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Universidade Federal de Sergipe Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social Mestrado em Psicologia Social AUREA MARIA PIRES RODRIGUES APOIO INSTITUCIONAL: DISPOSITIVO NA PRODUÇÃO DE USUÁRIA CUIDADORA São Cristóvão Sergipe 2014

APOIO INSTITUCIONAL: DISPOSITIVO NA …...institucional. Foi utilizado um diário de campo para registro das vivências e, a partir desses registros, práticas instituídas, bem como

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Universidade Federal de Sergipe

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social

Mestrado em Psicologia Social

AUREA MARIA PIRES RODRIGUES

APOIO INSTITUCIONAL: DISPOSITIVO NA PRODUÇÃO DE

USUÁRIA CUIDADORA

São Cristóvão – Sergipe

2014

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AUREA MARIA PIRES RODRIGUES

APOIO INSTITUCIONAL: DISPOSITIVO NA PRODUÇÃO DE

USUÁRIA CUIDADORA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia Social do Centro de

Educação e Ciências Humanas da Universidade

Federal de Sergipe como requisito para obtenção do

grau de mestre.

Linha de pesquisa: Psicologia Social e Política

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Liliana da Escóssia Melo

São Cristóvão – Sergipe

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

R696a

Rodrigues, Aurea Maria Pires.

Apoio institucional: dispositivo na produção de usuária

cuidadora / Aurea Maria Pires Rodrigues; orientadora Liliana da

Escóssia Melo. – São Cristóvão, 2014.

123 f.

Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade

Federal de Sergipe, 2014.

1. Psicologia social. 2. Saúde – Cuidado e tratamento. 3.

Cuidadores. I. Melo, Liliana da Escóssia, orient. II. Título.

CDU 316.6

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

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COMISSÃO JULGADORA

Dissertação da Discente Aurea Maria Pires Rodrigues, intitulada Apoio institucional:

dispositivo na produção de usuária cuidadora, defendida e aprovada em 05/06/2014, pela

Banca Examinadora constituída pelos Professores Doutores:

_______________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Liliana da Escóssia Melo (Orientadora)

Universidade Federal de Sergipe (UFS)

________________________________________________________

Michele de Freitas Faria de Vasconcelos (Examinadora Externa)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

________________________________________________________

Prof. Dr. Maurício Mangueira (Examinador Interno)

Universidade Federal de Sergipe (UFS)

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À mulher que, para além de um nome, ensinou-me o respeito às

rugas, aos calos, em um silêncio quase potencial – entre

orações e nenhuma vaidade – em sua dureza olhava cada

movimento como uma leoa sem medo – Minha avó Aurea Maria.

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A maior riqueza do homem

é a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,

que puxa válvulas, que olha o relógio,

que compra pão às 6 horas da tarde,

que vai lá fora, que aponta lápis,

que vê a uva etc. etc.

Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(Manoel de Barros)

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AGRADECER

Encontros e suas afecções, eis meu processo de dissertação:

À luz que ilumina os encontros por uma via de amor: Deus!

Àqueles que me deram e me dão vida, com seu intenso carinho: painho Antonio e mainha

Lindete!

Àquele que pouco me compreende, mas que sempre está buscando me fazer sorrir: meu

irmão, Henrique!

Àqueles que a morte, ao cumprir sua função de vida, levou-os, e que foram exemplos de força

e coragem: Vô Rafael, Vozinha Aurea, Vozinho José.

Àquela que dormiu 54 noites comigo, com dedicação incondicional, quando nasci quase sem

vida: Vó Mariana!

Àquela que sempre foi meu porto de segurança e fé: Jusifina, tia amada!

Àqueles que me ensinaram a força dos laços flexíveis e sempre renováveis: os Rodrigues!

Àqueles que me lançaram num mar de questionamentos, rupturas e reinvenção do meu ser

mulher: os Pires!

Àquela que em vários momentos, tinha-a como inalcançável em seu “saber”, mas que, me

abraçando por minha dedicação, deu-me muito mais que “saber”: deu-me fé em mim, Liliana,

minha mestre!

Àquele híbrido amor, que ao lançar-me em um mar de paz e turbulências, ensinou-me a

reconhecer, respeitar meus limites, e a viver a simplicidade do que se apresenta no agora:

Eduardo!

Àqueles que sempre estão em meus pensamentos, entre sorrisos e lágrimas, alguns distantes,

outros próximos: amigos!

Àqueles que fizeram de uma casa, um lar de sons, respeito e acolhimento: Jônata, Fernanda,

Henrique, Marcondes e Hebert!

À Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe que abriu suas portas para a tessitura dessa

pesquisa e, em especial, a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, na qual fui abraçada por

seus atores, como colega no fazer Saúde Coletiva: Priscila, Sílvia, Beth, Sandra, Dayse,

Clésia, Íris, Lu, Dani, Mel, Alex, Paulo, Lizandra, Poliana, Karen, Cris, Fátima, as Doulas, as

usuárias!

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Àqueles que me receberam de braços abertos no CREAS Dra. Ruth Cardoso e na Secretaria

Municipal de Assistência Social, no município de Estância/SE, onde aprendi a ter paciência, e

a me reconhecer enquanto Psicóloga, através dos laços construídos a cada dia: Aninha, Maria,

Thaís, Dete, Silvânia, Karina, Fátima, Orlando, Matheus, Denise, Indiana, Claudomiro, e

todas as usuárias, com as quais aprendo a buscar sentido nos pequenos respingos de vida!

Àqueles que junto comigo compuseram o Prosaico: Maurício, Bia, Deise, Fernanda, Vitor,

Jayana, Paula, Aldo, Priscila, Mariane e, todos que já “cumpriram” seu trajeto!

Àqueles que passaram comigo esse processo, mesmo indiretamente: colegas e professores!

Àqueles que me apontaram rumos e novos declives, nesse caminho ininterrupto: Michele,

Maurício e Liliana que, muito mais que uma banca avaliativa, são colegas de estrada!

Àqueles que me deram o suporte burocrático, tão necessário nessa trajetória acadêmica e

científica: a secretaria do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social!

Àquela que com seu carinho quase materno, me coloca de frente a meus monstros, e me faz

guerrear com cada um deles: Tati, minha querida terapeuta!

Àquela que ao longo de madrugadas, ao ensinar-me regras ortográficas, cuidou de meu texto

com muito carinho: Margot!

Àqueles que me arrancaram lágrimas, sorrisos, que me atravessaram, que me compõem e me

decompõem...

Obrigada...

Abraço com muitos braços...

Aurea Maria

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RESUMO

O presente trabalho tem como temática de estudo o Apoio Institucional, entendido como

dispositivo e/ou estratégia, no campo da gestão e da atenção em saúde coletiva, que visa

ampliar a capacidade de análise e de intervenção dos coletivos, tensionando, modificando e

produzindo práticas, a partir do fomento ao protagonismo e à coresponsabilidade, bem como

da articulação e produção de redes. O objetivo é analisar o Apoio Institucional, naquilo que

borra o instituído, possibilitando movimentos instituintes na produção de usuárias

cuidadoras. Usuárias que integram um processo de cuidado em saúde, situado entre uma certa

política da clínica e de tessitura de redes, cuja ênfase recai nos territórios existenciais dos

sujeitos. O campo teórico/metodológico fundamenta-se no pensamento de autores como

Foucault, Deleuze, Guattari, Simondon, Canguilhem e autores do campo da Saúde Coletiva,

especialmente no que diz respeito à relação de coengendramento entre produção de saúde e

produção de sujeito. A pesquisa foi realizada na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes,

referência em parto de alto risco, equipamento da rede de Urgência, Emergência e Hospitalar

do Estado de Sergipe, entre setembro de 2012 e abril de 2013. A metodologia pauta-se na

cartografia, como método de pesquisa-intervenção e de acompanhamento de processos de

produção de subjetividade, como também em alguns conceitos-ferramentas da análise

institucional. Foi utilizado um diário de campo para registro das vivências e, a partir desses

registros, práticas instituídas, bem como movimentos instituintes, efeitos de um modo de

operar o Apoio Institucional, foram analisadas e problematizadas. O Apoio Institucional, por

sua vez, além de objeto, passou a ser dispositivo/ferramenta na produção da própria pesquisa.

No acompanhamento do processo, pudemos ver e fazer ver que, ao mesmo tempo em que

certas práticas repetiam-se no fazer cotidiano, produzindo corpos passivos frente ao

poder/saber médico/hospitalocêntrico, análises coletivas, desse modo de fazer clínica,

operaram como germes de novos modos de fazer clínica e de produzir corpos, apontando a

possibilidade de usuárias produtoras de seu cuidado – usuárias cuidadoras.

PALAVRAS-CHAVE: cuidado em saúde; corpo; apoio institucional; dispositivo; usuária

cuidadora.

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ABSTRACT

The present work has as a studying theme the Institutional Support, that is understood as a

gadget and/or strategy, in the Public Health Management and Attention field, which aims to

expand the analysis and intervention capacity of the collectivity, tensing, changing and

producing practices, by fostering leadership and co-responsibility, as well as the articulation

and network production. The objective is to analyze the Institutional Support, in the part that

blurs the established, enabling the institutional movements in the production of users

caregivers. Users that are part of a process of health care, set amongst some of the clinical and

political fabric of networks, which emphasis is on the subjects’ existential territories. The

theoretical/methodological field is based on the thought of authors such as Foucault, Deleuze,

Guattari, Simondon, Canguilhem and authors in the Public Health field, especially with

regard to the relationship of co-engendering between health production and subject

production. The research was performed at Nossa Senhora de Lourdes Maternity, that is a

reference in high-risk delivery, network equipment of the Urgency, Emergency and Hospital

of the State of Sergipe, between September/2012 and April/2013. The methodology is guided

in cartography, as a research-intervention method and monitoring of subjectivity production

processes, as well as some concepts-tools of institutional analysis. A field diary was used to

record the experiences and, from these recordings, instituted practices and instituting

movements, effects of the Institutional Support operation mode, were analyzed and discussed.

The Institutional Support, in turn, besides being the object came to be device/tool in the

production of the research itself. In the monitoring process we could see and make be viewed

that, while certain practices were repetitive daily - producing passive bodies against the

power/knowledge from the doctor/hospital-centered - collective analysis, of this making clinic

mode, operated as germs new ways of doing clinical and produce bodies, pointing to the

possibility of producing users of their care - caregivers users.

KEYWORDS: health care; body; Institutional Support; device; user caregiver.

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LISTA DE SIGLAS

AIS – Ações Integradas de Saúde

A.G. – Atenção Gerenciada

AVAIs – Anos de Vida Ajustados por Incapacidade

Cabesp – Caixa Beneficiária dos Funcionários do Banco do Estado de São Paulo

CEMAR – Centro de Especialidade Médicas de Aracaju

CENAM - Centro de Atendimento ao Menor

CENDES-OPAS – Centro de Estudos do Desenvolvimento-Organização Pan-americana da

Saúde

CNES – Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde

CO – Centro Obstétrico

CsO- Corpo sem órgão

CPPS – Centro Pan-americano de Planificação em Saúde

CREAS – Centro de Referência Especializado da Assistência Social

DMPS-UNICAMP - Departamento de Medicina Preventiva e Social – Universidade Estadual

de Campinas

DOP – Diretoria Operacional

EAI – Equipe de Apoio Institucional

ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

FHS – Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe

Funrural – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

GAVA – Grupo de Apoio a Visitantes e Acompanhantes

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GPS – Grupo de Promoção à Saúde

ISC-UFBA – Instituto de Saúde Coletiva-Universidade Federal da Bahia

LAPA-UNICAMP – Laboratório de Planejamento e Administração em Saúde – Universidade

Estadual de Campinas

LES – Lúpus Eritematoso Sistêmico

MNSL – Maternidade Nossa Senhora de Lourdes

MS – Ministério da Saúde

NEP – Núcleo de Educação Permanente

PNH – Política Nacional de Humanização

PQM – Plano de Qualificação das Maternidades e Redes Perinatais da Amazônia Legal e

Nordeste

Previ – Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil

RC – Rede Cegonha

SILOS – Sistemas Locais de Saúde

SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde

SUS – Sistema Único de Saúde

UI – Unidade Intermediária

Unimed – Sociedade Cooperativa de Trabalho Médico.

USP – Universidade de São Paulo

UTI – Unidade de Tratamento Intensivo

UTIN – Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................... 14

Capítulo I:

Entre corpos e fazeres: a produção de um corpo de pesquisa ............................................ 18

1.1. Sobre o co-engendramento do fazer e do problema de pesquisa................................ 18

1.2. Sobre o co-engendramento do fazer e do modo de compreender homem e mundo .. 20

1.3. Entre lugares e modos: a construção de um problema ............................................... 24

1.4. Entre dissabores e desassossegos: povoando e inventando um campo de pesquisa... 26

Capítulo II:

Entre ditos métodos e seus modos: inspiração na produção de um dispositivo ................ 33

2.1. Cartografia: entre linhas e contornos – produção de mapas político-afetivo ............. 33

2.2. Análise/apoio institucional: entre borrões e desassossegos – produção de

movimento ......................................................................................................................... 40

Capítulo III:

A Maternidade Nossa Senhora de Lourdes e suas práticas ................................................ 45

3.1. Maternidade Nossa Senhora de Lourdes e seus apoios .............................................. 48

3.1.1. A PNH e o Apoio Institucional ........................................................................ 53

Capítulo IV:

Sobre um modo de fazer e a produção de uma saúde/um sujeito ..................................... 56

4.1. Sobre um modo de fazer saúde e a produção de um biocorpo ................................... 57

4.1.1. Ferramenta biopolítica na produção de um biocorpo: o hospital ..................... 64

4.2. Bioclínica / biopolítica: produção de um corpo – biofeminino ................................. 68

4.2.1 Sobre modos de parir: entre a medicalização e a naturalização do parto .......... 73

4.3. Entre modelos de gestão e atenção: modos de gerir – modos de fazer em saúde ...... 79

Capítulo V:

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Entre a política da clínica e a tessitura de rede: a produção de cuidado..........................88

5.1. A política da clínica: produção de outra saúde/outro sujeito ..................................... 89

5.2. A tessitura de redes em saúde: produção de outra saúde/outro sujeito ...................... 92

5.2.1. Necessitando... do que mesmo?........................................................................ 98

5.2.2. Ressignificando o fazer hospitalar: complexificando sua atenção ................. 100

5.3. Entre a produção de cuidado e a produção de um corpo: usuárias cuidadora......... 106

Considerações Inconclusivas: entre tantos entres ............................................................. 112

Referências ............................................................................................................................ 118

Anexo .................................................................................................................................... 124

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Introdução

Soltar-me das amarras acadêmicas foi um movimento concomitante ao soltar-me das

amarras institucionais de um certo modo de ser mulher. Enquanto adentrava textos, autores,

conceitos, discussões, definindo cada palavra escrita, num cuidado exaustivo, adentrava um

mundo de dilemas, desejos, formas e fluxos.

Durante o mesmo período da tessitura desta escrita, assumi o cargo de Técnica de

Referência, em um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS1), em

Estância, município sergipano. A cada dia novas mulheres: violentadas, abusadas, mentirosas,

encurraladas, espancadas. Quantas mulheres! E eu? Com medo de ser como as mulheres

“frágeis”, queixosas e tristes que cresci ao redor, com medo de não alcançar o “nível”

acadêmico de um mestrado, fechava-me num cubo quase impermeável.

“Feche as pernas menina! Sente direito! Dê a benção a sua avó! Mulher, até casar, deve

satisfação ao pai; depois ao marido! Cachorro se conhece por raça; gente, por família!” Estas

e tantas outras frases povoaram minha infância e minha adolescência de muitos

questionamentos e determinações.

Crescida entre muitas tradições e rituais – rezas, terços, bênçãos, velórios longos e

compassados entre horários e despedidas, corpos enclausurados por entre pernas e roupas

longas – descendente de índia, caboclo, português, agricultores, vi mau-olhado, sole2 e sereno,

preguiça e dor de cabeça serem curados por minha avó. As bolinhas do terço rolavam em suas

mãos e, entre um cochilo e outro, um visitante adentrava sem pedir licença: “Dona Aurea,

reze no meu filho!”. “Vozinha reze em mim, tô numa moleza!”.

Entre tantos medos e tantas buscas, lembrava-me dela: seus vestidos sem corte, seu cabelo

sempre preso por entre lenços, seus ritos que faziam da quaresma3 um tempo sem fim, sua

sobrancelha cheia, suas unhas duras, suas mãos grossas. Casara-se quase que por arranjo,

pariu seis filhos e uma filha, num mato quase sem estrada. Carregou o último na barriga, com

meu pai nos quadris e um pote4 de água barrenta, fresca e doce na cabeça. Seu olhar parecia

carregar nada. Em alguns momentos, tantos conflitos, tantas buscas pareciam sumir ali por

1 Este responde à média complexidade, da Rede de Proteção de Direitos, de casos de violação de direito a

crianças, adolescentes, mulheres, idosos, deficientes e moradores de rua. Sendo que, a maior demanda, deste

CREAS, é a violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes. 2 Sole refere-se a sol. Esta expressão, sole, foi utilizada, por ser o modo como as pessoas falavam.

3 Período de quarenta dias que antecede a Páscoa, principal celebração do Cristianismo, a Ressurreição de Cristo.

4 Utensílio de barro utilizado para armazenar água.

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entre seus dedos, nas bolinhas de seus nove terços rezados diariamente. Minha avó, Dona

Aurea, nome que ela detestava, por não ser nome de santa, e que eu amo, por soar tão duro

quanto seu olhar. Que saudade! Entre tão poucos abraços que ela permitia, fazia da vida algo

simples, corriqueiro. Era isso! E quando me lembrava dela, parecia que ser mulher, psicóloga,

pesquisadora/mestranda, transformava-se em algo corriqueiro. Sentia, nesses momentos, os

respingos de paz, como quando minha cabeça cessava de doer, após sua reza de sole e sereno,

com meio frasco de água sobre a minha cabeça.

Foi ao redor de tantas mulheres, tantas barrigas, tantos olhos tristes de tantas meninas,

lembrando-me da minha família de agricultores, de meu pai – com quem aprendi a observar o

tempo da terra – que pude vir definitivamente do interior da Bahia para a capital sergipana.

Um (des)raizamento, uma frouxidão, uma raiz dobrável. Pensando nos dias que olhava para o

céu, com meu pai, tentando lê-lo na expectativa de chuva, nos dias tristes quando ele chegava

contando que mais um animal havia morrido, nos dias que tirávamos areia da correnteza e

lama das fontes, preparando o caminho para as águas, nos dias de bonança com muitas e

diversificadas frutas, com os vasos derramando de tanto leite fresco, no chão molhado e verde

que roçava e cortava minhas pernas, fui fazendo do meu caminhar dissertativo um solo meu,

com todo o amor e cuidado aprendido com meu pai e toda a secura e a tristeza que a falta de

chuva e as pragas podem trazer. Um solo que se pisa descalço, com pés rachados e firmes de

um sertanejo que vive com e sem água.

Foi, assim, entre tantas determinações de como uma menina/mocinha deveria se

comportar e a criatividade de meu pai e minha avó, ao inventarem coisas simples e rústicas

para facilitar a lida diária com o gado e com a terra – fios de cipó transformavam-se em cinto;

galhos caídos das árvores transformavam-se em suporte para potes, ração do gado; raízes,

folhas em remédios tanto para o gado quanto para nós –, que aprendi a sempre buscar modos

diferentes de fazer as coisas. Levando essa criatividade e a possibilidade de ver uma coisa

com serventia para outras tantas, fui aprendendo a questionar as tantas determinações que

permearam a minha existência, e a ver outros modos de ser e fazer.

As discussões sobre Saúde Coletiva, na graduação de Psicologia da UFS, ocorreram

pouco tempo depois do falecimento de minha avó, no Hospital de Urgências de Sergipe, onde

pudemos constatar todos os entraves e escassez de recursos materiais e profissionais, toda a

desumanização na atenção com ela e seus familiares, levando-me a discutir com uma

enfermeira.

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Essa sequência de acontecimentos me fez ver a multiplicidade de práticas e modos de

fazer em saúde. Adentrando esse campo de discussões, aproximei-me da Política Nacional de

Humanização (PNH) e de um certo modo de pensar o humano: um humano imerso em um

território existencial, em constante defasagem de si, compondo-se com o mundo. Também

conheci o Apoio Institucional, como método/dispositivo para produzir análise e movimento,

nas instituições de saúde.

Ancorado no Movimento Institucionalista, o qual pensa as instituições enquanto lógicas

que normalizam atividades humanas, compostas por formas instituídas e forças instituintes, o

Apoio Institucional tem como objetivo produzir movimentos instituintes de autoanálise e

autogestão, melhor dizendo, de coanálise e cogestão (CAMPOS, 2007a). Inventar modos

diferentes de fazer! Era isso que me interessava nessas propostas, era o que me enchia de

alegria ao participar de rodas e encontros, em que movimentos de coanálise e cogestão eram

experimentados, mesmo que de forma embrionária.

No encontro com o campo, a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, referência para

gestações de alto risco do Estado de Sergipe, e todas as práticas que tecem o fazer em saúde, o

Apoio Institucional, para além de objeto, passou a ser ferramenta e motor dessa pesquisa.

A produção da escrita deu-se a partir da habitação deste campo e de sua problematização:

um campo povoado de formas, fluxos, linhas, práticas, conflitos. No primeiro capítulo,

discutimos a produção de um corpo de pesquisa: o engendramento entre o fazer e o problema

de pesquisa, interrogando sobre o modo como se formam os problemas de pesquisa, e as

escolhas ético-políticas orientadoras dessa escrita; o engendramento entre o fazer e o modo de

compreender homem e mundo, pois tomar a pesquisa, enquanto desnaturalização de objetos,

através do mapeamento das práticas que o objetivam, faz da mesma compromisso ético-

político; a construção do problema de pesquisa por entre lugares e modos de experienciar o

Apoio Institucional, onde escolhemos pensar o Apoio em um serviço de saúde, mapeando

lugares e atores que disparavam sua função, e os efeitos produzidos a partir daí; o

povoamento e a invenção de um campo de pesquisa, entre dissabores e desassossegos,

problematizando a minha inserção no campo e como se deu a produção da pesquisa.

No segundo capítulo, buscamos discutir métodos de pesquisa, que inspiraram o caminhar

nessa dissertação. A Cartografia foi abordada enquanto método de acompanhamento de

processos, construção de mapas político-afetivos. Entre linhas e contornos, assume a

dimensão de pesquisa-intervenção, na qual pesquisador, campo pesquisado e práticas

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cotidianas são engendrados simultaneamente. A Análise Institucional, assim como o próprio

Apoio Institucional, por meio de intervenções no cotidiano das instituições, tem como

objetivo a transformação das organizações em espaços não produtores/reprodutores de

indivíduos passivos e submissos.

No terceiro capítulo, analisamos práticas discursivas e não discursivas que conformam a

Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, através das diferentes formas de apoio institucional

praticados na mesma: da Rede Cegonha, da Política Nacional de Humanização, tanto através

de apoiadores do Ministério da Saúde, como de apoiadores da própria Fundação Hospitalar de

Saúde de Sergipe (FHS), gestora da Maternidade.

O quarto capítulo foi tecido por entre práticas biomédicas e hospitalocêntricas,

produzidas pela lógica do biopoder, a qual toma a saúde enquanto ausência de doença e os

corpos máquinas normalizadas por entre padrões de funcionamento, reduzindo o fazer em

saúde ao saber/poder médico e ao ambiente hospitalar. O modo de fazer clínica torna-se,

assim, ferramenta dessa lógica biomédica, em sua dimensão política, tomando a vida de

assalto, controlando-a/normalizando-a. Em meio a essa produção, o corpo feminino torna-se

central na manutenção e controle do projeto de higienização da sociedade capitalista, no

século XIX, através do controle das populações. A reprodução e a maternidade tornam-se

ferramentas biopolíticas no processo de medicalização do corpo feminino, o que resulta na

invenção da ginecologia e da obstetrícia, enquanto campos de saber. Assim, os modos de

parir vão se conformando com o modo de vivenciar o corpo feminino, entre a medicalização e

a naturalização do parto. Gestação, parto, maternidade tornam-se vetores na produção da

identidade feminina, ao mesmo tempo em que atravessam e conformam modelos de gestão e

atenção em saúde.

Já no capítulo cinco, buscamos analisar um certo modo de fazer clínica e de produzir

cuidado, pautado na realidade dos territórios existenciais dos sujeitos, na desnaturalização

das necessidades de saúde e da centralidade da atenção hospitalar, e no fomento ao

protagonismo e autonomia dos sujeitos. Com isso, e a partir das experiências do campo

pesquisado, chegamos à formulação de usuárias que, em meio a processos de apoio

institucional, tecem também seu cuidado em saúde – o que denominamos como usuárias

cuidadoras.

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Capítulo I ________________________________________________________________

Entre corpos e fazeres: a produção de um corpo de pesquisa

O corpo de uma pesquisa pode assumir várias formas. As estratégias metodológicas, o

modo de produção do problema, os referenciais teóricos e o percurso trilhado no fazer

pesquisa são, para além de escolhas, linhas e contornos que compõem o próprio corpo desta

pesquisa. O fazer e a forma corpórea se entrelaçam em uma tessitura ritmada.

O corpo da pesquisa se conforma ao acompanhar um fazer Apoio em um serviço de saúde,

a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes (MNSL), ao mesmo tempo em que, com o campo

novos fazeres, e novos corpos – dentre eles, o meu corpo-pesquisadora é produzido. Essa

produção de movimento, própria da Cartografia e da Análise Institucional – ambas entendidas

aqui como métodos de pesquisa-intervenção (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009) –

inspirou esta pesquisa dissertativa, desassossegando a formatAção de uma estratégia também

caracterizada como método5 – o Apoio Institucional – o qual se constituiu como objeto de

discussão/problematização.

1.1. Sobre o coengendramento do fazer e do problema de pesquisa

Como se formam os problemas de pesquisa? Como um problema se torna nosso? Leio

e releio essas questões carregadas de medo e angústia, mas sinto que, ao mesmo tempo em

que me paralisam, são elas que me sacodem no fazer dissertativo.

Não há como definir início, meio e fim dessa pesquisa. Já a produção dissertiva – com

todas as exigências acadêmicas de formação e tempo – passou por escolhas ético-políticas

iniciais e norteadoras: a) escrita em primeira pessoa – o fazer pesquisa com o meu fazer-se, já

que é apenas de nós mesmos que podemos diferir (DELEUZE; GUATTARI, 1995); b)

deformação da forma – apesar de tantas demarcações academicistas, como o modo de fazer é

inseparável do modo de dizer, busquei um método de escrita intensivista (BENEVIDES;

5 O Apoio Institucional é definido, por alguns autores a exemplo de Gastão Wagner Campos (2007), como

método. Posteriormente, discutiremos sobre o estatuto do apoio e indicaremos o modo que este foi assumindo na

nossa pesquisa.

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PASSOS, 2009); “Mudam-se as palavras, o conceito, mas muda-se, sobretudo, o modo de

dizer: não mais falar ao indivíduo e do indivíduo, mas falar dos vetores do coletivo” (p. 154);

c) especificação de onde estou e de onde falo (VEIGA-NETO, 2007) – pois o modo como

vemos e compreendemos as coisas são direcionadas por “esquemas” de certo paradigma, este

entendido “como uma margem de fundo..., a partir da qual se vê e se compreende aquilo que

se pode ver e compreender do mundo” (ibidem, p. 40), problematizando homem, mundo, a

relação entre estes, solidificando o caminhar do processo dissertativo.

“O conhecimento do conhecimento obriga” (MATURANA; VARELA, 2010, p. 267)

a permanecermos em constante vigília, já que não há certezas que provêm de verdades, pois

não vemos o mundo, mas um mundo construído com os outros. Não há a “verdade”, mas sim

discursos, ou melhor, práticas discursivas que compõem o verdadeiro nas sociedades

(PARAÍSO, 2012).

Ao mesmo tempo sabemos, antecipadamente, que o discurso que

produzimos com nossas pesquisas é um discurso parcial que foi produzido

com base naquilo que conseguimos ver e significar com as ferramentas

teórico-analíticas-descritivas que escolhemos para operar (ibidem, p. 28).

Como também estamos imersos em regimes de verdade, assim como construímos

significações, “torna-se indispensável pensar os conceitos de que lançamos mão imersos

numa rede de significações” (ibidem, p. 19). Rompendo com as objetivações naturalizadas e

os pressupostos de teorias que se querem “verdadeiras”, a trama de engendramento de um

“conceito/objeto” deve servir aqui como uma caixa de ferramentas (FOUCAULT, 1979) para

as (des)naturalizações num outro regime político.

De objetos para objetivações, revertemos o modo de fazer pesquisa de apropriação do

real para produção de realidades, no qual as metodologias são construídas a partir dos

problemas formulados, modificando o já dito e o efeito sobre os “objetos” (PARAÍSO, 2012).

Estes, objetivados por um conjunto de práticas a um status de centros de certos

poderes/saberes, são encarnados, pois “não podem ‘cair como paraquedas’, assim do nada,

isolados, quase objetos-anjo, sem sexo, sem cor, sem vida, no interior de nossas pesquisas”

(FISCHER, 2007, p, 64). Assim sendo, como construções sociais, políticas e culturais os

objetos devem ser tratados como históricos, em “suas descontinuidades e permanências,

naquilo que oferecem como ruptura ou como (provisório) fixação dos modos de ser e existir”

(ibidem, p. 64-65).

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Uma prática de pesquisa, por sua vez, “é um modo de pensar, sentir, desejar, amar,

odiar; uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de

resistência e de submissão ao controle” (CORAZZA, 2002, p. 121), buscando “artistar,

inventando novos estilos de vida e, portanto, novas práticas” (ibidem, p. 122). Enquanto

compromisso ético-político, “estimulamos em nossos trabalhos os movimentos de

multiplicação de sentidos e de proliferação das forças. Buscamos introduzir as forças nas

formas” (PARAÍSO, 2010, p. 32).

E o problema – conceito incitador dessa etapa da escrita – como se compõe, nessa

prática de pesquisa? Primeiro, ele não é descoberto, é engendrado (CORAZZA, 2002).

Segundo, aceitando a obviedade do objeto, posteriormente duvidando dela, construindo-o

como histórico, elaboramos as propostas investigativas (FISCHER, 2002), pois “criar um

problema de pesquisa é virar a própria mesa, rachando os conceitos e fazendo ranger as

articulações das teorias” (CORAZZA, 2002, p. 116). Deste modo, objeto, objetivos,

embasamentos teórico-metodológicos e o problema constroem-se no fazer, em escolhas ético-

políticas-teórico-metodológicas que borrem um campo de verdades, desterritorializando e

reterritorializando outros modos de existir.

Assim, podemos dizer que o problema de pesquisa, ao mesmo tempo em que é

engendrado na tessitura do próprio fazer, ele próprio engendra um novo fazer, construindo as

linhas de um certo mapa, de uma certa realidade.

1.2. Sobre o coengendramento do fazer e do modo de compreender homem

e mundo

Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos

como um Deus

e amanheço mortal...

O silêncio das estrelas

Lenine

Tomar a pesquisa enquanto desnaturalização de objetos, através do mapeamento das

práticas que o objetivam, faz da mesma compromisso ético-político. O ato ético, por sua vez,

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“não é nem matéria nem forma” (ESCÓSSIA, 2004, p. 198), mas plano construído através do

desejo, da emoção, à medida que eles são fomentados com a própria ação, dimensão anterior a

qualquer objeto, a qualquer sujeito, no plano dos fluxos, das linhas, das não formas. O que faz

do modo de pensar realidade, mundo, homem dimensões engendradas em um constante

processo de produção.

O mundo e os próprios sujeitos são produtores de si, da realidade que vivenciam. São

as práticas cotidianas, praticadas por nós sujeitos engendrados com um mundo, que fazem de

uma realidade um modo ou outro de ser. Este modo, por sua vez, compõe o próprio modo de

ser de nós sujeitos. Esse processo de produção de si e do mundo engendra-se, também, com o

próprio modo de pesquisa assumido aqui, em seu caráter ético-político, principalmente, no

que se refere à relação da pesquisa com o campo – produção de dados que buscam interferir,

tensionar a produção de outras formas, outras relações autônomas, protagonistas e

democráticas.

Como, todavia, pensar sujeitos em constante processo de produção si e do mundo?

Suely Rolnik6 compara um modo de existência à pele – tecido em constante movimento, no

qual há morte e produção diária de células, e que está em contato direto com o fora. Cada

modo de existência, dessa maneira, é uma dobra da pele que delimita um certo perfil de uma

figura da subjetividade. Como “o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro” (ibidem,

s/p), pele e fora se movimentam e, entre mortes e novas produções, perfis são constituídos.

