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HUMANIZAÇÃO E DESUMANIZAÇÃO: Arthur Araújo Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do Espírito Santo Dimensões da Humanização O que importa na vida, afinal?

Apostila de Humanização e Desumanização

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Editoração e projeto gráfico da apostila | Estágio do LDI-Ufes - 2009

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Page 1: Apostila de Humanização e Desumanização

HUMANIZAÇÃO E DESUMANIZAÇÃO:

Arthur Araújo

Universidade Aberta do BrasilUniversidade Federal do Espírito Santo

Dimensões daHumanização

O que importa na vida, afinal?

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Neste módulo, vamos discutir questões que nos levem a

entender o conceito de humano e de natureza humana, em contraponto com noções de moralidade e instinto.

O que nos torna humanos ou desumanos? Existe uma natureza humana? – em caso afirmativo, o que ela significa? Parece correto atribuir moralidade à humanização e animalidade aos instintos (desumanização) ?

Não nos parece correto sustentar oposições como ‘razão’ X ‘natureza’ ou ‘cultura’ X ‘evolução biológica’ e conceder ao primeiro termo dos pares as bases da compreensão daquilo que significa ‘humanização’ ou ‘natureza humana’ (razão e cultura). Não nascemos certamente como tabula rasa, que a experiência de vida e a cultura vão gradativamente preenchendo para que nos tornemos o que somos – existe alguma coisa primordial a sustentar nossa condição de vida para além da imagem que fazemos de nós mesmos como agentes racionais no mundo.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTONúcleo de Educação Aberta e a Distância

Arthur Araújo

V i t ó r i a2009

HUMANIZAÇÃO E DESUMANIZAÇÃO:O que importa na vida, afinal?

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LDI coordenaçãoHeliana Pacheco, José Otavio Lobo Name, Octavio Aragão

GerênciaVerônica Salvador Vieira

Ilustração Lidiane Cordeiro, Lucas Toscano e Vitor Bergami Victor

Editoração/ CapaEmanuelle Cardoso

Imagem da capaLa tentation de Saint Antoineóleo sobre madeira, 131,5x119 cm

Bosing, Walter. Jerome Bosch environ 1450-1516: entre le ciel et l’enfer. Cologne:

Benedikt Taschen, 1999. p. 93.

ImpressãoGráfica e Editora Santo Antônio

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Universidade Aberta do BrasilCelso Costa

Universidade Federal do Espírito Santo

ReitorRubens Sergio Rasseli

Vice-Reitor e Diretor Presidente do Ne@adReinaldo Centoducatte

Pró-Reitora de GraduaçãoIsabel Cristina Novaes

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoFrancisco Guilherme Emmerich

Pró-Reitor de ExtensãoAparecido José Cirillo

Diretora Administrativa do Ne@ad e Coordenadora UABMaria José Campos Rodrigues

Coordenador Adjunto UABValter Luiz dos Santos Cordeiro

Design GráficoLDI - Laboratório de Design Instrucional

[email protected] Ferrari, n.514 -CEP 29075-910, Goiabeiras -Vitória - ES4009 2208

Coordenadora do Curso de Dimensões da Humanização, modalidade a distânciaClaudia Murta

Revisor de ConteúdoArthur Octávio de Melo Araújo

Revisora OrtográficaRegina Egito

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

_____________________________________________________________

Araujo, Arthur.Humanização e desumanização / Arthur Araujo. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2009.40 p.

Inclui bibliografia.ISBN:

1. Humanismo. 2. Antropologia filosófica. 3. Filosofia. I. Título.

CDU: 165.742

A663h

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Sumário

Unidade I Natureza, máquina, homem: O mecanismo.

Unidade IINatureza humana e natureza: Continuidade.

Unidade IIIA natureza humana no contexto da evolução biológica.

Unidade IVEvolução, corpo e natureza humana.

Unidade VPotencial biológico e natureza humana.

Unidade VIIntintos e natureza humana.

Unidade VIICondição biológica de vida, comportamento e natureza humana.

Conclusão

Introdução

Exercícios

Exercícios

Exercícios

Exercícios

Exercícios

Exercícios

Avaliação Final

67

8

13

14

17

18

21

22

25

26

27

28

33

34

3839

Módulo I

Módulo II

Módulo III

Exercícios

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Apresentação

A este Módulo está destinada uma carga horária de 10 horas, retiradas de uma disciplina com 30 horas/aula. Uma sugestão para distribuir o tempo de trabalho necessário para o acompanhamento do módulo é trabalhar duas horas diárias durante uma semana. O aluno poderá trabalhar dentro do tempo que for mais apropriado para a sua rotina diária. No entanto, lembramos que a disciplina será disponibilizada para ser trabalhada em três semanas e, independentemente do modo como o aluno decida organizar seu tempo, ao final das três semanas, deverá entregar o texto programado para a avaliação final.

Módulo IEste módulo é composto de uma introdução e duas unidades. Na Introdução, primeiramente, procuramos situar o problema e as questões relativas ao tema ‘humanização’ e desumanização’ entre dois pontos de vista filosóficos: ‘dualista’ e ‘monista’. Na unidade I (Natureza, máquina, homem: o mecanicismo clássico), introduzimos e analisamos a concepção clássica (moderna) de natureza e homem no contexto científico dos séculos XVII e XVIIII. Na unidade II (Natureza humana e natureza: continuidade), em relação e comparação com a unidade anterior, procuramos mostrar a possível concepção de uma continuidade e lugar do homem na natureza.

O aluno deve acompanhar, no mapa de atividades, a discriminação das tarefas propostas, começando com a leitura dos objetivos a serem alcançados em cada unidade. Ao final deste módulo, está prevista a participação no Fórum de discussão “Humanização e desumanuzação” versando sobre o seguinte tópico: as visões dualista e monista na abordagem do conceito de “humanização”.

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Módulo IIEste módulo é composto por três unidades. Na unidade III (Natureza humana no contexto da evolução biológica), situamos e analisamos a origem e a inserção do homem (ou ‘natureza humana’) como parte da evolução biológica. Em continuação, na unidade IV (Evolução, corpo e natureza humana), mostramos que o corpo teve uma função biológica fundamental no processo de evolução do ser humano em comparação com outros organismos vivos. Na unidade V (Potencial biológico e natureza humana), destacamos que a idéia de ‘potencial biológico’ não significa determinismo da ‘natureza humana’ e a eliminação de livre-arbítrio das nossas ações no mundo.

Módulo IIIEste módulo é composto por duas unidades e uma conclusão. Na unidade VI (Ins-tintos e natureza humana), procuramos mostrar o papel significativo dos instintos na constituição da nossa ‘natureza humana’. Na unidade VII (Condição biológica de vida, comportamento e natureza humana), analisamos o significado moral de alguns comportamentos cuja base de sustentação remete a mecanismos instintivos. Na conclusão, finalmente, procuramos assinalar que nossa condição de vida não torna a ‘natureza humana’ diferente, ou o centro do mundo, mas que, ao contrário, sua importância é relativa entre diferentes organismos vivos.

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Introdução

As palavras provocadoras de Thomas Nagel nos fazem refletir sobre a nossa exis-tência e naquilo que nos dá a certeza de que precisamos encontrar uma explicação para justificar nossa inserção no mundo. O que dá sentido à nossa vida? O que faz de nós, seres humanos, ‘seres humanos’ ? Em que será que a vida é sem sentido e absurda, como afirma o autor?

