., está com a

filha desaparecida há 1 ano).

Entretanto, para outra mãe que tem um filho desaparecido e o outro que já

faleceu a concepção é diferente:

“Agora voltei pra trabalhar porque fiquei muito tempo parada viu,

depois que esse menino sumiu minha vida parou dez anos, parou,

estacionou, eu não fiquei com depressão não, mas estacionou.

Então enquanto eu aguentar vou trabalhar, na minha cabeça é

assim, eu tenho 71 anos, sei o que eu tenho, aceito os fatos, mas eu

não tenho a cabeça de uma pessoa de 71, eu não quero ser

nenhuma xuxinha, xuxete, Maria chuquinha e de sainha aqui de

renda, é o cumulo isso, sei disso, assumo os fatos, mas fazer o que

se minha cabeça é diferente” (N.A.M.. está com o filho

desaparecido há 12 anos e perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

Neste sentido, no estudo realizado por Freitas (2000) algumas mães enlutadas

conseguem aceitar a perda em curto período de tempo, retornando as suas atividades

diárias e o contato social, entretanto, outras não conseguem aceitar a ausência do filho,

apresentando dificuldades de resgatar o contato com a realidade, ou seja, a vida

cotidiana diante da perda sofrida. Deste modo, no luto, a característica de desaparecer

após certo período ocorre, pois é necessário certo tempo para a realização detalhada do

mandado da realidade, trabalho que devolve ao ego a liberdade da sua libido,

desligando-a do objeto perdido. Além disso, é preciso se considerar dois tipos de luto, o

denominado normal e o patológico. No luto normal o impacto provocado pela perda

pode ser reduzido em um pequeno espaço de tempo devido à formação de novos

vínculos substitutivos, de investimentos produtivos em novas atividades e da aceitação

do apoio social. Com relação ao patológico, o vínculo com a pessoa que não está mais

viva permanece intenso, o que não permitirá a mãe enlutada a restituição necessária para

a sua sustentação saudável, propiciando o surgimento de reações como negação,

ambivalência, distorção, permanência no passado, que levam ao desequilíbrio pessoal e

a doença. Neste sentido, podemos nos defrontar com pessoas que acabam adoecendo ou

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57

até morrendo posteriormente a morte de um ente querido, por outro lado, há quem

nunca se permitiu adoecer e reage de forma natural às perdas que sofre:

“Não tinha muito o que fazer, foi um acidente, não havia muito o

que fazer, o que eu podia fazer, aconteceu, não foi de propósito, os

dois erraram, meu filho errou porque atravessou na frente desse

ônibus parado, e o outro errou porque ele cortou esse ônibus

parado, ele podia pensar que podia surgir uma pessoa. Mas graças

a Deus eu nunca entrei em depressão.” (N.A.M, está com o filho

desaparecido há 12 anos e perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

Um aspecto que chamou bastante a atenção, foi à forma com que tanto as mães

que possuem seus filhos desaparecidos quanto as que perderam seus filhos de fato,

descrevem de maneira muito similar o que sentiram com a ausência de seus filhos:

“É uma dor assim que não tem acalento, a única coisa que a gente

tem é isso, uns dias piores, uns dias melhores, um dia melhora, e a

gente vai preenchendo esse vazio de alguma forma”. (V.L.S.R. está

com a filha desaparecida há 20 anos).

“Olha, assim na hora, que você tem essa notícia, é como se o seu

chão tivesse se aberto e você tivesse afundado, hoje eu consigo ver

mais alguma coisa, mas a dor, o desespero, a saudade, continua do

mesmo jeito, do mesmo jeito, mesmo que, tem pessoas que fala pra

você assim, ai mas já faz tanto tempo, não importa, pra mim é

como se fosse hoje, como se fosse agora. Hoje talvez essa saudade

esteja ali de um tamanho, mas amanhã sabe parece que ela vem

com mais força.” (F.R.S., está com o filho desaparecido há 7 anos).

“E hoje, não é que eu esqueci, eu tive que aprender a conviver com

a dor da perda, mas não é fácil, tem dias que é pior, parece que

tem dias que dói mais, é um luto inacabado e é uma dor que dói a

alma”. (I.E.S.S. está com a filha desaparecida há 16 anos).

“Quando morreu meu filho, o primeiro, ele tinha 15 anos, eu achei

que era a pior coisa do mundo, mas eu não podia nem chorar

porque era a matriarca da família né, meu marido também não é

muito forte, então eu tinha que chorar as escondidas, mas tem

coisa pior, que é o desparecimento, porque é uma ferida que ainda

está aberta, ela sangra direto, direto, dia e noite, tem dias em que

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58

eu estou bem, que eu não estou sentindo nada, nada não, modo de

dizer né, que eu estou bem, não me dói tanto, mas tem dias que eu

amanheço num baixo astral mesmo, tenho que lutar para não cair

em depressão, aí eu tomo calmante né porque o que é que eu vou

fazer?” (N.A.M., está com seu filho desaparecido há 12 anos e

perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

“Tenho certeza de que não tem nada pior do que perder um filho.

A dor emocional é tão grande que seu coração doe fisicamente,

sentia como se minha alma estivesse deslocada do meu corpo,

como se estivesse desencaixada do meu corpo. Eu me sentia

anestesiada, não era real, talvez fosse um filme de terror, nunca

tinha imaginado em perder meu filho, eu sentia um vazio, ou

melhor, eu era este vazio. Angustia, desespero, dor, desespero,

desesperança, mágoa, raiva, ódio, revolta, eu não sei se estes

sentimentos podem definir o que se sente ou talvez eu tenha

parado de sentir. Eu estava vazia, sem nada para oferecer. Acho

que o pior de perder um filho, é que você continua viva, hoje, 5

anos depois, continuo sobrevivendo, sou como um vaso que se

quebrou e aos poucos foi se colando, pedaço por pedaço, nunca

mais aquele vaso será perfeito.” (R.R.M., perdeu o filho há 5 anos).