Gilles Deleuze (2006) discorre sobre o processo de subjetivação, ao afirmar que este

se dá por dobramento do fora. O lado de dentro é um vergar do fora. Pensar o sujeito

enquanto processo de dobra rompe com uma visão metafísica, baseada em fases determinadas

e em um processo evolutivo. O sujeito aqui é pensando como constante defasagem de si,

tensionada pelo fora.

Gilbert Simondon (2003) apresenta o indivíduo como uma realidade relativa, em

processo de individuação.

A individuação psíquica e coletiva é uma operação, um processo, que

prossegue em um ser já individuado (o vivo), sendo assim, não resulta em

um novo indivíduo, em uma nova substância, mas em novos domínios do

ser, definidos pelas funções que nascem do desdobramento individuante.

(ESCÓSSIA, 2008, p. 23).

6 Disponível em: http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/sujeticabourdieu.pdf.

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O ser é então composto por domínios “definidos pelas funções que nascem do

desdobramento individuante” (ibidem, p. 23). Ao passo que ocorre o processo de

individuação, de delimitação de uma forma, há uma dimensão pré-individual que mantêm o

caráter processual e que é anterior e permanente ao sujeito, assim como o lado de fora trazido

por Deleuze (2006).

Com a obra A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana,

Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela (2010), a partir de uma base discursiva

biológica, denominam o ser vivo como organização autopoiética, ou seja, capacidade de

produzirem-se constantemente, ocorrendo mudanças na estrutura, mas havendo, contudo,

manutenção da organização - capacidade de autoprodução. Longe de uma produção num

sistema fechado, os autores partem de uma relação mútua entre organismo e meio, a partir do

conceito acoplamento estrutural, segundo o qual organismo e meio perturbam-se mutuamente.

Tendo cada unidade autopoiética estrutura particular, as estruturas do meio perturbam

as da unidade e vive-versa, de tal modo que “toda variação ontogênica resulta em uma forma

diferente de ser no mundo, porque é a estrutura da unidade que determina como ela interage

com o meio e que o mundo configura” (p. 99). O acoplamento estrutural é base da adaptação,

pois esta é consequência necessária do acoplamento estrutural de um organismo a um meio.

Ao contrário de uma seleção natural, na qual os organismos adaptam-se/enquadram-se ao

meio, a adaptação exposta por Maturana e Varela fala de uma adaptação/simbiose, quando há

uma compatibilidade organismo/meio, conservando o dinamismo do organismo, sua

autopoiese; ao contrário de uma seleção natural, há uma deriva natural. O próprio sistema

nervoso é dotado de uma plasticidade, operando num domínio de acoplamento estrutural que

“acopla as superfícies sensoriais e motoras, mediante uma rede de neurônios, cuja

configuração pode ser muito variada.” (p. 177) e de clausura operacional, em forma circular.

Por isso, “todo estado de atividade leva a outro estado de atividade nela mesma” (p. 185) e

esse caráter do sistema nervoso, para os autores, amplia a capacidade de autoprodução.

Esse conceito de acoplamento estrutural parece ter uma relação íntima com o conceito

de agenciamento forjado por Deleuze e Parnet (1998), já que estes afirmam que “O

agenciamento é o cofuncionamento, é a ‘simpatia’, a simbiose” (p. 43). Logo após, eles

continuam: agenciar é “estar sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo

exterior” (p. 44), ou seja, da relação consigo e do meio onde as relações de força se atualizam.

Escóssia (2004) afirma que os agenciamentos possuem duas faces complementares, o

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agenciamento maquínico de efetuação, no qual os corpos transmitem afetos, efetuando

estados e, o agenciamento coletivo de enunciação, no qual há produção de signos, onde os

sujeitos são agentes coletivos. Deleuze e Parnet (1998) apontam que os movimentos de

desterritorialização e reterritorialização “coexistem em um agenciamento” (p. 59), ao passo

que estruturas são deformadas outras são formadas. Agenciar/acoplar corpos/estruturas que

se misturem, transmitam afetos, efetuem estados e produzam gestos. Tanto o acoplamento

estrutural quanto o agenciamento dizem de encontros que produzem desestabilizações e

tensionam novas relações consigo, com os outros e com o mundo.

Ao tratar dos fenômenos sociais, Maturana e Varela (2010) estendem o conceito de

acoplamento estrutural para acoplamento social, explicando, a partir deste, os

comportamentos comunicativos. “Toda vez que há um fenômeno social há um acoplamento

estrutural entre indivíduos” (p. 214), unidades autopoiéticas, em constante produção de si e do

meio, operando num domínio chamado por eles de clausura operacional; ou seja, em forma de

um sistema circular, no qual um estado leva a outro, tanto no nível da própria estrutura do

organismo quanto da relação com o meio e com outros organismos.

Através da ressignificação do conceito saúde, Georges Canguilhem (1995), em o

Normal e o Patológico, convoca essa discussão da relação de coengendramento do homem e

do mundo, já que “a saúde é a vida em silêncio dos órgãos; que, por conseguinte, o normal

biológico só é revelado, como já dissemos, por infrações à norma, e que não há consciência

concreta ou científica da vida, a não ser pela doença” (ibidem, p. 90). Para chegar à definição

de saúde e de doença, o autor apresenta a vida como uma polaridade dinâmica e acrescenta

que ela é constituída por normas. Normas? Sim, mas ao contrário da apropriação feita do

termo norma, substantivada com o artigo “a”, o mais importante para este autor é a

capacidade dos sujeitos construírem normas, sendo a saúde a expressão desta capacidade

normativa e a doença o enfraquecimento de tal capacidade. Assim sendo, “Sua normalidade

advirá de sua normatividade” (ibidem, p. 113).

… a saúde é o bem orgânico. A saúde adjetivada é um conceito descritivo

que define uma certa disposição e reação de um organismo individual em

relação às doenças possíveis… Quando se diz que a saúde continuamente

perfeita é anormal, expressa-se o fato da experiência do ser vivo incluir,

de fato, a doença. Anormal quer dizer precisamente inexistente,

inobservável. Portanto, isso não passa de outra maneira de dizer que a

saúde contínua é uma norma e que uma norma não existe (ibidem, p.

107).

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No último capítulo intitulado Sobre a morte do homem e o super-homem da obra

Foucault (2006), Deleuze diz que o homem é uma forma resultante da atualização das forças

de fora. Eterna mutação, fala Deleuze, pois as forças do fora, as quais entram em relação, na

conformação de uma forma, são finitas. Essas forças, por sua vez, são a Vida, o Trabalho, a

Linguagem, que vão “provocar o nascimento da biologia, da economia política e da

linguística” (ibidem, p. 135). Já o super-homem “tende a libertar dentro de si” (ibidem, p.

142) essas forças. Encerrando com Foucault, Deleuze diz: “o super-homem é muito menos

que o desaparecimento dos homens existentes e muito mais que a mudança de um conceito”

(ibidem, p. 142).

O conceito homem também é um objeto – objetivado/naturalizado através de práticas.

O que o convoca a compor-se e a compor esse mundo, enquanto engrenagem do processo de

mudança de si, do mundo e dos outros. Para além de meros objetos de intervenção de saberes,

como o saber médico, os sujeitos são constituintes do próprio saber e do próprio poder,

enquanto engrenagem na produção de si. Sujeitos normativos, autopoiéticos, em constante

defasagem de si, produzindo-se com a instabilidade da vida, borrando suas realidades,

compondo outros movimentos. De modo que,

A individuação deve ser apreendida como devir do ser, e não como modelo

do ser que esgotaria sua significação. O ser individuado não é todo o ser nem

o primeiro: em vez de apreender a individuação a partir do ser individuado,

é necessário apreender o ser individuado a partir da individuação e a

individuação a partir do ser pré-individual, repartido segundo as várias

ordens de grandeza (SIMONDON, 2003, p. 110).

1.3. Entre lugares e modos: a construção de um problema

Em 2011, para o trabalho monográfico de conclusão do curso de Psicologia, pesquisei

modos de institucionalização do Apoio Institucional – entendido como método para

ampliação da capacidade de análise e intervenção dos agrupamentos humanos, para a

produção de práticas de saúde mais democráticas – com o objetivo de investigar a relação

desse método com a efetivação dos princípios do SUS. Cartografei uma experiência na

Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe (FHS), gestora da Rede Hospitalar e de Urgência e

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Emergência do Estado de Sergipe. Acompanhei atividades de um apoiador vinculado à

Política Nacional de Humanização (PNH) e algumas reuniões internas da Diretoria

Operacional (DOP), formada por profissionais de diversas áreas, como psicólog@s,

enfermeir@s, fisioterapeut@s, médic@s, cujo cargo era o de apoiador institucional, ou seja,

haviam sido contratados, especificamente, para atuarem como apoiadores dos diferentes

equipamentos da rede hospitalar e de urgência e emergência do Estado de Sergipe, compondo

uma rede de ligação entre atenção e gestão. Ao longo da pesquisa, ao acompanhar atividades

dos apoiadores da FHS, transitei pelos equipamentos da rede e nos próprios espaços de gestão

que compõem a estrutura organizacional da FHS, especialmente na DOP, onde estavam

lotados os apoiadores institucionais. Permaneci, nessa primeira pesquisa, de certa forma,

“amarrada” a este lugar. A organização física da DOP, as posições das mesas, as

proximidades e distanciamentos das pessoas, a relação destas com as unidades que apoiavam,

seus discursos, seus silêncios, tudo era “novidade”, “encantamento”, força para observação. O

modo como era vista, como me afetava, como me misturava naquele espaço do apoio

institucional, forjaram um certo entendimento de apoio, de como produzi-lo, além de

atravessar meus posicionamentos. Um apoio realizado por gestores, mesmo que com a função

de ponte entre atenção e gestão, era um fazer em gestão, de modo que o limite entre o

instituído modo supervisão, avaliação de fazer gestão com o modo democrático do apoio

institucional parecia ínfimo, o que acabava despotencializando o próprio fazer do apoio. Um

certo lugar de produção, um certo modo de experimentação.

Em dezembro de 2012, aprovada neste mestrado, o projeto submetido continuava com

o mesmo objeto: o Apoio Institucional. Contudo, havia uma indefinição quanto ao campo de

pesquisa. Após discussões nas reuniões de orientação, escolhi permanecer na rede de

Urgência e Emergência, mas em uma de suas unidades, a Maternidade Nossa Senhora de

Lourdes (MNSL), serviço que responde aos casos de gestação de alto risco, no Estado de

Sergipe. Saí de um lugar conformado de gestão, uma diretoria, cuja função era

coordenar/monitorar/avaliar e tornar possível o Apoio Institucional, para “a ponta”, um

serviço intensamente povoado de urgências e emergências, espaço onde o apoio deveria

acontecer, sem, no entanto, existir um lugar conformado para o exercício deste apoio. Isso me

permitiu experimentar modos de fazer de diferentes atores, de diferentes lugares. Fui me

relacionando, sendo conhecida, conhecendo, envolvendo-me. Nesse outro campo, assumi

outro lugar: um lugar entre atenção e gestão. Pesquisadora/olhuda povoava o contato dos

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trabalhadores; profissional de saúde para os usuários, quando vestida pelo poder/saber do

jaleco branco; psicóloga, quando esse saber/poder era “necessário”, na falta de um psicólogo

da MNSL; “qualquer um”, quando sem jaleco; instrumento de “promoção das ações de

Humanização” da maternidade, quando participava de atividades vinculadas a dispositivos da

PNH.

Esses tantos entres, nos quais pude transitar, me encantar, me perder, reelaboraram

comigo, no próprio percurso, um outro modo de fazer Apoio Institucional. Para além de um

método de gestão, passei a investi-lo enquanto um dispositivo, este caracterizado por “sua

capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação” (BENEVIDES;

KASTRUP, 2009, p. 90) na construção de um lugar – o lugar do usuário no fazer cotidiano do

cuidado em saúde. Contudo, entre tantas idas e vindas, grupos acolá, conversas de corredor

ali, percebi que os lugares podem possuir determinações muito definidas e inflexíveis –

jalecos, crachás, numerações de alas. Assim, mantendo o entendimento de Apoio Institucional

enquanto um dispositivo e todo o movimento que pode compô-lo, a partir do encontro com

corpos femininos e práticas atravessadas por lógicas biomédicas, pudemos visualizar potência

no apoio institucional, enquanto dispositivo na produção de usuárias cuidadoras –

protagonistas na construção do seu cuidado em saúde.

1.4. Entre dissabores e desassossegos: povoando e inventando um campo de

pesquisa

O projeto da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, através da

Plataforma Brasil, e esta o enviou para o Comitê de Ética do Hospital Universitário de

Aracaju/Universidade Federal de Sergipe, o qual embasado pela Resolução 196/96, do

Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (CNS/MS), que dispõe sobre as

Diretrizes e Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, aprovou o projeto (CAAE:

03898312.8.0000.5546, CEP/HU/UFS).

Escolhida a Maternidade Nossa Senhora de Lourdes (MNSL), fui ao encontro de um

mundo desconhecido, literalmente em tateio, afinada apenas com a perspectiva de mapear

lugares, nos quais o apoio institucional fosse disparado, independente do trabalhador ou do

cargo.

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Algumas “categorias/questões” foram definidas como orientadoras para o encontro com o

campo, baseadas no método da tríplice inclusão da PNH, quais sejam: O que se apoia? Quem

se apoia? Que sujeitos participam das ações? Como são convocados?

Entendendo que o apoio é realizado em e a grupos, fomentando coletivos e tecendo redes,

após apresentações aos responsáveis pela Educação Permanente da Maternidade, busquei

mapear grupos, reuniões de equipe nas quais pudesse inserir-me, além de conhecer o espaço

geográfico da Maternidade.

Três possibilidades se apresentaram:

1) Grupo de apoio a visitantes e acompanhantes (GAVA): realizado pelo Núcleo

de Educação Permanente (NEP) e Ouvidoria, com o objetivo de efetivar a

diretriz da PNH - a Visita Ampliada. Segundo esta, o ambiente hospitalar não

deve ser indissociável dos vínculos sociais e afetivos dos usuários, de modo que

a internação deve ser povoada pelo contexto social/afetivo dos usuários. Assim

sendo, após a implantação desta diretriz, o GAVA passou a ser uma ferramenta

de orientação em torno da higienização (como lavar as mãos para ter contato

com os pacientes, sobre a alimentação destes, o uso dos banheiros e das

acomodações) e do fluxo da maternidade para os visitantes e os acompanhantes.

Estes são convidados a participar do grupo que acontece às segundas, quartas e

sextas, das 14h30 às15h30, no auditório da maternidade e, de forma pontual,

também por visitas às enfermarias pelo NEP e Ouvidoria;

2) GPS (Grupo de Promoção a Saúde): realizado pelo NEP e a Psicologia, às

segundas e quintas, das 15h30 às 16h30, com as gestantes internadas. Esse

grupo busca promover a ampliação do conceito saúde, visando trazer outra

conotação ao espaço hospitalar, para além do caráter interventivo, através de

atividades lúdicas, como dança, pintura, passeios pela maternidade, rodas de

conversa e problematização em torno do gestar, do parir, de forma que as

gestantes possam sair do quarto e ampliar sua visão, enquanto parte do processo

de cuidado na instituição;

3) Reuniões da Ala Verde: a) reuniões de equipe de discussão de caso (apelidada

de Round pela equipe): realizadas diariamente, por toda a equipe (pediatras,

psicóloga, fonoaudióloga, fisioterapeuta, assistente social e enfermeira, além de

acionar outros profissionais, quando necessário, como a responsável pela sala de

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manejo); b reuniões com as mães para explicar e exemplificar o Método

Canguru, quando os bebês têm alta do UTIN ou UI, com o objetivo principal,

de vincular as mães ao funcionamento e importância do método; c) reuniões de

alta: no momento da alta hospitalar, o cuidado de casa é discutido com as mães.

O cuidado ao prematuro, então, é feito de forma pactuada com a mãe, enquanto

o bebê está na UTIN ou UI. São também realizados os primeiros contatos, a fim

de que a equipe possa avaliar se a mãe possui condições físicas e emocionais

para despender o cuidado esperado pela equipe. No momento da alta do bebê da

UTIN ou UI, as mães recebem uma explicação sobre o que é o método canguru

e dos seus benefícios. Durante o tempo de internação do bebê na verde, suas

mães seguem hospitalizadas também. Nesse período, a equipe ensina cuidados

específicos para com o prematuro; no momento da alta da ala, as mães são

orientadas e chamadas à responsabilidade para manterem o cuidado aprendido

na maternidade7. Após a alta, a ala passa de forma improvisada a ambulatório,

momento em que a equipe recebe os bebês e as mães, avaliando o quadro

daqueles, até completarem 2kg, para os bebês de Sergipe, e 3kg para os baianos

e alagoanos. Recebida a alta do “ambulatório” da maternidade, bebê e mãe

passam para um ambulatório propriamente dito, no qual são acompanhados até

os dois anos de vida.

Passados os primeiros contatos, as primeiras apresentações, fui me desligando da

burocratização, para a inserção no campo, e tecendo minha própria apresentação e vinculação

com os atores que compunham os grupos acima citados, desde trabalhadores a usuárias. A

cada encontro, preenchia meu caderno com impressões, sentimentos, medos, análises,

questões, desenhando e redesenhando o traçado do que se passava nos encontros. Fiz dos

diários de campo meu reduto, onde me perdia, achava-me, indignava-me, calava-me, sonhava.

Yves Winkin (1998), a partir do movimento antropológico, aponta três funções do diário:

1) catártica: função emotiva, “O lugar corpo-a-corpo consigo mesmo” (p. 138); 2) empírica:

tudo o que chamar a atenção será anotado, em um primeiro momento, “de maneira

descabelada” (p. 139), passando para um procedimento mais analítico; 3) reflexiva e

analítica: função que permite surgir regularidades, “que nos levam a falar em termos de

regras” (p. 139).

7 Segue em anexo, Ficha de Cuidados e Orientações para a Alta, disponibilizada pela Equipe responsável pelo

Projeto Canguru.

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Vasconcelos (2013) assinala que os diários de campo devem ser analisados por marcarem

“a processualidade dos caminhos de pesquisa e das análises, mapeiam desenhos de produção

coletiva de conhecimento, de coemergência do sujeito e do objeto de pesquisa” (p. 55), pois

enquanto potência produz descrições e análises que almejem “acompanhar a eclosão de

acontecimentos que arejem cotidianos” (p. 55).

Os diários, então, configuram-se em relatos das situações vividas: passo a passo de

reuniões, impressões, falas de trabalhadores, usuárias, histórias, afeições, desafetos,

discussões com a teoria, indagações. Ao passo que tecia o campo, tecia o fazer Apoio

Institucional, tecia um ser mulher/pesquisadora/psicóloga.

Foi, assim, entre tantos encontros, sejam com falas, ações, aproximações, distâncias que o

problema foi tomando corpo e, entre tantas escritas em meu caderno/companheiro, repetições

denunciavam formas instituídas, estranhamentos e afetações tensionavam forças instituintes.

Dessa forma, o problema encarnado nesta pesquisa, passou por lugares e modos de

experimentação do Apoio Institucional e foi através de tantas repetições que germes de

resistência puderam ser faiscados.

Os diários de campo então foram organizados entre repetições, as quais apontavam

regularidades, formas instituídas e; resistências ao regular, abrindo lacunas para outros modos

de fazer saúde, outras relações entre trabalhadores e usuárias e destes com o próprio processo

de trabalho. Algumas questões, todavia, se faziam como lente na leitura dos mesmos: Que

modo de fazer saúde os meus escritos do campo apontavam? Quais lógicas compunham esse

modo de produzir saúde? Que modelo de gestão permeava o fazer cotidiano? Que corpos

eram aqueles que atritavam em mim a cada encontro?

Contudo, após leituras e releituras dos diários, de teorias, de conceitos, de sentimentos,

como trazer os meus escritos, do meu caderno, para esta escrita dissertativa, de forma a

compor uma produção acadêmico-científica? A resposta desta questão foi um processo até

doloroso, uma confiança em mim necessitou ser tecida.

E entre escritas repetidas, a forma do meu solo dissertativo se firmava, dando, todavia, a

possibilidade de germinar resistências. Entre repetições, três iniciaram a solidificação: 1)

queixas de impotência de trabalhadores, pautadas em insumos: discursos de culpabilização

entre a gestão do serviço com as gestões estatais, amarras burocratizantes para a compra de

insumos, organização do trabalho. Fato que, em muitos momentos, sufocava a potência de

invenção dos grupos.

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O GAVA era iniciado com trabalhadores da Maternidade falando sobre o excesso de

pacientes, em especial, os vindo de outros estados como Bahia e Alagoas, fato que levava a

equipe a improvisos e a justificar a impossibilidade de garantir alguns direitos, como por

exemplo, acompanhante no momento do parto. Reclamações e sugestões, por parte dos

acompanhantes e dos visitantes, como a falta de controle na porta de entrada, eram abafadas

pelo excesso de pacientes e a falta de insumos que pudessem abarcar toda essa demanda.

Durante vários encontros, o grupo faiscava enquanto um espaço de produção, de inserção, de

transformação, mas possivelmente era ali, junto com quem povoava os quartos e mais

utilizava os insumos – as usuários e seus acompanhantes e visitantes – que soluções “simples”

poderiam ser inventadas.

Os processos de trabalho também se chocavam em escutas surdas. Devido a uma

normatização do Conselho de Enfermagem, só deveriam trabalhar na UTI técnicas de

enfermagem; as auxiliares de enfermagem, que lá estavam, deveriam ser lotadas para outros

setores. Houve um reboliço entre as técnicas e as auxiliares, pois a grande maioria trabalhava

em setores, há algum tempo, e já estavam vinculadas com a equipe, com a rotina de trabalho,

com a especificidade do setor. Ouvi uma enfermeira dizer que uma técnica de seu setor teria

lhe dito que, caso fosse para a UTI, sua vida iria desestabilizar, pois acreditava que não

conseguiria lidar com a complexidade dos casos da UTI, com a rotina de óbitos.

Determinações verticais como essa e tantas outras, dentro da própria Rede de Saúde Estadual,

pareciam afastar ainda mais os trabalhadores de seu próprio trabalho; reclamações não

ouvidas e/ou escutas surdas, sufocavam as relações e cada um passava a povoar as

funcionalidades específicas de cada profissão. Os encontros com o outro, em especial com o

usuário, eram tomados por escutas surdas.

A própria implantação do GAVA parecia ter ampliado ainda mais o isolamento em

funcionalidades profissionais, como verificar estado físico, prescrever prontuários, seguir

rotinas protocolares da enfermagem, da fisioterapia, da nutrição entre tantas outras

especialidades. Questões da organização das alas e de alguns limites, como a utilização da

cama, do banheiro do quarto só para a usuária, passaram a ser responsabilidades do GAVA.

Problemáticas entre condutas e rotina das alas com os visitantes e acompanhantes passaram a

ser de responsabilidade e resolubilidade do GAVA. A comunicação, o toque, o contato que

existia entre o grupo fez com que o GAVA, e toda a potência que nele faiscava, se

transformassem em isolamento. Isso gerou a desresponsabilização das equipes diárias que

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com eles conviviam, transformando-o num grupo específico de trabalhadores da gestão, que

conduziam os encontros do GAVA.

2) desinteresse das pacientes8, visitantes, acompanhantes: era muito difícil convocar as

pessoas para participarem dos grupos. Tentei algumas vezes “convocá-las”, explicando o

objetivo dos grupos, mas a adesão era pouca e, mais uma vez, via a tensão entre gestão e

usuário, distância silenciada e ampliada nos modos de relacionamento. Inquietava-me o

desinteresse, principalmente por aquele espaço ser, para mim, potencial para a construção

participativa do cuidado.

Os convites para a participação no GAVA eram feitas no horário do almoço. Horário no

qual todos em fila e enquanto recebiam os tickets para almoçarem, recebiam a chamada para o

grupo. Os visitantes e os acompanhantes, às vezes, nem esperavam a equipe terminar de

explicar o que era a atividade e já respondiam que iriam participar, mas, em muitos dias a

adesão era, de fato, muito pequena. Era como se precisasse ser dito: “Venham compor um

espaço que construímos para vocês!”. Mas, em contrapartida, falas e escutas se perdiam por

entre desinteresse e uma convocação ansiosa e ancorada em um lugar de gestão, que entre

faltas e superlotação, ouvia pouco o movimento daqueles corpos desinteressados.

3) conflitos cotidianos: saber/poder médico – saber/poder usuária: experimentados,

principalmente na Ala Verde, já que nesta os bebês e, consequentemente, suas mães

permanecem por um período longo de internação. O tempo de internação/hospitalização das

usuárias, em relação à equipe, era recheado de afetos, dissabores, simpatias, antipatias. As

mães tornam-se parte do cuidado, peça chave. Para além das intervenções médicas, elas são o

monitoramento diário, coladas pele a pele a seus filhos, os mantêm respirando. Porém, como

essas mães Canguru9 são inseridas nos processos de cuidado? Como elas conciliam a vivência

hospitalar, enquanto cuidadoras, e suas vidas, para além dos muros da maternidade e da

responsabilidade no cuidado ao filho prematuro?

Um dos principais critérios para a retirada de um bebê da UTIN (Unidade de

Tratamento Intensivo Neonatal), era a boa mãe: dedicada, tranquila, consciente da

8 É frequente em espaços hospitalares ser usado o termo paciente ao invés de usuário, de modo que, em alguns

momentos será utilizado o termo paciente na tentativa de manter o campo o mais vívido possível nas descrições.

O significante usuário passou a ser utilizado para desnaturalizar o significado adotado em paciente, enquanto

passivo, para àqueles que usam o Serviço de Saúde e são participantes de sua construção - usuários. 9 Essa expressão é utilizada para identificar as mulheres que foram inseridas na Unidade Intermediária Canguru,

na qual as mães são hospitalizadas junto a seus bebês prematuros, compondo parte do cuidado, pois permanecem

com os bebês presos aos seus corpos, em contato pele a pele, mantendo seus filhos aquecidos e tensionando a

respiração dos mesmos.

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importância do método canguru, equilibrada emocionalmente, que aprendesse e

acompanhasse a rotina de cuidados. Contudo, essa boa mãe, enquanto boa mãe, deveria

abdicar de sua rotina extra muro da Maternidade. Certo dia, a ala estava povoada de ruídos e

cochichos, pois uma mãe havia deixado o filho com as colegas de quarto para fazer compras.

Vivenciei muitos exemplos como esse que, em sua maioria, desembocava na

pessoalização. A Psicologia, porém, era acionada para atenuar a pouca comunicação entre os

saberes, visto que, mesmos os discursos sendo atravessados por causas sociais, institucionais,

o problema era focado na conduta da paciente, enquanto um ser individualizado, fato que só

aumentava a antipatia e dificultava o atendimento.

Individualizando a questão, a partir de um certo modo de ser mãe, e a Psicologia

assumindo o papel de cuidador do emocional, era aos profissionais da Psicologia que cabia

atenuar os “desvios” protocolares dessas “não-mães”, que ao invés de cuidarem de seus filhos,

saíam para fazer compras.

Os profissionais de Serviço Social também assumiam esse papel – de bombeiros, com

a Psicologia, apagando incêndios entre as usuárias e o cotidiano protocolado em condutas

burocráticas. Em conversa com alguns profissionais da Psicologia e do Serviço Social, estes

falaram que as principais demandas que chegam até seus setores são em torno da

hospitalização, da saudade da família, dos óbitos e do cotidiano.

Essas discussões iniciais, com as questões norteadoras para as leituras e análises dos

diários de campo, lançaram-me em tantas outras questões, não distantes das já apontadas, mas

sim, mais afinadas com o campo de pesquisa, o que me aproximava mais e mais desse fazer

pesquisa em uma Maternidade: Que usuárias são essas? Como elas se percebem naquele

espaço? Que reverberações estão afetando-as, quando acionadas a serem parte do cuidado de

seus bebês (des)hospitalizados das UTIs? Como as equipes acionam as mães ao cuidado?

Como as introduzem na produção cotidiana das práticas de saúde?

Pensar que lugar/serviço de saúde era aquele, que mulheres eram aquelas e o que

produziam e reproduziam aquelas relações entre usuárias e profissionais de saúde, por meio

de um modo de fazer gestão democrático em saúde – o Apoio Institucional –, foi o principal

adubo das discussões que se seguem.

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Capítulo II _________________________________________________________________________

Entre métodos e seus modos: inspiração para a produção de um dispositivo

O que nos sussurra os ditos escritos nos diários de campo? O que produziu os

encontros com tantos corpos nos espaços da MNSL? Que lógicas compõem as práticas

discursivas10

desenhadas em meus diários de campo? Quais borrões foram esboçados com a

prática de pesquisa? Como o Apoio Institucional pôde ser problematizado e acionado em

meio às práticas experimentadas? Essas e tantas outras questões suscitadas desenharam-se nos

contornos dos mapas cartografados. Entre encontros, toques, tateio, linhas foram engendradas,

tensionadas. Entre análises, as instituições foram questionadas e remexidas. Entre linhas e

instituições, o movimento foi o grande propulsor, fôlego e busca desta prática de pesquisa que

aqui se desenha.

Todavia, como dar sentido aos escritos do campo? Como mapear, analisar e

movimentar através de um apoio pensado, a princípio, como método, sendo este, contudo, o

próprio objeto da pesquisa? Como pensar metodologia de pesquisa para pesquisar um

método? Questões norteadoras, engendradas com o campo, no qual as escolhas metodológicas

seguiram um caminho inverso: de coletoras de dados a ferramentas na produção de

movimento do próprio modo de teorizar e fazer do apoio institucional.

2.1. Cartografia: entre linhas e contornos – produção de mapas político-

afetivos

“Guattari prepara a definição do método cartográfico segundo o qual o trabalho da

análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade” (PASSOS;

BENEVIDES, 2009, p.27). De maneira que, como só podemos diferir de nós mesmos

(DELEUZE; GUATTARI, 1995) a partir da defasagem de si coengendrada com o mundo,

10

“O conceito de práticas discursivas remete, por sua vez, aos momentos de ressignificação, de rupturas, de

produção de sentidos, ou seja, corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto

a ordem como a diversidade... Podemos definir, assim, práticas discursivas como linguagem em ação, isto é, as

maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas”

(SPINK; MEDEDRADO, 2004, p. 45).

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interferindo ao mesmo tempo no próprio mundo e nos outros, cito abaixo alguns fragmentos,

na íntegra, de diários de campo, os quais trouxeram vivências e afetações com o campo.

Diário 15.10.2012: “Hoje me percebi encurralada, como se eu tivesse

que dar alguma satisfação à Maternidade. Não que não haja vínculo,

ou um contrato de troca, mas não sou funcionária.”

Diário 22.01.2013: “Como a quantidade de psicólogos na

Maternidade está reduzida e, apesar de meu vínculo ser de

pesquisadora, os limites entre a disciplina de formação acadêmica –

Psicologia – e o vínculo – Pesquisadora – serem diferentes, o limite

entre as funcionalidades se entrelaçam. E hoje, diante da “demanda”

da Ala Verde com pacientes e as constantes dificuldades de adesão ao

cuidado protocolar da ala, fui ‘convocada’ a ser uma ponte entre

equipe da ala e o ‘setor psicológico11

’ da maternidade.”

Diário 12.03.2013: “Será que a minha entrada junto à equipe,

pensando nas usuárias, atravessou as relações entre os

profissionais?”

Pesquisadora / Psicóloga / Corpo estranho / Analista das condutas / Olhuda. Essas e

tantas outras definições povoaram a minha relação com as equipes, gestores, usuárias. O que

fazia de fato ali, participando de reuniões de equipe com usuárias, com gestores? Até onde, de

fato, eu poderia me envolver, falar, opinar? Essas questões foram se tecendo e se

desenrolando com os encontros. Entre simpatias, antipatias, cansaços, alegrias, a pesquisa

intervia nos processos de produção de saúde, na minha formAção profissional/pessoal/mulher.

Acompanhando, assim, o processo, através do traçado dos encontros e dos incômodos,

“disponível para a exposição à novidade, quer se a encontre longe ou na vizinhança... uma

atitude que se constrói no trabalho de campo” (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 56), a

11

Utilizei essa expressão com o intuito de apontar que mesmo havendo uma certa divisão por ala e equipes dos

psicólogos, na tentativa de se construir equipes de referência, a quantidade reduzida de psicólogos tornava, em

muitas situações, a psicologia um setor acionado quando alguma paciente apresentava: alguma sintomatologia

apontada pela equipe como emocional, algum desconforto mediante a hospitalização, ou transgredia a conduta

médica prescrita.