Neste módulo, e ao longo de toda a disciplina, vamos discutir questões que nos levem a entender o conceito de humano e de natureza humana, em contraponto com noções de moralidade e instinto.

O que nos torna humanos ou desumanos? Existe uma natureza humana? – em caso afirmativo, o que ela significa? Parece correto atribuir moralidade à humanização e animalidade aos instintos (desumanização) ?

Não nos parece correto sustentar oposições como ‘razão’ X ‘natureza’ ou ‘cul-tura’ X ‘evolução biológica’ e conceder ao primeiro termo dos pares as bases da compreensão daquilo que significa ‘humanização’ ou ‘natureza humana’ (razão e cultura). Não nascemos certamente como tabula rasa, que a experiência de vida e a cultura vão gradativamente preenchendo para que nos tornemos o que somos – existe alguma coisa primordial a sustentar nossa condição de vida para além da imagem que fazemos de nós mesmos como agentes racionais no mundo.

O que somos ou o que podemos ser está condicionado ao potencial da nossa natureza biológica. O que pode ser ‘humanização’ ou ‘natureza humana’ senão potencialidade da nossa condição biológica de vida ? Afinal, como muito bem assinalou o velho Freud, nosso destino está limitado à nossa anatomia. No entanto, muita gente crê que a compreensão da ‘natureza humana’ ou ‘daquilo que nos torna humanos’ significa exatamente a negação dessa condição biológica em função de uma imagem de nós mesmos como agentes racionais e culturalmente inseridos no

O problema, em parte, é que alguns de nós têm uma tendência incurável a levar-se a sério. Queremos ser importantes para nós mesmos “a partir de fora”. (...) Se a vida não é real, se não é séria, e, se o que nos espera é o túmulo, talvez seja ridículo levar-nos a sério. Por outro lado, se não podemos evitar nos levar a sério, talvez simplesmente tenhamos de aceitar o fato de ser ridículos. A vida pode ser não apenas sem sentido, mas também absurda. (Thomas Nagel)

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mundo. Assim, a crença comum (acadêmica ou popular) é de que está na nossa condição biológica de vida, ou abaixo da imagem racional de nós mesmos no mundo, a raiz da ‘desumanização’. Há, portanto, duas visões distintas na forma de abordar essa questão, conforme apresentamos a seguir.

Duas visões distintas:

DUALISTA – se ela existe, a natureza humana, ou simplesmente o que nos torna humanos, tem explicação acima e além da nossa condição biológica.

MONISTA – o que somos ou podemos ser, nossa ‘natureza humana’, etc., tem explicação em termos de potencialidade da nossa condição biológica (natural) de vida*.

* Não estamos usando tecnicamente os termos dualista ou monista. É unicamente uma referência genérica a duas visões de mundo opostas em termos de explicação ou concepção do significado de ‘humanização’, ‘desumanização’, ‘natureza humana’, ‘o que nos torna humanos ou desumanos’, etc.

Acesse a plataforma

Participe do Fórum de discussão “Natureza

humana” e dialogue com seus colegas.

Atividades propostas

Agora veja se você entendeu:

1. Que diferenças existem entre os pontos de vista

dualista e monista na abordagem filosófica do

tema “humanização” e “desumanização”?

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Unidade I

Natureza, máquina, homem: O mecanicismo clássico.

A ciência clássica do século XVII, celebrizada nos trabalhos de Galileu e Newton na aurora do pensamento moderno, reata a ‘aliança’ entre homem e natureza (Prigogine e Stengers, 1984). Partindo da imagem de uma natureza concebida como ‘autômato’ (ou máquina), encontramos nos trabalhos dos filósofos naturais (hoje cientistas) a submissão do mundo natural às leis matemáticas – a linguagem da matemática é a chave de entrada do mundo natural. Assim como agora no presente, a natureza mantém seu ritmo calmo e repetitivo, como ontem e assim eternamente, exatamente como uma máquina, que segue uma rotina programada, e a linguagem da matemática descreve a estrutura – estaria celebrizada nas leis matemáticas a aliança entre o homem e a natureza.

Posteriormente, no contexto de extrema euforia intelectual, no século XVIII, ‘Newton é o novo Moisés a quem as “tábuas da lei” foram reveladas’ (Prigogine e Stengers, 1984, p. 19). Newton é ‘um homem que descobriu a linguagem que a na-tureza fala’ e a essência de sua estrutura. Assim, temos nesse contexto histórico a cultura das grandes descobertas científicas e a valorização crescente dos modelos experimentais de pesquisa. E que melhor modelo de experimentação poderia estar além das máquinas? Entre cientistas e engenheiros, a construção e a invenção de máquinas pareciam favorecer significativamente a possibilidade de testar e imple-mentar idéias. Assim como a ‘natureza-máquina’ segue leis e tem uma estrutura mecanicamente ordenada, e nada acontece por acaso, uma explosão cultural teve lugar na Europa em torno do modelo das máquinas. Mas que modelo de máquina poderia ser a melhor metáfora ao espírito mecanicista? Claro, o relógio.

O relógio é um mecanismo perfeitamente ordenado, regular, cuja estrutura reflete um plano de construção preciso e racional, traduzido em leis da mecânica.

O ‘mundo-relógio’ constituiu a melhor metáfora ao espírito mecanicista quan-to à racionalização da Natureza. Não por acaso, a metáfora do mundo-relógio remete ao ‘Deus-Relojoeiro’: um ordenador ou arquiteto racional que teria imple-mentado na Natureza as leis que ela segue e a matemática descreve. Assim como na Natureza, onde nada acontece por acaso e o futuro é simétrico ao passado, as

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máquinas construídas (como teste ou implementação de idéias) precisavam reproduzir os princípios mecânicos essências de or-denação no mundo: programação e regulação – programação quanto ao tempo e regulação quanto ao movimento.

Como o Deus-Relojoeiro implementou programação e regulação no mundo (quanto ao tempo e ao movimento) e impôs sua vontade no momento da criação, por analogia, os construtores e engenheiros procurariam implementar nas suas máquinas os mesmos princípios e reproduzir a mesma cena da Criação. A imagem de ‘Natureza-Máquina’, concebida em torno do espírito mecanicista dos construtores e engenheiros, reflete o ponto de vista e a racionalidade de um contexto cultural, quanto ao significado da natureza, ou a relação homem e mundo, dominado pela aliança das leis. Mas e quanto ao homem ? Que sentido tem sua natureza no mundo mecânico das leis físicas ? Aqui nós temos a gênese da concepção do ‘homem-máquina’.

Assim como ocorria no contexto das ciências físicas, os filósofos empiristas comprometidos com o espírito do mecanicismo, em particular o inglês John Locke, no século XVIII, procuravam investigar a natureza humana a partir de um ponto de vista naturalista em função dos princípios do método experimental e da observação empírica. Uma ciência da ‘natureza humana’

Até aqui vimos como se constituiu o pensamento científico da Modernidade, que estava fundamentado nos seguintes princípios:

A natureza é regida por leis imutáveis; Leis naturais são explicadas por leis matemáticas;No domínio da natureza, tudo é mensurável;Cada efeito é produto de uma causa;Primado da razão e do empirismo;Método experimentalDualismo: separação entre mente/corpo, razão/emoção, ciência/fé; Mundo-relógio/ Deus-relojoeiro

Nesse paradigma, o Homem também é entendido como máquina. É o que veremos a seguir.