Assim, perder um ente querido pode-se tornar uma afronta, um abandono, uma

ofensa, uma agressão à própria vida, até mesmo o envelhecimento, enquanto uma das

fases do ciclo da vida, transparece a dificuldade humana em assumir perdas e a morte,

pois de acordo com a visão da escola psicanalítica, não acreditamos na própria morte

ou inconscientemente, todos estão convencidos da imortalidade. Como salienta Freitas

(2000) o trabalho realizado com mães enlutadas propicia uma experiência rica e penosa,

rica em função de que há nesses indivíduos o desejo de serem escutados por alguém e

poder partilhar sua dor e seu sofrimento com outra pessoa, o que permite emergir um

pouco dessa dor. E penosa, pois é difícil compartilhar a dor, conviver com a doença,

com o sofrimento, com a perda, com a dor da morte, ou no caso das mães de crianças e

adolescentes desaparecidos, com a incerteza.

Além disso, as mães enlutadas, quando vão fazer referencia ao filho falecido,

normalmente procuram exaltar as qualidades deste, como se mais ninguém na família

pudesse ter as mesmas qualidades. Como nota-se na seguinte frase:

Page 59: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

59

“Ele era um rapaz muito maduro para sua idade, sempre muito

responsável com suas coisas. Era muito mais que um filho, era meu

melhor amigo, ele compartilhava comigo seus sonhos, alegrias e os

problemas e eu pedia conselhos sobre o meu relacionamento com o

irmão gêmeo dele que na época era mais “boca dura”. Ele tinha

um jeito mais calmo, era muito decidido”. (R.R.M. perdeu seu filho

há 5 anos).

É interessante destacar que com as mães de desaparecidos há também a presença

de enaltecimento do filho (a) que desapareceu:

“Olha era um relacionamento de mãe e filha muito bom, a minha

filha ela é a minha 1ª filha, era muito apegada a mim, pra você ter

uma ideia, quando ela nasceu, ela não acostumou a dormir no

berço, ela tinha muita cólica quando ela era bebê e só dormia

comigo. E ela sempre foi muito apegada a mim, extremamente

carinhosa, uma menina muito estudiosa, organizada, nunca recebi

uma reclamação dela na escola, que ela fez alguma coisa na

escola, muito pelo contrário, ela sempre foi muito estudiosa e as

lembranças que eu tenho da minha filha, são só lembranças boas,

de uma filha carinhosa, obediente, entendeu, muito ligada a família

e que nós tínhamos vários projetos de vida e de repente tudo aquilo

se acabou no dia 23 de dezembro de 95.” (I.E.S.S. está com a filha

desaparecida há 16 anos).

“Porque a L., ela tinha onze anos, mas ela já estava da minha

altura, ela estava dois dedinhos mais baixa do que eu, ela estava

com 1, 63 com onze anos, pra você ver como ela era cumprida, ela

era magrinha, linda e a gente lá, o pessoal, todo mundo que

conhecia a L. falava porque você não faz um Book dessa menina?

Eu falei assim não, agora não, ela tem onze anos ainda eu não

quero, quando ela terminar pelo menos o ensino Fundamental,

quando ela for para o Médio, quando ela tiver 14, 15 anos, pelo

menos 15 anos aí eu vou fazer o Book dela, porque aí ela vai estar

uma moça mais amadurecida, vai entender direitinho como é que

funciona as coisas e se der certo, se for isso mesmo que for pra dar

certo pra ela, ela vai ter cabeça pra ficar e eu vou poder auxiliar

ela melhor.” (C.A.I. está com a filha desaparecida há 1 ano).

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60

Entretanto, para a mãe independente da perda ou desaparecimento de um filho, é

impossível substituir um filho por outro, mesmo quando a perda do primeiro já foi

suplantada posteriormente ao período do luto, pois cada filho é apenas um: o filho

(FREITAS, 2000).

“Cada filho é um único filho e eu não tinha como dar o amor de

um para o outro.” (R.R.M.. perdeu o filho há 5 anos)

“Eu tenho mais uma filha que precisa de mim, da minha atenção,

do meu amor, do meu carinho, e até hoje, eu tenho que chorar

escondido dela porque se ela me vê chorando por causa da F. ela

fala mãe eu estou aqui, você tem eu, e eu, não significo nada pra

você? Então eu evito chorar na frente dela porque ela se sente né

um pouco enciumada, um pouco abandonada, quando a F.

desapareceu e eu fiquei totalmente envolvida com a F., eu esqueci

da F. , e um dia minha filha virou pra mim e falou, se fosse eu,

você não estava desse jeito? E aí sabe quando te dá aquele estalo?

Eu estava inconscientemente abandonando a minha filha,

esquecendo dela, e ela foi a única coisa que me restou”. (I.E.S.S.

está com a filha desaparecida há 16 anos).

“Mais o restante dos meus filhos são muito tranquilos, muito

família sabe, ligavam pra mim....” (C.A.I. está com a filha

desaparecida há 1 ano)

No luto do adulto há uma revivência da destruição dos bons objetos infantis, ou

seja, os pais. Desta forma, pode-se pensar nos mecanismos da posição depressiva

infantil reacendidos, bem como o aparecimento de temores de ser roubado, castigado,

perseguido. Assim, em virtude do aumento da ambivalência e da desconfiança, as

relações afetuosas e amigáveis com outras pessoas, que poderiam ser convenientes,

tornam-se um obstáculo (KLEIN, 1940 apud FREITAS, 2000). Como percebe-se no

discurso de algumas mães que têm o filho desaparecido:

“Mas assim de 1 ano, chegando 1 ano, 2 enfim, daí pra frente, é...

parece que as pessoas vão esquecendo, isso me deixa muito triste,

porque às vezes você está ali olha alguém falando assim, até

mesmo da família, hoje é aniversário de fulano, hoje é aniversário

de não sei quem, vamos fazer uma festinha, mas nenhum deles toca

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61

assim no nome do H., pra lembrar...Porque depois sabe do passar

de 2, 3 meses você não consegue uma pista nem de um lado nem de

outro, nenhuma informação e você começa a desconfiar de tudo e

de todos, até mesmo do pai você começa a desconfiar, porque não

é possível. Você corre, você espalha cartazes, você está lá na

mídia, enfim, todas as redes sociais e você não acha uma pista? Aí

você começa a desconfiar de todo mundo, todo mundo, até da sua

própria sombra e aí eu evito sabe, falar com ele e tal, porque aí eu

começo a acusar também, eu falo você sabe a onde ele está enfim,

aí você começa a desconfiar de tudo mesmo.” (F.R.S. está com o

filho desaparecido há 7 anos).