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pesquisa assumiu a dimensão de pesquisa-intervenção – uma das pistas da Cartografia –

tomada aqui como ferramenta.

“A Cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência,

acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do

próprio percurso da investigação” (PASSOS; BENEVIDES, 2009, p. 17-18). O campo passa a

ser entendido como plano, sem delimitações pré-fixados, mas construído no processo de

pesquisar-intervir; o campo de análise e/ou campo de intervenção, como campo da

experiência, campo de experimentação do pesquisador com os fluxos, linhas, relações, objetos

que o atravessam. “O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é,

um saber que vem, que emerge do fazer.” (ibidem, p. 18).

De tal modo que, Cartografar é habitar um território existencial (ALVARES;

PASSOS, 2009) – caminhar com – trabalhadores, gestores, usuárias. Imbricando-me com o

campo, assumia vários lugares e modos, horas ancorada ao campo psi, horas sentindo-me

parte do processo, buscava mexer no que vivia. Os diários descritos acima trazem alguns dos

momentos nos quais os limites das funcionalidades se engendravam com a habitação

corriqueira do território de pesquisa.

O território, pensado como um espaço de expressão de certa cultura, de certas facetas,

apresenta-se aqui, não “como um domínio de ações e funções, mas sim como um ethos, que é

ao mesmo tempo morada e estilo” (ibidem, p. 134). Assim sendo, “somos levados a afirmar

que o ethos ou o território existencial está em constante processo de produção” (p. 134).

Enquanto pesquisadora/aprendiz-cartógrafa tateava, no início da habitação do território, em

constante produção; havia uma receptividade afetiva, que não devia ser confundida com

passividade, mas uma certa afinação que pactuava a inseparabilidade entre sujeito – objeto,

pesquisador – pesquisado.

O pesquisador/cartógrafo/apoiador é um território entre outros tantos territórios

existenciais num caminhar com...

“A implicação do aprendiz-cartógrafo deve posicioná-lo sempre ao lado da

experiência” (ALVARES; PASSOS, 2009, p. 142), o “saber-com” (p.141), na lateralidade,

num processo coemergente, co-criativo, visto que, “Pesquisar é uma forma de cuidado quando

se entende que a prática da investigação... é cuidado ou cultivo de um território existencial no

qual o pesquisador e o pesquisado se encontram.” (p. 144).

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Assim sendo, “O método da cartografia implica também a aposta ético-política em

um modo de dizer que expresse processos de mudança de si e do mundo.” (ibidem, p. 170). O

modo de dizer, conhecer, fazer, se entrelaçam nas nuances das experimentações, buscar

transversalizar, capilarizar os processos na direção de uma política da multiplicidade é um

trabalho ético-político que deve direcionar pesquisas, em especial, aquelas que possuem como

“objeto” produção de saúde – produção de sujeito.

“Quem apoia sustenta e empurra ao outro. Sendo, em decorrência, também sustentado

e empurrado pela equipe ‘objeto’ da intervenção. Tudo misturado ao mesmo tempo.”

(CAMPOS, 2007b, p. 87). “O Apoio parte do pressuposto de que as funções de gestão se

exercem entre sujeitos, ainda que com distintos graus de saber e de poder” (ibidem, p. 85), ou

seja, produção de: a) democracia institucional (OLIVEIRA, 2011) – à consideração dos

conflitos e dos antagonismos como mola mestra para a manutenção da mesma, e não a uma

busca identitária de formação de uma massa/nação única, com características delimitadas pela

nacionalidade. Refere-se ainda a um alinhamento ético/político; à construção de espaços de

co-responsabilização e fomento permanente de autonomia; à inclusão de sujeitos e dos

conflitos, de forma a considerar a maior variabilidade possível de perspectivas implicadas; e

b) autonomia dos sujeitos – capacidade de construir normas diante do dinamismo da vida –

Saúde (CANGUILHEM, 1990); de serem protagonistas na produção de “sua” saúde,

produzindo seus corpos.

Porém, sendo as relações atravessadas por forças, saberes, poderes, como perceber os

limites entre esses atravessamentos na composição das mesmas? Como tensionar democracia

institucional e autonomia dos sujeitos nessas relações tão bem delimitadas, em sua grande

maioria, por saberes/poderes instituídos em instituições tão sólidas? Como deixar vir à luz,

nos encontros entre trabalhadores e usuárias, os próprios limites de cada lugar?

Em um Round, a equipe discutiu a conduta de uma mãe canguru que, na busca de

seguir o Método Canguru à risca, não possuía confiança ao próprio cuidado que oferecia ao

filho, ficando nervosa – “sem autonomia” – disse a equipe. O bebê, por sua vez, apresentou

uma piora no quadro geral, de modo que, diante dos quadros de instabilidade da mãe e da

piora do bebê, a equipe o reinternou na UTIN e sua mãe fora para casa, visitando-o

diariamente. Uma outra mãe criou o método canguru em casa, confeccionou o paninho igual

ao da Maternidade. Chegou à Maternidade para a terceira etapa do método canguru com a

filha amarrada ao ventre, com um tecido igual à roupa da criança. Disse que levar a ideia

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canguru para a casa havia facilitado os afazeres domésticos, já que suas mãos ficavam livres.

Com um sorriso largo, essa mãe contou-nos de como seus familiares estavam preocupados

com a pequenez de sua filha, mas que isso não a incomodava, pois entendia as condições de

saúde de sua filha prematura.

Confiança a protocolos – mãe que não confia no seu cuidado. Confiança no aprendido

durante o período de permanência na ala – mãe que levou um modo de cuidar hospitalar para

seu bojo familiar. Limites encarnados em uma certa lógica medicalizada de cuidar, a qual

abrindo outros tantos leques de questões, abre valetas e declives nesse solo dissertativo,

mudando caminhos e convocando outras adubagens. Dessa maneira, que modos de cuidar,

dessas mulheres, foram produzidos através dos saberes/ poderes hospitalares? Como “diluir”

os saberes/poderes hospitalares, populares num movimento coletivo?

O apoio institucional, pensado como método de/para gestão assume algumas funções:

1. Ativar espaços coletivos através de dispositivos que auxiliem a interação entre os diversos

sujeitos; 2. Reconhecer as relações de poder, os afetos, e os saberes que circulam buscando

construir projetos que partam da pactuação de todas essas relações; 3. Mediar a construção de

comuns, além da pactuação de compromissos e contratos; 4. Qualificar ações institucionais ao

agir com coletivos; 5. Promover ampliação da capacidade crítica dos grupos, construindo

processos transformadores das práticas de saúde (OLIVEIRA, 2011). Entre tantas

funcionalidades e definições, o apoio é acionado a produzir coletivos. E Entre uma pista e

outra, O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica (ESCÓSSIA; TEDESCO,

2009).

Desviando-se de uma lógica do pensamento representacional, o conceito coletivo é

entendido a partir das relações estabelecidas entre o plano das formas, ou plano do instituído,

da organização, aparentemente equilibrada e estabilizada, e o plano de forças, ou plano do

instituinte, do movimento, da criação. O coletivo de forças é, então, o plano de toda mudança

(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009), “espaço-tempo entre o individual e o social, espaço dos

interstícios, plano anterior a todo sujeito e objeto, origem de toda mudança individual e

social” (ESCÓSSIA, 2008, p. 16). Ao se cartografar/apoiar tensiona-se a produção de

coletivos, visto que,

De um lado, como processo de conhecimento que não se restringe a

descrever ou classificar os contornos formais dos objetos do mundo, mas

principalmente preocupa-se em traçar o movimento próprio que os anima, ou

seja, seu processo constante de produção. De outro, assinalaremos a

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cartografia como prática de intervenção, mostrando que acessar o plano das

forças é já habitá-lo e, nesse sentido, os atos de cartógrafo, sendo também

coletivos de forças, participam e intervêm nas mudanças e, principalmente,

nas derivas transformadoras que aí se dão (ibidem, p. 92).

“A cartografia como direção metodológica deve ser articulada com três ideias que

compõem com ela um plano de ação ou um plano de pesquisa: a de transversalidade, a de

implicação e de dissolução do ponto de vista do observador” (PASSOS; EIRADO, 2009, p.

109). A transversalidade entendida como um aumento no quantum comunicacional entre

coletivos de forças, aumentando o grau de abertura da realidade, possibilitando emergir o

plano da forma e o plano de forças. Aumentar assim a comunicação, uma viagem a todos os

pontos de vista. Já a implicação que parte da dissolução binária sujeito x objeto aponta o

pesquisador como construtor/transformador da realidade.

O cartógrafo/apoiador não está na dimensão da primeira pessoa, guiado por

interpretações introspectivas, de um ponto de vista interior, também não está na dimensão da

terceira pessoa, guiado por uma observação cuidadosamente neutra, externa, que seguindo um

procedimento delimitará seu objeto e a si como experimentador. O cartógrafo/apoiador

“precisa garantir a possibilidade de colocar em xeque tais pontos de vista proprietários e os

territórios existenciais solidificados a eles relacionados.” (PASSOS; EIRADO, 2009, p. 122),

ele toma “os processos de emergência do si como desestabilização dos pontos de vista que

colapsam a experiência no (‘interior’) eu” (p. 123). Cito, abaixo, fragmentos dos diários, na

íntegra, nos quais pude desabafar sensações produzidas em meu corpo, por meio dos

encontros com tantos outros corpos, fluxos e atravessamentos.

Diário 14.12.2012: “Hoje tá um dia confuso. É a festa do Método

Canguru. Não me senti à vontade, fiquei deslocada, me sentindo

estranha. Fui embora.”

Diário 15.02.2013: “Sinto um cansaço que não parece meu. Um estar

por estar. Um compromisso de horário. Um bater ponto.”

Entre confusões, sensações de estranhamento ao espaço, cansaços que não pareciam

meus, como colocar em xeque os pontos de vista e os territórios existenciais solidificados a

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eles? Como produzir coletivos entre o individual e o social? Como movimentar os corpos

entre as práticas cotidianas? Rodar...

potência de ampliar essa tradição positivista da área de saúde, possibilitando

um pensar e um fazer Vigilância segundo, também, um “Agir Paidéia”, o

Método a que denominei da Roda ou Paidéia lida com esses impasses

procurando sempre incluir o Sujeito no trabalho em saúde. Fazer Saúde

Coletiva com as pessoas e não sobre elas. Para isso, é fundamental produzir-

se um AUMENTO DA CAPACIDADE DE ANÁLISE E DE

INTERVENÇÃO dos agrupamentos humanos em geral, e não apenas dos

grupos técnicos (CAMPOS, 2007b, p. 26).

Rodar/Movimentar – eis o processo cartográfico / eis o processo de apoio – na busca

ético-política de produzir outro regime político, outro efeito subjetividade. Contudo, como

modo de produção de realidade, o apoio configura-se como método? Nesse movimento

apoio/cartografia, seria o Apoio Institucional para além de objeto, o próprio método de

produção dessa prática de pesquisa?

Sendo o método o próprio fazer, bem como o apoiador a própria função (MERHY,

2010), “Apoio é recurso do método, é dispositivo. A ‘condição dispositivo’ exige, em

coerência ao método, movimento crítico de experimentação-reflexão” (PASSOS; PASCHE,

2010, p. 443).

Após um round, houve uma reunião com as mães canguru. Questões de mães

específicas que a equipe discutiu em sua reunião foram coletivamente tratadas sutilmente com

as mães canguru. A equipe perguntou quais as dúvidas, opiniões, o que não gostavam. As

mães canguru falaram, demonstrando saberem da rotina hospitalar dos seus filhos prematuros,

tiraram dúvidas e falou-se do papel dessas mães, por elas mesmas e pela equipe. Havia entre

essas mães uma que possui transtorno mental, falando espontaneamente, perguntando

bastante; a equipe ouvia suas queixas, dúvidas, buscando respondê-las.

O dispositivo une à sua função a ideia de movimento (KASTRUP; BENEVIDES,

2009), de tal modo que a função do dispositivo se faz através de três movimentos: a) o de

referência, o qual busca tensionar a força que desvia da repetição – as falas risonhas da

mãe/esquizofrênica/incomum quebravam a rigidez dos corpos/comuns das mães canguru, na

sequência da rotina hospitalar; b) o de explicitação, que busca tensionar as linhas que

configuram a realidade – que imagem de mãe se costurava naquela realidade hospitalar, na

qual o perfil da boa mãe era critério da produção da mãe canguru, entre uma mãe desviada

dos padrões de normalidade mental?; c) de produção de realidade, este é “o efeito de

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confluência das funções de referência e de explicitação” (KASTRUP; BENEVIDES, 2009, p.

89), visto que o objetivo em disparar processos através destes dispositivos é de causar

desterritorializações que impulsionem a produção criativa de si e do mundo – ao fim da

reunião, mães canguru voltam a seus leitos com seus filhos prematuros embrenhados pele a

pele, mães comuns/boas – mãe/incomum. “Se surgimos das experiências é muito menos para

nos entronizar no eu, e muito mais para vivermos nossa existência como um processo de

cuidado de si e do mundo” (ibidem, p. 128).

O apoio é então dispositivo: ao desviar a repetição; tensionar linhas que contornam

certa realidade; impulsionar a produção criativa de si e do mundo. Tecendo no próprio

caminhar sua produção – entre mães, sem nenhum desvio aparente da curva que limita a

normalidade e o anormal, e mães conhecidas por seus desvios – o cuidado Canguru ao bebê

prematuro assumiu risos soltos de quem ser mãe perpassa padrões de normalidade e

protocolos.

2.2. Análise/apoio institucional: entre borrões e desassossegos – produção

de movimento

Sendo a análise institucional uma abordagem que busca a transformação das

instituições a partir das práticas e discursos, dos seus sujeitos, pode-se dizer

que há grande potencialidade para o crescimento da utilização do seu

instrumental na saúde coletiva (L’ABBATE, 2002, p. 265).

Portanto, dentro dos processos de trabalho da saúde, a análise institucional constitui-se

através de “intervenções no interior das organizações de saúde que objetivam transformá-las

em espaços menos burocratizados, não produtores/reprodutores de indivíduos passivos e

submissos.” (ibidem, p. 270).

A análise institucional faz parte do movimento institucionalista. Apesar de Gregorio F.

Baremblitt (2002) afirmar que “O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogêneo,

heterológico e polimorfo de orientações” (p. 4), o autor aponta uma característica comum a

esse conjunto: “propiciar, apoiar e deflagrar nas comunidades, nos coletivos e conjuntos

de pessoas processos de auto-análise e de autogestão” (p. 7). A autoanálise seria um

movimento no qual as comunidades possam adquirir ou readquirir um pensamento e um

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vocabulário que lhes permitam serem protagonistas de seus desejos, problemas,

demandas, ao passo que a autogestão seria a articulação para construir dispositivos com

o objetivo de produzir, conseguir recursos para manterem ou melhorarem suas vidas. O

movimento institucionalista busca disparar esses dois processos concomitantemente.

As instituições, por sua vez,

são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de

formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando

não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou

regularidades de comportamentos (BAREMBLITT, 2002, p. 25).

Já as lógicas

Significam a regulação de uma atividade humana, caracterizam uma

atividade humana e se pronunciam valorativamente com respeito a ela,

esclarecendo o que deve ser, o que está prescrito, e o que não deve ser, isto

é, o que está proscrito, assim como o que é indiferente (ibidem, p.25).

De maneira que, dentro do processo de produção de saúde, a análise institucional para

além de um método que tensiona produção de “transformações” assume função de

dispositivo, já que analisa as forças/formas que compõem a instituição saúde, suas

possibilidades, potencialidades, aquilo que a paralisa, a movimenta, e isso se faz objetivando

espaços coletivos, nos quais todos os atores, trabalhadores e usuários possam fazer parte do

processo de análise.

No que se refere aos objetivos e dispositivos de produção do próprio fazer, tanto o

apoio quanto a análise institucional buscam: a autoanálise / coanálise – autogestão / cogestão.

Ampliar o quantum de comunicação entre os diferentes saberes, num processo coletivo de

produção de outra realidade – outros sujeitos, de modo que, ao analisar – apoia, ao apoiar –

analisa.

Forças e formas coexistentes compõem as instituições: a) as instituídas: cristalizadas,

que orientam uma lógica normalizada/normalizadora de práticas; b) as instituintes: que

impulsionam a ação, que escapam à universalidade, tendendo à singularidade. O instituído é

contestado em suas formas, um processo de mudança é retido, formas são singularizadas

através de atores que desencadeiam a institucionalização de novas formas. É um processo

ininterrupto, contudo, nem sempre desemboca em mudanças de lógicas institucionais, pois,

para que se mantenha todo esse movimento, são necessários atores e suas práxis. “As

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instituições formam a trama social que une e atravessa os indivíduos, os quais, por meio de

sua práxis, mantêm ditas instituições e criam outras novas” (LOURAU, 2004, p. 68).

Algumas questões compõem o próprio fazer da análise/apoio institucional: por quem /

de onde será disparada a análise/apoio?

A análise institucional, tal como pensada dentro do Movimento Institucionalista, por

meio de uma encomenda solicitada por uma instituição ou organização para um analista, que é

apontado por Georges Baremblitt (2002) e René Lourau (2004) como um corpo externo que

irá adentrar as relações de forma horizontal, inicia a análise pela própria encomenda, até de

fato produzir a demanda, aquilo que capacita a manutenção da resistência das formas.

O processo de contratação da instituição ou organização da análise institucional é,

além de uma dimensão burocrático-jurídica, parte da análise. Assim como no apoio

institucional, o processo de contratação, pensado enquanto indicativo metodológico, orienta a

vinculação do apoiador à organização. “Na maioria das vezes, o regime jurídico-legal do

contrato de trabalho do apoiador é definido como a priori: contrata-se e depois se pensa na

função apoio. Todavia, faz muita diferença no modo de relação de apoio que se estabelece”

para o seu percurso (OLIVEIRA12

).

Contudo, quem realiza a função análise/apoio?

...um analisador não é apenas um fenômeno cuja função específica é

exprimir, manifestar, declarar, evidenciar, denunciar. Ele mesmo contém

os elementos para se autoentender, ou seja, para começar o processo de

seu próprio esclarecimento... Um analisador é um produto que pode se

auto-analisar... não apenas é capaz de enunciar, como também de

resolver a situação da qual ele é emergente (BAREMBLITT, 2002,

p.64).

Pensar de onde / por quem se dispara a função análise/apoio, problematiza o

próprio modo de fazer apoio no processo de produção de saúde, nas suas dimensões de

desestabilizar o já instituído dentro das organizações, ações programáticas, políticas e

redes de saúde e de invenção de outros modos de fazer.

“Abordada de uma perspectiva micropolítica, esta questão nos põe a pensar em quais

relações de saber-poder, no contexto de uma organização, poder-se-ia inscrever o apoio”

(OLIVEIRA, ibidem).

12

Disponível em: http://apoioparaosus.net/wp-content/uploads/2011/11/Orienta%C3%A7%C3%B5es-

metodol%C3%B3gicas-apoio-PNH-2011-GustavoNunesOliveira.pdf.

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43

Com quem, todavia, tencionar a análise/apoio

Talvez eu ainda admita que poderá haver sim um território ético e político

que habita o campo da produção do cuidado, mas esse não é com certeza

aquele que os trabalhadores e gestores portam, pois para mim esse é o lugar

da objetividade construída pelos usuários pelos seus modos de existências

que fundam os sentidos a se produzirem no campo de práticas da saúde, e

como tal não é externalidade mas transversalidade (MERHY, 2010, p. 437).

O desafio do apoio institucional “estaria em passar desse campo de certezas, de

regularidades mais ou menos seguras, ao campo de imprevisibilidade radical da vida

cotidiana.” (CAMPOS, 2007b, p.65), “mapa dinâmico de saberes e práticas que demarcam

balizas e contornos” (OLIVEIRA, 2011, p.56).

Saber/prática do médico – saber/prática da equipe – saber/prática do usuário transitam

os equipamentos de saúde, solicitando do cotidiano, frente a esses embates, resolutividade. O

cotidiano é tomado por Campos (2007a) como um espaço coletivo, no qual pode ser exercida

a cogestão, no qual se pode tomar decisões. Dessa forma, o apoio pode acionar aumento da

capacidade de autonomia dos sujeitos “para tornar possível e suportável esta difícil trajetória

entre a certeza da teoria cristalizada e as incertezas do dia-a-dia” (CAMPOS, 2007a, p.173).

“Construir nova correlação de força que diminua as diferenças de poder entre os

estamentos sociais e sugerir estruturas (arranjos, dispositivos, normas, etc.) que consolidem

situações mais equilibradas de poder” (CAMPOS, 2007a, p. 124) na tessitura cotidiana dos

encontros. Além de um método/dispositivo de função gerencial, o apoio institucional com as

usuárias abre a possibilidade da construção de um lugar: o lugar do saber/poder da usuária nos

serviços de saúde, e do uso da própria dinâmica incontrolável do cotidiano, inflamado e

abafado pelos processos cristalizados da instituição, como ferramenta na produção do

cuidado. A construção desse lugar nas intempéries do dia-a-dia, diante da urgência que pulsa

na relação saúde/doença x vida, amplia a possibilidade de produção de outros modos de

relação dos usuários com a saúde, com seus corpos, com os serviços e as equipes, pois, antes

de ser um alvo do saber médico, é parte da construção desse saber. O usuário, tendo um lugar

na produção do cuidado, tensiona a mudança da lógica do modelo de saúde ainda vigente –

corpo objeto/medicalizado – para uma saúde enquanto valor de uso13

de produção de si e do

mundo.

13

Utilizando-se do conceito de Valores de uso atribuído por Marx como: “A utilidade de uma coisa faz dela um

valor de uso (Marx, 1985:45)”, Campos (2007a) amplia o conceito de co-gestão afirmando que a produção de

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O analista/apoiador “como tal também não sofre o efeito desse encontro com os outros

nas diferenças e, nesse efeito, também não deveria ser colocado em linha de fuga de si

mesmo, enquanto recurso de um método e de uma proposta a priori?” (MERHY, 2010, p.

435). “Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é, ao fim

e ao cabo, admitir que sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos,

acontecimentos, grupos, idéias, etc.” (LOURAU, 2004, p.148). Implicar-se no fazer pesquisa

“se define como o processo que acontece na organização de analistas institucionais, na

equipe de análise institucional, a raiz de seu contato, de sua interseção com a

organização analisada, intervinda” (BAREMBLITT, 2002, p. 65).

Entre tantos borrões e desassossegos, a análise/apoio institucional movimenta as

instituições, à medida que são movimentadas, já que também são objetivadas pelas práticas

que analisam/apoiam.

Valor de uso é concomitante à produção de Sujeitos (agentes) e de Coletivos Organizados (a equipe de trabalho),

de tal modo que há uma relação de coengendramento entre a atividade produtiva e a constituição dos Sujeitos e

das Instituições.

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45

e’

Capítulo III

___________________________________________________________

Maternidade Mossa Senhora de Lourdes e suas práticas

Legendas:

A Maternidade Nossa Senhora de

MNSL: um passeio por relações e práticas

a

'

b

c

d

e f g

a’

b’

c’

d’ f’

g’

h’

i’

j’

l’

m’

n’

o’

p’

r’ s’

a’ – Histórico: quando construída, como, por quê.

b’ – Rede de Atenção Hospitalar

c’ – Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe

d’ – Rede de Urgência e Emergência do Estado de Sergipe

e’ – Referência Estadual em gestação de alto risco

f’ – Parto Humanizado

g’ – Método Canguru

h’ – Doulas

i’ – Política Nacional de Humanização

j’ – Midiatização

k’ – Ideários estéticos

l’ – Políticas de governo

m’ – parto em seus conceitos

n’ – parto e a dor

o’ – parto e o corpo

p’ – maternidade

q’ – maternagem

r’ – Referência em atendimento a vítimas de violência

sexual

s’ – Política para as mulheres

t’ – Rede Cegonha

a – Entrada: Recepção; Admissão; Serviço Social;

Ouvidoria; Setores Administrativos; Acolhimento com

Classificação de Risco; Atendimento às vítimas de

Violência Sexual;

b – Ala Rosa – Gestantes em risco;

c – Ala Azul – Alojamento Conjunto;

d – Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN);

Unidade Intensiva (UI);

e – Ala Verde – Método Canguru;

f – Muro invisível;

g – Centro Obstétrico (CO).

t’

t’

u’

Figura I

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46

A Maternidade Nossa Senhora de Lourdes14

, localizada em Aracaju/SE, à Avenida

Tancredo Neves, 5700, Bairro América, CEP: 49.080-470, iniciou suas atividades em 03 de

dezembro de 2007. Ocupando uma área de 27.834,63 m2, caracteriza-se como uma unidade

hospitalar que é referência ao atendimento à gestante e neonato de alto risco e a vítimas de

violência sexual, no Estado de Sergipe. Com 153 leitos registrados pelo Cadastro Nacional de

Estabelecimento de Saúde (CNES), desenvolve atividades na Assistência Obstétrica e

neonato, buscando a redução da morbimortalidade materna e neonato, presta atendimento às

vítimas de violência sexual, através de apoio psicológico e hospitalar, além de contribuir com

a formação de novos profissionais da área da saúde, por meio de convênios entre a Fundação

Hospitalar de Saúde e Instituições de ensino superior. Possui, ainda, como Missão: “Prestar

assistência com qualidade, de forma cidadã e humanizada, à mãe e ao bebê de alto risco e às

vítimas de violência sexual, assim como promover a educação em saúde”. É distribuída em

cinco blocos: Admissão e Diretoria; Serviços de Apoio; Internamento; UTIN; Centro

Cirúrgico. No que se refere aos serviços oferecidos, a Maternidade possui: Patologia

Obstétrica; Neonatologia; Atendimento a Vítimas de Violência Sexual; Banco de Leite

Humano; Ambulatório de Seguimento Neonatal; Prenatal de Alto Risco (em fase de

implantação); Planejamento Familiar (em fase de implantação). Em relação aos Serviços de

Apoio possui: Farmácia e Suprimento; Nutrição e Dietética; Radiologia; Ultrassonografia;

Psicologia; Serviço Social; Fisioterapia; Fonoaudiologia; Terapia Ocupacional; Laboratório;

Higienização; Lavanderia; Manutenção; Transporte; Tecnologia e Informação; Gestão de

Pessoal. As Especialidades Médicas para Inter Consultas são: Cirurgia Pediátrica; Neuro

Pediatria; Neurocirurgia Pediátrica; Cardiologia adulto e neonatal; Endocrinologia;

Oftalmologia; Otorrinolaringologia. E as Unidades de Internação são: Patologia Obstétrica;

Clínica Médica; Clínica Cirúrgica; Clínica Pediátrica (Método Canguru); Terapia Intensiva

Neonatal.

Em termos organizacionais, a Maternidade conta com uma Superintendência

Hospitalar, cinco Coordenações, Assessoria de Comunicação, Ouvidoria, Direção Clínica e

Assistência de Direção. Em termos de fluxo, todas estão conectadas diretamente à

Superintendência. As coordenações são subdividas em Gerências, que respondem às suas

respectivas coordenações.

14

Essas informações foram retiradas do Planejamento Estratégico 2012, acessado no Núcleo de Educação

Permanente da Maternidade Nossa senhora de Lourdes.

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Já no que se refere ao fazer em saúde, as práticas produzidas na MNSL são

atravessadas por vários discursos, repertórios, práticas discursivas: saberes, modelos de

atenção e gestão, modos de formação de seus profissionais, entre outros atravessamentos.

Assim, o sentido dado pelos atores às práticas de saúde passa pelos discursos que compõem o

regular, o habitual, bem como os limites dessas regularidades. Assim, para analisar os

modelos de atenção e gestão propostos pelos gestores estaduais, municipais, do próprio

Ministério da Saúde, como a Política Nacional de Humanização, e as propostas das redes

temáticas – em especial, a Rede Cegonha com suas “discussões científicas” em torno do

parto, da gestação, entre outros, faz-se necessário entender os modos como se produzem e se

legitimam determinadas práticas discursivas.

Práticas, por sua vez, são aquilo que fazem as pessoas, advindas “das mil

transformações da realidade histórica” (VEYNE, 1995, p. 159), “o que é feito, o objeto, se

explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos

que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito” (ibidem, p. 164). Por conseguinte, é

através das práticas discursivas que as “pessoas produzem sentidos e se posicionam em

relações sociais cotidianas” (SPINK; MEDRADO, 2004, p. 44). A produção de sentido,

enquanto fenômeno sociolinguístico, é composta de discursos, “linguagens sociais, que, na

definição de Mikhail Bakhtin (1929/1995), são os discursos peculiares a um estrato específico

da sociedade – uma profissão, um grupo etário etc.” (ibidem, p. 43) e as práticas discursivas,

mediante os repertórios interpretativos, “conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e

figuras de linguagem – que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas”

(ibidem, p. 47). Sendo, o sentido produzido nos momentos de ressignificações, de rupturas.

Como pode ser visualizado na Figura I, o fazer em saúde na MNSL é atravessado por

várias práticas discursivas, o que faz de suas paredes de concreto muros móveis e flexíveis.

Não há, no entanto, como explanar cada um dos vetores citados na Figura I, mas sim assinalar

o quanto um serviço de saúde é complexo, recheado de relações, fluxos e dizeres.

Especialidades, gerências, coordenações, alas compõem uma organização

institucional: planta estrutural, organograma, fluxograma. Porém, mediante os discursos, as

práticas discursivas, relações, fluxos, dizeres, como se constroem os espaços? Durante minhas

andanças, pude perceber que, para além dos serviços, coordenações, blocos, especialidades, o

modo de funcionamento trazia flexibilidade às paredes de concreto, além da construção de

uma parede invisível ao olho humano. As práticas de saúde produzidas na Ala Verde,

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atravessada pelo discurso do Método canguru e por peculiaridades dos próprios trabalhadores,

possuem um modo diferenciado de funcionamento, em relação às outras alas. Há um certo

distanciamento entre a ala e o resto da Maternidade, não de forma uniforme, mas

principalmente em relação à gestão e uma coesão com o fazer do Método Canguru. A Ala

Verde, a UTIN e a UI parecem formar uma só ala, o que potencializa a efetividade do Método

Canguru, já que a Ala Verde se configura em Unidade Intermediária Canguru, ou seja, entre a

UTIN/UI e a internação clínica.

Em vários momentos, percebi um certo afastamento e a impossibilidade de acesso ao

Centro Obstétrico (CO), o que parecia perpassar a preocupação com as infecções. Era como

se existisse um muro invisível entre os outros setores e o CO, fazendo deste espaço um lugar

de saber obstétrico, pautado num modo de fazer ciência, o que direciona um modo de praticar

saúde. Como o parto é visto, produzido, a relação entre as parturientes e seus bebês parecem

exalar desse muro, que mesmo não visível, compõe a produção de saúde.

Como e por onde foram feitas, minhas andanças dissertativas seguiram comigo, até a

última linha desse escrito. Em um caminhar com muitas mulheres, mães, diferir do eu-mulher

que me compunha tornou-se, também, um dos processos dissertativos. Assim, com os

objetivos já discutidos, o campo problematizado, o apoio, enquanto dispositivo, seguirão

tensionando a produção da própria escrita, na produção de outros corpos.

3.1. Maternidade Nossa Senhora Lourdes e seus apoios

A Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, no momento de minha inserção nos

processos de trabalho, possuía dois modos de Apoio Institucional: um da sua própria gestão,

outro da Rede Cegonha. Enquanto unidade da Rede Hospitalar e de Urgência e Emergência

do Estado de Sergipe, a MNSL é gerida pela Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe (FHS);

esta busca novas ferramentas e modelos gerenciais, no que tange a possibilidades

administrativas. Possuir “mobilidades administrativas” do setor privado poderia facilitar o

gerenciamento dos serviços, tais como:

“comprar medicamentos essenciais em caráter de urgência, sem ficar preso

aos trâmites licitatórios; capacitar profissionais; contratar especialistas nem

sempre disponíveis no mercado; consertar equipamentos de alta tecnologia

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em caráter de urgência; ou seja, pode se valer de critérios como eficiência e

custo/benefício para suprir uma demanda que exige do gestor eficiência e

rapidez15

.”