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procuraria estabelecer aqueles princípios empíricos, concorrentes com os princípios das ciências naturais e apoiados sobre o método experimental, que tornaria a filosofia igualmente uma ciência natural. A filosofia passaria a ser entendida como investigação empírica da natureza humana oposta às teorizações racionais a priori. Expressão singular do empirismo no século XVIII, o escocês David Hume, particularmente, teria procurado estabelecer o projeto de uma filosofia natural sustentada nos elementos da experiência.

Nesse contexto particular da cultura mecanicista, a figura do mé-dico francês Julien Offray de La Mettrie (ou simplesmente La Mettrie) merece ser assinalada. Defensor radical do materialismo no século XVIII, e influenciado pelos filósofos empiristas britânicos (como Lo-cke, em particular), La Mettrie publica O Homem-máquina (1747), ensaio-manifesto cujo título deriva da conhecida hipótese do filósofo francês René Descartes (dualista) no século XVII. Descartes susten-tava que os animais eram máquinas naturais, o que não se aplicava ao homem (ou natureza humana), visto que não tinham alma – ter uma alma é uma propriedade humana. La Mettrie (monista radical assumido), contrariamente, sustentava que, se aceitarmos a existên-cia de uma ‘mente material’ nos animais, capaz de sentir e perceber, por que deveria ser diferente em relação aos seres humanos?

O que La Mettrie procurava era aplicar a hipótese de Descartes do ‘animal máquina’ aos seres humanos: no seu ponto de vista, o homem é igualmente uma máquina natural em função da organização da matéria e da ação de forças físicas no corpo. La Mettrie considerava razoável atribuir à matéria propriedades mentais ou pensantes, se entendermos que ‘mente’ é uma função do corpo. Vários exemplos, tirados da anatomia comparada, sugerem, no ponto de vista médico de La Mettrie, que a mente é uma organização fundamentalmente material – porque são exatamente as propriedades materiais dos corpos que podem mostrar similaridades entre natureza humana e animal.

Ao modo do materialismo radical, em resumo, La Mettrie avança o espírito do mecanicismo: ‘o homem é uma máquina’ é literal no seu texto-manifesto.

Mas que tipo de máquina é o homem? Se consideramos o espírito do mecanicismo, os mesmos princípios que sustentam e explicam o mundo natural teriam lugar igualmente na concepção da natureza humana. A matéria bruta e sujeita à ação de forças físicas era a única via racional de explicação do mundo, e o homem (ou a ‘natureza humana’) não poderia estar fora desse quadro. Contrariando o espírito dualista, e antecipando um princípio fundamental do darwinismo (continuidade entre as espécies), La Mettrie não concebia transição abrupta entre animal e homem. Assim, supõe-se que a natureza do homem era um fato bruto no mundo natural e esse esquema de racionalidade teria favorecido uma reação humanista (dualista) contra a ‘desumanização’ em curso da condição humana.

Imagem 01 : La Mettrie.

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Mas, resoluto na sua concepção materialista e comprometido com o mecanicismo, La Mettrie sustenta categoricamente que ‘o corpo não é senão um relógio’. Mas aqui precisamos compreender que ‘relógio’ não significa estritamente a imagem dos mecanismos típicos de repetição e programação das máquinas em geral. Na mesma passagem do texto, ao ‘corpo-relógio’ La Mettrie acrescenta o ‘relojoeiro’, como ‘nova química’ da oscilação de líquido pelo corpo, e elimina o recurso à metáfora do Deus-Relojoeiro (programador e regulador da ordem no mundo). Mantido o princípio de explicação mecanicista do homem, e inclusiva contra o vitalismo nascente de G. E. Stahl na Alemanha, La Mettrie parece conceber a metáfora do relógio como ilustração da organização de partes, funções e oscilação de líquido no corpo – o corpo é um relógio ou máquina biológica.

No século XVIII, aliadas à química nascente, concepções na-turalistas fazem avançar o modelo de explicação mecanicista, e o problema do conhecimento da natureza passa a ser visto como o problema do conhecimento do próprio homem:

(...) a fisiologia do homem torna-se… o ponto de partida e a chave do conhecimento da natureza. As matemáticas e a física-matemática perdem sua posição e são substituídas… pela biologia e a fisiologia (Cassirer, 1992, p. 100).

Nesse contexto de revisão das bases do mecanicismo, comparativamente, La Mettrie avança o espírito do mecanicismo quando mostra que somos máquinas biológicas. Mas que modelo explicativo compreende o homem supostamente organizado como máquina viva ou biológica ? Não parece ser o modelo estrito da mecânica newtoniana aplicada ao mundo natural. O modelo, supostamente concebido por La Mettrie, teria características de ordem qualitativa contrastante com a redução ao modelo quantitativo ou matemático da mecânica.

Semelhça de função entre uma

máquina biológica e uma máquina

mecânica.

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Podemos interpretar pensamento, linguagem, sentimentos, emoções, etc., simplesmente como processos mecânicos ou reduzir à linguagem matemática a natureza desses processos ou a natureza humana em geral? Mas que sentido pode ter qualificar a ‘natureza humana’ de máquina-biológica? Se somos máquinas-biológicas, o que nos torna ‘humanos’? O que parece nos tornar humanos é nossa condição de uma máquina biológica particular cujos processos de geração, reprodução, comportamento, etc., dependem da estrutura, organização funcional e anatomia do corpo – porque o corpo é nossa condição primordial ou natural no mundo, em comparação a outros tipos de seres vivos, e tudo o que somos ou podemos ser está limitado a essa condição.

Aos dualistas pareceria ‘desumanização’ da condição humana a concepção de máquina-biológica. Mas, ao contrário, a Mãe Natureza, ainda zelosa, teria cedido, no jogo do acaso cego no mundo, um lugar ao filho não aguardado – ao longo de uma sé-rie de teste/erros, ela finalmente concedeu a uma máquina criada entre as diferentes máquinas a qualidade de ‘humano’. O que tor-nou uma máquina-biológica ‘humana’ (ou o que nos tornou hu-manos) é resultado de um longo processo histórico; na verdade, uma concepção histórica da vida biológica parece explicar nossa condição humana: o que somos agora, o que éramos antes e o que seremos no futuro só pode acontecer no tempo. Uma máqui-na-biológica teve origem no jogo cego da criação da vida bioló-gica no mundo e êxito na sua implementação ao longo do tempo entre testes/erros de diferentes modelos. Em grande parte, e ante-cipando princípios fundamentais da Teoria da Seleção Natural de Darwin, La Mettrie teria entendido a natureza evolutiva, gradati-va e contínua das máquinas-biológicas – desde a origem da vida biológica no mundo, organização da matéria, combinação entre estrutura/função e ação de forças mecânicas, etc., teriam gerado o que somos ou o que nos tornamos (ou o êxito na implementa-ção da natureza ‘humana’ em uma máquina-biológica).