[Relacionamentos atualmente] “Vamos dizer assim que é um

pouco mais distante, até familiar, não digo com os filhos, com os

meus filhos não, mas talvez com irmãos, com amigos e tudo porque

cada um tem a sua própria vida sabe e eles têm suas

responsabilidades e tudo mais e eu não estou pra levar problema

pra ninguém, eu acho que cada um, se a pessoa sente a nossa

causa, que eu acho que ela é baseada muito na solidariedade, na

humanização e acho que isso vai de cada um, isso aí é do ser

humano né, então não dá pra mim ficar na porta da casa de cada

pessoa e sei lá, se eu estou deprimida, se eu estou precisando de

alguma coisa sabe, isso eu acho que não dá pra gente fazer, então

nessa parte assim eu me sinto mais distante das pessoas porque eu

não vou ficar andando atrás, eu não tenho motivo pra poder de

repente estar toda hora festejando ou brincando ou também não

quero ninguém triste por minha causa. Eu fui me afastando um

pouco devido ao meu problema mesmo, por não querer levar

problema pra ninguém, a pessoa me procura quando acha

necessário e pra mim está bom assim.” (C.A.I. está com a filha

desaparecida há 1 ano).

Para outras o impacto teve o efeito contrário:

“Comecei a ter mais amizade, comecei aprender a me relacionar

melhor com as pessoas e principalmente eu aprendi a expressar

melhor os meus sentimentos, eu sempre fui muito reprimida, então

eu aprendi a me expressar melhor, fazer mais amizade”. (V.L.S.R.

está com sua filha desaparecida há 20 anos)

Page 62: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

62

O mesmo se dá com as mães que perderam seus filhos:

“Tivemos apoio dos amigos mais próximos, mas as pessoas

conhecidas de um modo geral fugiam da gente, como se nós

tivéssemos alguma doença contagiosa. Acredito que o medo de

enfrentar a morte ou a dor que ela traz fez com que as pessoas se

afastassem. Agora as pessoas que pareciam fugir da gente, nos

encontram e procuram normalmente.” (R.R.M. perdeu o filho há 5

anos).

[Relacionamentos atualmente] “Com os meus irmãos, com a

família do meu marido não, eles moram longe também então de vez

em quando a gente se fala, não sou de mal com ninguém, agora

minhas irmãs moram em S. eu sempre vou lá, elas vem aqui na

minha casa. [Com quem forneceu apoio na época] Alguns, outros

casaram, mudaram, saíram do bairro, mas com os que ficaram

ainda sim e com os familiares também”. (N.A.M. está com o filho

desaparecido há 12 anos e perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

Por meio de sua experiência clínica, Klein (1940) concluiu que apesar de ser

verdadeiro que a característica do luto normal seja a de que o indivíduo instala dentro de

si o objeto amado e perdido, não faz isso pela primeira vez, haja vista que pelo trabalho

do luto, reinstala o objeto perdido, sendo assim, restaura o que perdeu na infância. Deste

modo, a reconstrução de seu mundo interno manifestará o trabalho bem-sucedido do

luto, pois quando o individuo reinstala dentro de si as pessoas perdidas e refaz o seu

mundo interno que estava ameaçado, pode ser capaz de dominar suas angustias, adquirir

uma nova segurança, bem como harmonia e a paz verdadeiras. Neste sentido, nota-se

que tanto as mães que possuem seus filhos desaparecidos, quanto as que têm seus filhos

falecidos, perderam também efetivamente pessoas que foram muito significativas em

sua infância:

“Eu perdi uma irmã minha, ela faleceu, na época o H. estava com

3 anos, eu senti, eu senti muito, é como eu falei, era como se eu

fosse a mãe deles né.” (F.R.S. está com o filho desaparecido há 7

anos).

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63

“Quando o meu pai morreu eu não vi o meu pai, porque eu estava

morando aqui e a minha família mora em A., então eu sofri muito

pelo fato de não poder ver meu pai pela última vez, foi uma coisa

que marcou muito a minha vida” (I.E.S.S. está com a filha

desaparecida há 16 anos)

“Já perdi minha avó aos 15 anos, que era minha segunda mãe,

meu tio que sempre zelou por nós como um pai. Meu pai

infelizmente que se perdeu na doença do alcoolismo.” (R.R.M.

perdeu o filho há 5 anos)

As contribuições fornecidas por Bowlby (1960) apud Freitas (2000) referem-se

ao fato de que acrescenta os aspectos biológicos aos psicológicos, destacando a

relevância dos vínculos na vida do paciente enlutado, para ele, os vínculos iniciais, ou

seja, com a figura materna ou substituta, propiciam um alicerce seguro a cada individuo

e de acordo, com este, o individuo enlutado poderá lidar ou não de uma maneira mais

saudável com o luto.

“Eu acho que fora o desaparecimento da minha filha, uma perda

muito dolorida pra mim, foi a morte do meu pai, eu era muito

apegada com o meu pai, meu pai foi um homem que, apesar de ser

humilde, ele deixou coisas marcadas na minha vida muito

importantes, eu acho que é isso, meu pai, ele foi um homem digno,

um homem trabalhador, um homem que nunca deixou a família, em

nenhuma ocasião, eu acho que tudo que eu sei na vida, tudo que eu

sou, eu devo muito ao meu pai. Meu pai foi um homem excepcional,

uma pessoa maravilhosa e ele faz muita falta na minha vida, e a

onde ele está, eu tenho certeza que ele tem muito orgulho de mim.”

(V.L.S.R. está com a filha desaparecida há 20 anos)

Porém, as mães dos desaparecidos salientam a diferença que consiste em se

perder alguém de fato e ter um filho desaparecido:

“Eu chorei, abracei, me despedi, mas eu vi né, eu vi, eu fui no

velório dela, eu vi ela indo pra casinha, pra morada eterna dela, eu

vi ela sendo enterrada, quando você não sabe nada da pessoa sabe,

não sabe o que está fazendo, olhando, não sabe com quem está, se

está sendo bem cuidado, se está sendo maltratado, se está

comendo, se está bebendo, se está passando frio, a pessoa que

estava ali do seu lado sabe, que tinha tudo, que você dava tudo,

porque como o H. é meu filho, eu sei que todas as mães fazem o

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64

possível e o impossível pelos seus filhos, mas quando você só tem

um, você faz o dobro para aquela pessoa, então é isso, eu senti

muito a perda da minha irmã, senti, porque eu amava minha irmã

como um filho, mas eu sei que ela era só minha irmã, então quando

a gente perde alguém dessa forma do desaparecimento, sem você

saber nada, é pior que a morte, é pior do que a morte. Pelo menos

quando morre você está vendo, você viu, você chorou, você se

despediu, no desaparecimento não, você não consegue fazer nada,

tudo que você faz pra correr atrás, pra ter uma notícia, parece que

é tudo em vão”. (F.R.S. está com o filho desaparecido há 7 anos).