O apoio, realizado pela própria gestão da FHS, era vinculado a uma Diretoria

específica – Diretoria Operacional (DOP). No documento16

intitulado: Diretoria Operacional:

Organização e diretrizes de funcionamento da FHS, o apoio institucional é pensado como

uma função gerencial, como uma chave para deflagrar processos de mudança, já que “o objeto

de trabalho do apoiador é, sobretudo, o processo de trabalho de coletivos que se organizam

para produzir, em nosso caso, saúde” (p. 5). Aponta também algumas características, tais

como: a equipe de apoio institucional (EAI) é formada por gestores de apoio institucional, que

busca construir com os grupos das unidades novos modos de fazer; a EAI não deve ser

utilizada para desresponsabilizar o grupo, mas se legitimar no ambiente das unidades

assistenciais, através de ações que sejam úteis ao grupo; deve estar sensível aos movimentos

do grupo; a EAI sustenta e empurra o grupo ao mesmo tempo; pode assumir o papel de equipe

matricial em demandas de apoio voltado para alguns processos singulares da assistência; deve

estar apropriada dos conceitos e dos modelos de gestão e assistência a serem implementados;

ter interface com os outros setores da FHS que impactam na operacionalidade das unidades

que apoiam.

O apoio da FHS, no momento da pesquisa, era realizado por apoiadores específicos

para cada unidade. Posteriormente, foram realizadas algumas modificações: ao invés de ser

por unidade, passou a ser vinculado a temas. Ao longo da pesquisa, contudo, diante dos

próprios rumos da gestão da FHS, da minha vinculação às equipes da MNSL e às usuárias, o

contato com o apoio da FHS foi sendo quebrado. Aproximar-me do cotidiano com os

trabalhadores e usuárias tinha se tornado meu objetivo e meu fazer.

A MNSL inserida no Plano de Qualificação das Maternidades e Redes Perinatais da

Amazônia Legal e Nordeste (PQM) e, posteriormente, à Rede Cegonha recebia apoio de um

Apoiador Institucional vinculado ao Ministério da Saúde (MS). No PQM, o Apoio foi

entendido como “atividade estratégica”, “com a compreensão de que, para efetivar projetos de

defesa da vida das mulheres e crianças, é necessário operar mudança nas práticas cotidianas

do trabalho em saúde, atuando junto a trabalhadores(as), gestores(as) e usuários(as)”

(BRASIL, 2012a, p. 10).

15

http://www.fhs.se.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=76&Itemid=471. 16

Este documento não é o definitivo, mas uma prévia, disponibilizado por um apoiador institucional.

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Norteado pelo conceito de Paradoxo perinatal (DINIZ, 2009; ROSENBLATT, 1989),

segundo o qual tecnologias na forma de equipamentos e insumos biomédicos não garantem

per si melhores resultados, visto que, mesmo sendo 88% dos partos assistidos por médico e

98% essencialmente em ambiente hospitalar, os índices de morbimortalidade maternos e

infantis são elevados nas primeiras horas após o parto. Entre vários objetivos, a inserção do

apoio institucional como estratégia no PQM é

intervir em práticas de organização do trabalho em saúde, junto com os

serviços, equipes, trabalhadores(as), gestores(as) e usuários(as), operando

coletivamente a partir da oferta de modos de fazer e da incorporação de

métodos, tecnologias e dispositivos que viabilizem mudanças nas práticas de

saúde (BRASIL, 2012a, p, 12).

Entre tantos objetivos, estar o de tencionar o protagonismo das mulheres e de sua

família, no processo de parto, rompendo com a concepção de que o parto é um fenômeno

mais próximo da “doença” – de competência médica –, tornando-o um fenômeno fisiológico e

social, de alçada de todos os atores envolvidos; em especial a mulher e seus entes.

As diretrizes/linhas de ação do PQM foram: a) cogestão: compreendendo que os

modos de gestão compõem os modos de fazer assistência, de modo que, é imprescindível que

os trabalhadores tomem a gestão como objeto de seu trabalho; b) Direito a Acompanhante e

Ambiência: a inserção de um outro da escolha da mulher interfere nos processos de trabalho,

na rotina da Maternidade, bem como há evidências científicas de que mulheres acompanhadas

por familiares ou doulas possuem experiências de parto mais satisfeitas; c) Vinculação da

gestante, desde o pré-natal ao local de parto, em uma rede integrada de cuidados: busca

evitar a peregrinação da gestante e/ou do recém-nascido por atendimento, organizando uma

rede de serviços; d) Acolhimento em rede e classificação de risco: “preceito ético de fundo,

que deve reger as relações de cuidado em saúde” (BRASIL, 2012a, p. 24), o acolhimento deve

ser pactuado e realizado em rede por todos.

Além da busca em efetivar essas diretrizes, em 2011, o PQM foi integrado à Rede

Cegonha,

instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde, consiste numa rede de

cuidados que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo

e à atenção humanizada à gravidez, ao parto, ao puerpério e ao abortamento,

bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao

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desenvolvimento saudáveis (Portaria nº 1.459/GM/MS, de 24 de junho de

2011 ).

Organizada a partir de quatro componentes: 1) Pré-natal; 2) Parto e Nascimento; 3)

Puerpério e Atenção Integral à Saúde da Criança e 4) Sistema Logístico: Transporte Sanitário

e Regulação (Portaria nº 1.459/GM/MS, de 24 de junho de 2011), a Rede Cegonha busca construir

uma atenção à mulher e a criança, através da integralização de ações, desde a Atenção Básica

à hospitalar.

Como em outubro se comemora o dia da criança, os apoios da FHS e da Rede

Cegonha, em conjunto com a Psicologia e o Núcleo de Educação Permanente, organizaram

“O mês da criança”, com atividades focadas no Centro Obstétrico (CO), com os objetivos de:

“- sensibilizar os trabalhadores para a adoção de boas práticas simples e que salvam vidas; -

motivar os trabalhadores do CO; - divulgar a visão das nossas pacientes acerca da assistência

ao parto; - humanização da assistência ao parto” 17

. Acompanhei uma ação, cujo tema foi

“contato pele a pele ao nascer”, juntamente com o apoiador da FHS e uma psicóloga, através

de um vídeo sobre o assunto e discussões posteriores, considerando a realidade e as relações

da MNSL. Não houve muita adesão à atividade, principalmente por parte dos obstetras. As

estagiárias de medicina olharam-se e começaram a rir, quando um parto domiciliar foi

exposto no vídeo. Como o CO estava movimentado, com muitas gestantes em trabalho de

parto, foi difícil para algumas enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem participarem

da atividade. Ao fim da discussão, técnicas de enfermagem apresentaram ações simples e

solicitaram: uma roupa de cor diferente para os acompanhantes, a fim de facilitar a

identificação dos mesmos e a organização do fluxo; uma cartilha específica para os

acompanhantes das gestantes e/ou parturientes; a participação na confecção da cartilha.

Esse dia foi bastante potente na minha vivência; estava ali, diretamente com o

apoiador da FHS, em uma ação pactuada e organizada, também, com o apoiador do Ministério

da Saúde (MS). Dois apoios institucionalizados da mesma forma – cargo, um funcionário da

própria gestão da FHS, outro funcionário do Ministério da Saúde (MS). Práticas foram

problematizadas, através de práticas outras, “simples” em termos de insumos e “complexas”,

em termos relacionais: contato pele a pele da mãe com o bebê ao nascer, clampeamento tardio

do cordão umbilical; aleitamento no primeiro momento da vida. Práticas tecidas a partir de

17

Informações obtidas com a equipe produtora da ação.

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evidências18

, simples no seu fazer, mas que problematizam todo um modo

médico/obstétrico/neonato de fazer. Práticas nas quais há encontro de corpos: afastamento dos

obstetras, estranhamento das estagiárias de medicina frente a um parto domiciliar,

envolvimento da enfermagem, solicitação de opiniões para estimular uma maior participação

na organização dos processos de trabalho, voz e escuta do seu saber cotidiano.

Entre práticas evidentes e práticas biomédicas/obstétricas/neonatas, há sujeitos

imersos e produtores dessas mesmas práticas. Há, em cada um desses encontros, sujeitos em

suas relações. E entre práticas discutidas em um bojo científico, há práticas que configuram

um ser mãe, um modo de parir, de encontrar o filho. Como e quando, todavia, cuidar desses

limites no fazer em saúde?

Em conversa com algumas mulheres, na sala de TV, entre a Ala Rosa e a Azul, uma

adolescente que aguardava a alta de seu filho, havia tido parto normal e disse-me que, quando

seu filho nasceu, o médico colocou-o em cima de sua barriga e ela sentiu nojo. Essa prática

associada a tantas outras do movimento Parto Humanizado, enfatizada para as equipes na

ação Mês da Criança, apresentou-se como algo entranho à adolescente, de forma que,

...as intituladas ‘boas práticas’ do parto e do nascimento não dizem respeito

ao ‘bem’, ao ‘correto’, mas à experimentação de modos de fazer em saúde

neonatal e obstétrica que, respeitando os direitos reprodutivos, partam do

protagonismo da mulher, do/a recém-nascido/a, dos/as familiares. Nesse

sentido, a produção do cuidado perinatal deve se dar de forma

compartilhada, não para, mas com a mulher e seus/suas familiares,

valorizando os diferentes saberes e fazeres que estão em jogo (de

profissionais de saúde, dos/as familiares, da mulher) e abrindo espaço para a

negociação da gestão do cuidado (MARTINS; NICOLOTTI;

VASCONCELOS, 2014, s/p).

Para além de tensões no modo de fazer em saúde, nossos corpos estranhos àquele

espaço também produziram outras tantas tensões. Será que houve ali algum estranhamento da

equipe com o evento em si, pelo envolvimento da gestão? Até que ponto ações pontuais,

mesmo que durante todo o mês de outubro, afetam em sua pontualidade as ações cotidianas?

O que de fato é necessário para afetar processos de trabalho?

18

“se traduz pela prática da medicina em um contexto em que a experiência clínica é integrada com a capacidade

de analisar criticamente e aplicar de forma racional a informação científica de forma a melhorar a qualidade da

assistência médica” (LOPES, 2000, p. 285).

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Apoios de diferentes vínculos – FHS e MS, disparando tensões e tensionamentos.

Porém, nesse momento, apenas uma questão me afetava: como de fato concretizar práticas

outras que pactuem ações com sujeitos imersos na concretude de suas realidades?

3.1.1. PNH e o Apoio Institucional

Tanto o PQM quanto a Rede Cegonha e a gestão/atenção da FHS possuem como base

ético-política referenciais da Política Nacional de Humanização. O fazer apoio foi tecido com

os princípios, diretrizes e o próprio modo de operar da PNH: 1) intensivista: agindo

localmente, o apoiador busca alcançar a experiência concreta no que ela tem de singular,

atualizando o método da tríplice inclusão; 2) de contágio: “no lugar de propor a mudança,

propagá-la; no lugar de decretá-la, dar condições para ampliação do que é só germe potencial”

(PASSOS; PASCHE 2010, p. 430); 3) de referência: através de arranjos de coletivos. Já o

fazer apoio, pensado a partir desses princípios, assume função de referência, pois ele põe a

funcionar o processo junto ao coletivo, garantindo um mínimo de regularidade, sendo um

índice de vínculo que, mantendo unido certo coletivo, mantém o processo de mudança; “o

movimento é a única repetição e, portanto, tudo se move infinitamente. O acionamento e a

ampliação desse movimento é a própria força-motor do apoio, que propicia aos coletivos sua

experimentação como força de vida” (ibidem, p. 431).

O apoio institucional é praticado pela/na PNH como método de intervenção

para promoção da dimensão pública do SUS, que não pode garantir essa

transformação almejada, principalmente sem o envolvimento dos sujeitos

atuantes nos cargos de gestão em saúde, mas que, no entanto, se afirma

como tecnologia relacional, partindo da premissa de que produção de saúde

não se faz sem a produção de sujeitos co-responsáveis e autônomos nesse

processo (GUEDES; BARROS; ROZA, 2011, p. 4809).

A PNH aposta em um novo modo de entendimento do que seja humanização e do

modo de operar de uma política pública. Assim, por humanização entende-se “... menos a

retomada ou revalorização da imagem idealizada do Homem e mais a incitação a um processo

de produção de novos territórios existenciais” (BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 570). Por

política pública entende-se uma política que se efetiva na experiência concreta dos modos de

fazer coletivo, em um cruzamento de forças e linhas situadas entre o fora e o dentro da

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máquina de Estado. A PNH, então, se efetiva como política pública em um plano do coletivo

que “opera numa dimensão concreta de práticas” (ESCÓSSIA, 2004, p. 6).

O Método da tríplice inclusão opera como ferramenta na produção coletiva em saúde,

incluindo: os diferentes sujeitos na produção de autonomia, protagonismo e

coresponsabilidade, através das rodas; os analisadores sociais, através das análises coletivas

dos conflitos, potencializando a força crítica das crises; o coletivo, seja como movimento

social, seja como experiência singular dos trabalhadores, através do fomento de redes.

Assim sendo, a Política Nacional de Humanização configura-se a partir da

concretude de experimentações e práticas humanizadas dos sujeitos que as vivenciaram em

seus agenciamentos, atualizando-se em um plano coletivo entre os limites da máquina de

Estado, possibilitando a criação permanente de modos de fazer.

...engajada com dois movimentos simultâneos e complementares – abertura

de espaços para participação coletiva – e comprometimento de sujeitos e

coletivos com a construção do SUS, afirmando sua dimensão constituinte –,

a PNH se tece com a tarefa de fazer viva a aposta coletiva no SUS como

“causa comum: o comum que permite a comunicação, a comunidade de

interesses e compromissos e a comunhão de sentidos” múltiplos (Heckert,

Passos, Barros, 2009, p. 495) (VASCONCELOS; MARTINS; MACHADO,

2014, s/p).

Enquanto estratégia político-metodológica, o apoio na PNH busca intervir nas práticas

e no cotidiano, partindo das relações e, nas relações, mapeando seu funcionamento, tensiona a

produção de novas conexões e outros modos no contexto institucional.

Sendo o apoio institucional fio condutor do PQM e da Rede Cegonha, além do próprio

modo de operar da FHS, enquanto inovação, busca operacionalizar e articular diretrizes, por

meio de discussões que envolvam todos os atores da maternidade e os movimentos sociais

(VASCONCELOS; MARTINS; MACHADO, 2014). Todavia,

A esse respeito, vale apontar como lacuna, a ser considerada nas novas

experimentações, o baixo envolvimento de usuários/as no processo de feitura

do apoio institucional realizado no PQM. De modo geral, basta analisar seus

relatórios de gestão; também se pode observar que a PNH opera muito

focada no apoio a coletivos de trabalhadores/as e gestores/as (ibidem, p.

982).

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O concreto das experiências dos diferentes sujeitos torna-se o fio condutor da PNH e

do próprio apoio. Na tensão de modos constantes de fazer em saúde, o cotidiano e as usuárias

são também partes, movimentos que compõem e decompõem esse modo.

Diante de algumas vivências já trazidas até aqui e de tantas outras que comporão essa

escrita, o cotidiano e as usuárias surgem como estratégias/ferramentas para a produção

democrática e autônoma de fazeres em saúde. Lógicas, modos de produzir saúde/corpos,

através de uma certa clínica, serão discutidos por meio do modo de operar do Apoio

Institucional com a PNH, tensionando germes de outra clínica, que possam produzir outros

corpos/outra saúde.

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Capítulo IV

_____________________________________________________________

Sobre um modo de fazer e a produção de uma saúde/um sujeito

Neste capítulo, partindo do pressuposto da relação de concomitância entre produção de

saúde e produção de sujeito, problematizaremos um certo modo de produção de saúde e as

lógicas sobre as quais se assenta, normalizando sujeitos. Trata-se de pensar o como se faz em

saúde, juntamente com os modos de subjetivação e as subjetividades produzidas. Em outras

palavras, práticas de saúde e modos de ser dos sujeitos e seus corpos. Isso nos permitirá

problematizar a instituição hospitalar, seus modelos de gestão e atenção, e os

dispositivos/ferramentas que decorrem de tais modelos. A medicalização/naturalização do

corpo feminino, através de práticas que atrelam a reprodução e a maternidade em uma

identificação de um ser mulher. Articulando-os com um dispositivo que, dentre outras

funções, busca tensionar processos instituídos e fomentar movimentos instituintes – o

dispositivo Apoio Institucional.

Até a efetivação do SUS, enquanto um sistema que garante o direito universal à saúde,

muitas águas rolaram entre movimentos populares de bairros, profissionais de

saúde/militantes, empresas de saúde. Muito mais que um direito, todo esse movimento abalou

estruturas do modelo de Estado brasileiro. O SUS, então, enquanto uma engrenagem do fazer

público, em seus princípios de universalidade, integralidade e equidade, tendo como centro

das ações as necessidades dos usuários, direcionou e direciona novas formas de fazer e operar

os equipamentos públicos de saúde. A questão do como fazer da instituição saúde, uma

instituição democrática, levou para as agendas de discussões o modo de organizar e

operacionalizar o cuidado.

Sabemos que os modelos de gestão e atenção do SUS, planejamentos em saúde e

modelos tecno-assistencias foram e são engendrados em meio a modelos socioeconômicos

vigentes e às lógicas que normalizam seu funcionamento, principalmente a lógica comercial

de interesses privatistas, o que tem produzido constantes atravessamentos políticos. Por isso,

foi pensando em um modelo capaz de inventar uma nova geometria e um novo funcionamento

das organizações de saúde, que Gastão Wagner Campos (1998) propôs o Apoio Institucional.

Um método de gestão que escapasse da lógica taylorista, centrada em chefes, com controle

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direto dos procedimentos técnicos e sobre o comportamento formal de funcionários, com

elaboração centralizada em programas e normas reguladoras e ausência de comunicação.

Abaixo, entre lógicas e modelos, caminharemos por séculos e modos de fazer em

saúde, abrindo valetas nesse mesmo trajeto para tantos outros modos/fazeres.

4.1. Sobre um modo de fazer saúde e a produção de um biocorpo19

Modos de fazer, de dizer são conformados através de práticas, dando a cada momento

histórico certa face (VEYNE, 1995). O século XVIII, marcado por modificações no âmbito

político-econômico, assumiu uma faceta de práticas investidas no corpo dos indivíduos, da

população, que inventados nesse momento, passam a principal objeto de intervenção de um

certo poder. Como, todavia, essa face da história tomou forma? Que poder é esse investindo

outras relações, outros sujeitos? Várias são as práticas/ferramentas que compõem essa face.

Discutiremos, aqui, como o saber passa a certo campo e status de produtora de certa saúde,

bem como que saúde é essa, problematizando a relação consigo, com os outros e com o

mundo, que compõem o viver dos sujeitos.

Em Um discurso sobre as Ciências, Boaventura de Sousa Santos (2002) aponta como

paradigma dominante na ciência um modelo racional, baseado nas ciências naturais, o qual se

estendeu no século XIX às ciências sociais emergentes, a um modelo global de racionalidade

científica, o que compôs um campo de fronteiras bem definidas, delimitadas e policiadas no

fazer conhecimento, expurgando o senso comum, os estudos humanísticos, como os

históricos, filosóficos, filológicos, literários, entre outros. Um modelo totalitário, pois nega

qualquer forma de conhecimento que não seja a partir de seus princípios epistemológicos e

metodológicos. Este modo científico de fazer conhecimento compõe um lugar do verdadeiro,

a partir de “descobertas”. Santos (2002) diz que: “Esta preocupação em testemunhar uma

ruptura que possibilita uma e só uma forma de conhecimento verdadeiro está bem patente na

atitude mental dos protagonistas” (p. 11). O conhecer passa a uma instância fechada numa

ritualização causal, matemática, utilitária, funcional. Conhecer para dominar, transformar,

19

Biocorpo se refere ao corpo produzido dentro da lógica biomédica, o qual se torna instrumento passivo de

intervenção do saber/poder médico. Além da relação produzida entre esses biocorpos consigo, com os outros e

com mundo serem ferramentas de produção e manutenção do biopoder, investidos e revestidos na relação dos

sujeitos com seu modo de viver.

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através da formulação de leis que possam regular o mundo, fazendo deste um objeto que

possa ser ordenado e estável, independente do modo de acesso a ele. O homem “domina”,

enfim, a natureza.

Em relação às ciências sociais, Santos (2002) afirma que estas emergem no século

XIX, mediante duas formas de conhecimento científico: as formais da lógica e da matemática

e as ciências empíricas, a partir do mecanicismo das ciências naturais, de modo que “as

ciências sociais nasceram para ser empíricas” (p. 19). Assim sendo, argumentos biológicos

são utilizados para fixar as especificidades do ser humano, reconhecendo a prioridade

cognitiva das ciências naturais, no que se refere à fronteira entre o estudo do ser humano e o

estudo da natureza.

O modelo de produzir conhecimento produz modos de fazer em saúde, “a de um

sujeito soberano tendo uma função de universalidade e um objeto de conhecimento que deve

ser reconhecível por todos como sendo sempre dado” (FOUCAULT, 1979, p. 116). Por quem,

onde e como são ditados a forma de alimentar, limpar, amamentar compõem a produção de

um certo poder/saber médico/científico e de sujeitos/pacientes, passivos às intervenções desse

campo científico, detentor e produtor do conhecimento verdadeiro, já que através das

formulações de leis universais, mundo passa a objeto dominado pelo homem e este a objeto

dado.

Este modelo científico racional, total, de determinismo mecanicista, “No plano social é

esse também o horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia ascendente que

via na sociedade em que começava a dominar o estádio final da evolução da humanidade”

(ibidem, p. 17). Visto que,

Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto

metafórico a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o

passado se repete no futuro... Esta ideia de mundo máquina é de tal modo

poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época

moderna, o mecanicismo. Pode parecer surpreendente e até paradoxal que

uma forma de conhecimento, assente numa tal visão de mundo, tenha vindo

a constituir um dos pilares da ideia de progresso que ganha corpo no

pensamento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal

intelectual da ascensão da burguesia. Mas a verdade é que a ordem e a

estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do

real (ibidem, p. 17).

A estabilidade proposta a partir da formulação de leis universais, que possam

determinar modos de fazer, concentra-se em campos, desde o modo de governar à relação

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com a saúde. Como passam, todavia, a serem geridos os sujeitos? Modo de governar e de

produzir saúde se engendram em ferramentas na produção de outras relações de poder.

De modelo de governo, a família transforma-se instrumento privilegiado para o

domínio da população; esta, por sua vez, passa a ser vista como possuidora de necessidades e

aspirações. O uso da estatística, ciência do estado, foi aprimorado como maneira de regular os

fenômenos populacionais, os dispositivos de segurança também se fortaleceram, uma série de

aparelhos específicos de governo e um conjunto de saberes foram e estão sendo criados para a

manutenção do governo de mentalidades.

A população, um dos principais alvo desse momento, é forjada entre várias práticas,

tais como: preservação, manutenção e conservação da “força de trabalho”. “O grande

crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de

coordená-lo e de integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de produção” (FOUCAULT,

1979, p. 198), efeitos econômico-políticos da acumulação dos homens. Observados quanto à

utilidade, rentabilidade, aprendizagem eficaz, “Os traços biológicos de uma população se

tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário organizar em volta

deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição, mas o aumento constante de sua

utilidade” (ibidem, p. 198).

Uma outra política, portanto, se configura, produz outros sujeitos, outras relações,

outra realidade. O policiamento foi uma das principais ferramentas do que Foucault (1979)

denominou nosso-política do século XVIII, que investida no corpo da população, do

indivíduo, toma a saúde, enquanto ausência de doença, e os corpos alvo de práticas que os

mantenham sadios, tanto no que se refere a aspectos biológicos, quanto a aspectos morais.

Esse controle da saúde da população em conjunto com o controle da organização das

cidades, distribuição das instituições, organização das mesmas ocorrem através de ações do

que Foucault denominou Medicina Social. No texto Nascimento da Medicina Social (1979), o

autor afirma que a medicina é uma estratégia biopolítica. A significação que essa propositura

carrega é evidenciada ao ser constatada a influência que as prescrições médicas exercem sobre

o corpo dos indivíduos. É a partir dessa estratégia que se inicia o controle moderno da

sociedade. Foi o sistema econômico mercantilista que propiciou uma prática política de

produção e controle da população e, uma consequente expansão desse controle para outros

domínios da vida.

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Através de seu método genealógico, Foucault (1979) destaca o processo de estatização

das práticas médicas, ocorridas na Alemanha. Para além de simples coleta de taxas de

mortalidade e natalidade, o governo germânico sistematiza o atendimento médico,

normalizando assim, seus médicos e seus saberes. Já o desenvolvimento da medicina na

França foi impulsionado pela urbanização. O amontoado de corpos, consequência da

migração de mão-de-obra para as nascentes indústrias, e o pânico urbano que se instaurou

explicam a inquietude político-sanitária característica desse processo. No modelo médico

inglês, destaca-se a Lei dos pobres, a qual ditava uma intervenção médica que era tanto uma

maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, quanto um controle

utilizado pelas classes ricas e pelo governo para assegurar a sua saúde, já que as epidemias se

proliferavam nas classes menos abastadas, pondo em perigo o bem-estar dos mais ricos.

Como pode ser verificado, a partir das análises de Foucault, a saúde como objeto da

medicina, de uma certa medicina, é produto de rupturas, descontinuidades, de toda uma

conjuntura política, econômica, social. Visto que, “Não foi nossa época quem ensinou a ver e

a dizer. O que muda é que ela diz de outro modo e vê um outro mundo; o que muda é a

relação entre aquilo de que se fala e aquele que fala; o que muda é a própria noção de

conhecimento” (MACHADO, 1981, p. 99).

Nessa conjuntura, o corpo individual e o corpo social passam a objeto de

conhecimento, além das intervenções administrativas, como visualizado na Medicina Social, o

corpo individual passa a objeto de uma certa clínica do corpo. Com a obra Naissance de la

clinique, de Foucault, Roberto Machado (1981), em Uma Arqueologia do Olhar, discute em

torno do olhar e da linguagem a constituição dos campos de saberes, expondo como a clínica

torna-se o espaço de fala da saúde medicalizada. Na medicina clássica, a clínica tem a função

de “‘reunir’ e tornar ‘sensível’ o espaço nosográfico” (p.101), já que esta medicina, fundada

no modelo taxonômico da história natural, tinha a doença como essência, analisada a partir de

uma nosografia, independente do corpo do doente. Na medicina anátomo-clínica, por sua vez,

o olhar passa para a anatomia, para os tecidos, o profundo, e a clínica a espaço de observação

e pesquisa. Esta diferenciação de olhar reside na principal característica da denominada

medicina moderna, visto que, do superficial (medicina clássica) para o tissular (medicina

anátomo-clínica), a percepção do que seja doença passa de uma essência natural classificada

pelos sintomas, para o corpo doente, no qual a lesão explica os sintomas.

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“O que faz a clínica é tornar visível o que era invisível para a percepção da medicina

clássica, e a medicina moderna é a passagem de um espaço taxonômico para um espaço

corpóreo: é a espacialização da doença no organismo” (MACHADO, 1981, p. 118), pois

quando a anatomia patológica fundava a clínica, no momento em que as lesões dos tecidos

explicavam os sintomas, a clínica tornava-se espaço de observação e pesquisa do corpo

doente, e de técnicas da boa saúde, do corpo saudável. A clínica tornava-se, então, a fala da

doença e a ascensão da boa saúde; o campo, no qual se descobre e se extingue a doença e se

ensina o saudável. A clínica tornava-se uma clínica médica, dentro das regulamentações que o

rigor científico solicitava – o corpo doente como objeto, a boa saúde, o bom andamento do

corpo social como objetivo.

O objeto corpo se constituiu com a clínica médica. Esta, através da abertura dos

cadáveres, buscou entender o funcionamento dos órgãos, dos tecidos, forjando, ao mesmo

tempo, em um dispositivo disciplinar de controle da vida a busca pela boa saúde. Foucault

(1979) afirma que os mecanismos de poder já existentes, mas de diferentes maneiras, foram

aperfeiçoados como técnica de gestão dos homens, a partir do século XVIII. A clínica

tornava-se o espaço do olhar e da linguagem médica.

Esse outro modelo clínico concentrava suas práticas em um corpo passivo aos

saberes/poderes médico/científico. À medida que se controlava esse corpo, a vida tornava-se

seu maior campo de investimento e de produção desse mesmo corpo. O biopoder, o qual

“tomou de assalto a vida” (PELBART20

), objetiva “investir, capturar, gerir, modelar,

nomear, registrar, avaliar, classificar, produzir o corpo, individual e social”

(VASCONCELOS, 2013, p. 68). O cotidiano, por sua vez, é sufocado em universalizações, e

os sujeitos a corpos investidos em um poder que se capilariza para todos os âmbitos da vida,

já que, é através da normalização do viver em certo modo, que o biocorpo, revestido nas

práticas biomédicas, através de uma anátomo-clínica, produz uma relação de distanciamento

dos sujeitos consigo, com os outros e o mundo. O bio/vida passa então, a ser o próprio

dispositivo da lógica biomédica, que normalizam nossos modos de experimentá-la, geri-la,

vivê-la.

Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição de vida,

de sua habitação e de seus hábitos, começa a se formar um saber médico-

administrativo que serviu de núcleo originário à “economia social” e à

20

Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl

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sociologia do século XIX. E constitui-se, igualmente, uma ascendência

político-médico sobre uma população que se enquadre com uma série de

prescrições que dizem respeito não só à doença mas às formas gerais da

existência e do comportamento (a alimentação e a bebida, a sexualidade e a

fecundidade, a maneira de se vestir, a disposição ideal do habitat)

(FOUCAULT, 1979, p. 202).

Essa lógica biomédica, forjada através do biopoder, engendra diariamente as práticas

nos serviços de saúde, nas relações dos diferentes profissionais, e destes com os usuários.

Para além dos séculos XVIII, XIX e XX, essa lógica continua dando ao nosso século XXI

certa face, e é, todavia, por meio da problematização das práticas cotidianas, que podemos

vislumbrar e acionar resistências, através de dispositivos como o apoio institucional, em sua

capacidade de colocar em movimento as práticas instituídas, na produção de outras relações,

outras realidades.

Um residente estava cumprindo parte do seu programa curricular na Ala Verde. A

disposição do round seguia quase o mesmo padrão, os médicos sentavam ao redor da mesa e

os outros profissionais ao redor dessa primeira roda. O residente falava dos casos que

acompanhava, voltado para o médico, com um tom de voz bem baixo. A equipe começou a se

incomodar, um médico percebeu o desconforto do restante e pediu ao residente que se

voltasse à equipe e falasse mais alto. A reunião seguiu como de costume: os médicos

compartilharam a evolução clínica caso a caso, as condutas médicas adotadas e os outros

profissionais, não médicos, traziam o olhar de sua área, quando questionados e/ou quando

achavam pertinente. Contudo, no meio da reunião, a enfermeira bateu à porta e solicitou ao

médico que fosse conversar com um pai policial, o qual estava fardado e pedindo alta para a

mulher, pois segundo o pai/policial, a mesma estava bastante afetada emocionalmente, triste e

abatida, o que dificultava a produção de leite. A enfermeira disse ter chamado o médico, pois

este daria mais credibilidade à informação que ela já havia passado. O médico levantou-se e,

em poucos segundos, tudo estava resolvido. O pai/policial concordou com as indicações do

médico, o qual voltou para concluir a reunião.

Como vimos, o lugar do saber/poder médico, dentro da lógica biomédica de produzir

saúde, é também, diariamente, atualizado e reproduzido dentro dos serviços de saúde. A

postura de um médico recém-formado nos dá pistas de uma certa formação acadêmica, a qual

alimenta esse modelo, no qual credibilidade é algo intrínseco ao saber/poder médico, o que

mantém os outros profissionais ao redor e/ou dependentes de seu crédito.

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Na 3ª etapa do Método Canguru, os bebês recebem alta, mas voltam semanalmente

para avaliação com os médicos da Maternidade, até atingirem o peso e as condições ideias

para serem encaminhados a um ambulatório. Nessa etapa, há um certo monitoramento do

cuidado domiciliar para evitar reinternações. Em um desses acompanhamentos, uma mãe foi

questionada sobre como estava realizando o cuidado em casa; perguntas foram feitas e ela não

respondeu como havia sido ensinado no dia da alta, os horários de administrar os

medicamentos, como dar banho. Uma outra mãe estava, há dias, sem dar banho no filho, pois

os mais velhos de sua família haviam dito que não podia dar banho para não quebrar o

resguardo21

.