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Atividades propostas

1. No ponto de vista de La Mettrie como se define

o Homem-máquina?

2. Por que La Mettrie antecipa o princípio de

seleção natural de Darwin?

3. Compare o conceito de Homem-máquina ao de

máquina biológica.

4. Se somos máquina biológica, então o que nos

torna humanos?

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Unidade II

Que lugar a natureza humana ocupa no mundo ? Aqui podemos comparar as respectivas ‘revoluções’ de Nicolau Copérnico e Charles Darwin quanto ao lugar do homem no mundo: não somos o centro do universo e muito menos da natureza.

Entre inúmeros e diferentes fenômenos que tiveram origem ao longo da evolução das espécies, muito provavelmente, os seres humanos são resultado de uma interseção entre duas ordens: por um lado, uma ordem horizontal de fenômenos; e, por outro, uma ordem vertical (ver esquema ao lado). A primeira representa a possível continuidade entre espécies não-humana e humana ao longo do tempo; enquanto a segunda ordem indica o lugar da mente (pensamento, linguagem, consciência, etc.) no mundo natural como resultado de comportamentos adaptativos e modificados (testes/erros).

Visão sobrenatural do homemUniverso Geocentrico

DC 1543 DC 1859

Revolução Copernicana

Revolução Darwinista

Universo Heliocéntrico

Visão Naturalista do Homem

Natureza humana e natureza: Comunidade.

mente

comportamentos adaptativos e modificações (teste/erros)

EVOLUÇÃOnão-humanos humanos

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Abaixo um quadro ilustrativo da interseção entre as duas ordens:

É evidente que nós, seres humanos, somos uma espécie única e singular no mundo. Mas todas as espécies são únicas e singulares. O que interessa compreender aqui é que os mesmos mecanismos que tornam as espécies únicas e singulares são gerais entre todas (Foley, 1993). Nós, seres humanos, ou nossa ‘natureza humana’, somos, portanto, apenas mais uma espécie única – ou máquinas-biológicas cuja natureza agora é ‘humana’ em função da evolução biológica entre não-humanos e humanos. Assim, podemos revisar e contextualizar a hipótese de La Mettrie quanto ao ‘homem-máquina’, cuja origem no mundo natural não parece ter sido abrupta na transição entre espécies não-humana e humana, e estudos recentes de comparação de comportamental animal.

Na década de 1970, o naturalista inglês Donald R. Griffin introduzia o modelo da etologia cognitiva no campo de estudo do comportamento animal. Mas que interesse pode ter o estudo do comportamento animal em relação à noção de ‘natureza humana’? Em parte, a compreensão do comportamento humano tem revelado uma concepção conservadora e antropocêntrica em nossa cultura. Supomos e procuramos afirmar sistematicamente que ter uma mente ou mentalidade (pensamento, linguagem, consciência, etc.) parece ser o que melhor ilustra a imagem da nossa ‘natureza humana’, por oposição aos organismos desprovidos dessa função – essa concepção, cujo espírito é cartesiano, nega a existência de mentes além da mente humana. Mas o problema é se realmente podemos saber que tipo de mente criaturas não-humanas têm além da nossa própria mente – este é o problema

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da distribuição dos tipos de mente no mundo natural, abordado pelos estudos de etologia cognitiva. No ponto de vista de Griffin, resolver o problema da distribuição significaria a possibilidade de sustentar a continuidade evolutiva entre diferentes tipos de experiência mental humana e não-humana.

Por volta de 1976, Griffin mostra interesse no trabalho do filósofo inglês Thomas Nagel, à época visitante na Universidade Rockfeller, sobre a experiência mental de animais não-humanos. Mas, na condição de filósofo, o que Nagel procurava avançar era uma concepção ampla da noção de experiência mental e uma alternativa de solução ao chamado problema de outras mentes. O que realmente podemos afirmar quanto à existência de outras mentes além das nossas próprias experiências? Tudo o que sabemos ou podemos afirmar de outras mentes é resultado da observação de que as pessoas têm corpos, comportamentos, o modo como respondem ao meio, o que elas dizem, etc. A única coisa que se sabe realmente é que existem correlações entre as experiências e o que elas significam (pensamento, sentimento, percepções, etc.), e assim se supõe ou se atribui a mesma correlação às outras pessoas. Mas se não se é capaz de saber como é realmente ter a experiência dos outros, não se pode atribuir a eles uma mente. Aqui, como sugere Nagel (2004, p. 29), precisamos de um ‘conceito geral de experiência’ se quisermos atribuir mente aos outros.

Este parece ser o conceito geral de experiência do qual Griffin procurou tirar uma lição de Nagel: Problema de outras mentes: precisamos conceber experiências das quais não somos o sujeito ou conceber ‘experiência’ como alguma coisa que está acontecendo a um sujeito diferente de nós.

Assim, uma ‘concepção geral de experiência’ parece mostrar a possibilidade de conceber mentes em outras criaturas diferentes de nós porque, e não importa o tipo, uma experiência tem sempre um ‘ponto de vista particular’ ou um ‘sujeito’. A idéia fundamental de Nagel, e acreditamos ser o que motiva Griffin, é que uma concepção de conteúdo mental da experiência inclui a mente ou mentalidade de outras espécies diferentes e, portanto, inimagináveis do nosso ponto de vista único. Embora possamos imaginar, não podemos saber realmente como é a experiência de outras criaturas no mundo além de nós mesmos. Porque, como assinala Nagel (2004, p. 38-9), uma descrição da realidade do mundo é sempre incompleta em função dos diferentes pontos de vista porque o mundo não se mostra a um único ponto de vista simplesmente – mas é a realidade do mundo tomada ‘a partir de lugar nenhum’.

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A realidade é o que diferentes pontos de vista ou experiência podem conceber e não unicamente ser a referência do nosso ponto de visa ou experiência humana no mundo. Assim, temos incompletude da realidade, por um lado, e, por outro, continuidade entre diferentes pontos de vista ou experiências no mundo.

Ter mente ou mentalidade, se não podemos negar a possibili-dade de atribuição a outras espécies diferentes de nós, não signi-fica nos conceder uma característica singular na nossa ‘natureza humana’ – se existe uma ‘natureza humana’, ela é contínua com o resto do mundo natural vivo.

Mas tem sido comum entre muitos filósofos (embora neguem o dualismo) situar insistentemente na linguagem o indicador da consciência, e, por conseqüência, o indicador da nossa ‘natureza humana’, e negar que os animais tenham experiências conscien-tes como nós temos. Se existem outras mentes no mundo além das nossas próprias mentes, elas não têm a capacidade de repre-sentar suas experiências conscientes como nós temos (a propósi-to da existência de diferentes tipos de mente, cf. Dennett, 1997).

Supor que unicamente à linguagem corresponda o indicador de consciência não parece ser correto. A maior parte da nossa vida mental consciente está estruturada no nível primário (ou não-conceitual) das representações imediatas das nossas experiências – são experiências cujo conteúdo é imediatamente acessível a nós (percepções, sensações, sentimentos, etc.). Assim, por analogia, parece razoável supor a possibilidade de experiências conscientes além das nossas, em função dos estados primários dessas experiências no mundo entre diferentes espécies. Igualmente um indivíduo que nunca tenha tomado sorvete de chocolate tem consciência imediata do conteúdo da sua experiência (frio, molhado, doce, saboroso, etc.), embora provavelmente ele não tenha as representações conceituais correspondentes a ‘frio’, ‘molhado’, ‘doce’, ‘saboroso’, etc.).