“Não é a mesma coisa como o desaparecimento da F. eu sei que

meu pai morreu, e não volta mais, agora a minha filha, ela está

desaparecida, eu não sei se a minha filha está viva, eu não sei se

ela esta morta, é muito pior você viver com essa dúvida. Então essa

dúvida é que vai te consumindo a cada dia e você tem que aprender

a lidar com essa perda.” (I.E.S.S. está com a filha desaparecida há

16 anos).

A mãe que perdeu seu filho aos 15 anos de idade e que tem seu outro filho

desaparecido há 12 anos, descreve em sua concepção a diferença entre ambas as

situações:

“Quando ele morreu, eu fiquei fora do ar, se você me perguntar

que musica era sucesso na época eu não sei, mas eu agi

normalmente, porque minha filha ainda era adolescente, ela era

mais nova que ele, ela tinha 14 anos e eu tinha dó dela, então eu

não podia demonstrar muita tristeza, mas eu chorava a noite

quando ninguém via aquele buraco imenso que fica, parece que

tem um buraco, muito ruim mesmo, mas eu sabia que eu não ia

mais ver esse menino, é diferente entendeu, é uma dor tremenda,

mas você tem que se conformar, pegar na mão de Deus e se

conformar, porque não tem como, agora esse não né, esse

desapareceu do mapa, você não sabe como está, se está com frio,

se está com fome, você não sabe, é horrível, horrível. (N.A.M.).

Deste modo, cabe ressaltar que a diferença entre a morte de fato e um

desaparecimento, reside no corpo que permite propagar a materialidade de uma vida que

acabou independente de qual motivo seja. Já em um desaparecimento, a materialidade

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do sujeito se constitui por meio de fotografias, de suas roupas deixadas, em objetos de

uso pessoal, em seu quarto, em seus brinquedos, ou seja, em todas as lembranças que a

família persiste em manter viva até que o contrário torne-se verdadeiro (GATTÁS &

FIGARO-GARCIA, 2007). Isto é possível de ser observado por meio das seguintes

falas:

“Cada canto da casa está lá às coisas dele, cada lugar que você

olha tem alguma coisa que te faz lembrar e lembrar e aquilo por

mais que você tente trabalhar, por mais que você tente fazer

alguma coisa não adianta, porque de um lado é pra fazer uma

coisa e do outro é só ele. É uma dor que eu não desejo pra

ninguém pra ninguém. Eu mantenho, eu não tiro nada, vai sair de

lá quando ele chegar e falar mãe pode doar pra alguém e isso eu

faço, o quarto dele está montado do mesmo jeito, não deixo

ninguém mexer em nada.” (F.R.S. está com o filho desaparecido há

7 anos).

“Vão fazer vinte anos que minha filha está desaparecida, então eu

acho que muda muita coisa na vida da gente quando a gente perde

um filho pela morte, mas muda muito mais, quando ele desaparece

dessa forma, porque a gente passa a se sentir, como se a gente

fosse pais e mães de filhos mortos vivos, mortos pra sociedade,

mortos para o poder público, só vivo na gente, no nosso

sentimento, no nosso coração, na nossa esperança de encontrar”.

(V.L.S.R. está com a filha desaparecida há 20 anos).

Embora devagar, as mudanças vão ocorrendo à medida que às mães adquirem

consciência da perda e ainda assim, algumas mães depois de anos, mantêm as roupas

que o filho usava, o quarto sem se quer ser mexido ou tocado, pertences pessoais

guardados e até escondidos para que ninguém tenha acesso (SILVA, 2006). Assim,

percebe-se que é necessário não só a materialidade que permita comprovar a perda de

um ente querido como também a realização de rituais, como ocorreu no caso de mães

que perderam seus filhos:

“No seu enterro tinham muitos jovens, eles chegaram até de ônibus

fretado e tinham no pulso uma fita vermelha porque meu filho

adorava a cor vermelha e vestia vermelho todo dia. Até 2 anos

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após sua morte tive contato com eles inclusive eles vinham na

missa.”(R.R.M. perdeu seu filho há 5 anos).

“Ele tinha acabado de sair da 8ª e tinha passado para o 1º

Colegial na outra escola, então vieram às duas escolas no funeral

dele, veio todo mundo com uma rosa branca, um botão branco na

mão, foi uma coisa bem que chocou muito, muito mesmo, não tive

coragem nem de ir no cemitério preferi guardar a recordação

dele.” (N.A.M. está com o filho desaparecido há 12 anos e perdeu

seu filho mais velho há 37 anos).

Os rituais fúnebres são práticas vinculadas à morte e ao enterro de uma pessoa,

característicos da espécie humana. Tais práticas, que variam de acordo com as crenças

religiosas acerca da natureza da morte e a existência de uma vida depois dela, referem-

se a importantes funções psicológicas, sociológicas e simbólicas para os membros de

uma coletividade. Os rituais e costumes fúnebres estão ligados não somente a

preparação e despedida da pessoa que se foi, mas também com a satisfação dos

familiares e a permanência do espírito entre eles (SILVA, 2006).

Em todas as sociedades, o corpo passa por um preparo no qual é necessário lavá-

lo, vesti-lo com roupas especiais e adorná-lo com objetos religiosos ou com amuletos

que também são muito comuns. O povo egípcio acreditava que o corpo tinha que

permanecer intacto para que assim, a alma pudesse passar para a vida seguinte, desta

forma, para o processo de conservação, foi desenvolvida a mumificação. Já na

sociedade ocidental moderna, esse processo é feito a fim de se evitar que os familiares

tenham que enfrentar a decomposição do corpo de seu ente, desta forma, as

diversificadas maneiras de despedida de uma pessoa está relacionada com as crenças

religiosas, o clima, a geografia e a classe social. O enterro está vinculado ao culto dos

antepassados ou com as crenças em uma outra vida, já a cremação é exercida em

algumas culturas com a intenção de libertar o espírito que partiu (SILVA, 2006).