No momento dessa etapa do método canguru, há um investimento no fazer domiciliar

como uma extensão do modelo hospitalar. A rotina hospitalar, que horas, como dar banho,

alimentar, amamentar são definidos pelo modelo médico/científico, ao passo que esse mesmo

modelo/saber/poder constrói com essas mães o como cuidar, vivenciar sua experiência de ser

mãe e de produzir um ser filho. Contudo, ínfimos são os limites entre os poderes/saberes. A

busca em seguir o modelo científico universalizante, o saber centrado na imagem do médico,

baseado na anátomo-clínica, abre várias zonas de tensão no fazer diário. Em respeito às

tradições de seus familiares, a mãe canguru negava-se a dar banho no filho, como “ensinado”

pelo modelo médico/científico.

O que é verdadeiro/correto, todavia, torna-se a própria ferramenta na produção de

outro modo de fazer em saúde, já que o campo do verdadeiro se dá no entre relações de poder.

Lacunas podem ser abertas, na produção de outra saúde, ao se trabalhar em roda com todos os

atores envolvidos, tanto as tradições familiares quanto o conhecimento médico/científico,

através de analisadores.

Em um round, discutiu-se a conduta de uma mãe que questionava muito as ações de

um dos médicos da equipe. A mesma perguntou a um médico, de outra ala, o que este achava

dos procedimentos do seu colega. O médico interrogado respondeu destacando, inicialmente,

as várias qualificações do colega, afirmando que é devido a tantos conhecimentos

especializados que seu colega sabe o que está fazendo.

Uma mãe canguru ficou internada com seu filho 78 dias; com isso, acabou se

apropriando dos termos técnicos e de alguns procedimentos mais básicos do cuidado

cotidiano. Passou a avaliar os bebês das outras mães e chegou até a realizar certos

21

Expressão utilizada para designar certo período de recuperação pós-cirurgia, procedimentos cirúrgicos ou, de

nascimento de um bebê.

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procedimentos. Isso foi levado diversas vezes para as reuniões de equipe e essa mãe tornou-

se a mãe problemática, pois, segundo a equipe, ‘influenciava’ negativamente as outras.

Sabemos que o poder de fazer e/ou dizer, o quê e como deve ser feito, está imbricado a

um certo modelo de produção de conhecimento, o qual possui lugares de poder/saber

demarcados. Mas o que queremos ilustrar, com os dois acontecimentos acima, é o caráter de

resistência – atitudes e questionamentos que partiram de usuárias de uma maternidade.

Embora a equipe tenha se colocado ofendida, por ter seus conhecimentos arguidos e tomados

como inadequados, as atitudes e questionamentos das usuárias podem ser vistos de outro

modo: como resistências, dentro de uma lógica de normalização dos corpos - em biocorpos.

Desse modo, entre resistências ali, outras acolá, algo parece emergir como movimento

instituinte. Primeiro, o próprio efeito de análise coletiva que estas atitudes/questionamentos

produziram na equipe como um todo, quando colocadas na roda, com todos os conflitos e

tensões que geram no cotidiano. Depois, a emergência, nestes espaços de análise coletiva, de

sentimentos que oscilam entre desaprovação e antipatia, até o reconhecimento da legitimidade

do protagonismo e autonomia das usuárias - usuárias cuidadoras de si e do mundo.

4.1.1. Ferramenta biopolítica22

na produção de um biocorpo: o hospital

O investimento e a produção dos corpos, em biocorpos, ocorreram, inicialmente,

através da disciplinarização dos mesmos, por meio do modelo disciplinar com sua prática de

vigilância. Foucault (1977) cita o Panopticon, modelo criado por Jeremy Bentham em 1787,

para as prisões, como importante ferramenta na produção do modelo científico e do biopoder,

visto que sua configuração arquitetônica permitia uma observação individualizada de todos, à

medida que os indivíduos não podiam visualizar se estavam e/ou quando sendo observados,

permitindo, assim, a transcrição dos comportamentos observados. Fato este que possibilitou a

utilização do modelo Panopticon, em outras organizações, a exemplo de escolas, hospitais,

fábricas, quartéis.

22

A política diz da produção de modos e da constante possibilidade da produção do novo, da quebra, bem como

da rigidez, de microfascismos, governo (DELEUZE; PARNET, 1998). De modo que, a Biopolítica diz de um

modo de produzir perfis de subjetividade atravessada pela Biopoder.

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Com a inserção dos dispositivos disciplinares, na organização das instituições, o

hospital tornou-se importante ferramenta na produção de outra política, a qual compõe outras

relações entre os sujeitos, outros territórios existências, bem como outras lógicas

institucionais – a biopolítica (BENEVIDES; PASSOS, 2012). Em O nascimento do hospital,

Foucault (1979) diz que “A disciplina é técnica de exercício de poder” (p. 105) e aponta uma

relação entre esse exercício do poder disciplinar e a espacialização para este exercício, como

ferramenta na composição dessa técnica. Cita, ainda, algumas características da mesma que,

segundo ele, não foi inventada no século XVIII, mas elaborada durante seu percurso nas

transformações socioeconômicas, tais como: 1) a disciplina como individualização do espaço:

os corpos passam a espaços individualizados, classificados; 2) a disciplina exerce seu controle

sobre o desenvolvimento de uma ação; 3) implica uma vigilância perpétua e constante dos

indivíduos; 4) implica um registro contínuo;

A ação direta sobre a doença, como uma forma de revelar sua verdade e produzi-la aos

olhos do médico, convoca segundo Foucault (1979) espacialização. O lugar onde a verdade

possa eclodir. O Hospital, então, tornou-se o lugar de excelência para a eclosão da doença,

visto que “A verdade não tem mais que ser produzida. Ela terá que se representar e se

apresentar cada vez procurada” (ibidem, p. 117).

Em O nascimento da medicina social, o autor investiga como o hospital pode ser

medicalizado e a medicina se tornar hospitalar. Foucault (1979) afirma que a invenção do

hospital como um instrumento terapêutico de cura, data claramente de 1780. “O hospital deixa

de ser uma simples figura arquitetônica. Ele agora faz parte de um fato médico-hospitalar que

se deve estudar como são estudados os climas, as doenças, etc.” (ibidem, p. 100). Os

inquéritos realizados por Foucault mostram que nos séculos XVII, XVIII, os hospitais são

descritos funcionalmente. “Howard e Tenon dão cifra de doentes por hospital, a relação entre

o número de doentes, o número de leitos e a área útil do hospital, a extensão e altura das salas,

a cubagem de ar de que cada doente dispõe e a taxa de mortalidade e de cura” (ibidem, p.

100). Outra característica, que chamou a atenção do autor, foram as modificações

arquitetônicas, as quais eram realizadas por médicos, de tal forma que, o hospital surgiu como

máquina de cura e devia-se corrigir qualquer produção patológica que pudesse ser produzida

no ambiente hospitalar.

Antes do século XVIII, o hospital era um espaço no qual os pobres eram assistidos

materialmente e espiritualmente. Sendo assim, configurava-se em uma organização de

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assistência e de exclusão, já que assistia às “necessidades” dos pobres, à medida que os

excluía da sociedade, por serem portadores de doenças que poderiam contaminá-la. Foucault

(1979) aponta a anulação dos efeitos negativos do hospital, como o primeiro fator para a sua

transformação em um ambiente medicalizado, e da medicina em hospitalar.

Inicialmente, alvo da medicina social, o hospital é purificado das doenças que poderia

suscitar e espalhar pela cidade, causando desordem econômica-social; “trata-se,

essencialmente, de um tipo de hospitalização que não procura fazer do hospital um

instrumento de cura, mas impedir que seja foco de desordem econômica ou social” (ibidem, p.

104).

Não foi, contudo, uma técnica médica que reordenou o hospital a ambiente de cura,

mas a introdução de uma tecnologia política: a disciplina. “É a introdução dos mecanismos

disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização”

(FOUCAULT, 1979, p. 107). O autor cita razões econômicas, o preço atribuído aos

indivíduos, a busca pelo controle das epidemias, como fatores que explicam o

esquadrinhamento disciplinar dos hospitais. Já o foco na figura do médico, como controlador

desse poder, se dá a partir da transformação do saber, em saber/poder médico. “A formação

de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar e,

por outro, à transformação, nesta época, do saber e da prática médicas” (ibidem, p. 107). A

partir dessas duas proposituras, as quais Foucault (1979) concerne, também, o nascimento do

hospital, cita algumas características na conformação do mesmo: 1) a questão do hospital, no

final do século XVIII, é uma questão de espaço: onde localizá-lo e como organizá-lo

internamente. A arquitetura hospitalar, então, passa a instrumento de cura; 2) o médico torna-

se o principal organizador arquitetônico do hospital: são eles que devem dizer como construí-

lo e organizá-lo; 3) registro exaustivo e permanente do que acontece: fazendo do hospital um

campo documental que, além de um lugar de cura, é de acúmulo de formação e saber. O saber

médico, que antes se concentrava nos livros, formava-se, também, com os registros cotidianos

realizados no fazer hospitalar. O hospital, então, para além de lugar de cura, passa a espaço de

formação acadêmica. “É assim que naturalmente se chega, entre 1780/1790, a afirmar que a

formação normativa de um médico deve passar pelo hospital” (ibidem, p. 117).

Pensando a “organização do hospital como lugar de formação e transmissão de saber”

(p. 111), Foucault (1979) diz que a “clínica aparece como dimensão essencial do hospital” (p.

111).

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Pela disciplinarização do espaço médico, pelo fato de se poder isolar cada

indivíduo, colocá-lo em um leito, prescrever-lhe um regime, etc., pretende-se

chegar a uma medicina individualizante. Efetivamente, é o indivíduo que

será observado, seguido, conhecido e curado. O indivíduo emerge como

objeto de saber e da prática médica. Mas, ao mesmo tempo, pelo mesmo

sistema do espaço hospitalar disciplinado se pode observar grande

quantidade de indivíduos. Os regimes obtidos cotidianamente, quando

confrontados entre os hospitais e nas diversas regiões, permitem constatar os

fenômenos patológicos comuns a toda a população (ibidem, p. 111).

O hospital, então, é uma importante ferramenta na produção da anátomo-clínica,

centrada no corpo e no poder/saber médico. Enquanto espaço disciplinar, investido por uma

certa política – a biopolítica –, a lógica hospitalar tornou-se produtora e reprodutora de um

corpo modelado em práticas que investem o modo de se gerir desse corpo – o biocorpo.

A Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, enquanto ambiente hospitalar, referência

em partos de alto risco, é atravessada por essa lógica biomédica e hospitalocêntrica, como

pode ser visualizado no tópico 3. Nesta maternidade, as relações de saber/poder ampliam ou

restringem espaços, a exemplo da relação do Centro Obstétrico (CO) com outras alas e/ou

pessoas, como os acompanhantes das gestantes. Várias são as regras para acesso e

manutenção nesse espaço. O GAVA, grupo de apoio a visitantes e acompanhantes, destacava,

em cada encontro, a importância e a necessidade da higienização e zelo do ambiente

hospitalar, como pontos importantes na melhoria e cura dos entes que ali estavam internados.

Alguns exemplos, apontados como esdrúxulos, eram sempre citados no grupo, para enfatizar a

desinformação da população e a necessidade de espaços informativos como aquele, bem como

o cuidado e a constante assepsia que requer o ambiente hospitalar.

Nos encontros do GAVA, alguns exemplos sempre eram citados, como o de um

senhor que estava no curral, espaço onde se coloca bovinos, cuidando de seus animais,

quando recebeu a notícia de que sua mulher havia entrado em trabalho de parto. Como não

pôde acompanhar a esposa, que fora para a maternidade com a mãe, o marido foi assim que

soube. Contudo, diante da situação, não se preocupou com seu estado de limpeza, indo para a

maternidade com as roupas e as botas repletas de estrume. Um outro exemplo foi o de uma

mulher que nunca dava descarga, ao usar o vaso sanitário. Após irritação das colegas de

quarto, o GAVA foi acionado para solucionar “o problema”, e descobriu que aquela mulher

era advinda de um povoado pobre e distante da capital, e que a mesma jamais tinha usado

uma descarga. Identificado o problema, a equipe ensinou o porquê e como usar a descarga.

Essa situação havia gerado um mal estar no quarto, já que as companheiras começaram a se

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incomodar e a reclamar para a equipe de trabalhadores da ala. Além dessa situação, ouvi

várias falas de trabalhadores sobre mulheres que não cuidavam de sua higiene pessoal. Ouvia

o quanto era incômodo, constrangedor essas situações.

Contudo, ao ouvir esses exemplos corriqueiramente nas reuniões do GAVA,

lembrava-me de meu pai e meus tios, que antes mesmo dos dezoitos anos, com datas de

nascimento modificadas para viajarem a São Paulo, saíam da roça para a capital sem nem

saber o que era um banheiro, quiçá uma descarga. Meu pai descobriu primeiro o som e,

posteriormente, de onde ele vinha, quando um colega de pensão deixou a porta aberta e puxou

a cordinha que “fazia” o tal som. A assepsia e a higiene imbricam-se de tal forma com o

espaço hospitalar que, não saber da importância destas parece algo surreal, de um ser

desinformado, mal-educado. Todavia, como não lembrar novamente de meu pai, ao ouvi-lo

dizer por tantas vezes, que tenho mais problemas de saúde que meu irmão, por ter ido de pés

descalços, menos que este, à roça? E das rezas de minha avó, que tantas vezes curaram

minhas dores de cabeça e indisposições? Não se trata de saber quem está certo ou errado, nem

de desmerecer práticas higienistas, mas de afirmar que, são entre saberes, modelos e modos, e

entre o estranhamento, a análise e gestão conjunta das práticas instituídas que tantas outras

podem ser inventadas.

4.2. Bioclínica / biopolítica: produção de um corpo – biofeminino23

Quando eu chego em casa à noitinha

Quero uma mulher só minha

Mas pra quem deu luz não tem mais jeito

Porque um filho quer seu peito

O outro já reclama a sua mão

E o outro quer o amor que ela tiver

Quatro homens dependentes e carentes

Da força da mulher

Mulher! Mulher!

Do barro de que você foi gerada

Me veio inspiração

Pra decantar você nessa canção

23

Diz da produção de um feminino medicalizado, produzido dentro da lógica biomédica.

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Mulher (Sexo Frágil)

Erasmo Carlos

A clínica no/do corpo convoca modos de gerir esse corpo e a própria vida. Daí,

podermos falar em uma clínica com/na vida – uma bioclínica. Bioclínica, principalmente em

sua dimensão biopolítica (BENEVIDES; PASSOS, 2012), naquilo que produz modos de ser.

O corpo da mulher é atravessado por uma clínica, que não se limita a uma discussão/ação

sobre doença e saúde, mas que investe moralmente este corpo, definindo um ser mulher.

“Educação e Saúde são dois dos campos de conhecimentos e práticas que produzem,

atualizam e repetem, incessantemente, o que a mãe é ou deve ser e sua ‘autoridade científica’

constitui uma importante estratégia de naturalização e universalização de tais definições”

(MEYER, 2003, p. 34).

O projeto de higienização da sociedade capitalista no século XIX, através do controle

das populações, enquanto prática de produção e proliferação do biopoder, em todas as

dimensões da vida (FOUCAULT, 1979), revestiu o corpo feminino em objeto de saber/poder

biomédico – o corpo Biofeminino. “A via para medicalizar foi a reprodução... transformando

a questão demográfica em problema de natureza ginecológica e obstétrica” (COSTA; STOTZ;

GRYNSZPAN; SOUZA, 2006, p. 368). A naturalização do corpo feminino, atrelada à

reprodução e à maternidade, tornou-se a base para a sua medicalização e sua produção,

enquanto ferramenta Biopolítica (COSTA; STOTZ; GRYNSZPAN; SOUZA, 2006), ao passo

que possibilitou a própria invenção da ginecologia e da obstetrícia, enquanto campo de saber.

As diferenças entre os corpos de homens e mulheres, descritas pela medicina, eram

especificadas a partir da sexualidade, aliando à sexualidade feminina as funções de mãe e

esposa. As diferenças sexuais corpóreas tornaram-se base para as prescrições do papel social

de mulheres e homens. As mulheres, com desejo sexual por “natureza menor” do que o dos

homens e responsáveis pela reprodução, tornaram-se centro da esfera privada da família; já os

homens, da esfera pública: trabalho, política, comércio (COSTA; STOTZ; GRYNSZPAN;

SOUZA, 2006).

Em um round, trabalhadores falaram de uma mãe que não queria “cuidar” do filho. Um

médico falou que essa mãe não pensa como a equipe, já que não se responsabilizava com os

cuidados e a rotina da ala, além de estar sofrendo com a internação conjunta com o filho. Uma

técnica de enfermagem disse que, no horário do banho, havia convocado-a para dar banho no

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filho, como uma forma de ela participar mais, já que eram as técnicas que estavam realizando

o procedimento, até o momento. A técnica relatou, ainda, que a mãe deu o banho sob sua

supervisão. Outra finalizou a conversa dizendo que essa mãe parece querer o filho, mas não

querer a responsabilidade de tê-lo.

Em uma reunião de alta com sete mães canguru, estas liam o receituário com

medicações e orientações do cuidado, que deviam ter em casa, mantendo o modo aprendido

durante o tempo de internação com o filho. Um médico lembrou, de forma enfática, que elas

passaram por uma aprendizagem, que aprenderam como cuidar dos bebês e, por isso, não

deveriam ouvir avós, vizinhos, já que são elas, mães canguru, que devem ensinar como fazer.

Também enfatizaram que elas, e não os outros, devem saber o que é melhor para seus filhos.

Rounds como os descritos acima, entre tantos outros, apontam as representações24

de

mãe, mulher que povoam a produção das práticas diárias. Mãe Responsável ou Boa Mãe é a

Mulher que, esquecendo de si, centra-se no filho, sendo este sua própria vida, e a maternidade

identidade/identificação de si enquanto mulher.

...os sistemas de representação, quando posicionam seres humanos como

mulheres, mães e/ou nutrizes e cuidadoras de diferentes tipos ou, ao

proporcionarem respostas que possibilitam a elas entender aquilo que

são/devem fazer enquanto mães... conformam corpos e identidades. E isso

implica dizer que os processos de definição de maternidades normais, de

risco e desviantes, da mãe responsável ou relapsa, de vínculos mãe-filho

adequados ou inadequados, que ocorrem dentro ou no entorno dos

programas de saúde, e que direcionam de um determinado modo as ações

educativas que eles propõem, têm efeitos muito concretos nas vidas das

pessoas e dos grupos de mulheres que neles são definidos, posicionados e

mobilizados. (MEYER, 2003, p. 42).

Essas representações, que também produzem práticas, eram, em muitos momentos

produtoras de conflitos, pois a mãe não respondia à representação que a equipe tinha do ser

mãe. O cotidiano, então, tornava-se estressante, sufocante, gerava antipatias, e as

pessoalizações focadas nas condutas das mães, tornavam-se demandas da psicologia e do

serviço social. Nesses momentos, pensar as instituições enquanto lógicas que atravessam a

composição das relações, bem como as antipatias como ferramentas para problematizar essas

mesmas lógicas, direcionavam o Apoio Institucional como potência para a produção de outras

representações, outras práticas, outros sujeitos, desde trabalhadores a usuárias. Unindo a essas

24

Como certos modos tomam materialidade, através de imagens, textos, áreas de conhecimento, práticas de

assistência, corpos, os quais definem e regulam esses mesmos modos (MEYER, 2003).

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situações, o modo de fazer do Apoio, a discussão do humano da PNH e seu método da tríplice

inclusão, conflitos e antipais apresentavam-se como germes de/para produção de resistências.

Diante do incômodo de alguns trabalhadores com o grande número de adolescentes

que davam entrada no serviço, em torno de noventa por mês, tentou-se construir uma Linha de

Cuidado “Adolescentes Grávidas”, com o objetivo de tecer uma rede para adolescentes

gestantes, com a atenção básica e outros projetos voltados a esse público, para que essas

jovens não perdessem seus projetos de vida, como estudar, ter uma carreira profissional,

buscando sua “autonomia”. Após meses de discussão entre profissionais da gestão, da

psicologia, do serviço social e algumas especialidades médicas, as bases e as ações da Linha

de Cuidado foram construídas. Acompanhei uma reunião de apresentação da Linha para

outros trabalhadores, que não estavam envolvidos diretamente com a produção da mesma.

Princípios, dados, ações foram passados e discutidos. Contudo, ao longo do ano, essas ações

foram se perdendo entre burocracias e a alta demanda para pouco profissionais.

Os discursos contemporâneos, segundo os quais, os meios e os recursos necessários

para a consecução dos projetos de vida, e saúde dos indivíduos, devem ser de

responsabilidade dos mesmos (MEYER, 2003), problematizam questão da maternidade no

contemporâneo. Questões como: “por que ter filhos se não tenho condições de criá-los e

provê-los?” (COSTA; STOTZ; GRYNSZPAN; SOUZA, 2006, p. 376) mantêm o corpo

feminino atualizado e atualizando a estratégia Biopolítica, “pois a saída é a esterilização

cirúrgica realizada, geralmente, durante o parto cesáreo, ou seja, atrelada à maternidade”

(ibidem, p. 376). A adolescência, diante desses discursos contemporâneos em torno da

maternagem e da própria representação que sua face apresenta, torna-se alvo de práticas

biopolíticas. A busca por um cuidado, uma legislação jurídica específica para esse “corpo

adolescente”, produzem e reproduzem identidades, representações de um feminino –

Biofeminino.

Havia uma adolescente de quatorze anos internada na Ala Rosa. Segundo a legislação

vigente em torno dos Direitos das Crianças e Adolescentes, quando uma menina, de até

quatorze anos, dá entrada em um serviço de saúde, gestante e/ou com sinais de agressão,

violência sexual, o serviço é obrigado a realizar notificação compulsória para o Judiciário,

acionando a rede de Proteção Especial, como Conselho Tutelar, Delegacia de Grupo

Vulneráveis, Promotoria, Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS),

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entre outros, pois até os quatorze anos, mesmo que a relação sexual seja consentida pela

adolescente, para o Judiciário é considerado estupro.

Passei a vivenciar casos como esse constantemente, quando assumi o cargo de

psicóloga em um CREAS. Contudo, ao contrário do serviço de saúde, que é “obrigado” a

realizar a notificação compulsória, acionando o Judiciário, para mim as adolescentes já

chegam encaminhadas por este. Em muitas situações, eram interrogadas, pressionadas,

julgadas, nos próprios equipamentos da rede de Proteção Especial. O modo de ser

adolescente/mulher não era atualizado, produzido apenas nos serviços de saúde, mas

engendrava-se no próprio modo de fazer das Políticas Públicas, desde as de saúde às da

assistência social.

E eu, frente às demandas do Judiciário, das famílias, das adolescentes, da Política de

Assistência Social, dos conflitos internos da equipe, desta com a gestão municipal, pensava na

tensão que uma Linha de Cuidado para Adolescentes Grávidas, como a pensada pelos

trabalhadores da Maternidade, podia movimentar o modo de operar dessas políticas,

problematizando-as. Germes, da potência do Apoio Institucional, saltavam com o cotidiano

do meu serviço, enquanto psicóloga de um CREAS. Ao se colocar em roda, o singular de cada

adolescente, de cada mulher, leques de possibilidades poderiam ser produzidos, para outras

formas de vida dessas meninas/mulheres, bem como do próprio modo de entendimento do que

seja feminino, mulher, e o modo de fazer dessas políticas, produzindo outras linhas que

ultrapassem os discursos de um corpo medicalizado/judicializado – biofeminino.

Ser mãe/não ser, ser esposa/não ser, para além de uma escolha da mulher, compõe sua

própria identidade, a própria idade da mulher atrela-se à sua idade produtiva. Dentro da minha

família, ouço constantemente que, passado dos vinte e oito anos, o “negócio complica”, pois

as mulheres já começam a ficar velhas para engravidar, até mesmo para “arrumar” marido.

Entre tantos discursos machistas de uma família interiorana, debrucei-me em tantos outros, de

mulheres como Frida Kalho e Leila Diniz. Estas sempre me afetaram de tal forma, que

acabavam produzindo ou enfatizando discursos tão conservadores quanto os machistas que

criticava – mulher não precisa de marido para ter casa, filho, vida estável; mulher para ser

livre precisa romper com os dogmas patriarcais estabelecidos, vivendo um não-ser como se é,

mas sim o inverso.

Hoje, após essa vivência com tantas mulheres na Maternidade, e com a vivência diária

no CREAS, escolhi buscar não-ser diferente da minha mãe, das minhas avós, tias, mas sim a

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buscar potências e resistências nesses modos, para que a vivência diária com meu ser mulher

e com tantas outras mulheres possa ser menos conflituosa.

4.2.1. Sobre modos de parir: entre a medicalização e a naturalização do parto

A medicalização do corpo feminino, através de uma clínica que o trata como

“essencialmente defeituoso, imprevisível e potencialmente perigoso, portanto necessitado de

correção e tutela, expressas nas intervenções” (DINIZ, 2009, p. 318), aproxima a medicina do

parto, através do conhecimento cirúrgico e tecnológico. “A configuração da ginecologia e a

instalação de maternidades (espaços específicos e adequados aos nascimentos), no século XIX

(Rohden, 2001), promovem a exaltação da maternidade como algo inerente à ‘natureza

feminina’” (COSTA; STOTZ; GRYNSZPAN; SOUZA, 2006, p. 369). Segundo Carmen

Tornquist (2002), “como qualquer ação humana, o parto é também uma construção social” (p.

489). Foi, a partir da produção de um saber/poder médico obstétrico, que o parto tornou-se

objeto e ferramenta na medicalização do corpo feminino.

No final do século XVI, com a utilização do fórceps obstétrico pelo cirurgião inglês

Peter Chamberlain, a profissão de parteira sofre declínio. Essa prática torna a obstetrícia

disciplina técnica, científica, instaurando-se a “possibilidade” de comando do nascimento, ao

passo que o parto torna-se um evento perigoso e imprescindível da presença médica. Foi,

contudo, no século XVII que o parto passa a status de perigoso para a saúde e a medicina sua

guardiã, principalmente a partir da descoberta do mecanismo da ovulação, segundo o qual a

mulher passa a ser percebida como mais delicada que o homem. O advento do capitalismo

industrial legitimou e reconheceu a assistência ao parto pelo exercício médico.

Apesar da hospitalização ter sido, em grande parte, responsável pela queda

da mortalidade materna e neonatal, o cenário de nascimento transformou-se

rapidamente: simbolicamente, a mulher foi despida de sua individualidade,

autonomia e sexualidade, por meio do cerimonial de internação – separação

da família, remoção de roupas e de objetos pessoais, ritual de limpeza com

enema, jejum, não deambular. Ou seja, a atenção foi organizada como uma

linha de produção e a mulher transformou-se em propriedade institucional.

(NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005, p. 656).

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Dessa forma, o planejamento taylorista pautado na otimização de custos, objetivando

eficiência e lucratividade, em um modelo assistencial de “cesárea de rotina”, substituía a

imprevisibilidade do parto, por um conhecimento médico-científico, tornando-se um dos

principais modelos de gestão e atenção ao parto, principalmente no setor privado (DINIZ,

2009). O parto, por sua vez, torna-se um evento hospitalar, de competência e responsabilidade

médica, tornando o corpo feminino ainda mais objeto de intervenção – corpo biofeminino.

Em um GPS (Grupo de Promoção à saúde), com três gestantes internadas na Ala Rosa

e suas acompanhantes, houve alguns relatos de partos. Uma senhora contou que deu à luz a

nove filhos, dos quais, no momento do parto de três estava sozinha e sua parteira apenas

cortou o cordão umbilical. Uma disse que passou vinte e quatro horas em trabalho de parto, e

que mesmo diante de tanta dor não deu nenhum grito, pois todas as mulheres que gritavam

recebiam gritos humilhantes de técnicas de enfermagem e enfermeiras. Durante o grupo, a

equipe da Maternidade falou de como o corpo funciona durante o parto. A senhora que pariu

nove filhos não sabia o que era placenta e fez várias perguntas. O restante do tempo girou em

torno de poder ou não gritar, comer. Uma das trabalhadoras, também gestante, demonstrou às

internadas exercícios e respirações, centrados no contato com o bebê e o próprio corpo para

aliviar as dores e os incômodos.

Em março de 2013, durante cinco dias, ocorreu um curso de capacitação de Doulas, na

Maternidade, que contou com a participação de vinte e uma mulheres e diferentes

facilitadores (desde as trabalhadoras/doulas/supervisoras a todas as categorias que compõem

equipes multiprofissionais na MNSL). Durante a apresentação de práticas pautadas na

medicina por evidências, tais como contato pele a pele no primeiro momento de vida,

clampeamento tardio do cordão umbilical e aleitamento no primeiro momento de vida, as

capacitandas relataram seus partos. A maioria havia passado por cesarianas, algumas após

horas de indução ao parto normal com uso de ocitocina, vários exames de toque, deitadas na

mesma posição, sem poderem levantar, nem ingerir água ou alimentos. Apenas duas haviam

tido parto vaginal: uma com a utilização de fórceps, segundo ela fora um parto muito

doloroso; outra, um parto domiciliar, apenas com auxílio de uma Doula.

Ao passo que ouvia esses relatos e buscava entender como essas práticas foram

normalizadas, sentia-me sufocada, como me senti dentro do Centro Obstétrico: fechada,

enclausurada. Parecia vivenciar, ali, um distanciamento, como se a gestação e o parir não

fossem algo que acontecesse com o corpo feminino. Olhava aquelas mulheres falando e

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pensava o quanto nossos corpos são objetos. Lembrava-me, de todo o imaginário, entre coisas

que me eram proibidas de fazer e comer quando estava menstruada, o silêncio sobre o desejo

sexual feminino, a onipotência masculina em sua virilidade, o adultério calado e exaltado dos

homens de minha família. Olhei-me no espelho, várias vezes, e via essas sensações marcadas

nas roupas, na minha relação com os mais velhos, em hábitos do que “pode e não pode”, no

silêncio entre minhas relações amorosas e minha família. Em muitos momentos, senti

vergonha desses hábitos e marcas, mas, num soluço de paz, pude ver outras tantas novas

marcas produzidas com o fazer dessa pesquisa, tentando tensionar outras formas de fazer.

Contudo, entre uma forma e outra, há escorregões que podem sufocar a invenção.

Discursos contemporâneos em torno da humanização do parto “dão positividade ao corpo e à

experiência feminina de dar à luz (a qual supõe certas condições biológicas óbvias)”

(TORNQUIST, 2002, p. 489), “o que reforça e imprime ares de normatividade a um modelo

ideal de parir” (ibidem, p. 490).

Uma avaliação científica evidenciou que a efetividade e a segurança de uma atenção

ao parto e ao nascimento se dão em um mínimo de intervenções sobre a fisiologia. Um

movimento mundial, por sua vez, em prol da humanização do parto e nascimento, a partir da

década de 1980, objetivou transformar o cotidiano do cuidado, através das mudanças de

práticas dos profissionais de saúde, ao centrar os procedimentos nas necessidades das

parturientes (DAVIS-FLOYD, 2001, citado por TORNQUIST, 2002).

No Brasil, a partir de 1988, Ministério da Saúde constituiu o Programa de

Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005).

As características principais do programa são a integralidade da assistência

obstétrica e a afirmação dos direitos da mulher incorporados como diretrizes

institucionais, com objetivo principal de reorganizar a assistência e vincular

formalmente o pré-natal ao parto e puerpério, ampliar o acesso das mulheres

aos serviços de saúde e garantir a qualidade da assistência com a realização

de um conjunto mínimo de procedimentos (BRASIL, 2000, citado por

TORNQUIST, 2002).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) incentivou o uso de intervenções

medicalizadas, apenas em situações de necessidade comprovada. Desse modo, as práticas

tidas como humanizadoras incentivam intervenções “mais adequadas à fisiologia do parto e,

portanto, menos agressivas e mais naturais” (TORNQUIST, 2002, p. 483-484).

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Porém, Tornquist (2002) problematiza esse modo de perceber as práticas voltadas ao

natural da fisiologia do parto, pois segundo a autora não há um questionamento da concepção

dicotômica natureza-cultura, ocorrendo, porém uma inversão: “positivando a dimensão tida

como Natural e negativizando aquela tida como tecnocrática/social/cultural e ocidental” (p.

488).

A partir da hipótese de que no universo, em torno do parto e do nascimento, há duas

vertentes, a biomédica e a alternativa/naturalista, Tornquist (2002) as utiliza como recursos

analíticos, apesar de afirmar que as mesmas não são encontráveis diretamente no cotidiano, e

não são exatamente nativas do movimento. Para a autora, na vertente alternativa/naturalista, o

conceito de humanização assume sinônimo de animalização, através dos aspectos ritualísticos

e de instintos universais do parir, contrapondo-o à medicalização do parto enquanto um

ideário cultural/ocidental do qual devemos nos livrar. Desta forma, as representações do

ideário humanista mantêm-se atreladas ao ideário feminino produzido com o modelo

biomédico, desde o século XVIII, segundo os quais, a identidade de um ser mulher engendra-

se à maternidade, à natureza, à manutenção do futuro do planeta.