Atividades propostas

1. À luz da concepção antropocêntrica

predominante na cultura, que traço distingue

natureza humana de natureza animal?

2. Em que consiste a tese da ‘continuidade’

defendida por Griffin e qual a sua importância na

compreensão da natureza humana?

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Unidade III

A natureza humana no contexto da evolução biológica.

A concepção de uma origem não-humana da ‘natureza humana’ parece remeter ao longo, gradual e contínuo processo de hominização. A partir da análise desse processo, a biologia e a antropologia evolutivas têm tentado estabelecer o elo de continuidade entre as espécies ancestrais e o homem. Assim, no processo de ho-minização, o termo “hominídeo” (Foley, 1993, p. 42-3) designa os ancestrais do homem (Homo erectus, Homo habilis, e Australopithecus africanus), a família da espécie humana (Homo sapiens) e a subespécie do homem anatomicamente moderno (Homo sapiens sapiens). Hominídeo remete, portanto, a um importan-te processo que, a partir do aumento da capacidade craniana de 400 a 2000 cc, o que não significa aumento de volume entre o Australopithecus africanus e o Homo sapiens, teria favorecido a morfologia do homem moderno (Homo sapiens sapiens) – aqui podemos conceber o processo de hominização como matriz da ‘natureza humana’ ou ‘humanização’ quando novos e diferentes comportamentos são testados e introduzidos na geração dos padrões da espécie.

Vamos supor a seguinte situação. No longo e gradual processo de hominização, duas espécies (E1 e E2) são candidatas à sobrevivência em função da ação e variações do meio (M):

EE1 e EE2: processos de teste e eliminação de erros no comportamento; seleção de S1 ou S2: melhor adaptação, maior geração de descendentes e sobrevivência.

ME1 EE1 S1

E2 EE2 S2

S1 ou S2 (seleção)

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Hoje parece pouco provável supor, por exemplo, que os seres humanos tenham sido únicos no uso, produção ou desenvolvimento de técnicas de construção de instrumentos, linguagem e meios de comunicação. O fato de a capacidade da linguagem articulada (ou língua falada) ter uma característica particular e isolada na espécie humana, não elimina o elo com espécies não-humanas em termos de comunicação por meios não-articulados (gestos, sons, sinais, etc.). O que parece correto sustentar é que a linguagem e o pensamento simbólico no ser humano tenham sido a síntese de sistemas anteriores de expressão primata (por exemplo, a associação entre som e significado) e resultado de um longo processo de testes e eliminação de erros no comportamento. Assim, por exemplo, os órgãos da linguagem falada parecem resultar do desenvolvimento evolutivo do aparelho vocal e que estão associados à capacidade primitiva de expressão de diferentes emoções e pensamento. A evolução de certos padrões de comportamento como ‘rosnar’, por exemplo, inicialmente associado a uma função comunicativa, enquanto praticamente perdeu expressão na espécie humana, passou a uma forma de agressão (mordida) em outros animais.

O conhecimento da história evolutiva remete a aspectos do desenvolvimento do mundo vivo ou das diversas formas de vida biológica. Na tentativa de oferecer respostas aos para quê? ou por quê?, o biólogo evolutivo, e eventualmente na ausência de experimentos apropriados, elabora sua metodolo-gia sob a forma de “narrativas hipotéticas”. Muitos filósofos, no entanto, parecem simplesmente ignorar o papel das narra-tivas históricas (Mayr, 2005, p. 49) – são cenários hipotéticos de recriação da evolução biológica que procuram respostas a certos tipos de questões como “para que” ou “por que”, por exemplo, gatos têm unhas afiadas, pontudas, curvas, retráteis, etc.; ou “para que” e “por que” é parte da nossa ‘natureza hu-mana’ a comunicação lingüística (falada e escrita).

Inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é, que o aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas

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para andar. Os lingüistas estão longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a língua uma instituição social da mesma maneira que as outras, é por acaso [grifo nosso] e simples comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da língua; os homens poderiam ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acústicas. Sem dúvida, esta tese é demasiado absoluta… Além disso, Whitney vai longe demais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos órgãos vocais; de certo modo, já haviam sido impostas pela Natureza [ e ] … A questão do aparelho vocal se revela secundária no problema da linguagem (Saussure, 2002, p. 17-8)

Mas se o problema do aparelho vocal é secundário, embora Saussure reconheça como “absoluta” a tese de Whitney, o fato é que, muito provavelmente, o acaso tenha tido um papel decisivo quanto à implementação do aparelho vocal como órgão biológi-co da linguagem entre outras formas possíveis. O que parece re-levante é que a capacidade da linguagem tenha tido essa função biológica como resultado de uma nova adaptação do aparelho vocal ou uma pré-adaptação a uma mudança ecológica entre a espécie humana e o meio.

No curso da evolução, a partir da variedade de estruturas e grupos celulares, alguns surgiram e tiveram a capacidade de duplicar a si mesmos, e na ocorrência de mudanças acidentais, a competição teria levado ao esquema de testes/erros e imple-mentação de novas formas.

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Atividades propostas

1. Estaria a ‘natureza humana’ entre as novas

formas implementadas evolutivamente entre as

máquinas biológicas já existentes no mundo?

2. Que relevância biológica tem nossa ‘natureza

humana’ no mundo?

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Unidade IV

Evolução, corpo e natureza humana.

O filósofo francês contemporâneo Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) assinalou incansavelmente que a passagem da natureza à cultura não significaria conceder legitimidade aos pontos de vista dualistas – Merleau-Ponty era sensível à continuidade natureza-cultura ou corpo-linguagem. Nossa condição primordial no mundo é o corpo e é ele nossa matriz de significação e alteridade que sustenta um estado de ‘pré-cultura’ – e a passagem à cultura teria a condição natural do corpo como matriz de potencialidade. Não somos uma ‘natureza humana’ distinta e separada do corpo, como supomos comumente. Nossa tendência dualista incurável nos leva a conceber nossa ‘natureza humana’ distinta do mundo natural. Procurarmos afirmar nosso modo de vida exclusivo como ‘cultura’ ou, na linguagem das ciências sociais, o modo de vida de um superorganismo acima e além das determinações biológicas. Mas ter um corpo corresponde a uma característica natural no mundo entre diferentes organismos vivos. Igualmente Merleau-Ponty via no corpo uma ordem primordial de afirmação de uma ontologia da vida biológica. Se considerássemos

esse ponto de vista de Merleau-Ponty como matriz potencial de significação e ação, o corpo teria diferentes funções de sustentação da nossa condição

natural no mundo e não alguma coisa acima e além das determinações biológicas da vida. Aqui podemos introduzir a idéia de ‘potencial’ da

vida biológica, por oposição ao determinismo, quanto à continuidade entre corpo, experiência e natureza humana.

O que realmente podemos afirmar da nossa natureza humana quanto ao resto do mundo? Talvez existam muitas mais experiências significativas de vida no mundo do que nós podemos supor – experiências significativas de vida em coisas nas quais supomos não ter experiência alguma em relação a nós mesmos. Queremos reafirmar incuravelmente nossa importância e condição singular no mundo. Mas se consideramos a condição do corpo, onde está a singularidade da nossa ‘natureza humana’?