O funeral, transporte do corpo ao lugar de seu enterro, cremação ou exposição,

presumi uma ocasião com o objetivo de celebrar um ritual cuja complexidade varia. Nas

sociedades ocidentais modernas, os rituais fúnebres contemplam velórios, procissões

soar de sinos e celebração de um rito religioso, além disso, o desejo de manter viva a

memória do ente que partiu dá lugar a diversos tipos de atos, como por exemplo, a

conservação de parte do corpo como relíquia, a construção de mausoléus, a leitura de

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pequenas composições poéticas e a inscrição de um epitáfio no túmulo. Os estudos

antropológicos consideram que os costumes fúnebres são expressões simbólicas dos

valores de uma determinada sociedade, tal concepção está na observação de que grande

parte do que ocorre em um funeral, é determinado pelo costume, até mesmo as emoções

vivenciadas nos rituais fúnebres podem ser ditadas pela tradição. Para a antropologia

clássica, as cerimônias que circundam a morte, assim como as que acompanham o

nascimento, a iniciação à idade adulta e ao matrimônio, são ritos de passagem (SILVA,

2006).

De acordo com Silva (2006) devido à perda do objeto, há perda de partes do ego

que são projetadas neste. Deste modo, consequentemente há um grande esforço

psíquico, que implica em recuperar as ligações com a realidade, o desligamento de

aspectos persecutórios do objeto e a assimilação dos objetos positivos e bons. Neste

sentido, para que o luto possa ser elaborado adequadamente, o enlutado precisa confiar

nos seus objetos bons internalizados, sendo assim, o sofrimento da perda pode propiciar

sublimações, que favorecem a elaboração do luto ou no caso de mães de crianças e

adolescentes desaparecidos, a ausência de seus filhos:

“Quando a minha filha desapareceu, eu tinha terminado o 1º

semestre da faculdade, eu tinha voltado, estava trabalhando pra

pagar minha faculdade, e eu ainda continuei a faculdade mais um

1 e meio e depois parei, depois eu retomei novamente e parei de

novo por problemas de saúde, mas eu quero terminar minha

faculdade, meu sonho é terminar minha faculdade de direito e eu

quero fazer antropologia”. (I.E.S.S. está com a filha desaparecida

há 16 anos).

“Eu estou fazendo Pedagogia, estou no 3ª semestre, quer dizer,

talvez eu conclua algumas expectativas que eu tinha na minha

infância né, talvez, não sei também, isso aí depende muito. Agora a

Pedagogia hoje em dia eu estou fazendo porque eu gosto de

trabalhar com criança, eu penso o seguinte, se eu chegar a

terminar esse curso, eu vou me especializar em Pedagogia

Hospitalar pra trabalhar com crianças doentes, porque é a parte

que eu gosto em hospitais, aí eu acho que eu estaria na parte certa.

A minha necessidade é trabalhar com essas pessoas sabe, que de

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repente estão fragilizadas por alguma patologia, uma dificuldade e

que eu possa estar auxiliando de alguma forma.” (C.A.I. está com

a filha desaparecida há 1 ano).

“Hoje eu viajo, dou palestra, conheço gente, eu não tenho mais a

rotina que eu tinha, minha rotina agora é muita correria, eu vivo

em curso, vivo em palestra, vivo fazendo amigos, então eu acho

que mudou muita coisa, a minha cabeça abriu mais, a V. deixou de

ser a V. dona de casa, ela passou a ser uma outra V. que vive

correndo atrás, com mais força atrás do que ela pensa, do que ela

quer, eu acho que tem muita pouca coisa minha lá atrás, eu acho

que eu sou uma outra pessoa”. (V.L.S.R. está com a filha

desaparecida há 20 anos).

Esta última fala, remete também a questão da constituição de uma outra

identidade, a identidade se mostra como a descrição de um personagem, em que a vida,

a biografia aparece em uma narrativa, ou seja, em uma história com enredo,

personagens, cenários, dentre outros, sendo assim, tal personagem surge em um

discurso que representa a história do indivíduo. Neste sentido, qualquer discurso,

qualquer história tem normalmente um autor que constrói um personagem. Todos nós

sem exceção somos os personagens de uma história que nós mesmos criamos, sendo

autores e personagens ao mesmo tempo, assim, aquele que é tido como autor, é um

narrador, um contador de história (CIAMPA, 1984).

Além disso, a identidade de outros personagens constitui a do autor assim como

a do autor constitui a dos personagens. Assim, muitas vezes, é possível se esconder

naquilo que se fala, ou seja, o autor se oculta por trás do personagem, do mesmo modo

em que se revela por meio de seus personagens, visto que é comum se revelar através

daquilo que se oculta. Desta forma, a afirmação de que as pessoas não se modificam,

pois são apenas de uma determinada maneira, é falsa, embora existam mudanças que

são previsíveis, desejáveis ou mais ou menos controláveis. Quando algo é valorizado

positivamente, a propensão é afirmar que o indivíduo mudou, pois determinada

característica já estava embutida nele, entretanto, quando não é desejável tende-se a

dizer que estava embutido no outro. É possível se pensar em diferentes combinações

para compor uma identidade enquanto uma totalidade, que pode ser contraditória,

múltipla e mutável, porém, una (CIAMPA, 1984).

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Deste modo, por mais contraditório e mutável que seja, o indivíduo sabe quem é

ele, ou seja, que é uma unidade de opostos, uno na multiplicidade e na mudança. É

possível imaginar como seria difícil conviver com outras pessoas se não existisse a

presunção compartilhada de que geralmente um indivíduo é a pessoa que diz que é.

Assim, o individuo se identifica com seu nome, que o identifica em um conjunto de

outros seres, que identifica sua singularidade, ou seja, seu nome próprio, visto que se

torna seu nome. Neste sentido, seu primeiro nome (prenome) o diferencia de seus

familiares, já o último (sobrenome) o iguala a eles, deste modo, diferença e igualdade é

a primeira concepção de identidade e consecutivamente o indivíduo vai se igualando e

se diferenciando de acordo com os vários grupos sociais de que faz parte. O

conhecimento de si é obtido pelo reconhecimento mútuo dos indivíduos identificados

por meio de um determinado grupo social que existe objetivamente com sua história,

suas tradições, suas normas, seus interesses, dentre outras questões. Entretanto, um

grupo pode existir enquanto uma classe social, mas seus integrantes podem não

identificarem-se como seus membros e nem ao menos se reconhecerem mutuamente. É

somente a partir das relações que mantêm seus membros entre si e no meio onde vivem,

ou seja, pela sua prática e pelo seu agir que um grupo existe objetivamente (CIAMPA,

1984).