Nesse imaginário há uma celebração do feminino, visto não apenas como

uma característica das mulheres (fortemente associada à sua biologia), mas

também de um modo específico de ser e estar no mundo: predomínio dos

sentimentos, dos saberes sensuais, do não-intervencionismo, da

espiritualidade. O conjunto de imagens e metáforas exposto e evocado no

ideário é rico em associações entre maternidade, amamentação e

participação paterna, entre parto e preservação da Natureza, entre instinto

materno e cuidados com o bebê. Nessa estética do parto a construção de uma

forma mais natural de parir se coloca como um modelo a ser seguido: trata-

se, enfim, de alcançar o ‘Belo Parto’ (ibidem, p. 490).

Entre as capacitandas, do curso de Doulas, uma havia tido parto domiciliar, justamente

com uma Doula. Ao relatar sua experiência, disse que, quando começou seu trabalho de parto,

sentiu vontade de se esconder, como fazem as vacas. Disse também que achava importante

sentir a dor, contrapondo-se com as alternativas farmacêuticas para aliviá-las. O obstetra, que

estava falando sobre partos e intervenções, iniciou um debate com essa aluna, sustentando a

importância do uso de medicamentos e intervenções médicas no ambiente hospitalar. Após

alguns minutos de discussão, um mal estar abateu-se sobre a sala. Uma das orientadoras do

curso frisou a necessidade de se ouvir a mulher, o que a mesma quer, como ela visualizava a

situação, para assim, serem construídas intervenções singulares a cada uma.

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Durante os cinco dias de oficinas, com dinâmicas, palestras e rodas de conversa, o

curso de Doulas parecia circular entre ideários de parto – o instinto materno, a força e a

preparação do corpo feminino para a dádiva de dar à luz a uma nova vida, a um novo ser. A

necessidade de sentir dor / de não sentir, de ser o parto um momento de intimidade da mulher

com o seu verdadeiro eu / de ser um momento de riscos, marcavam as falas e o próprio

funcionamento do grupo de doulas, em sua função de servir às outras mulheres durante o pré-

parto, parto e puerpério. Ali, naquele grupo em roda, representações, formas, lógicas, modos

constituíram-se. Entre imagens de violência obstétrica e ideários de parto, um movimento

germinava, afirmando outras formas, outras produções autônomas de corpos em suas

singularidades.

Uma trabalhadora contou que, certa vez, atuou como doula em outra maternidade, em

um parto de uma adolescente de dezessete anos, a qual estava sem acompanhante. Mesmo

com todas as condições favoráveis e com a atuação da doula, a adolescente não quis o parto

normal. Posteriormente, questionando-se sobre sua prática enquanto doula, a trabalhadora

disse que é necessário deslocar o foco do procedimento, se parto normal ou cesárea, para a

singularidade de cada mulher.

Os momentos da gestação, parto e puerpério, atravessados por tantas representações,

são importantes ferramentas na produção de outros corpos, através do Apoio à mulher,

analisando os próprios ideários e representações. A capacitação das doulas, em roda, pondo

em ação os modelos/ideários de parto, da relação destes com o corpo/ser feminino poderia sim

tensionar as práticas cotidianas das mesmas, ao produzir linhas que fujam do modelo

biomédico e alternativo/naturalista (TORNQUIST, 2002), já que, para além de mulheres

voluntárias que aliviam dores no momento do parto e/ou ensinam as mães a amamentarem, a

relação que essas mulheres/doulas construíram com seus corpos modifica o modo de se

relacionarem com as usuárias da maternidade em seu processo de parto, apoiando práticas

para a construção de usuárias cuidadoras. Usuárias essas que, ao poderem

vivenciar/experimentar seu corpo, podem, também, construir junto à equipe de saúde seu

parir.

Todavia, a relação da maternidade com o corpo feminino não se restringe à gestação e

ao parto. Nascido o bebê, o puerpério é um momento recheado de normas que instituem

formas de viver da mulher. Dagmar Meyer (2003) aponta as recomendações médicas acerca

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da amamentação como uma ruptura que trouxe “importantes modificações nas formas de

governar a vida das mulheres, o exercício da maternidade e a amamentação” (p. 44).

Amamentar era uma das prerrogativas de boa mãe, para a inserção no Método

Canguru. O incentivo dado às mães, pela equipe, para que as mesmas amamentassem era

constante por todos os profissionais. Como os bebês da Ala Verde são prematuros, muitos

eram alimentados através de sonda e o horário de receber a alimentação deveria ser

controlado com a mãe. O Banco de leite, local onde as mães recebem orientação e auxílio

sobre amamentação, e onde faziam a ordenha, fica na própria Ala Verde. Ganho de peso /

perda de peso, sangue nas fezes do bebê, tentar amamentar, ir ou não ao Banco de Leite eram

assuntos recorrentes nos rounds e observados, constantemente, pelas técnicas de enfermagem.

Em um Round, discutiu-se a conduta de uma mãe que havia aprendido os termos

técnicos, com a convivência hospitalar, e tentava induzir a equipe a acreditar que seu filho

estava bem, ganhando peso. Contudo, diante das pesagens diárias, o fato não era comprovado.

Durante um período, as fezes dos bebês apresentavam sangue. A explicação

encontrada pela equipe foi a alimentação materna. Os familiares deveriam estar entrando

irregularmente, com alimentação que as mães canguru não podiam ingerir. Um dos

trabalhadores da equipe sugeriu que fosse realizada uma reunião com o responsável pela

recepção, para melhorar o controle do que entrava.

A amamentação é inscrita em discursos científicos, em especial o médico e o

psicológico, em valor de verdade que define uma relação de linearidade entre amamentação e

desenvolvimento físico, cognitivo e emocional da criança, como critérios para posicionar

mulheres e crianças, de modo diferenciado nas redes de vigilância e controle dos sistemas de

saúde. Entre crianças amamentadas com leite materno ou não, mulheres que amamentaram ou

não, e o porquê, pessoas são classificadas - crianças e mães normais / crianças e mães de

risco, “um posicionamento que tem diferentes efeitos em suas vidas e nas de suas famílias”

(MEYER, 2003, p. 48-49).

Mães abaladas emocionalmente, estressadas, que pediam remédio à equipe para

produzir leite, preocupadas com a pesagem diária de seus filhos eram também assuntos

recorrentes, bem como mães que não queriam amamentar, que não procuravam ajudar seu

corpo a produzir o leite. Essas atitudes eram, em sua grande maioria, interpretadas pelas

representações de um ser mãe/mulher, de modo que, alimentação e amamentação pelas mães

compunham e compõem certo modo/perfil de mulher. A amamentação apresenta-se, para

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além de uma ferramenta de produção de um biocorpo/biofeminino, ferramenta de apoio para

outras produções.

4.3. Entre modelos de gestão e atenção: modos de gerir – modos de fazer em

saúde

O biopoder engendrou-se nas relações, através de vários dispositivos e ferramentas, para

gerir os corpos, forjando estes em outra relação. E tem nos modelos de atenção e gestão

muitos outros dispositivos e ferramentas, para a manutenção das formas instituídas e a

invenção de forças instituintes. Foi pensando em um fazer em saúde democrático e autônomo

que o Apoio Institucional foi forjado, enquanto método de/para gestão. Desta forma, este

método deu corpo a nossa pesquisa, através da qual problematizamos/interrogamos um modo

de fazer apoio institucional, em uma certa experimentação de/no campo.

Assim, partindo do princípio de indissociabilidade entre as dimensões planejar-gerir-

executar, bem como da relação entre o modo de praticar o planejamento e a gestão, com o

modo de executar as práticas cotidianas, ao mesmo tempo em que essas mesmas práticas

cotidianas alimentam e borram os planejamentos e suas ações definidas, as gestões

burocratizadas, fomentando outras práticas, outras lógicas, esboçaremos modelos de gestão e

atenção e o modo como o Apoio Institucional, enquanto dispositivo, borra certa realidade,

tensionando outras produções.

Com o conceito de Organizações Profissionais de Mintzberg, Dussault (1992) aponta as

especificidades das organizações de saúde: organização profissional que requer autonomia de

prática; atendem necessidades multidimensionais; além do desempenho significativo de

valores e julgamentos morais, nas decisões relativas à produção do cuidado, visto que o

mecanismo dominante para a coordenação das ações são as qualificações, formalizadas em

um processo de formação e tendo suas normas definidas pelas Associações Profissionais.

Devido à complexidade e variabilidade do trabalho, os profissionais conservam discrição na

produção dos serviços, fato que limita o papel dos gerentes e do locus de tomada de decisão.

Ana Paula Paes de Paula (2005), em Administração Pública brasileira entre o

Gerencialismo e a Gestão Social, apresenta dois modelos de Gestão Pública, no âmbito da

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administração brasileira. O primeiro, o Gerencial, que se desenvolveu no Brasil durante os

anos 90, e o segundo, o Societal, que se encontra em desenvolvimento.

O Gerencialismo, ideário que floresceu e disseminou-se nos governos de Margareth

Thatche (Inglaterra) e de Ronald Reagan (EUA), com a promoção da globalização do

neoliberalismo, através de organizações como a Organização Mundial do Comércio (OMC),

que impunha o livre comércio, o Fundo Monetário internacional (FMI), o qual intensificava a

dependência financeira e políticas sociais subsidiadas pelas propostas no Banco Mundial,

fortaleceu o direito à propriedade privada, ao livre comércio e a liberdade individual, através

de incentivos a iniciativa privada. Já a Societal, que possui como origem os movimentos

contra a Ditadura Militar e a redemocratização do país, manifesta-se em experiências

alternativas de gestão, como os Conselhos Gestores e o Orçamento Participativo. Ao

comparar as duas vertentes, a partir de três dimensões: econômico-financeira, institucional-

administrativa e sociopolítica; a autora assinala que a Gerencial enfatiza as duas primeiras; já

a societal, a última, colocando-as em pontos extremos, fato que reflete o debate dicotômico

entre política e administração.

Emerson Elias Merhy (2002), no que diz respeito à administração pública do setor

saúde, utiliza-se da Atenção Gerenciada (A.G.) como um analisador para problematizar a

atual conjuntura tecnológica do setor. Afirma que o modelo nascente nos EUA tinha como

“ideia-base um cálculo sobre a ‘otimização’ entre custos de ações de guerra e resultados

estratégicos militares atingidos” (p. 69), compondo o plano de ação no período da Guerra do

Vietnã. Voltada à saúde, a A.G.

Visualiza um setor saúde francamente segmentado por grupos populacionais

específicos, que regula suas relações como consumidores finais dos serviços

prestados por meio da presença de intervenções econômico-financeiras

orientadas de administradores e prestadores de serviços de saúde,

financiados por compradores inteligentes: empresas, privadas e

governamentais, ou grupos de consumidores associados (ibidem, p. 88-89).

Por meio da bibliografia da Organização Pan-Americana de Saúde, Merhy (2002)

assinala quatro elementos essenciais da A.G., a qual vem sendo implantadas nos EUA: a)

Grandes empresas integradas por seguradoras e prestadoras, as quais vendem planos de

saúde de forma competitiva, objetivando a redução da prática médica baseada no pagamento

por ato; b) Grandes Organizações de compradores de seguros, como patrocinadores,

compram planos de grandes vendedores, realizadas até por governos estaduais e municipais,

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tomando decisões baseadas em dados de custos e qualidade dos serviços; c) Benefícios de

saúde efetivos e uniformes, constituídos a partir de um comitê nacional de saúde, o qual

definiria uma cesta mínima de benefícios; d) Mudança nos códigos tributários, as quais

proporcionariam incentivos para compra de uma cobertura mais barata.

A saúde, assim, enquanto um bem de mercado, refere-se aos agentes envolvidos em

sua comercialização, como agentes econômicos, por um tipo de racionalidade: a) para o

consumidor final – tem como parâmetro de análise a qualidade do que consumiu, que tendo a

saúde como um certo bem de serviço a identifica como capaz de solucionar ou evitar um

problema; b) para o prestador – comercializa algo como se fosse detentor de uma

“tecnologia”; c) para o administrador – ao operar com controle de custos, de produção, para

obter vantagens com o preço da venda, atua como em um mercado de compras; d) para o

financiador – como um comprador inteligente viabiliza o acesso ao bem desejo.

Esse modelo, de Atenção Gerenciada, focado em otimização dos custos e aumento da

qualidade, produz uma saúde focada em atos médicos, coordenados pelos administradores, o

que torna o cotidiano das práticas, valores tabelados junto à classe médica e às seguradoras.

As microdecisões cotidianas, por sua vez, afastam-se dos usuários, fazendo destes corpos de

intervenção médica, de modo que esse modelo de atenção, além de tornar a saúde um bem de

mercado, pauta-se, segundo Merhy (2002), em um fazer saúde regulado por máquinas, fato

este, que alimenta a lógica biomédica, de corpos doentes que necessitam de tecnologias

específicas e especialidades.

Exemplificando, com algumas reformas organizacionais, sofridas por algumas

“empresas” do setor saúde, a exemplo da Unimed de Campinas, a Cabesp dos funcionários do

Banco de Estado de São Paulo, o Previ do Banco do Brasil, a Amico, empresa de planos de

saúde, Merhy (2002) aponta ações consoantes à A.G. (justificadas por seus promotores, com

uma problematização sobre a crise do setor saúde): foco nos altos custos, além de uma ênfase

em torno da divisão de lucros, qualidade dos serviços ofertados, a competitividade entre

prestadores, ao mesmo tempo em que se desenvolvem ações de prevenção e controle de

riscos, de adoecimento e cronificação de quadros já instalados.

Sonia Fleury (2008), em Reforma do Estado, Seguridade Social e Saúde no Brasil,

afirma que, na área das políticas sociais, há uma substituição do modelo corporativo por um

modelo baseado na individualização dos riscos. “Para aqueles que podem pagar por seus

riscos sociais há uma explosão de oferta de seguros sociais em áreas como a saúde e as

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aposentadorias” (p. 73); já para os que não podem pagar, o princípio da individualização se

concretiza em programas de proteção focalizados, mediante o cumprimento de certas

condicionalidades impostas. “Desta forma, a política social passa a funcionar como

mecanismos simultâneos de promoção e controle social, desvinculadas da condição de

exercício de um direito social” (p. 73). A autora destaca, ainda, que em um modelo social que

toma o outro como objeto, e não um sujeito, “a saúde passa a ser vista como um bem de

consumo, e, mais do que isto, como um modelo de consumo caracterizado pela ausência da

dor e do sofrimento” (p. 74).

Como podemos ver, o Brasil é atravessado por um modelo político-econômico

neoliberal, que engendra certa relação entre a sociedade, o Estado e a administração dos

serviços públicos. O setor saúde, como apresentou Merhy (2002), não está fora dessa lógica

comercial. Assim sendo, podemos entender a lógica de mercado, que coaduna com um certo

modo de produção de saúde, atual do estado brasileiro, bem como o processo de

constitucionalização do Sistema Único de Saúde. Fato este, que torna a efetivação dos

princípios do sistema um grande desafio.

O ‘sistema de saúde’ brasileiro, formado ao longo do século XX, teve como

marca a dicotomia entre saúde pública e assistência médico-hospitalar. De

um lado, as campanhas sanitárias e, de outro, a filantropia, a medicina

liberal, a medicina previdenciária e, posteriormente, as empresas médicas

(PAIM, 2008, p. 94).

Assim, de forma sucinta: na Era Vargas, o direto à assistência médica é concedido aos

trabalhadores urbanos com carteira assinada; na Ditadura Militar, muito mais como uma

concessão que como um direito, a assistência-médico previdenciária estende-se aos

trabalhadores rurais, por meio do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural)

(PAIM, 2008). Este modelo teve seu auge no final da década de 70, “amparado na compra de

serviços privados com o financiamento da previdência” (BARBOSA, 1997). Vale ressaltar

que os serviços privados são pautados em equipamentos hospitalares, com grande arsenal

maquínico, o que conferia status de desenvolvimento. Contudo, com os movimentos pela

redemocratização do país, junto aos movimentos pela universalização da saúde enquanto um

direito, além das crises financeiras no setor previdenciário/saúde (COHN, 1989), entre outros

atravessamentos, iniciam-se ações na busca da universalização e descentralização da saúde,

como as Ações Integradas de Saúde (AIS), o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde

(SUDS), até a constitucionalização do Sistema Único de Saúde, junto à Constituição Federal

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de 1988. Entretanto, este movimento foi composto também por interesses político-

econômicos, como pode ser vislumbrado nas discussões parlamentares.

A partir do emblema da Reforma Sanitária Brasileira, de que Democracia é saúde e Saúde

é Democracia, a universalização do direito à saúde torna-se bandeira da reforma política,

posto que, deveria ser via para a participação popular no poder, sendo, então, a saúde

estratégia para a efetivação da democracia, e esta para a efetivação do direito à saúde. Antônio

Ivo de Carvalho (1997), em Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a

Reforma Sanitária como Reforma do Estado, assinala o controle social, em sua forma

conceitual operacional, enquanto processo e mecanismo de influência sobre o Estado.

Mediante um Estado de regime militar, “com práticas políticas e socialmente excludentes

e com interesses privados” (ibidem, p. 95), enquanto um “comitê de negócios da burguesia”, a

influência dos movimentos sociais era de fora para dentro, “com resultados sempre limitados

ou parciais, enquanto não se alterasse a lógica estrutural do modelo” (ibidem, p. 96). De

acordo com o autor, não se tratava de participação, mas sim de luta. Foi, então, a partir de

experiências de órgãos colegiados, que se amadureceu a proposta dos Conselhos. Contudo,

apesar de ter identidade e atribuições legais formalmente definidas, possuem ambiguidades

em sua trajetória prática, como: “Pertencem ao governo ou a sociedade? Devem governar ou

fiscalizar? Devem ampliar suas responsabilidades executivas ou aprimorar seus mecanismos

de acompanhamento?” (CARVALHO, 1997, p. 97).

Também atravessado pela luta brasileira contra o Estado autoritário, o controle social

adquiriu conotações maniqueísta e instrumental. Na primeira, Estado e sociedade são tidos

como homogêneos e de vocações distintas. O Estado, então, assume o papel de vilão e a

sociedade de vítima. Já a segunda, parte do princípio de que os conselhos devem assegurar

instrumentos para controlar o Estado. Ao se superar essa visão maniqueísta e instrumental,

que desobriga os Conselhos de Saúde da função de “guardiães heroicos da agenda da Reforma

Sanitária, para redescobri-los como experiência social e inovação política relevante para a

reforma democrática do Estado” (NETO, 1997, p. 98), estes poderão representar “assim, um

processo potencialmente alternativo às práticas clientelistas, na medida em que ‘publicizam’ e

tecnificam o processamento das demandas no interior do Estado, nos marcos de um pacto

democrático” (ibidem, p. 99).

Carmen Fontes Teixeira e Washington Luiz Abreu de Jesus (2010), ao discutirem

Correntes de pensamento em planejamento de saúde no Brasil, afirmam que a partir da

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segunda metade da década de 80, quando há condições políticas favoráveis, houve a

institucionalização de práticas de planejamento e programação nas Secretarias Estaduais e

Municipais de Saúde.

No que se refere aos Enfoques teórico-metodológico do planejamento em saúde,

Teixeira (2010) apresenta quatro: 1) o método CENDES-OPS (OPS, 1965): que inaugura a

prática de programação em saúde na América Latina, marcada por princípios do planejamento

economicista, com uma proposta de diagnóstico, a partir de uma visão ecológica do processo

saúde-doença. Um enfoque descritivo, por meio de levantamento de informações, indicadores

de saúde seriam construídos, além dos fatores que permitissem a explicação dos mesmos.

Atualmente, este método é utilizado no desenvolvimento de programação de ações e serviços

que tenham como objetivo a racionalização de recursos escassos; 2) a proposta do CPPS:

segundo a qual, planejam-se e programam-se as ações, por meio dos determinantes da

demanda dos serviços de saúde, voltadas à prevenção de problemas previsíveis, porém não

explícitos, entre necessidades sentidas e não sentidas; 3) a contribuição de Mário Testa: ao

considerar o setor saúde inseparável da totalidade social, Testa denota que a situação de saúde

de uma população e a organização setorial são fenômenos socialmente determinados, de

forma que as relações de poder devem ser analisadas; 4) o enfoque situacional de Carlos

Matus: ao partir da noção de situação, entendida como um conjunto de problemas

identificados por um ator social e ao reconhecer a combinação de múltiplos atores, a partir de

ações estratégicas e comunicativas entre os mesmos, busca construir alternativas

coletivamente. Para o ato de planejar, o enfoque estratégico-situacional traz alguns efeitos: o

ator social que planeja faz parte da realidade a ser planejada; as explicações e análises de

todos os atores são consideradas horizontalmente; além de se elaborar um conjunto de

propostas, constrói-se a viabilidade das ações, considerando a capacidade de todos os atores.

Discutindo as Vertentes do debate sobre planejamento e gestão em saúde, Teixeira e

Jesus (2010) destacam que da corrente identificada como “Ações programáticas em saúde”,

representada pela produção do grupo vinculado ao Departamento de Medicina Preventiva da

USP, no início dos anos 90, no que se refere ao planejamento de ações de saúde, partem do

processo de programação do método CENDES-OPS e da “Teoria do Processo de trabalho”

em saúde, que embasa em múltiplas dimensões a análise das práticas de saúde. Já o grupo de

pesquisa em planejamento e programação da ENSP teve como pressuposto a análise crítica da

obra de Matus, realizada por Rivera (1992, 1995), através da Teoria de Ação Comunicativa

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(HABERMAS) que, ao se dedicar posteriormente à “Gestão estratégica”, desenvolveu estudos

e estratégias na área de Análise estratégica, Liderança e Cultura Organizacional, e outros

temas correlatos. O grupo, identificado com o Laboratório de Análise e Planejamento do

DMP da UNICAMP, atualmente desfeito, desenvolveu estudos e elaborou propostas em torno

da Gestão em Saúde, os quais ampliam as análises sobre os processos decisórios em saúde,

especificamente a reflexão sobre a “Análise e co-gestão de coletivos” (CAMPOS, 2000), a

“Micropolítica do trabalho em saúde” (MERHY, 1997) e a proposição de aplicação de uma

“Tecnologia leve para o planejamento em saúde” (CECILIO, 1997, p. 39). O grupo de

docentes e pesquisadores do ISC-UFBA, por sua vez, trabalha com a noção de Vigilância da

Saúde, com o enfoque estratégico do planejamento estratégico-situacional, a partir da análise

da situação de saúde de territórios específicos, organiza os processos de trabalho dos serviços

que compõem a rede.

Além de modelos administrativos, planejamentos em saúde, os modelos tecno-

assistenciais compõem o fazer das organizações de saúde. No subtópico: 2.8- teorias e

métodos: os modelos tecno-assistenciais disputam a produção das organizações, de sua tese

de doutoramento, Liane Beatriz Righi (2002), ao discutir o conceito de modelos tecno-

assistenciais de Merhy (1992), diz que os modelos são projetos políticos os quais devem ser

capazes de descrever qual seu problema, suas práticas, para que servem e como devem ser

organizados seus serviços, quem são seus trabalhadores e seus usuários; é a organização de

uma dada forma de poder político, expressando uma conformação de Estado e, enquanto

política, tem de construir uma visão dos outros modelos. Com a concepção de Campo de

Bourdieu e Wacquant (1995), Righi marca, também, que pensar Campo em termos de

relações, auxilia a entender os modelos tecno-assistenciais como propostas em disputa, pois

“Em um campo há lutas; portanto, há história. Só pode haver história se os indivíduos se

rebelam, resistam e reajam. O campo é cenário de relações de força e de lutas que buscam

transformá-las. Por conseguinte, é espaço de mudança permanente” (ibidem, p. 106).

Enquanto propostas de modelos tecno-assistencias, citando Silva Junior (1998), Righi

(2002) aponta três em disputa: “a proposta baiana de SILOS (Sistemas Locais de Saúde), a

proposta de Curitiba (Cidades Saudáveis), e a proposta LAPA-UNICAMP (Defesa da Vida)”

(p. 106). Reunidos sob a mesma denominação de Vigilância da Saúde, as estratégias de Saúde

da Família, Cidade Saudável e a experiência brasileira de SILOS, Righi assinala que essas

propostas opõem a prática clínica da prática sanitária, fato este que produz um modo de

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organizar os processos de trabalho, e as próprias organizações, baseadas na Vigilância à

Saúde, por meio da epidemiologia, com ações programáticas. Desta forma, Campos (1994)

refere-se a uma confusão entre “mecanismos de intervenção e o modo de produzir serviços”

(ibidem, p. 111), além de uma contraposição entre a Atenção Individual e a Saúde Pública.

Assim, ao se contrapor a esse entendimento de modelo tecno-assistencial da Vigilância

da Saúde, Righi (2002) problematiza o modo de produção das práticas em saúde, ao afirmar

que sente “um desconforto em relação ao pequeno espaço que o campo da saúde tem dedicado

à construção de alternativas locais” (p. 52). Defende, assim, o movimento de descentralização,

o qual inclui atores locais tanto na formulação, quanto na avaliação/controle das políticas de

saúde, visto que a heterogeneidade dos atores “é fator importante para a constituição de

espaços que criem condições para a transformação” (ibidem, p. 90).

A autora convoca uma discussão em torno do local e do cotidiano, ao afirmar que “A

partir do processo de Reforma Sanitária, é o município (espaço local) o novo intrometido, o

qual entra na gestão do SUS, carregando sua principal característica: a complexidade”

(ibidem, p. 91). É, então, a partir do reconhecimento das especificidades dos municípios, que

não podem ser resumidas ao treinamento, mas sim ao apoio para aumento da autonomia das

redes locais, uma vez que “O processo de gestão é produção de sujeitos e de novos lugares,

novos modos de funcionamento e de organização dos serviços” (ibidem, p. 229), que Righi

enfatiza a organização dos serviços em redes de atenção à saúde, que possam compor a

complexidade, a heterogeneidade e o dinamismo do local, de seus atores e do próprio

cotidiano.

O local e o cotidiano, como pontuaram Righi (2002) e Merhy (2002), tornam-se

importantes ferramentas, na contramão da lógica privatista e comercial. Para isso, faz-se

necessário um modelo de gestão que combine coeficientes de democracia participativa com

autonomia dos objetivos primários de cada organização, ao mesmo tempo em que seja

pedagógica, terapêutica, produtora de saúde, de educação para os trabalhadores e para os

usuários (CAMPOS, 1998), de forma que, o método da tríplice inclusão da PNH e o modo de

fazer e, ao mesmo tempo os objetivos do Apoio Institucional, de coanálise e cogestão, põem

para rodar a própria complexidade dos serviços, do local, do cotidiano.

A construção de modelo de planejamento e gestão, que efetuem os princípios do SUS,

necessita de arranjos e rearranjos no próprio modo de praticar planejamento e gestão. No

modo de fazer do apoio institucional e da PNH, a atenção torna-se espaço de gestão, visto

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que, ao incluir todos os atores na produção do cuidado, o apoio institucional borra a vigilância

e suas ações programáticas, tensiona ações coproduzidas, no interstício das instabilidades

cotidianas, dos territórios existenciais, de cada sujeito que atravessa o cuidado em saúde.

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Capítulo V

________________________________________________________________

Entre a política da clínica e a tessitura de rede: a produção de cuidado

O fazer em saúde atrela-se aos discursos que giram em torno do significante cuidado.

Contudo, de que cuidado falamos? O que seria cuidar em saúde? Para além de um significado,

que ordene certo sentido, a palavra cuidado se entrelaça ao próprio conceito saúde, ao modo

de fazer saúde, por meio de certa clínica, de maneira que o cuidado em saúde é um campo de

lógicas, práticas, formas, fluxos em tensão, que possibilita entender seu próprio modo e a

construção de tantos outros.

Diante das discussões em torno da anámoto-clínica, da lógica biomédica, privatista,

que atravessam e compõem certas práticas em saúde e o modo de fazê-la, passamos a pensar o

cuidado enquanto diretriz e ferramenta na produção de outra saúde / outros sujeitos –

protagonistas e autônomos. Todavia, enquanto produção constante, o cuidado se tece com o

fazer e com seus atores. Deste modo, entre modelos instituídos e modos tensionados pelas

Redes de Atenção à Saúde – modelo do SUS, algumas ferramentas necessitam ser construídas

para gerar a ação – cuidar em saúde.

A clínica, em sua dimensão política, e a atenção tecida em rede são aqui apreendidas

como ferramentas de um cuidado produtor de saúde, enquanto normatividade

(CANGUILHEM, 1990) e de sujeitos autopoéticos, autônomos (MATURA; VARELA, 2010)

e protagonistas de suas vidas (MERHY, 2002).

O próprio fazer clínico, em sua dimensão política, e a produção da integralidade em

saúde, tecida na Rede de Atenção à Saúde, necessitam afinar-se com a complexidade das

instituições de saúde, dos territórios existenciais dos atores envolvidos, do cotidiano com

todos os seus embates e invenções. O Apoio Institucional precisa incidir justamente nesse

emaranhado de normas e resistências, como dispositivo de uma Política da Clínica e do

cuidado, capazes de produzir usuários autônomos - usuários cuidadores.

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5.1. A política da clínica: produção de outra saúde/outro sujeito

Campos (2007) afirma que há numerosas clínicas, mas cita três formas principais,

sobre as quais a Clínica se apresenta: a Clínica da clínica, a Degradada, e a Ampliada, ou

Clínica do Sujeito. A Clínica da Clínica (ou Oficial) e a Degradada são pautadas na anátomo-

patológica, no corpo doente, na fragmentação entre a biologia, a subjetividade e a

sociabilidade. Já a Clínica Ampliada é centrada no sujeito, na experiência concreta das

pessoas reais, considera a doença como parte da existência; assim, não toma o sujeito pela

doença, reconhecendo um papel ativo do mesmo, em defesa de sua saúde, interligada com a

saúde dos outros. Esta Clínica aponta novas saúdes, novos olhares, novas práticas. O corpo,

antes dimensão de ação externa de um saber, passar a ser, na Clínica do Sujeito, dimensão de

produção de saúde.

A Política Nacional de Humanização (PNH) tem a Clínica Ampliada e Compartilhada

como uma de suas diretrizes:

....busca integrar várias abordagens para possibilitar um manejo eficaz da

complexidade do trabalho em saúde, que é necessariamente transdisciplinar

e, portanto, multiprofissional. Trata-se de colocar em discussão justamente a

fragmentação do processo de trabalho e, por isso, é necessário criar um

contexto favorável para que se possa falar destes sentimentos em relação aos

temas e às atividades não-restritas à doença ou ao núcleo profissional.

(BRASIL, 2008, p. 14)

Em Clínica e biopoder na experiência do contemporâneo, Regina Benevides e

Eduardo Passos25

, ao discutirem algumas contribuições da última parte da obra de Foucault,

para o campo da clínica, apontam a “Clínica enquanto experiência de desvio, do clinamen que

faz bifurcar um percurso de vida na criação de novos territórios existenciais” (s/p), bifurcação

produtora do novo, com a abertura para o que ainda não somos. Segundo os autores, a clínica

do/no contemporâneo é utópica, referente ao espaço, e intempestiva, referente ao tempo,

entrelaçando-se à característica comum da instabilidade.

Localiza-se em um espaço a ser construído, “uma vez que é pela afirmação do não-

lugar (u-topos) que ela se compromete com os processos de produção da subjetividade”

(ibidem, s/p), e sua intervenção ocorre em um tempo intempestivo, impulsionado pelo que

rompe com o regular dos hábitos, para a constituição de novas formas de existências.

25

Disponível em: (http://www.slab.uff.br/textos/texto3.pdf).

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Assumir a dimensão política da clínica é apostar na força de intervenção

sobre a realidade efetuada apostando nos processos de produção de si e do

mundo. Neste sentido, o conceito clínico para nós mais importante não é o

de sujeito, mas o de produção de subjetividade, tal como ele é proposto por

Deleuze e Guattari (1976/1972; 1997/1980; 1996/1980) e por Guattari

(1992). (ibidem, s/p)

Sendo assim, há que se questionar: “qual clínica tal política produz, que efeito-

subjetividade instaura” (ibidem, s/p). A citação abaixo enfatiza a dimensão ahistórica e,

portanto, criadora, da clínica:

Libertamo-nos quando colocamos em questão a naturalidade ahistórica de

categorias com as quais nos identificamos, indagando a história que subjaz a

estas categorias, isto é, indagando seu processo de constituição. A liberdade,

portanto, se alcança por um exercício crítico ou, como entendemos, por um

exercício clínico, desviando-nos da natureza humana que acreditamos nos

definir. (ibidem, s/p).