O que parece mais razoável supor é que nossa condição natural do corpo mostra uma característica de continuidade entre o mundo natural e nós.

Imagem 02 : Merleau-Ponty.

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Mas é essa característica de continuidade que os dualistas procuram sistematicamente negar como traço de distinção de natureza entre o mundo e nós. Não somos o piloto (‘eu’, ‘espírito’, ‘alma’, etc.) que dirige um corpo distinto de nós mesmos como pensava o velho Descartes. O que somos ou podemos ser é um potencial da nossa condição natural do corpo no mundo. Porque é o corpo inteiro, como matriz potencial de significação e ação do organismo, que interagem com o meio ambiente. Muita gente, e ainda hoje é um traço forte da nossa cultura, crê e mantém o espírito dualista do século XVII de que nossa ‘natureza humana’ não depende do corpo ou das interações entre cérebro-corpo. Mas o corpo sustenta muito mais do que interações com o cérebro. Ele sustenta nossa condição natural e primordial de vida no mundo. Desde organismos simples a complexos, durantes milhões de anos, os diferentes cérebros tiveram origem nos organismos por modificações e adaptações do corpo às condições e variações do meio. Superado o estágio primário de simples representação sensorial (calor, frio, presença de alimento, etc.), a condição natural do corpo sustentou progressiva e evolutivamente as condições de criar estados de representação no cérebro relacionados ao meio ambiente (crenças, desejos, intenções, etc.).

Por que nossa condição primordial no mundo é o corpo ?Por que ainda hoje somos dualistas quanto à separação alma e corpo?

Em termos biológicos e evolutivos, o corpo tem sustentado nossa condição de sobrevivência e vida no mundo. Assim, quando os cérebros têm origem, aumentando as chances de sobrevivência e vida no mundo, as representações relacionadas ao meio ambiente passaram a ter importância significativa em função das modificações no corpo – modificações no corpo sugerem modificações no cérebro em função de condições do meio. Um corpo cuja estrutura física e anatômica é simples não teria condições de sustentar representações complexas no cérebro (idéias, conceitos, expressão de emoções, etc.) – e é o cérebro que agora se ocupa do corpo, promovendo o aumento das chances de sobrevivência e vida humana no mundo.

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Se cremos que existe uma realidade externa a nós, é tão somente uma crença sustentada nas nossas experiências e condição natural do corpo. A existência de uma realidade distinta de nós no mundo não parece ser o resultado da nossa capacidade de ter pensamentos, crenças, consciência, etc. Porque a referência ao corpo como nossa condição natural e primordial no mundo elimina a necessidade de nos atribuir uma ‘natureza humana’ distinta da qual supomos derivar o que somos ou o que podemos ter (pensamentos, crenças, consciência, etc.). Porque se este é o caso, temos um raciocínio circular: se nossa ‘natureza humana’ é o que atribuímos ao que somos ou ao que podemos ser como uma coisa distinta do mundo, então o que somos ou podemos ser é o que atribuímos à nossa natureza como uma coisa distinta do mundo. Mas se podemos ou não saber se somos distintos, no mínimo a dúvida parece mostrar a possibilidade de conceber a continuidade entre o mundo e nossa ‘natureza humana’. Porque antes dos nossos pensamentos, crenças, consciência do mundo, etc., enfim, antes da origem da nossa ‘natureza humana’ no mundo, já existiam corpos e seres altamente organizados.

Assim, parece ser uma pretensão egoísta supor que a capacidade de pensar ou a consciência são os verdadeiros substratos da nossa ‘natureza humana’. O que nos torna humanos não pode ser uma parte da nossa condição de vida no mundo (pensamento, crenças, consciência, etc.). O que parece nos tornar humanos é nossa condição natural de vida e história evolutiva e não a imagem que atribuímos a nós mesmos como alguma coisa fora e distinta do mundo – mas nós queremos estar fora e ter uma importância exterior ao mundo. Herança cartesiana por excelência, é um erro abissal da nossa cultura (incuravelmente dualista) separar ‘natureza humana’ e mundo (ou mente e corpo). Entre as diferentes tendências dualistas na nossa cultura, pelo menos no Ocidente, a crença corrente (comum e acadêmica) é de que temos uma ‘mente’ (pensamentos, crenças, linguagem, desejos, sentimentos, consciência, etc.), e tudo o que pode ser objeto das nossas experiências no mundo, como substrato da nossa ‘natureza humana’, é independente da condição natural do corpo (a propósito do ‘erro de Descartes’, e sua influência cultural, cf. Damásio, 1998).

Aliás, na medicina contemporânea, por exemplo, ou entre a classificação das ciências da natureza e humana, ainda temos atitudes dualistas: ‘doenças do corpo’ ou ‘doenças da mente’ e ‘objetos da natureza’ e ‘objetos da mente’. O uso desse vocabulá-rio dualista tornou-se desastroso na nossa concepção de ‘nature-za humana’, vida e mundo. Pior é quando o uso do vocabulário dualista tem conotações morais. Aquilo que nos torna ‘desuma-nos’, ou é moralmente condenável, nós atribuímos à nossa con-dição biológica de vida, porque esta seria determinada por forças

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naturais e instintivas (ou animais) – queremos ser importantes no mundo e procuramos atribuir a nós mesmos a natureza de anjos caídos na terra cuja capacidade de ‘auto-determinação’ das nos-sas ações supera nossa condição biológica de vida ou instintos. Sem comentários !

Pensava-se que os gorilas, os maiores primatas vivos, eram agressivos, violentos e perigos ... Eles, na verdade, mostraram ser muito tímidos, raramente apresentando uma ameaça para os humanos (Foley, 2003, p. 57).

Atividades propostas

1. À luz da concepção dualista predominante na

cultura, o que parece distinguir mente e corpo ?

2. Por que nossa medicina contemporânea ainda

parece ser nitidamente dualista ?

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Unidade V

Potencial biológico e natureza humana.

Um eloqüente argumento quanto à capacidade de ‘autodeterminação’ das nossas ações, apregoado entre diferentes concepções dualistas da natureza humana, susten-ta que nossa capacidade de ‘livre arbítrio’ supera as condições ou determinações bio-lógicas da vida. Mas o que somos ou podemos ser parece corresponder ao potencial da nossa condição biológica – e ‘potencial’ não significa ou implica ‘determinismo biológico’ ou a recusa de livre arbítrio. Ser bom ou mau, altruísta ou egoísta, agres-sivo ou benevolente, é tudo que podemos ser. Procure imaginar uma condição de vida diferente. Quando somos ou podemos ser bons ou maus, altruístas ou egoístas, agressivos ou benevolentes? Quando nossas ações e experiências têm algum efeito prático na nossa vida. Mas, por exemplo, ser agressivo não significa ser cruel, assim como ser benevolente não significa ser objeto da vontade alheia, porque, nessas cir-cunstâncias, nossas ações e experiências não teriam efeito prático na vida – e tudo que não tem efeito prático não parece ser preservado individual ou coletivamente. Esta é uma lição básica da Teoria da Seleção Natural de Darwin.A maioria das pessoas parece aceitar naturalmente que o homem (Homo sapiens) é e não é, ao mesmo tempo, especial no mundo, o que infelizmente passou a significar respectivamente ‘não-biológico’ e biológico (Gould, 1999, p. 249). É um ponto de vista que, por razões evidentes, favoreceu a crença (acadêmica e comum) de que tanto nossa característica de ser especial no mundo, quanto os padrões de comportamento social estão além e acima de controle e determinação biológica. Mas, como assinala o biólogo evolutivo Stephen J. Gould (ibidem), igualmente não é caso de submeter nosso comportamento, organização social, diversidade cultural, etc., a controle e determinação genéticos.