Desta forma, o indivíduo é suas próprias ações, se faz pela prática. Não é

possível isolar de um lado o conjunto de elementos biológicos, psicológicos e sociais

que caracterizam um individuo, o identificando e de outro lado a representação deste

último enquanto uma duplicação mental ou simbólica, que expressaria sua identidade,

visto que há uma interpenetração de ambos os aspectos, de modo que a individualidade

dada, já pressupõe um processo anterior de representação que compõe a constituição do

individuo representado. Assim, a identidade do filho, se de um lado é consequência das

relações que se dão, de outro, previamente, é uma condição dessas relações, isto é, é

pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento, sob a pena de objetos

sociais, filhos, pais, família, deixarem de existir objetivamente. Neste sentido,

considerando que a identidade pressuposta é reposta, ela é tida como dada e não como

se dando em um processo contínuo de identificação. Deste modo, é daí que parte-se da

expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com o que é e assim, se re-

atualiza-se por meio de rituais sociais uma identidade presumida que é reposta como

algo já dado, extraindo o seu caráter de historicidade, aproximando-a mais da concepção

Page 70: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

70

de um mito onde se estabelece as condutas corretas, reproduzindo o social (CIAMPA,

1984).

Assim, cada posição que o individuo assume o determina, fazendo com que sua

existência concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo

desenvolvimento dessas determinações, deste modo, em cada momento de sua

existência, o individuo, embora seja uma totalidade, expressa uma parte sua como

desdobramento das múltiplas determinações as quais está sujeito, assim, quando está

com seu filho, relaciona-se como pai, com seu pai, como filho e sucessivamente. Além

disso, estabelece-se uma rede de representações que permeia todas as relações e estas

reflexões múltiplas que se estrutura as relações sociais, é mantida pela atividade dos

indivíduos, assim, as identidades no seu conjunto, exprimem a estrutura social ao

mesmo tempo que reagem sobre ela conservando-a ou a transformando. A História, é a

história da autoprodução humana, o que faz com que o homem seja um ser de

possibilidades, que compõem sua própria essência histórica. Neste sentido, o homem

como espécie, é dotado de uma substância que embora não há totalmente em cada

individuo, faz deste um integrante dessa substância, tendo em vista que cada homem

está intrincado em um determinado modo de apropriação da natureza em que se

configura o modo de suas relações com os demais homens. Assim, o individuo como

qualquer outro ser humano, participa de uma substância humana, que se executa como

história e como sociedade, nunca como individuo isolado, sempre como humanidade

(CIAMPA, 1984).

O comparecimento frente ao outro envolve uma representação em um tríplice

sentido, pois o individuo representa enquanto está sendo o representante de si mesmo,

representa ao desempenhar papéis ocultando outras partes suas não contidas em sua

identidade pressuposta e re-posta e por último, representa enquanto repõe no presente o

que tem sido e reitera a apresentação sua. Assim, não há possibilidade de decompor o

estudo sobre a identidade do individuo do estudo da sociedade, tendo em vista as

diferentes configurações de identidade que estão vinculadas com as diferentes

configurações da ordem social, sendo assim, a identidade é proveniente do contexto

social e histórico no qual o homem está inserido e no qual transcorrem suas

determinações e consequentemente emergem as possibilidades e impossibilidades, os

modos e alternativas de identidade. Neste sentido, identidade é movimento,

desenvolvimento e metamorfose (CIAMPA, 1984).

Page 71: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

71

Há pessoas que posteriormente ao luto intenso, tornam-se mais produtivas, mais

tolerantes, mais sensatas (FREITAS, 2000 apud SILVA, 2006). Como se observa na

fala desta mãe que perdeu seu filho:

“Quando perdemos um filho, percebemos que o dia de amanhã não

existe, sendo assim, a minha rotina passou a fazer o que tem de ser

feito. Quando eu acordo eu penso, meu Deus, eu tenho que

levantar e começar tudo de novo, força”. (R.R.M. perdeu o filho há

5 anos).

Outras pessoas produzem obras de arte como pinturas e esculturas que são

experiências satisfatórias e que representam uma forma de vencer as frustrações e o

desprazer (FREITAS, 2000 apud SILVA, 2006). A exemplo disso, está a fala dessa

mãe:

“Eu voltei para a minha profissão, eu trabalho em uma estética e

isso distrai também, pinto, eu pinto quadros... Quando eu tinha 15

anos, eu fui pra praia com um namoradinho e vi o pôr do sol e falei

pra ele assim, um dia eu vou pintar isso, ele deu risada, não é que

eu pinto agora... Eu sou autodidata li muito na minha vida, tenho

uma grande biblioteca em casa, livros e mais livros eu leio de tudo

sobre a arte, sobre a psicologia, tudo que interessa eu leio, só não

gosto matemática”. (N.A.M. está com o filho desaparecido há 12

anos e perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

Entretanto, percebeu-se na grande maioria das mães que vivenciaram situações

diferentes, a presença de alterações na saúde e de alguns sintomas:

“Eu já estava com problema de pressão alta, só que agora assim,

tem que tomar medicação porque agora ela anda alta direto, se eu

não tomar a medicação, ela fica mesmo, ela está totalmente

avariada. Eu não consigo dormir e mesmo com a medicação que

ela [a psiquiatra]estava me dando eu não estava conseguindo, eu

já tinha um sono leve, eu deito pra dormir, mas é assim sabe, se

cair uma colher meu olho abre, eu estou acordada...”(C.A..I está

com a filha desaparecida há 1 ano).

“Olha, além da depressão, eu tenho hipertensão arterial, eu tenho

problemas cardíacos, eu tomo remédio para o coração, remédio

pra pressão alta, então a minha saúde de certa forma, ficou

fragilizada ao longo desse período, e o meu médico falou que tudo

Page 72: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

72

isso, são coisas que vieram acontecendo, em decorrência do

desaparecimento da minha filha. Em 2003 eu tive o 1º infarto, em

2004 eu tive o 2º, faço acompanhamento com o cardiologista, tomo

as medicações contínuas entendeu, tenho uma vida normal, mas

tenho uma saúde que requer um certo cuidado”. (I.E.S.S. está com

a filha desaparecida há 16 anos).