Essa concepção, de clínica do contemporâneo, proposta por Benevides e Passos

(ibidem) encontra ressonância, na análise realizada por Boaventura Santos (2002) sobre o

paradoxo do contemporâneo. Após examinar o modelo de racionalidade científica que emerge

no século XVI, no domínio das ciências naturais, o qual se estendeu às ciências sociais no

século XIX, no tópico A crise do paradigma dominante, o autor afirma que hoje há muitos e

fortes indícios, de que este modelo atravessa uma profunda e irreversível crise, resultante de

uma pluralidade interativa de condições sociais e teóricas.

Ao focar as teóricas, Santos (2002) cita Einstein como o primeiro rombo da ciência

moderna, o qual relativizou o rigor das leis de Newton, no domínio da astrofísica, ao

ressignificar as concepções de espaço e tempo, enquanto algo absoluto, como preconizava

Newton. Heisenberg e Bohr, apontados como os segundos, demonstraram que “A ideia de que

não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real

senão a nossa intervenção nele” (p. 25), ressignifica a dicotomia sujeito/objeto a um

continuum. Como terceira condição, Santos (2002) cita o teorema da incompletude, e os

teoremas sobre a impossibilidade, segundo os quais, são possíveis formular proposições que

não podem ser demonstradas, nem refutadas, mesmo seguindo os rigores matemáticos. Por

fim, o conhecimento produzido no domínio da microfísica, da química e da biologia, como

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exemplo, cita as investigações de Prigogine, na físico-química, as quais apontam nova

concepção da matéria e da natureza,

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a

imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a

espontaneidade; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução;

em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o

acidente (ibidem, p. 28).

Essa ruptura no fazer científico transforma o modo de acesso ao conhecimento,

mudando-o concomitantemente. A reflexão epistemológica passa a compor as análises das

condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação

científica; fato este, que questiona a base da ciência moderna pautada nos conceitos de lei e de

causalidade. No princípio da falsificabilidade de Popper, o mesmo expressa como as leis têm

caráter probabilístico, aproximativo e provisório. Já a causalidade versando tudo aquilo sobre

o que se pode agir, entrou em declínio, exatamente por esta razão pragmática, além da via de

mão dupla, que a causalidade forma com a legalidade, de tal modo que o declínio da

hegemonia de uma é concomitante ao da outra, bem como no que se refere ao conteúdo do

conhecimento, já que fundado no rigor matemático, automatiza, objetiva, caricatura,

personaliza a natureza (SANTOS, 2002).

A produção de conhecimento em torno da saúde, a partir do racionalismo científico,

como foi visto, gerou um modelo centrado no saber médico, no ambiente hospitalar, de uma

clínica anátomo-patológica, pautada na cura, em um corpo objeto, paciente das práticas

médicas. Todavia, essa crise, como denomina Santos (2002), produz um novo acesso ao

conhecimento, o que tensiona a produção de outras relações de saber/poder, outros perfis

subjetivos. Apesar de crise, de um modelo que se inicia em uma relação dicotômica ao

modelo vigente, espaços para novos arranjos, novos modos de fazer são gerados, os quais

podem perceber para além de órgãos e um corpo/máquina, sujeitos imersos em uma rede de

poderes, saberes, lógicas, valores.

O exercício da Política da Clínica apresenta-se enquanto bifurcação, desestabilização

da forma/hábito, potencialidade para a produção de outras relações consigo, com os outros e

com o mundo. Cabe ressaltar, todavia, que não se trata de uma produção contrária ao que já

existe, mas uma constante possibilidade de invenção, através de um constante questionar.

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5.2. A tessitura de redes em saúde: produção de outra saúde/outro sujeito

A rede faz e desfaz as prisões do espaço, tornado território: tanto

libera como aprisiona. É o porquê de ela ser o instrumento por

excelência do poder.

Claude Raffestin

Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de

dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho

como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a

noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.

Pablo Neruda

O modelo de saúde brasileiro pensado a partir do princípio da integralidade, produzido

com os sujeitos, rearranja o seu fazer, já que os sujeitos são imersos em uma rede de relações,

necessidades, valores. Deste modo, imersos em rede, os sujeitos engendrados em territórios

existenciais também “necessitam” de uma rede de atenção à saúde que alcance, pelo menos,

parte desse território. “A integralidade do cuidado que cada pessoa real necessita,

frequentemente transversaliza todo o ‘sistema’. Não há integralidade radical sem esta

possibilidade de transversalidade. A integralidade do cuidado só pode ser obtida em rede”

(CECÍLIO; MERHY, 2003, p. 199).

Os modos de fazer em saúde, no cotidiano dos serviços, desenham organizações, ao

mesmo tempo em que, estas desenham as práticas em saúde. “É possível, e é o que se

pretende aqui, trabalhar com a ideia de que o que se estuda e se discute é o processo de

formação da rede de atenção à saúde, processo pelo qual a rede de organizações e as

organizações adquirem forma” (RIGHI, 2002, p. 54), já que saúde é aqui discutida enquanto

instituição, em suas dimensões instituídas e instituintes.

Não descreveremos aqui a organização e o ordenamento de fluxos do Sistema Único

de Saúde (SUS), mas sim, a possibilidade de produtividade de outras realidades, outros

sujeitos, que o fazer em saúde em rede tensiona, enquanto ferramenta na produção de cuidado

em saúde. Isto posto, o Apoio Institucional, enquanto dispositivo, será discutido com a

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tessitura dessa rede, a partir do conceito de humano forjado pela PNH – um humano em

defasagem constante de si.

Compondo com o que propõe a PNH, entendemos que o apoio institucional

abre a possibilidade de funcionar como articulador, como conector,

produzindo novos territórios, borrando, embaralhando lugares previamente

constituídos como aqueles convencionalmente denominados, identificados,

dicotomizados como lugares de gestão e de atenção, de trabalhadores de

saúde e de usuários. O apoio institucional se coloca aqui como um híbrido

que, sem ponto de partida e de chegada, se faz em meio, no entre, nas

margens, movimentando-se e pondo a movimentar os pontos conectados,

potencializando a produção de redes quentes e não sectárias

(VASCONCELOS; MORSCHEL, 2009, p 737).

Jodival Maurício Costa e Vanda Ueda (2007), por meio de Musso (2004), assinalam

que a noção de rede não é recente. Na Antiguidade Clássica, era ligada ao labirinto,

“reticulação espacial, com linhas e pontos de conexão que permitem passagem” (p. 133). Na

idade média, é referenciada ao tecido, à tecelagem. Este fato influenciou a medicina da Idade

Moderna, a qual a associou ao organismo, “simbolizando a circulação, passagem de fluxo no

corpo humano, no qual o sangue era a principal representação” (p. 134). Contudo, “com a

consolidação da lógica capitalista de racionalidade espaço-temporal, a construção de um

conceito de redes torna-se fundamental” (p. 134), através de redes técnicas, redes de

transportes, de comunicação, que promovessem o desenvolvimento da indústria e a qualidade

de vida das populações. Ao citar Santos (1999), Costa e Ueda (2007) apontam que,

as redes são materiais, mas também são sociais. Quando as redes técnicas se

implantam como dado material em um território, não é aleatoriamente que

isso se faz, a rede traz em si uma função que é atribuída pelo conjunto de

ações que a implanta. Esse conjunto de ações são relações de poder

manifestadas por uma multiplicidade de atores. Assim, uma rede é um

artefato técnico implantado em determinado espaço com a função de exercer

um poder de conexão de pontos e passagem de fluxos; mas ela é também as

relações que animam esses artefatos técnicos (p. 135).

Os autores apontam a produção das redes técnicas como produtoras de territorialidade,

por meio do exercício de poder, pensado a partir das ideias de Michel Foucault26

. O poder,

26

Segundo o qual, o poder não se configura como repressão, mas também incita, suscita, produz realidade; ele é

operatório, se exerce antes de possuir, visto que se possui a partir de formas determináveis; passa tanto por

dominados quanto por dominantes. O poder, então, é dimensão constitutiva das relações entre os sujeitos e,

destes com as instituições, o qual para além de repressivo possibilita outros arranjos institucionais. (DELEUZE,

2006).

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então, só existe enquanto haja condições para seu exercício. “A rede se torna não apenas

sinônimo de velocidade, mas também de liberdade” (COSTA; UEDA, 2007 p. 138), de

instrumento para o exercício do poder, já que o poder encontra-se no exercício dos atores que

produzem e controlam a rede, sendo o potencial do poder materializado através de coletivos.

Essa abordagem geográfica, mesmo que pautada na construção de redes técnicas,

aponta a relação entre a produção de rede e de território, bem como a possibilidade de

exercício coletivo de poder, enquanto produção de liberdade, através da própria tessitura de

redes, já que “A rede é um instrumento para o exercício do poder, mas o poder encontra-se

nos atores que produzem e controlam a rede” (COSTA; UEDA, 2002, p. 139 citando DIAS,

2004, p. 168).

Enquanto ferramenta para exercício de poder coletivo, a tessitura de redes em saúde

torna-se, para além de instrumento na construção de um cuidado integral, ferramenta do

próprio fazer em saúde pelos atores, ao mesmo tempo em que, é o exercício destes que a

produz. O que se objetiva, por sua vez, é o próprio empoderamento pelos sujeitos de seus

territórios existenciais, através do exercício de poder, ao tecer seu próprio território.

Ampliar, dessa forma, o exercício do poder na tessitura da rede de saúde, para todos

os atores, configura-se objetivo do Apoio Institucional e da PNH, visto que se faz necessário

inserir todos os atores, bem como os conflitos, saberes e afetos do cotidiano, ampliando,

assim, a produção de redes de cuidado quentes e efetivas, que possam borrar a forma

biomédica, hospitalocêntrica instituída, tensionando a produção de outra realidade, outros

sujeitos, que exercendo poder, produzam-se de forma autônoma e protagonista.

No entanto, o “sistema de saúde” é “um campo atravessado por várias lógicas de

funcionamento, por múltiplos circuitos e fluxos de pacientes, mais ou menos formalizados,

nem sempre ‘racionais’, muitas vezes interrompidos e truncados” (CECÍLIO; MERHY, 2003,

p. 199), de modo que, “Mais do que um ‘sistema’, deveríamos pensar em uma rede móvel,

assimétrica e incompleta de serviços que operam distintas tecnologias de saúde e que são

acessados de forma desigual pelas diferentes pessoas ou agrupamentos, que deles necessitam”

(ibidem, p. 199). Fato este, que faz do cuidado em rede, ser tecido constantemente, através de

coanálise e cogestão das ações cotidianas, com todos os entraves, lógicas de funcionamento,

ruídos, circuitos e fluxos.

A atenção à gestante, parto e nascimento pensada/tensionada por meio do PQM (Plano

de Qualificação das Maternidades e Redes Perinatais da Amazônia Legal e Nordeste) e,

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posteriormente, a RC (Rede Cegonha), pauta-se na produção de Linha de Cuidado. O termo

linha é utilizado, para apontar um cuidado tecido com o usuário a partir de suas necessidades,

inserindo-o em toda a Rede de Atenção à Saúde, de modo que a própria rede seja tecida com a

produção do cuidado. No caso específico da Linha de Cuidado à Mulher, por meio da Rede

Cegonha, durante o pré-natal, parto e puerpério, a mulher deve transitar desde a atenção

básica à hospitalar, vinculando-se ao ambiente e às equipes, objetivando, entre tantos

aspectos, ampliar o protagonismo e a atuação da mulher, e de seus familiares, durante todo o

processo, em especial no parto. Desta maneira, tecendo uma linha de cuidado à mulher,

pactuada e tecida com a mesma, além de produzir outro processo de saúde, durante o período

de gestação, parto e puerpério, produz outra relação dessa mulher com seu próprio corpo e,

assim, com os outros e o mundo.

Na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, ouvi vários relatos da não efetividade da

“rede”. Em muitos momentos, ouvia o termo rede, mas estranhava o sentido ligado àquele

contexto. Parecia que a rede era algo que existia per si e que tudo se resumia a uma questão

de encaminhamento de um equipamento a outro. Questionava-me: como a rede, que deve ser

tecida com os territórios existenciais das usuárias, poderia existir per si? Como poderia existir

implicação dos atores, se a rede era tratada como algo situado entre fichas de referência e

contrarreferência? Como poderíamos tecer redes de/nos territórios existenciais, se a própria

ideia de território existencial parece não ter sido incorporada por muitos

gestores/trabalhadores da saúde?

Em um GAVA, um acompanhante contou que sua esposa passou por vários exames de

toque durante a madrugada na MNSL. No penúltimo, foram informados que a dilatação estava

em seis centímetros, mas o profissional que realizou o último, mandou-os para casa, os quais

residem no interior de Sergipe. Ao chegarem em casa e passadas algumas horas, contrações

acompanhadas com dores começaram. Decidiram, então, procurar a Maternidade do

município onde residem. Ao chegarem, o médico estava dormindo. O esposo da gestante disse

ter acordado o médico, o qual após realizar mais um exame de toque na gestante,

encaminhou-a novamente para a MNSL. Contudo, a criança acabou nascendo dentro da

ambulância, a caminho de Aracaju, pelas mãos do pai. Ao chegarem à MNSL, os últimos

procedimentos foram realizados.

Certo dia, ao chegar à Maternidade, encontrei na recepção uma gestante que conheci

no GPS (Grupo de Promoção à Saúde), a qual ficou internada alguns dias na Ala Rosa, para

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tratar uma infecção. Assim que cheguei, encontrei-a sangrando desde a noite. Ela me

perguntou se havia doula. Fui até a sala da Psicologia, porém fui informada que não havia

nenhuma doula naquele horário. Após ser acolhida, a médica da admissão mandou-a embora,

informando que, caso aumentassem as cólicas, que ela fosse para a Santa Izabel (Maternidade

referência para casos de baixo risco). No mesmo momento, uma rebelião acontecia no

CENAM27

, fato que atraiu muitas pessoas para frente da Maternidade. A gestante, ao sair,

percebeu uma assistente social na porta e foi pedir informação. A assistente social olhou a

documentação da gestante que, devido aos problemas durante a gestação, estava encaminhada

a ter seu parto na MNSL. A assistente social disse não ter poder para bater de frente com a

médica, além de que, em outra situação parecida, já havia se desentendido com a mesma. A

saída viável dada pela assistente social, diante da situação, foi que a gestante voltasse à tarde,

quando outro médico estaria trabalhando.

Havia conhecido a história de vida dessa mulher no GPS, a qual estava grávida do

segundo filho. O primeiro havia sido entregue para a adoção, por seu pai. Segundo ela, havia

tido depressão pós-parto e, em decorrência de seu quadro, seu pai deu o bebê para a adoção. A

mulher disse estar ansiosa, preocupada, com receio de que a mesma situação se repetisse. As

Doulas foram-lhe apresentadas como rede de apoio. Ao ver-me, imediatamente perguntou-me

se havia alguma Doula, mas como estas são voluntárias, possuindo vínculos empregatícios em

outros locais, o tempo disponível para a atuação na MNSL torna-se escasso. Foi doído ver sua

feição de preocupação, dizendo-me que haviam mandado-a embora e que deveria procurar a

Santa Izabel. Mais doído ainda, foi vê-la sendo aconselhada a voltar à tarde, para arriscar a

postura de outro médico, diante do quadro físico-emocional em que se encontrava. Esta

mulher já apresentava uma relação difícil com a maternidade e, enviada de um canto a outro

da tal rede, só mantinha a lógica biomédica, centrada em um corpo passivo, com práticas

desumanizadas.

Muitos moradores de municípios da Bahia e de Alagoas procuram os serviços de

saúde sergipanos. Certo dia, durante a terceira etapa do Método Canguru, na qual as famílias

retornam com os bebês para avaliações ambulatoriais, uma senhora, mãe de 12 filhos, disse

ter pagado 150 reais em um transporte, para se deslocar do interior da BA à capital sergipana,

27

“Centro de Atendimento ao Menor: adolescentes do sexo masculino encaminhados pelo Juizado da Infância

e da Juventude da 17ª Vara e comarcas do interior do Estado cumprindo medida socioeducativa de privação de

liberdade, visando sua reinserção no convívio familiar e social”

(http://www.se.gov.br/index/leitura/id/1264/Fundacao_Renascer.htm).

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contudo não poderia retornar para as outras consultas, pois não tinha condições de ficar

mantendo esse valor, já que a vinda desse dia iria ser paga quando recebesse o Bolsa Família.

Outra senhora, também vinda da BA, disse que só conseguiu chegar a Aracaju, porque

procurou uma vereadora de seu município e esta conseguiu um transporte da prefeitura.

Em um Round, ao discutir os equipamentos que absorvem os bebês e as mães

encaminhados, após encerrarem o acompanhamento pelo equipe da Ala e todas as

dificuldades, a equipe citou o caso de uma mãe usuária de droga, soro positivo e prostituta,

que, segundo a equipe, durante o período que permaneceu na Ala Verde, foi uma mãe

dedicada e cuidadosa com o filho. Diante do quadro da mulher, o serviço social acionou todos

os equipamentos possíveis para acompanhamento dessa mulher e inserção a programas

voltados para usuários de drogas, soro positivo e profissionalização, como CREAS

(Assistência Social), CEMAR (Saúde – Atenção especializada), mas não foi absorvida por

esses equipamentos, voltando para as ruas. Segundo a equipe, essa mulher não se preocupava

consigo mesma, mas sim com o filho.

Em vários Rounds, discutiu-se a reinternação e, segundo os profissionais, uma das

grandes causas para essa situação é a não efetivação da Rede de Atenção à Saúde, que não

absorve as necessidades dos bebês e das famílias.

Foram essas, entre várias outras situações, que me fizeram questionar de que rede

esses trabalhadores falavam. Parecia que, ao chegar a outro serviço, o “cuidado” tornava-se

deste, e a rede tornava-se esse outro serviço, atendendo outra necessidade que a Maternidade

não mais acolhia. A comunicação entre os pontos, os equipamentos, através dos territórios

existenciais, das necessidades das mulheres, fazendo da rede a própria comunicação entre os

pontos parecia perder-se em uma rede já dada – os próprios serviços de saúde. Eram nesses

momentos, também, que o Apoio Institucional apresentava-se como potente dispositivo, pois

ao problematizar esse modo de entender/praticar o fazer em rede, através da inserção de todos

os atores, principalmente as usuárias, que outros modos de fazer poderiam ser

produzidos/praticados e as usuárias poderiam passar de bonecos sem voz, entre um

equipamento a outro, a um corpo que intervém, constrói, produz-se.

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5.2.1. Necessitando... do que mesmo?

Considerando que os sujeitos são engendrados nos/com modos de fazer saúde, ao

mesmo tempo em que suas necessidades passam a regular e produzir modos de cuidado, fica

claro que as próprias necessidades podem ser problematizadas nessa trama, já que também

são engendradas com os sujeitos e à relação destes com a produção de saúde.

Campos (2007b) considera as necessidades em saúde como uma das necessidades

produzidas socialmente, sendo resultantes da oferta de serviços, da demanda, da pressão

social e das lutas políticas por direito. A demanda, todavia, reflete o discurso heterogêneo das

máquinas sociais, além do desejo e interesse das pessoas de resolverem “suas questões” de

modo prazeroso. Para o autor, as necessidades sociais são constituídas a partir de processos

dialéticos, e são menos propriedades de Sujeitos e mais resultantes da dinâmica histórico-

social. Isso implica em um grau importante de exterioridade entre Sujeitos concretos, e as

necessidades prevalecentes em cada época, de forma que “Os Sujeitos mais sofrem suas

consequências do que as comandam em cada situação específica” (ibidem, p. 79). Fato este,

que torna as necessidades sociais forças naturais e estranhas aos sujeitos.

Em As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e

equidade na atenção em saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio (2001), por um lado, destaca a

potência analisadora das necessidades de saúde, uma vez que possibilitam uma escuta mais

qualificada pelos trabalhadores/equipes/serviços/rede de serviços, das pessoas, que buscam

cuidados. Por outro lado, ao serem colocadas como centro das intervenções e das práticas, um

novo desafio configura-se: a exigência de uma conceituação de necessidades de saúde capaz

de ser implementada no cotidiano dos trabalhadores. Uma conceituação que mediasse “a

incontornável complexidade do conceito (necessidades de saúde) e sua compreensão e

apropriação pelos trabalhadores, visando uma atenção mais humanizada e qualificada” (p.

113).

Mediante as conclusões e indicações de Stotz (1991), Cecílio (2001) aponta que: 1) as

necessidades de saúde são construídas e determinadas social e historicamente, mas só podem

ser captadas e trabalhadas em uma dimensão individual; 2) além de exprimir uma relação

dialética entre o individual e o social, de forma quase inevitável, apresentam-se em uma

conceituação normativa, traduzível de forma descritiva e operacional.

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Cecílio (2001) assinala, ainda, que as necessidades de saúde poderiam ser apreendidas

de forma mais completa e específica, se organizadas a partir de quatro conjuntos de

necessidades, reconceituando-os a partir das conclusões e indicações de Stotz (1991). O

primeiro é referente a se ter “boas condições de vida”. Na reconceitualização, o autor

reconhece os vários sentidos que este conjunto de necessidades possui: entendidas por um

sentido funcionalista, a ênfase se dá aos fatores do ambiente, a exemplo dos determinantes no

processo saúde-doença; já para autores de inspiração marxista, seriam os diferentes lugares,

ocupados pelos homens nos processos produtivos da sociedade capitalista, a principal

explicação para os modos de adoecer e morrer. Cecílio (2001) observa, todavia, que apesar de

um certo ecletismo conceitual, há um consenso em torno de uma definição de necessidades

de saúde: de que a “maneira como se vive se ‘traduz’ em diferentes necessidades de saúde”

(ibidem, p. 114). O segundo conjunto de necessidades diz respeito ao acesso e o poder de

consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida. Em relação a isso,

Merhy (1979) sustenta a necessidade de abandono de qualquer hierarquia tecnológica,

propondo os conceitos de tecnologias leve, leve-duras e duras. Problematiza, assim, a ideia de

que a produção de procedimentos por meio de equipamentos seriam mais “complexas” que as

relacionais. Para a reconceitualização desse segundo conjunto de necessidades, Cecílio (2001)

afirma com Campos (1992) que o valor de uso de cada tecnologia é definida através da

necessidade de cada pessoa, nos momentos singulares que vive. Desta forma, “A ‘hierarquia’

de importância do consumo das tecnologias não a estabelecemos unicamente nós, técnicos,

mas, também, as pessoas com suas necessidades reais” (ibidem, p. 115). O terceiro conjunto é

referente à criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou um

profissional. É com a expressão “‘rosto do sistema’ de saúde para o usuário” (ibidem, p. 115),

que o autor define vínculo enquanto referência e relação de confiança. A reconceitualização

incide no reconhecimento do vínculo, enquanto potencializador para a efetividade do

princípio de integralidade, ou seja, “o estabelecimento de uma relação contínua no tempo,

pessoal e intransferível, calorosa: encontro de subjetividades” (ibidem, p. 115). O quarto e

último conjunto diz respeito à necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia

no seu modo de andar a vida. A reconceitualização ocorre em torno do conceito de

autonomia, a qual “implicaria na possibilidade de reconstrução, pelos sujeitos, dos sentidos de

sua vida e esta resignificação ter peso efetivo no seu modo de viver, incluindo aí a luta pela

satisfação de suas necessidades, da forma mais ampla possível” (ibidem, p. 115).

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As necessidades de saúde, então, não são dimensões naturais dos sujeitos,

necessidades em si, como sugere a palavra em seu conceito substantivamente corriqueiro de:

“1. Qualidade de ou o que é necessário. 2. Aquilo que é inevitável, fatal” (AURÉLIO, 1993,

p. 380), mas construções, assim como os próprios sujeitos. Destarte, um certo modo de

produção de sujeitos, confere um certo modo de produzir necessidades e um certo modo de

produzir saúde.

Assim, ao analisar as necessidades, problematiza-se certo modelo de produção de

saúde, bem como certo modo de produção de subjetividade. Portanto, para além de uma

simples inversão da lógica biomédica, que teria como objetivo colocar as necessidades dos

usuários como vetor disparador das ações, deslocando o usuário para o centro do Sistema de

Saúde, há que se questionar: necessitando... do que mesmo? Para que, “a necessidade de cada

pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de andar a vida” (CECÍLIO, 2001, p,

115), seja o necessário das ações em saúde, produzindo assim usuárias cuidadoras.

5.2.2. Ressignificando o fazer hospitalar: complexificando sua atenção

Como vimos, o hospital foi o grande local de produção e consolidação do modelo

biomédico, espaço de tratamento, cura, estudo, conhecimento do corpo/objeto/máquina

humana, por onde as práticas biopolíticas impetraram nossos hábitos e modos de viver. O

hospital torna-se o alimento de uma certa produção de saúde, ao mesmo tempo em que esta o

alimenta, além de ter lugar central, na atenção à saúde brasileira.

A grande maioria das internações no SUS, no ano de 2010, foram por condições

crônicas, entre elas, devido a causas maternas e perinatais. 75% da carga global das doenças

no país, medidas em anos de vida ajustados por incapacidade (AVAIs), representam o

somatório das doenças crônicas e das condições maternas e perinatais, as quais constituem

condições crônicas (BRASIL, 2011). Apesar de o hospital ser parte de uma rede

especializada, organizada na Rede de Atenção à Saúde, através de seu aparato tecnológico,

voltado para intervenções mais específicas no corpo, como urgências, emergências, cirurgias,

internações, tornou-se porta de entrada do Sistema Único de Saúde.

O modo como a gestação e o parto são praticados no contemporâneo, enquanto doença

e procedimento cirúrgico, centra o hospital/maternidade enquanto equipamento de produção

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dessas práticas. Como, todavia, tecer uma rede em saúde, na qual o cuidado se inicia pela

atenção hospitalar, em decorrência de episódios de agudizações de doenças crônicas, ou pelo

próprio modo de praticar a atenção à gestante? Como não rearranjar o próprio lugar do

hospital/maternidade e/ou Rede de Atenção Hospitalar, de Urgência e Emergência, mediante

o próprio lugar dado a ele pela população e pelas práticas de saúde? Como, todavia, utilizar

essa centralidade do Hospital, na produção de outra relação de seus atores com ele,

produzindo assim outra lógica de saúde, que se descentralize da atenção hospitalar?

Pedro Ribeiro Barbosa (1997) aponta o Hospital, e todo o aparato administrativo que

deve compor sua complexidade, como espaço de inovação para a gestão em saúde. Valoriza a

gestão hospitalar enquanto área de conhecimento, e de práticas diferenciadas tanto para o

processo de implementação, quanto de desenvolvimento do SUS. Os novos desafios e os

novos arranjos teóricos e práticos, os insumos próprios da saúde pública, contaminados por

aportes históricos e advindos das teorias organizacionais afetam o campo do planejamento e

da administração tradicional, como as baseadas na epidemiologia. Deste modo, a gestão

hospitalar torna-se

um terreno extremamente fértil, decorrente especialmente ao fato do objeto,

uma organização complexa o hospital, exigir para a sua condução eficiente e

eficaz, aportes de conhecimentos, métodos, técnicas e instrumentos que

estejam condizentes com as práticas gerenciais mais avançadas,

desenvolvidas em qualquer outra organização social de ponta (ibidem, p.

145).

Cecilio (1997) diz que “Mais especificamente, olha-se o hospital como espaço

privilegiado para entender fluxos e demandas do ‘cidadão comum’” (p. 470), pois “A ‘porta

de entrada’ principal continua sendo os hospitais, públicos ou privados, através dos seus

serviços de urgência/emergência e dos seus ambulatórios” (p. 471). O autor aponta que não é

através da prepotência tecnocrática, em dizer que o “povão” é deseducado em “entrar” pelos

prontos-socorros, ao invés dos centros de saúde, que se resolverá o inchaço dos mesmos. Mas,

por meio da enorme legitimidade, que os serviços de urgência e emergência possuem nas

condições concretas da sociedade brasileira, é que os mesmos, enquanto principal “porta de

entrada” devem ser qualificados, bem como outras “portas de entrada”.

..no sentido de serem espaços privilegiados de acolhimento e

reconhecimento dos grupos mais vulneráveis da população, mais sujeitos a

fatores de risco e, portanto, com mais possibilidade de adoecimento e morte,

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para, a partir deste reconhecimento, organizá-los no sentido de garantir o

acesso de cada pessoa ao tipo de atendimento mais adequado para o seu caso

(ibidem, p. 475).

Assim, um episódio temporário, como uma internação hospitalar, “pode ser uma

situação privilegiada para se estabelecer vínculos mesmo que temporários e de se trabalhar a

construção da autonomia do ‘paciente’” (CECÍLIO, 2001, p. 119).

Cecílio e Merhy (2003) afirmam que a integralidade da atenção hospitalar pode ser

problematizada a partir da atenção olhada no hospital e a partir do hospital, pensada a partir

do atendimento no ambiente hospitalar e a partir da sua inserção no sistema de saúde. No que

se refere à produção do cuidado pelos trabalhadores, Cecílio e Merhy (2003) assinalam a

comunicação entre os profissionais, como uma importante ferramenta na produção de outra

forma de fazer saúde nos hospitais e, a partir dos hospitais. Em especial, a atenção da

enfermagem, a qual “articula e encaminha, supervisiona as condições de hotelaria, dialoga

com a família, conduz a circulação do paciente entre as áreas, é responsável por uma gama

muito grande de atividades que resultam, afinal, no cuidado” (p. 123).

Desta forma, no que se refere à atenção produzida no ambiente hospitalar, onde

“circulam os mais variados tipos de pessoas, portadoras das mais diferentes necessidades, em

diferentes momentos de suas vidas singulares” (CECÍLIO; MERHY, 2003, p. 198), além do

processo de contrarreferência, “O período da internação pode, inclusive, ser aproveitado para

apoiar o paciente na direção de conquistar uma maior autonomia e na reconstrução de seu

modo de andar a vida” (ibidem, p. 198).

Uma importante ferramenta para esta produção da relação do sujeito consigo e com o

mundo, dentro do ambiente hospitalar, é a produção de linhas de cuidado centradas no próprio

cuidar e não nas especialidades de cada profissão. Assim sendo, o próprio ambiente hospitalar

abre a possibilidade de se constituírem redes de cuidado dentro de seu próprio ambiente,

através da ampliação da comunicação entre os trabalhadores e os usuários, afinados com a

produção de cuidado, tecido cotidianamente em linhas.

Campos e Amaral (2007), a partir da concepção Paidéia que se propõe pensar

mecanismos que recomponham a relação trabalhador – usuário e de sugerir reformulação do

paradigma da Medicina baseada em evidências, buscaram, em A clínica ampliada e

compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-

operacionais para a reforma do hospital, “sugerir linhas para a reforma do modelo de gestão

e de atenção do hospital contemporâneo” (p. 850), baseados na concepção de que mudanças

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estruturais e administrativas são mais eficazes, quando concomitantes a processos de mudança

no modo de ser dos sujeitos envolvidos.

A partir da hipótese “de que seria necessário reconstruir-se certo traço artesanal do

trabalho clínico” (CAMPOS; AMARAL, 2007, p. 851), os autores apresentam algumas

estratégias, que possam romper com um trabalho baseado apenas em padronizações de

condutas diagnósticas e terapêuticas, e permitam a possível adaptação dessas regras gerais às

inevitáveis variações dos sujeitos.

Os modelos de gestão que priorizam o controle, respondem a uma tendência estrutural

e histórica produzidas em duas linhas de comando: uma da gestão administrativa e da

enfermagem e outra que pouco regula e coordena o trabalho médico. Deste modo, essa

“tendência estrutural de distribuição de poder em serviços de saúde e, particularmente, no

hospital, torna-se difícil, senão impossível, constituir departamentos que integrem as distintas

profissões e especialidades médicas sob gestão unificada” (p. 851). Contudo, por meio da

concepção Paidéia, Campos e Amaral (2007) afirmam que “é tão importante e estratégico

proceder-se à reorganização estrutural do hospital quanto instituírem-se novos padrões de

microgestão do trabalho clínico” (p. 855). É, então, com algumas estratégias para um fazer

clínica ampliada que os autores compõem uma outra forma de gerir os processos de trabalho

no hospital.