Afirmar que somos criaturas biológicas, cuja natureza animal nos parece instransponível, não significa igualar ‘potencialidade’ e ‘determinação’: [...] É claro que não fazemos todas as coisas que os outros animais; também é óbvio que a gama de nosso potencial de comportamento é circunscrito à nossa biologia. Levaríamos uma vida em sociedade muito diferente se passássemos pela fotossíntese (nada de agricultura, colheita, caça – os principais fatores determinantes de nossa evolução), ou se tivéssemos o ciclo de vida de certos insetos ... (Gould, 1999, p. 250).

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O que parece que pode explicar nossos comportamentos, organização social, diversidade cultural, é exatamente nossa história evolutiva. O que éramos, somos ou o que podemos ser e, portanto, a sustentação de uma concepção de ‘natureza humana’ ou o que é ou significa a vida humana, parece só ter sentido em relação à nossa história e nossas experiências ao longo do tempo. Aliás, em comemoração aos 40 anos do céle-bre artigo do físico alemão Irwin Schroedinger (O que é vida ?), 1943, Stephen J. Gould considera que não podemos senão responder a essa questão se não considerarmos o sentido his-tórico da vida (humana ou não-humana), e não simplesmente o que acontece no interior do organismo em termos de meca-nismos de transmissão hereditária.

O que precisa ser notado é que existem invariantes biológicas e diversidade cultural na implementação de comportamentos coletivos. Ser mau, egoísta e agressivo é ser desumano ou nos torna desumanos? Não parece! Nosso problema é como lidar com aspectos da nossa condição biológica que não têm efeito prático na vida – ser mau, egoísta e agressivo é parte da nossa condição ou natureza. Em termos de características inatas biologicamente, não somos agressivos ou benevolentes, no entanto, temos disposição a esses comportamentos. Não somos ou evitamos ser maus, egoístas e agressivos porque são comportamentos que não têm efeito prático na nossa vida. Ainda quanto ao sentido de ‘potencial biológico’, ao citar uma passagem de Simone de Beauvoir, Stephen J. Gould (1999, p. 258) assinalou que nós somos um ser cuja essência é não-ser – ser humano, natureza humana, humanização, etc. Parece simplesmente significar que somos potencialidade da nossa condição biológica de vida ao longo da nossa história evolutiva. Atividades propostas

1. O que parece que pode explicar nossos

comportamentos, organização social,

diversidade cultural, etc. ?

2. Por que ser mau, egoísta e agressivo

não significa ser desumano ou nos torna

desumanos ?

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Unidade VI

Instintos e natureza humana.

Se existe algum sentido na nossa concepção de ‘natureza humana’ ou do que nos torna humanos e singulares no mundo, só podemos ter acesso a isso na nossa própria condição de vida e não fora dela. Por que supomos e queremos ser impor-tantes no mundo ou entre nossos familiares, amigos, colegas de trabalho, conhe-cidos? Não é suficiente ser o que somos e podemos ser na nossa própria condição de vida? Como nota o filósofo britânico Thomas Nagel (2001, p. 107), ‘alguns de nós têm uma tendência incurável a levar-se a sério. Queremos ser importantes para nós mesmos “a partir de fora” ’.

1 – Por que nossa ‘natureza humana’ precisa ser diferente e nós querermos estar fora do mundo e ostentar uma importância singular? 2 – Será porque, diferente do resto do mundo, podemos pensar ou representar conceitualmente nossa vida e experiências? Provavelmente sim.

Porém alguns milhares de anos adiante, nossa suposta ‘natureza humana’ e aquilo que supomos ser eterno e singular nos nossos pensamentos, não terá significado nada – quem vai estar aqui e apreciar a singularidade da nossa natureza?

Ainda assim, continuamos mantendo nossa tendência (“incurável”) a valorizar nossa importância e natureza singular no mundo. Neste ponto em particular, queremos impor ao mundo uma necessidade imperativa, como se o ser humano sempre tivesse sido o fi-lho aguardado da natureza ou um anjo caído do céu. E o que é pior, acreditamos sermos singulares e que, ao resto do mundo natural vivo, corresponda uma natureza primitiva e animalesca. Já no século passado, porém, os fatos mostraram o contrário.

A animalidade passou a ser nosso lado nobre, enquanto a civilização mostrou ser nosso lado sombrio e extramente agressivo.

Os primatas são, acima de tudo, animais altamente sociáveis. Praticamente todos os primatas antropóides vivem em grupos sociais complexos e, portanto, a propensão humana à sociabilidade é parte de uma tendência primata geral (Foley, 2001, p. 219).

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E o que é mais surpreendente: as formas humanas de agres-são ou os comportamentos agressivos não têm correspondentes entre outras espécies: são específicas da espécie humana. No en-tanto, por que atribuímos à moralidade na ‘natureza humana’ a superação da nossa condição biológica de vida? Moralidade ou agressividade parecem ter evoluído biologicamente como padrões de comportamento instintivo. Se considerarmos agressividade ou moralidade em termos biológicos, eles não são características ina-tas da espécie humana. Ser agressivo refere-se a um potencial da nossa condição biológica e, em particular, desenvolvemos no cur-so da nossa história evolutiva uma predisposição à agressividade no meio ambiente, assim como desenvolvemos predisposições ao comportamento moral – agressividade e moralidade são compor-tamentos desenvolvidos evolutivamente por meio dos nossos ins-tintos naturais. Portanto, não parece justo associar a agressividade do comportamento humano aos nossos instintos animais, obra do anjo negro, e, em contrapartida, relacionar a moralidade à nos-sa ‘natureza humana’ de um anjo branco caído na terra. O que normalmente atribuímos aos nossos comportamentos desumanos, por oposição à moralidade, atribui-se ao nosso instinto animal de agressão. Mas, no apogeu da nossa cultura contemporânea, ou daquilo que o historiador e filósofo alemão Oswald Spengler chamava ‘civilização’, e ainda no início do século passado (muito antes da 2ª Guerra Mundial ou da Bomba de Hiroshima), a ‘cultu-ra’ mostrou ser a expressão de ‘decadência” ou o lado sombrio do nosso modo de vida singular no mundo.

Mas o que são instintos? ‘Instintos’ não são forças livres, su-pranaturais ou agentes não-físicos (como intuitivamente nos pare-cem ser) cuja ação tem efeito físico no comportamento. Ao contrá-rio: alguns agentes biológicos têm evolutivamente desenvolvido a função de reprimir fisicamente os estados comprometedores de equilíbrio e preservar a sobrevivência do organismo.