“Eu entrei numa depressão assim terrível, terrível e comecei a

perder peso, eu pesava 58 quilos eu cheguei a 28 quilos, eu falo

que eu fiquei mesmo parecendo uma pessoa que estava com uma

doença terminal, então eu fiquei num estado muito ruim, muito e

outros problemas né que vem acontecendo que diz a médica que é

pelo estado do nervoso, da depressão e começou a sair tumores no

meu corpo, graças a Deus isso não foi maligno, eu tirei todos

inclusive do útero, nas pernas, coisa que eu não tinha. Aí eu vinha

fazendo tratamento, ela disse que era por causa desse estado de

nervoso, de você querer muito uma coisa e você não conseguir e

isso acabou trazendo isso para o corpo”. (F.R.S. está com o filho

desaparecido há 7 anos).

“A alteração na saúde foi perceptível demais, fui parar no Pronto

Socorro, tive diversas vezes dores no peito, me apareceram

manchas vermelhas nas pernas. Os sintomas pareciam passar pelo

corpo, cada hora era uma coisa. Atualmente esses sintomas não

persistem, e estou diminuindo a dosagem do antidepressivo

gradativamente”. (R.R.M. perdeu o filho há 5 anos).

O surgimento de patologias interligadas ao luto, vai depender de componentes

particulares, de fatores inter-relacionados e interdependentes, além de um determinado

momento, um contexto e das implicações socioculturais (FREITAS, 2000). A depressão

e a desorganização que contemplam o luto, mesmo que dolorosas, não deixam de ter

como função uma proposta adaptativa. A pessoa mentalmente sadia pode suportar tal

depressão e desorganização, frente à morte e/ ou ausência de um ente querido, e em um

pequeno espaço de tempo, pode surgir com uma conduta, com pensamentos e

sentimentos que se reorganizam para novas interações (BOWLBY,1960 apud

FREITAS, 2000). Isto pode ser observado em algumas mães:

Page 73: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

73

“Acho que de saúde não, tem uns problemas assim às vezes eu fico

deprimida, com depressão, mas nada fora do anormal, eu acho né

fora do anormal. [Chegou a tomar medicação] Não, nenhuma, eu

sou uma pessoa que eu não tomo, em nenhum momento desde que

minha filha sumiu, nem nos primeiros momentos que eu fui parar

no hospital, ai eu vou aplicar um tranquilizante, eu falei não, eu

não quero nada, eu quero saber tudo o que está acontecendo de

cara limpa, eu não quero nada, nada, eu sempre procurei enfrentar

tudo sem tomar remédio, eu não tomo nem pra dor de cabeça, eu

tenho medo de tomar remédio.”(V.L.S.R. está com a filha

desaparecida há 20 anos).

[Alterações na saúde quando o filho desapareceu]“Passei a ter

pressão alta que eu não tinha, mas eu tenho boa saúde só isso

mesmo, só pressão alta e a glândula tireoide, trabalhando menos

engordei, mas só isso também, nada de grave, pressão alta caba

tendo mesmo né, mas é duro”. [Quando o filho desapareceu]”Não,

só tristeza, eu não fiquei nem com depressão, como eu te falei eu

sou um pouco forte, ficar com depressão não depende da pessoa, é

uma doença, eu graças a Deus não tive, fiquei muito triste claro

muito mesmo, mas aguentei.” (N.A.M. está com o filho

desaparecido há 12 anos e perdeu seu filho mais velho há 37 anos).

Desta forma, a partir do discurso das mães, é possível verificar que com a

maioria ocorreu o fenômeno da somatização, ou seja, a apresentação de queixas

somáticas provenientes de causas psicológicas e que são convertidas por meio do

sintoma ao corpo, sem que, no entanto, tenha um substrato orgânico. Além disso,

considerando que reconhecem seus problemas psicológicos e a relação entre esses e

suas queixas somáticas, há a presença da somatização facultativa. E é válido considerar,

que todos estão suscetíveis a somatizar em algum momento da vida, entretanto, a

frequência, intensidade, os sintomas e suas consequências variam muito, visto que o

corpo é o porta voz das tensões da vida. Assim, a princípio todo paciente pode ser

considerado como psicossomático, visto que não é possível conceber o adoecimento

desvinculado da composição das esferas biológica, cultural, social, mental e emocional

(BOMBANA, LEITE & MIRANDA, 2002). Além disso, todas as mães procuraram por

tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico:

Page 74: Aonde quer que eu vá te levo comigo: Do luto para a luta de mães de

74

“Eu fiz terapia durante 8 anos, a terapia me ajudou muito e eu tive

que fazer uma adaptação. [Porque parou a terapia] Porque eu

achei que não precisava mais, falei pra minha psicóloga que eu

achava que não tinha mais necessidade de eu continuar a terapia e

aí eu me dei alta. Eu passo pelo psiquiatra, tomo anti depressivo,

tomo calmante pra poder dormir, se não você não consegue lidar

né, a medicação, ela vai amenizando um pouco aquela ansiedade,

aquela crise de choro, mas sem a medicação eu não consigo ficar.

Aliás eu já tomava anti depressivo, foi quando eu perdi meu pai, eu

fiquei muito chocada de eu não poder ter visto meu pai, fiquei com

uma depressão muito grande, então quando a minha filha

desapareceu, eu já passava por um psiquiatra, e já passava por

uma psicóloga, fazia terapia de grupo, com o desaparecimento da

F. meu quadro se agravou muito mais, e aí eu fiz mais 8 anos de

terapia”. (I.E.S.S. está com a filha desaparecida há 16 anos)

“Outra parte que auxilia muito a gente é o apoio psicológico, tem

as psicólogas que atendem uma vez por semana, eu preciso me

cuidar pra continuar fazendo as outras coisas, e eu passo uma vez

por mês com uma psiquiatra ela me dá uma medicação pra mim

tomar e eu vou e tomo, por mais que eu tenho consciência de que

essas coisas não são assim são cem por cento legal, porque tem

muita gente que acaba ficando dependente disso, a pessoa toma

anti-depressivo, toma calmante, mas eu acho que nesse caso, eu

acho que é uma coisa que não tem como, é necessário mesmo até

pra que o meu sistema nervoso não fique toda hora só pensando

naquilo, trabalhando a milhão e que eu venha a ter um infarto ou

um derrame, você entendeu?”. (C.A.I. está com a filha

desaparecida há 1 anos)

“Fiz Terapia e mantenho até hoje 5 anos e meio, faço tratamento

homeopático 10 anos e faço tratamento psiquiátrico 3 anos, com

antidepressivo Fluoxetina, e estou diminuindo a dosagem. Todos

eu fiz devido a necessidade de ter um apoio frente ao ocorrido, pois

é insuportável sobreviver a isso”.(R.R.M. perdeu o filho há 5 anos).