A partir da necessidade de incorporar dispositivos de educação continuada no

cotidiano dos hospitais, que possam reconstruir conhecimentos e posturas dos trabalhadores,

os autores citam algumas estratégias, como: Projetos Terapêuticos Singulares e visitas

interdisciplinares. No primeiro, de forma interdisciplinar, equipes compostas por várias

especialidades e distintas profissões discutem casos complexos e vulneráveis. No segundo,

uma ou duas vezes por semana, o profissional responsável pelo caso percorre, junto com

outros profissionais, seus leitos. Estes recursos favorecem a troca e produção de

conhecimento, além de estimular a abertura dos profissionais. Um outro recurso que além de

educar aumenta a democracia institucional e reorganiza o poder nas deliberações é a gestão

participativa. Os autores citam, ainda, outros recursos, como: o apoio matricial, quando um

especialista de uma unidade apoia uma outra equipe de referência em casos de maior

complexidade, ou na confecção de protocolos ou diretrizes clínicas; o profissional de

referência, encarregado da coordenação de uma série de casos, através da adscrição de

clientela, de cadastros personalizados, que devem acompanhar os usuários ao longo do

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tratamento, dentro de suas organizações e referenciar para assegurar o acompanhamento em

outra estância do sistema. Estes recursos, portanto, além de reavaliar a tradição

organizacional, pode aumentar o poder dos usuários na gestão e no cotidiano do hospital.

Merhy (1997), numa linha de pensamento próxima à discutida acima, aponta que,

estando a gestão mais focada em dimensões macroestruturais, a mesma será envolvida em um

duplo movimento: de um lado, as práticas gerenciais, que fazem do território de formulação e

decisão de políticas como seu campo; do outro, as práticas que engendram o fabricar “bens”

do fazer em saúde. É nesta dobra do fazer “bens” em saúde que a “gestão torna-se lugar de

possíveis intervenções impactante sobre a política e o modelo de atenção à saúde” (p. 127),

pois

Quando um trabalhador de saúde se encontra com um usuário, no interior de

um processo de trabalho, em particular clinicamente dirigido para a

produção dos atos de cuidar, estabelece-se entre eles um espaço interseçor

que sempre existirá nos seus encontros, mas só nos seus encontros, e em ato

(MERHY, 2002, p. 57).

Ao denominar “interseção partilhada” como esquemas mais comuns em processos de

trabalho, Merhy (2002) destaca o cuidado como uma interseção do agente produtor e suas

ferramentas com o agente consumidor e suas intencionalidades, conhecimentos e

representação.

E é, todavia, nesses encontros, que serão “revelados” os modelos de atenção, visto

que, em saúde se produz, antes de tudo, “bens relações” (MERHY, 1997). Estes se dão no

micro, na micropolítica do processo de trabalho, o qual “deve ser entendido como um cenário

de disputa de distintas forças instituintes” (MERHY, 2002, 60), desde forças claramente

presentes nos modos fixados, a processos desejantes e imaginários e o conhecimento que

constituem os “homens em ações”. Essa especificidade, micropolítica do processo de

trabalho, rompe com a noção de impotência, “pois se o processo de trabalho está sempre

aberto à presença do trabalho vivo em ato, é porque ele pode ser sempre ‘atravessado’ por

distintas lógicas que o trabalho vivo pode comportar” (MERHY, 2002, p. 61).

O hospital e/ou a atenção hospitalar também se apresentam como importante

ferramenta na produção de resistências, já que as “transformações” das lógicas ocorrem por

dentro das mesmas, tensionando seus funcionamentos. Assim, o modo de praticar as ações em

saúde é mais uma vez apontado como o nó na produção de outras práticas. Produzir cuidado

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de outra forma, no ambiente hospitalar, abre lacunas em seu próprio modo e em suas relações,

possibilitando tantas outras relações e práticas.

Ampliar a comunicação entre os trabalhadores e destes com os usuários, tecer um

cuidado em forma de linha, problematizar as necessidades de saúde, fazer uma clínica através

dos territórios existenciais dos atores, convoca o Apoio Institucional a problematizar o fazer

cotidiano hospitalar, ao analisar as necessidades, as antipais, os embates no entendimento das

práticas, do fazer, transformando estas tantas análises em ações cogeridas e coproduzidas por

todos os atores.

O Método Canguru produzido na Ala Verde apresentou-se como um potente analisador

na problematização do fazer hospitalar, pois as mães canguru eram produtoras do cuidado

junto à equipe. Mães canguru e equipe de saúde necessitavam de um canal afinado de

comunicação, de um entendimento humanizado das relações dessas mulheres nos extramuros

hospitalares. Contudo, amarras do modo hospitalocêntrico de pensar a saúde, em sua lógica

biomédica, transformavam, em muitos momentos, tensões cotidianas em antipais que

dificultavam a própria produção de cuidado, (des)potencializando a relação ímpar entre as

mulheres/mães canguru com o cuidado em saúde.

Ao mesmo tempo em que práticas necessitaram ser problematizadas, analisadas e

reproduzidas, mediante a grande tensão dos poderes/saberes das mães canguru, com o

cotidiano regulado e protocolado do modo de fazer no Hospital, ampliar a relação das mães

canguru com a equipe de saúde, e a produção cotidiana do cuidado demonstrou-se como

espaço potente na produção de outros modos/outros sujeitos. Porém, fez-se necessário um

modo que pudesse tensionar o próprio modo centralizador e regulador de fazer no ambiente

hospitalar; foi, então, que o Apoio Institucional pôde ser visualizado como potente dispositivo

de produção de outra saúde/outros sujeitos.

Todos os recursos para a produção de uma clínica ampliada/do sujeito, e de cogestão

ocorrem nos encontros entre trabalhadores-trabalhadores, trabalhadores-usuários, de forma

que, apontar o fazer clínico enquanto vivo em ato, na produção dos processos de trabalho,

amplia a produção do cuidado para o micropolítico, que compõe o que Merhy (1997) chama

de bens de relações, e enfatiza que é este bem o primeiro a ser produzido. É este constante

fazer interseçor no cotidiano dos serviços de saúde, em especial nos hospitais, os quais como

especificou Cecílio (1997) possuem enorme legitimidade na sociedade brasileira, que a

clínica, as necessidades de saúde, os sujeitos poderão assumir outras dobras, mais abertas para

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a constante vibração do fora. Reconfigurando, portanto, outras relações de poder, dentro dos

próprios hospitais, que possam perpassar, em contrapartida, seus muros.

5.3. Entre a produção de cuidado e a produção de corpos: usuárias

cuidadoras

Não me venha falar

Na malícia de toda mulher

Cada um sabe a dor

E a delícia

De ser o que é...

Não me olhe

Como se a polícia

Andasse atrás de mim

Cale a bôca

E não cale na bôca

Notícia ruim...

Dom de Iludir

Caetano Veloso

Os conceitos de sujeitos normativos (CANGUILHEM, 1990) e autopoiéticos

(MATURANA; VARELA, 2010) engendram outro modo de pensar o homem, o mundo, a

relação entre esses e o modo de tecer a pesquisa, enquanto processo que busca desassossegar

a realidade. O mesmo podemos dizer do conceito de corpo sem órgãos (CsO). Em Mil platôs:

capitalismo e esquizofrenia, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) afirmam que: “O corpo

pleno sem órgãos é um corpo povoado de multiplicidades” (p. 43), “um corpo vivo, e tão vivo

e tão fervilhante que ele expulsou o organismo e sua organização” (DELEUZE; GUATTARI,

1995, p, 43), que muda incessantemente de natureza, desorganiza a própria organização. Um

corpo que transforma suas estruturas, erigindo novas conexões, mantendo, contudo, a

capacidade da eterna deriva, da constante metamorfose.

“Um corpo em que, no lugar dos órgãos é ‘povoado por intensidades’” (FRANCO28

),

o qual só é possível ser visto através do “corpo vibrátil”, pois ao deixar de ser máquina e os

28

Disponível em: http://www.professores.uff.br/tuliofranco/textos/em-busca-da-clinica-dos-afetos.pdf.

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órgãos engrenagens, os quais devem funcionar de um certo modo, em um certo estado

normalizado, passam a ser intensidades, que operam no plano das relações entre sujeitos, e

destes com as coisas.

“O CsO como campo de imanência do desejo demonstra que ele também está sempre

em agenciamento na produção do mundo... O desejo é o agenciador dos modos de existência,

de agir, de cuidar, independentemente de como isto se realiza” (FRANCO, ibidem, s/p). Desta

maneira, o desejo sai de uma esfera substancialista, como falta de alguma coisa, para ser uma

ação transformadora.

Longe de supor um sujeito, o desejo só pode ser atingido no ponto onde

alguém é privado do poder de dizer Eu. Longe de tender para um objeto, o

desejo só pode ser atingido no ponto em que alguém já não procura ou já não

apreende um objeto e tampouco se apreende como sujeito. (DELEUZE;

PARNET 1998, p. 72)

Já o inconsciente, tomado pela psicanálise como “representante, cristalizado em

complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura

sintagmática” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.20), é apreendido por Deleuze e Guattari

(1995) como usina, força, sensação que escapa à consciência. Esta, segundo Veyne (1995),

“não tem como função fazer-nos apreender o mundo, mas sim, permitir que nos dirijamos

neste mundo” (p.161), pois ela é algo e não representação de algo. A consciência se configura

em dois processos: o de conscientização no nível da espacialidade/percepção e, enquanto

forma de ver e falar, já que esta forma se define pela exterioridade, dimensão na qual as

relações de força são atualizadas pelas relações de saber. O inconsciente, todavia, são fluxos,

que atravessam a consciência, fazendo do pensamento temporalidade, que escapa de formas

de saber/poder instituídas, naturalizadas. Por isso, o inconsciente se define enquanto

usina/produção, estando no âmbito do lado de fora, e a consciência no âmbito da exterioridade

(DELEUZE, 2006).

A partir de Deleuze (2006) e Rolnik29

, verificamos como se dá o processo de

subjetividade: enquanto dobra do fora, constituindo um certa forma temporária. Esta

configura, também, uma forma de mundo, havendo, assim, uma indissociabilidade entre a

forma subjetiva e a cultural. Com Simondon (2003) e Escóssia (2008; 2004), a subjetivação

também foi discutida como um processo permanente, em constante movimento. Para

29

Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/viagemsubjetic.pdf.

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Simondon (2003), no processo de individuação, o ser se individua em meio (meio associado)

e em indivíduo, mantendo, entretanto, sua dimensão pré-individual. Do mesmo modo, Matura

e Varela (2010) e alguns dos conceitos forjados por eles, como: organização autopoiética –

capacidade de produzir a si mesmo, acoplamento estrutural – engendramento entre organismo

e meio, através de perturbações mútuas, inseparabilidade entre o modo de conhecer e de fazer,

colocam esses autores em uma mesma lógica, em uma filosofia da relação (VEYNE, 1995).

Para estes autores não há termos, e sim relações. A partir dos agenciamentos/acoplamentos, os

indivíduos e o mundo emergem das relações, mantendo, contudo, a capacidade de constante

metamorfose.

Neste sentido, o trabalhador na sua atividade cotidiana, que constitui um

trabalho vivo em ato, é construtor de sua teia, uma teia que é singular para

cada sujeito e que se caracteriza por sua tenacidade, resistência e

elasticidade, de forma que se estende por diferentes territórios, “capturando”

atores integrantes do processo e se reconstituindo de acordo com a dinâmica

do cotidiano de trabalho. Esta teia é determinada, especialmente, pelos

encontros e agenciamentos de que o trabalhador é capaz, na permanente

construção de territórios existenciais que conformam campos magnéticos de

produção de sentidos e de afetos (Rolnik, 2006) (FRANCO, ibidem, s/p).

Uma mãe canguru com Lúpus30

, a qual teve uma gestação de risco, em decorrência das

características do Lúpus, disse que não conseguia colocar seu bebê na posição canguru, pois

doía bastante o lugar do corte da cesariana. Porém, disse que ao dormir colocava o filho junto

ao seu corpo e ele permanecia quieto durante a noite.

Essa mãe canguru havia comentado o quanto doía colocar seu filho na posição

canguru, mas entendia a importância do contato pele a pele, para um melhor cuidado do bebê.

Foi criando seu modo de fazer o canguru que ela pôde acoplar-se com o filho e aquecê-lo.

Acompanhei uma mãe canguru adolescente (17 anos), da saída de sua filha da UTIN

até a alta. Esta adolescente/mulher tornou-se mãe, em um momento não recomendado nos

discursos contemporâneos, porém, preencheu todos os pré-requisitos de boa mãe. Contudo,

algo me levava a vê-la sempre, durante os dias que estava na Ala Verde. Ser mãe aos 17 anos,

sem apoio do genitor da criança, morar numa casa com mais de 10 pessoas, entre irmãos, tia e

primos, normalmente é vivido ou avaliado como algo pesado, difícil, que causa enormes

30

“O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune a longo prazo que pode afetar a pele, as

articulações, os rins, o cérebro e outros órgãos”. Já uma doença autoimune “é uma condição que ocorre quando o

sistema imunológico ataca e destrói tecidos saudáveis do corpo”

(http://www.minhavida.com.br/saude/temas/lupus).

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sofrimentos. No caso dela, parecia algo leve. Especificações entre o que deve ser uma mãe, ou

entre o que deveria estar fazendo, enquanto adolescente, parecia desfazer-se no abraço

caloroso e aconchegante da mãe, que mesmo em um contexto de extrema vulnerabilidade

social, acolheu a filha e a neta com um sorriso largo no rosto.

Um dos pediatras da Ala Verde, que é também neonatologista, contou que em uma

noite de plantão no CO, acompanhou o parto de uma mulher usuária de crack, a qual chegou

com contrações e sob efeito da droga, tornando difícil a intervenção da equipe, pois a mulher

estava muito agitada. Aos sete meses de gestação, deu a luz a gêmeos. Após o parto, os bebês

tiveram que ir para a UTIN, pois além de terem nascido aos sete meses, estavam com

problemas em decorrência de sífilis contraída pela mãe. Esta também necessitou de cuidados

médicos, permanecendo internada, também em decorrência da sífilis. A equipe da Ala Verde

atuou com essa mãe para inserir as crianças no Método Canguru. Ao passo que a equipe

cuidava dessa mãe, dos bebês, e construía vínculo com ela para tecer o canguru, a mulher foi

se tranquilizando, cuidando-se e cuidando dos seus filhos, os quais foram para a verde e,

pouco tempo depois, já estavam de alta.

Lembro-me dessa mãe na festa de natal da Ala Verde, em dezembro, sorridente,

dançando com os filhos, acompanhada por familiares. Não saberemos o que aconteceu com a

mesma depois, em seu cotidiano, mas o que se viu foi a construção de um forte vínculo entre

uma equipe e uma mulher, vista normalmente como alguém que, devido a seu vício, não se

pode ter boas expectativas. A equipe, em especial o médico que acompanhara seu parto,

falava com orgulho dessa mãe, ao vê-la tão envolvida com a rotina do cuidado das crianças. A

clínica construída com essa família, diante de uma situação com tanta complexidade, como a

que envolve o uso de drogas, necessitou, por um lado, de um envolvimento diferenciado com

aquela mulher pela equipe e, por outro, igual ao das outras mulheres. Diferenciado porque,

antes de replicar tantas práticas discursivas que resumem essas pessoas ao uso de drogas, à

criminalidade, a um corpo doente, sem vontade, um corpo zumbi - morto-vivo - a equipe

olhou-a como qualquer outra mulher/mãe, tecendo com ela o cuidado conjunto na Ala, o que

pôde construir uma relação consigo e com seus filhos.

Em uma conversa informal com uma Doula, esta apontou a relação que é construída

pela equipe com a mãe, na hora do parto, como uma forma de mudança da relação dessas

mulheres com o seu corpo.

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Através da perspectiva História Oral Temática, uma modalidade de pesquisa que

permite mostrar a versão dos fatos, de acordo com a visão de mundo do colaborador, através

da narrativa de experiências individuais, Karla Romana Ferreira de Souza e Maria Djair Dias

(2010) buscaram “o compromisso de revelar as experiências das doulas no cuidado à mulher

em processo de parto e nascimento” (p. 495). Assinalando as doulas como dispositivo na

humanização do parto, as autoras apontaram que as mesmas possuem uma “compreensão

integral da mulher, como um ser bio-psíquico e social” (p. 497), o que permite um

entendimento completo do contexto. Desta forma, através de dispositivos como acolhimento,

construção de vínculo, escuta ativa, com o objetivo de inserir e ampliar a participação da

mulher no parto e nascimento, as doulas “dão” uma possibilidade de vivência positiva em

torno dos mesmos. Concluindo as análises das histórias orais as autoras enfatizam que:

Embora, muitos profissionais de saúde não tenham uma visão de totalidade

dos sujeitos, os achados deste estudo demonstram que a prática das doulas,

coloca a mulher como centro do processo de parto e nascimento. Assim, essa

prática contribui para uma reflexão em busca de novos sentidos e

significados nas relações do processo de cuidado humanizado (ibidem, p.

499).

Durante o período de capacitação das Doulas, de 18.03.2013 a 22.03.2013, as

experiências de parto dessas mulheres foram foco de muitas discussões, como já foi citado

anteriormente. O não envolvimento em seus partos, o desconhecimento e distanciamento de

seus corpos tornaram-se ferramentas na própria construção da prática das Doulas. Assim, o

corpo tornou-se o principal dispositivo na formação.

Entre aulas sobre as fases do parto, equipe multiprofissional, processo de trabalho,

especificidade de Alas, as doulas rebolaram, dançaram, dramatizaram, tocaram-se. Mulheres

sendo capacitadas para cuidarem de outras mulheres, aliviando dores e ajudando-as a tocarem

e perceberem seus corpos no momento do parir, movimentaram seus próprios corpos.

Timidamente, quase sem movimento, iniciaram movimentos lentos. Tocando-se num ritmo

frenético, seus corpos falavam, simplesmente moviam-se, sem vergonha, sem pudores

compunham outras imagens. E as conversas dos intervalos, dos horários de almoço passaram

a ser recheadas de relatos sobre um maior contato com o corpo, uma maior disponibilidade

para amar e para se amarem.

As relações que essas mulheres demonstraram estar construindo com seus corpos,

entre descobertas e transformações, despontam como ferramentas, pois ao tensionarem

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protagonismo junto às mulheres, no momento do parto, potencializam em suas práticas outras

relações, uma vez que “as representações que significam e inscrevem a maternidade no corpo

(e na "alma"!) da mulher, em diferentes espaços e tempos, são, ao mesmo tempo, incapazes de

fixar nele, de uma vez para sempre, um conjunto verdadeiro, definido e homogêneo de

marcas/sentidos” (MEYER, 2003, p. 42).

Porém, o que tornou possível a construção de outras relações dessas mulheres/doulas

com seus corpos foi o modo como se construiu a capacitação: em roda. Mulheres de histórias

ímpares, repletas de singularidades, eram parte do processo. As práticas, voltadas ao parto e

ao puerpério, foram analisadas, através dos entendimentos e das experiências trazidas pelas

capacitandas. Desta forma, ao se utilizar o próprio corpo daquelas mulheres/doulas, como

ferramenta no processo de produção das práticas, a construção conjunta de outros

entendimentos, outras relações, outras práticas foi possível. Nesse momento, parecia que,

mesmo indiretamente, a equipe que coordenava a capacitação utilizava-se do modo de operar

do Apoio Institucional, analisando os territórios daquelas mulheres e produzindo em roda

outras tantas relações, nas quais usuárias eram também produtoras do cuidado – usuárias

cuidadoras.

Assim sendo, ao retomar o conceito citado acima, de CsO, podemos dizer que, “a

clínica é concebida mediante a ideia que se tem, ou, o modo como é significado o corpo”

(FRANCO, ibidem, s/p). Dessa maneira, produzindo CsO nos encontros das intensidades, os

corpos dessas mulheres e tantas outras singularizam-se, através de outra clínica - ampliada

(BRASIL, 2008), do sujeito (CAMPOS, 2007), dos afetos (FRANCO, ibidem), por meio de

um fazer em saúde em rede, enquanto ferramenta de empoderamento do próprio território

existencial de cada sujeito, engendrando, assim, a política da clínica com a produção de rede –

cuidado em saúde, à medida em que outros corpos produzem-se, outros sujeitos autônomos

produzem seu modo de andar na vida – usuárias cuidadoras.

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112

Considerações inconclusivas: entre tantos entres

Certa noite, no início de abril, mês de tantas comemorações, mês que nasci, que os

cristãos comemoram a ressurreição de Cristo, com toda a simbologia em torno do

renascimento, último mês para a escrita dessa dissertação, tive um sonho que, entre poucos

que lembro, tomou meus pensamentos por vários dias. Sonhei que era uma espécie de

enfermeira e havia sido designada para cuidar de uma mulher, que estava nos seus últimos

minutos de vida. Esta tinha um corpo grande, pesado, e foi com muita dificuldade que vários

homens a carregaram até um quarto pequeno e rústico, no qual eu a aguardava. Os homens a

colocaram em uma maca. Eu não conseguia ver suas feridas, mas sabia que aquele corpo

quase sem vida, estava repleto delas. Assustada, eu falava, sem parar, que poderia cuidar de

suas feridas, mas que não me deixassem vê-la morrer sozinha. Acordei angustiada,

principalmente por não reconhecer nenhuma das pessoas do sonho, especialmente aquela

mulher quase morta. Quem seria ela? Por que eu havia sido designada a cuidar dela? Por que

eu não queria vê-la morrer sozinha? E, o mais estranho, por que ninguém queria me

acompanhar?

Passados vários dias, com esse sonho em meus pensamentos, levei-o para a minha

terapia, onde buscamos trabalhar elementos do sonho, mais especificamente, o sentindo que

aquelas imagens e falas causaram em meu corpo. Conversamos sobre a vida-morte-vida31

como um processo ininterrupto, ao passo que um corpo morre outro se constitui. Aquela

morte precisa sim ser vivenciada por mim sozinha. Aquele corpo pesado, com tantas marcas e

feridas, mesmo que não visíveis, necessita sim ser cuidado por mim. Talvez aqui, eu tenha

produzido em mim, minha usuária cuidadora. Meu ser feminino e as formas instituídas, o

mergulho nas leituras, e os encontros com tantas outras mulheres imersas em seus territórios

existenciais, produziu outra relação comigo e com um mundo. Em um constante processo de

vida-morte-vida, pretendo vivenciar a morte de vários outros corpos, e renascer em vários

outros.

Ao chegar nesse momento do trabalho, percebo que não há um final, propriamente

dito. Impressões ficaram, algumas pistas tomaram forma, mas não há conclusões

determinantes. O percurso trilhado, entre março de 2012 a junho de 2014, dissipou-se em

31

Esta expressão foi retirada da obra Mulheres que correm com lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher

selvagem (1994) de Clarisa Pinkola Estés.

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várias outras questões. Porém, como o próprio título desse tópico direciona, irei apontar

considerações da produção escrita, entendida como algo que possui data para ser finalizada.

E, entre tantos entres:

“as coisas não designam uma correlação localizável que vai de uma para

outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento

transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói

suas duas margens e adquire velocidade no meio” (DELEUZE; GUATTARI,

p. 36, 1995).

“É nesse sentido que se afirma que a função apoio institucional diz respeito a uma

habitação e uma ação no ‘entre’” (VASCONCELOS; MARTINS; MACHADO, 2014, s/p),

possibilitando, assim, a invenção de outros modos de produzir cuidado em saúde, na região

limítrofe entre atenção e gestão, profissionais e usuários, governo e movimentos sociais,

demandas e ofertas, trabalho e formação, “na direção de ampliar a comunicação, a articulação

e a transversalização das práticas e dos saberes no bojo das organizações de saúde”

(VASCONCELOS; MARTINS; MACHADO, 2014, s/p).

Enquanto produtor de movimento, o Apoio Institucional foi utilizado como dispositivo

na produção da própria pesquisa, já que analisamos práticas e as instituições que as

atravessam, buscando produzir fluxos instituintes, inventando outros modos de produzir saúde

– cuidado.

Entre idas e vindas à Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, a pesquisa foi tomando

corpo e um campo foi sendo tecido, concomitante ao problema de pesquisa. Algumas escolhas

ético-políticas necessitaram ser apontadas.

De onde falo e de onde estou na produção científica, a discussão sobre o modo de

compreender homem e mundo foram os primeiros adubos na produção do solo onde a

pesquisa foi germinada, visto que o processo de conhecimento é também produtor de

realidade. Homem e mundo são dimensões engendradas em um processo concomitante, o que

mantém o processo sempre aberto ao lado de fora, à produção de outras faces, outros modos.

Isso aponta também para a dimensão política e ética da pesquisa, enquanto tensão na

produção de outras formas, outras relações autônomas, protagonistas e democráticas.

A construção do problema de pesquisa, por sua vez, se deu a partir da habitação de

territórios, entre lugares e modos de experimentação do Apoio Institucional, propiciado pelo

modo de entendimento da produção de pesquisa assumido aqui, e pelas escolhas

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metodológicas – cartografia e análise institucional. A escolha desses métodos foi uma

importante ferramenta na discussão em torno do apoio, pois possibilitou a própria análise das

práticas discursivas vivenciadas na MNSL. Com a cartografia, entendida como produção de

mapas político-afetivos, por entre linhas e contornos, o campo da pesquisa pôde assumir uma

certa forma, ao mesmo tempo em que o meu corpo de pesquisadora foi sendo tecido no

processo.

Com a análise institucional, pudemos discutir o modo de funcionamento do apoio, e os

seus objetivos de coanálise e cogestão. E foi borrando e desassossegando a realidade

instituída, que movimentos puderam ser produzidos. Abordar as instituições enquanto lógicas,

que regulam a atividade humana, direciona o fazer apoio/análise institucional para o âmbito

do micropolítico, onde as relações de saber/poder produzem sujeitos/mundos, de modo que as

análises passam a ser realizadas através de analisadores (BAREMBLITT, 2002).

Foi, então, por entre dissabores e desassossegos, que o campo de pesquisa pôde

ser inventado, tendo como intercessores os métodos/ferramentas da cartografia e da

análise institucional, bem como práticas da Maternidade Nossa Senhora de Lourdes que

puderam ser desenhadas. Considerando que a Política Nacional de Humanização é uma

das diretrizes do modelo de atenção da Fundação Hospitalar de Saúde de Sergipe,

gestora da MNSL, da estratégia metodológica do Plano de Qualificação das Maternidades

e Redes Perinatais da Amazônia Legal e Nordeste (PQM) e, posteriormente, da Rede Cegonha

(RC), analisamos esta política, em sua relação com outras práticas da MNSL. O método da

Tríplice Inclusão da PNH, por enfatizar a dimensão concreta das experiências dos diferentes

sujeitos, possibilitou algumas experimentações de um fazer em saúde como um constante

processo, sendo o cotidiano ferramenta dessa produção.

Os registros das vivências foram realizados em formato de diário de campo, em suas

funções catártica, empírica, reflexiva e analítica (WINKIN, 1998). Junto a meu

caderno/companheiro, pude descrever, reviver e analisar minhas experimentações,

acompanhando acontecimentos que desembaraçaram repetições cotidianas

Discussões teórico-metodológicas à parte, lançar-me nessa produção, a partir das

experimentações com o campo, foi um grande desafio. Um medo me assolava com uma

dureza indigesta. Mas, foi entendendo que só podemos diferir de nós mesmos, que pude

infligir em meu corpo a produção de outro corpo, fato que pôde me lançar ao próprio

problema da pesquisa – produção de usuárias cuidadoras.

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Com os registros dos diários de campo, repetições denunciavam formas instituídas e

resistências abriam lacunas para outros modos de fazer em saúde, de maneira que, através dos

objetivos de coanálise e cogestão do Apoio Institucional, as lógicas e as práticas foram

analisadas e tensionadas.

Discutindo a lógica que atravessa as práticas de saúde instituídas – a biomédica e

algumas de suas ferramentas, como a anátomo-clínica, centrada em um corpo máquina, em

uma saúde entendida como ausência de doença e no papel do hospital enquanto espaço

privilegiado de produção de saúde – pudemos entender como o biopoder engendrou corpos e

a relação destes consigo, com os outros e com o mundo e como o biocorpo tornou-se espaço

de produção e reprodução do saber/poder biomédico.

Essa lógica biomédica, assentada no biopoder, foi vivenciada na Maternidade, como

pudemos ver na discussão das práticas repetidas nas relações trabalhadores-trabalhadores,

trabalhadores-usuárias: o fazer centrado no saber médico, os discursos de culpabilização entre

trabalhadores e gestores, o desinteresse das usuárias em participar de espaços coletivos, as

tensões cotidianas entre trabalhadores e usuárias, que na maioria das vezes são transformados

em demandas para a Psicologia e o Serviço Social. Dessa forma, buscamos problematizar

essas relações, abrindo lacunas para outros fazeres.

Imersa numa Maternidade, como não imergir na maternidade, no feminino, como não

me decompor por entre tantas mulheres amarradas à maternagem? Foi nesse emaranhado do

biopoder que a dimensão reprodutiva passou a ser uma das principais representações do corpo

feminino, perpassando os discursos sobre saúde e doença, investindo-o de uma moralidade

sobre o ser mulher. O corpo feminino, biofeminino, tornou-se ferramenta na produção e

manutenção da lógica biomédica. A naturalização do corpo feminino por meio do modo de

vivenciar a reprodução e a maternidade, no âmbito do biopoder, medicalizou o parir, o ser

mãe. Várias foram as práticas vivenciadas que apontaram representações (MEYER, 2003), de

um ser mulher/mãe passiva, doadora de si.

O parto, todavia, assumiu no contemporâneo, bandeira de uma mulher forte, decidida,

que pode e deve escolher como quer parir, contrapondo-se a uma lógica biomédica, que

coloca todo o poder de decisão sobre o parto na figura do médico. Entretanto, esses discursos

contrários à medicalização do parto acabam por manter a mulher enquanto um ser

reprodutivo, pois parir e ser mãe são tomados como algo instintivo, que define o ser mulher. E

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entre a medicalização e a naturalização do parto, os modos de parir continuam a produzir um

corpo biofeminino.

Os modelos de atenção e gestão apontam modos de gerir e de fazer em saúde, de

forma que assinalamos modelos que atravessam às práticas em saúde, como são produzidas e

institucionalizadas. E foi pensando em um fazer em saúde, democrático e autônomo, que o

Apoio Institucional foi forjado enquanto método de/para atenção/gestão.

Problematizadas as lógicas e práticas instituídas, buscamos, por fim, apontar

ferramentas para a produção de cuidado e de corpos. A produção de cuidado foi pensada

como um entre a política da clínica e a tessitura de rede. A política da clínica foi entendida

como a produção de outra saúde/outro sujeito, desviando, todavia, da própria “natureza

humana que acreditamos nos definir” (BENEVIDES; PASSOS32

). Já a tessitura de rede, como

aquilo que direciona o fazer em saúde para os territórios existenciais de todos os atores,

fazendo desse tecer a produção do próprio território, produzindo, assim, outra saúde/outros

sujeitos.

As necessidades de saúde e o fazer hospitalar foram apontados como importantes

ferramentas, na tessitura das Redes de Atenção à Saúde, visto que as necessidades de saúde

tornaram-se centro do sistema de saúde e o hospital continua sendo uma das principais portas

de entrada.

E foi no entre a produção de cuidados e a produção de corpos que usuárias cuidadoras

puderam ser inventadas: como na capacitação das doulas, por meio do modo como a mesma

foi construída, em roda, como nos casos de algumas mães, através do modo como se deu a

vinculação das mesmas com a equipe, tracejando uma política da clínica, onde puderam tecer

outras relações consigo e com os outros. Corpo em constante processo de produção de

cuidado si e do mundo.

Cansada, com uma dor enjoada na mão direita, olho-me novamente no espelho e, entre

olheiras e um sorriso me questiono: que mulher estou sendo agora? Sinto meu corpo cansado

e leve. Entre tantos outros olhares para mim mesma, desisto de saber quem estou sendo e,

entre tantos entres apontados nessas linhas aqui escritas, vejo uma mulher sem corpo inteiro.

32

Disponível em: http://www.slab.uff.br/textos/texto3.pdf.

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Ouça um bom conselho

Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado

Ou você se cansa

Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo

Deixe esse regaço

Brinque com meu fogo

Venha se queimar

Faça como eu digo

Faça como eu faço

Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo

Vim de não sei onde

Devagar é que não se vai longe

Eu semeio o vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade

Vou pra rua e bebo a tempestade

Vou pra rua e bebo a tempestade

Bom Conselho

Chico Buarque

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ANEXO – Cuidados e orientações para a alta