Neste sentido, foi possível observar que quando há a perda de algo ou de

alguém, instantaneamente o indivíduo é vinculado tanto física quanto mentalmente à

situação de luto, assim pessoas que passam por qualquer tipo de perda são levadas ao

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75

processo de luto. Além disso, perder um filho criança ou adolescente, qualquer idade

que seja, pode ser uma das perdas mais avassaladoras da vida e seu impacto permanece

por anos, visto que os laços com os pais são muito intensos e reproduzem os aspectos da

personalidade dos pais e as dimensões históricas e sociais (SILVA, 2006).

Assim, embora as mães que possuem seus filhos desaparecidos e as mães que de

fato perderam seus filhos apresentem sentimentos, alterações em sua rotina ou em sua

saúde similares frente ao ocorrido com seus filhos, possivelmente a diferença consiste

em uma materialidade, em algo que comprove o por que da ausência de seus filhos, no

caso das mães de crianças e adolescentes desaparecidos, como as mães que perderam

seus filhos obtiveram. Desta forma, frente aos termos luta e luto já discutidos

anteriormente, pode-se pensar na presença de duas condições opostas vivenciadas pelas

mães, ou seja, a de pulsão de vida (Eros) e a pulsão de morte (Thânatos). Para Freud

(1920), a pulsão de morte pode ser compreendida como um desejo de recusar a

condição desejante e ambas as pulsões tendem para a redução completa das tensões

(descarga total) redirecionando o ser vivo ao estado anorgânico (Nirvana).

A pulsão de morte pode aparecer voltada para o interior sob a forma de

autodestruição ou direcionada para o externo apresentando-se por meio da agressão ou

destruição. Já a pulsão de vida é uma força voltada para a ligação, à constituição e

conservação das unidades vitais, assim, a pulsão de vida (Eros) está relacionada à

aceitação da existência do objeto e vinculada à sublimação. Entretanto, é válido

considerar, que ambas as pulsões nunca revelam-se isoladamente, visto que em todas as

manifestações humanas podemos notar a presença das duas pulsões interferindo-se em

diferentes graus (FREUD, 1920).

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76

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perda de um filho remete a diversos sentimentos, entretanto, o sofrimento de

uma mãe que tem um filho (a) desaparecido (a) diverge da que pôde vivenciar e

presenciar efetivamente tal perda, visto que ter uma materialidade que comprove o

motivo da ausência sana ao menos a dúvida que é incessante e marca cada dia da

existência, muito embora a certificação do que possa ter ocorrido não cesse o sofrimento

de uma mãe.

Além disso, mesmo com o apoio e o acalento entre mães que se uniram em

algumas Associações em busca de seus filhos e que vivenciaram a mesma situação, é

preciso destacar, que cada uma lida com essa perda de maneira muito singular, o mesmo

se dá com os pais que encontraram diferentes formas de enfrentar a dor e a ausência do

filho, buscando outras alternativas para se readaptar ao desdobramento que tal

acontecimento suscitou em suas vidas.

Neste sentido, tanto um desparecimento quanto o falecimento de um filho, leva a

diversas consequências seja no âmbito pessoal ou interpessoal, tendo em vista a quebra

na linha de continuidade da vida, das funções desempenhadas no dia-a-dia e da

previsibilidade que se tem sobre o dia de amanhã e em alguns casos, a forma de lidar

com a perda, pode favorecer ou inviabilizar o investimento em atividades diárias e no

estabelecimento de novos laços e metas ou na constituição de uma nova identidade que

faz repensar atitudes e vivências antes dessa ruptura.

Outro aspecto a ser salientado, consiste no fato do quanto lidar com os temas

morte e luto remete a finitude, além de proporcionar a reflexão e resignificação da vida

e levar a vivência de conflitos ambivalentes sedimentados no caso das mães de crianças

e adolescentes desaparecidos, pela culpa e ao mesmo tempo esperança que faz sentirem-

se implicadas frente o acontecimento, o que emerge por meio de sinais e sintomas.

Assim, embora o sofrimento esteja presente em ambas às situações, tanto na de

mães que perderam seus filhos, quanto da que estão com seus filhos desaparecidos, no

caso das primeiras, a certeza de que não irá mais vê-los, faz com que busque formas

e/ou alternativas de prosseguir, embora sempre o sentimento de vazio e a ausência

estejam presentes, mesmo que o luto tenha sido elaborado. Contudo, no que tange as

mães que têm seus filhos desaparecidos, mesmo diante da existência de sentimentos

semelhantes ao daqueles que vivenciam o luto, o que pode ser considerado como uma

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77

pulsão de morte, a esperança, as expectativas e a luta constante marcadamente por uma

pulsão de vida, fortalecem e são uma válvula propulsora para que se dê continuidade a

vida, embora o investimento não seja tão intenso, visto que falta um pedaço desta.

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78

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

ANEXO II

Roteiro de Entrevista

Identificação

Iniciais do Participante:_____________________________ Idade:________________

Sexo: M ( ) F ( ) Natural de:____________________________________

Grau de Parentesco da criança ou adolescente: Mãe ( ) Pai( ) Outro( )

______________________

Estado Civil: Casado ( ) Solteiro ( ) Divorciado ( ) Separado( ) Viúvo ( )

Profissão: ___________________________________

Possui mais filhos? (Quantos e idade) ________________________________________

Com quem mora?

Religião____________________________________________________________

Iniciais da criança ou adolescente desaparecido e/ou falecido:____________________

Sexo: M ( ) F ( ) Natural de: ________________________________________

Data de Nascimento ____/____/______ Idade na época do ocorrido:___________

Ano do ocorrido _____________________________________

Escolaridade:_______________________________________

Temas a serem abordados:

Infância (como era a relação com os pais, irmãos e amigos além de questões

ligadas a escolaridade);

Adolescência (se namorou durante este período, como era a relação com seus

pais, amigos, se ia a festas ou frequentava lugares dos quais gostava e sobre a

escola);

Idade adulta (como é o relacionamento com o parceiro, familiares, amigos, quais

as expectativas atualmente e para o futuro).