Instinto é ‘um sistema espontaneamente ativo de mecanismos comportamentais’ que realiza funções específicas e cujo significado é biologicamente relevante ao organismo (cf. Lorenz, 1995, p. 287).

Nesse sentido, podemos usar as expressões ‘instinto reprodutivo’, ‘instinto agressivo’ e outras, que sustentam um tipo de função espe-

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cífica como comportamento sexual, comportamento agressivo, mas instintos não têm significado moral algum. O que parece caracteri-zar a ação dos instintos é a apetência*; instintos são sistemas ‘ape-titivos’: procuram maximizar o bem-estar e minimizar a dor. Não se trata, porém, de um tipo de força vital supermecânica de um agente não-espacial fora do organismo. Os instintos são sistemas genetica-mente determinados e podem gerar certos tipos de comportamentos específicos. Mas os comportamentos gerados – e eventualmente eles podem ter um sentido moral (agressividade, práticas sexuais inces-tuosas, etc.) – apenas representam o potencial da nossa condição de vida. Tudo o que somos ou podemos ser, nossos comportamen-tos etc., representam um potencial da nossa condição de vida, que não significa determinismo biológico. Se somos ou podemos ser agressivos, se nossos comportamentos são agressivos, assim como se somos ou podemos ser benevolentes, se nossos comportamentos são benevolentes, etc., se temos práticas sexuais incestuosas, isso tudo corresponde ao potencial do nosso repertório genético – um organis-mo não pode ser ou ter certos comportamentos que estão fora do seu potencial genético (cf. Wilson, 1981).

Assim, muito provavelmente a moralidade evolui como padrão de comportamento instintivo entre diferentes padrões biológicos. Por que a prática do incesto (a prática sexual entre pais e filhas, mães e filhos ou entre irmãos) é considerada um comportamento errado e é reprovada moral e socialmente? – é o conhecido ‘tabu do incesto’ (ou lei do incesto). E que vantagem pode ter o tabu do incesto? Entre antropólogos, psicólogos e filósofos, uma resposta possível é que ele preserva a integridade da família ao evitar a confusão de papéis: o membro de uma família só poder ter um papel e não dois; por exemplo, o pai não pode ser pai e amante da filha ao mesmo tempo; ou a mãe ser mãe e amante do filho; ou, entre irmãos, o irmão ser irmão e amante da irmã.

Mas por que, embora o incesto sempre seja um prática possí-vel, ele é reprimido moral e socialmente entre diferentes culturas? A prática do incesto ou ‘endocruzamento’ (ou prática sexual entre membros de um mesmo grupo) tem como conseqüência uma puni-ção biológica e, portanto, valor negativo: o resultado são crianças com dificuldades físicas ou limitações mentais. A manifestação das patologias do endocruzamento mostrou ser o ‘exocruzamento’ (ou prática sexual entre membros de grupos diferentes) uma vantagem biológica: evitar exatamente a geração de crianças com anomalias e manter a integridade biológica da vida. Ao longo de várias gerações, o exocruzamento mostrou ser biologicamente significativo e passou a ter um valor positivo no patrimônio hereditário da espécie humana e diversas formas de representação cultural.

* Como concebe o filósofo alemão G. Leibniz, apetência é uma das propriedades das mônadas e tem um sentido metafísico. Mas aqui, ao contrário, significa uma propriedade biologicamente estruturada.

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Em termos biológicos e evolutivos, portanto, parece ter sido uma vantagem o desenvolvimento de mecanismos de repressão entre os estados internos do cérebro hominídeo (ver definição acima). Podemos conjecturar que, ao longo do processo de ho-minização, acima descrito, a prática do incesto, por exemplo, parece ter perdido significado no modo de vida dos diferen-tes grupos ancestrais do homem, embora possamos crer que ela corresponda a uma pré-disposição genética (ou potencial) e passada de geração a geração. O neurocientista Gerald Edelman, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1971, identificou circuitos neurais que interagem com sistemas de valores e são encontrados no hipocampo (por exemplo, falha de memória) e no gânglio basal (por exemplo, função na regulação e elabo-ração de categorias na experiência) – esses circuitos neurais estão conectados ao córtex via tálamo. Assim, teria ocorrido evolutivamente, e por meio de experiências sucessivas entre os grupos ancestrais do homem ao longo de várias gerações, a re-pressão do acesso a estados comprometedores de equilíbrio do organismo e uma ‘seleção’ de estados internos (positivos) teria sido implementada entre circuitos neurais específicos.

Os estados do cérebro de repressão ao incesto, por exemplo, teriam sido selecionados em função de seu valor biológico signi-ficativo e influência direta no comportamento do organismo em função do grupo. Assim, posteriormente, o desenvolvimento de sistemas lingüísticos e comunicação no modo de vida humano te-riam tendido a representar por associação os estados internos do cérebro cuja função estava relacionada ao comportamento do or-ganismo no meio. O uso do signo lingüístico ‘incesto’, por exemplo, teria passado a ter um significado particular no comportamento e na comunicação: estado interno de repressão do comportamento incestuoso no cérebro = símbolo lingüístico ‘incesto’.

Nesse contexto particular do uso e desenvolvimento de representação simbólica dos estados internos do corpo (e sua relação com o meio), parece que nos tornamos humanos, em parte, em função da ‘tecnologia’. A tecnologia está Inserida no contexto amplo do domínio das técnicas: como a criação de instrumentos, ferramentas, meios de comunicação, etc. Assim, pode-se dizer que a atribuição ou transferência de conteúdo simbólico a objetos, como, por exemplo, a técnica de contar com pedras, ou quando surge a expressão rupestre em cavernas, esses são exemplos que mostram o desenvolvimento de uma característica singular da mente ou mentalidade humana: a capacidade de dar, armazenar e comunicar conteúdo simbólico fora do próprio corpo em pedras, pinturas, instrumentos, linguagem, etc. A técnica de representação

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e comunicação simbólicas, como, por exemplo, o artesanato de pulseiras, colares, brincos, etc., criado com pedras, penas, conchas, etc., parece ter sido provavelmente uma característica singular do ser humano no processo de evolução biológica.

Mas a capacidade singular do ser humano de representação simbólica dos estados internos do corpo ou de coisas no mundo teria sido precedida de um longo processo de aumento do cérebro hominídeo. Assim, os diferentes modos de pensamento e expres-são simbólicos, por exemplo, aqueles originados da explosão cul-tural na Europa há cerca de 40 mil anos atrás (comunicação, arte, sistema de cálculo, expressão religiosa, etc.), como característica da ‘mente simbólica’, teriam sido precedidos por um desenvolvi-mento físico e anatômico gradual do cérebro aproximadamente um quarto de milhão de anos atrás, quando a taxa de crescimento do cérebro hominídeo começa a diminuir e tem origem a espécie moderna Homo sapiens. As técnicas primitivas de linguagem e comunicação simbólicas parecem ter seguido o curso da evolu-ção biológica quando a anatomia e o cérebro humanos estavam prontos e podiam sustentar a mente ou mentalidade e um modo de vida diferente, ou o que hoje chamamos cultura.

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Atividades propostas

1. Como nós podemos compreender que a idéia

de ‘potencial biológico’ não significa determinismo

da ‘natureza humana’ e a eliminação de livre-

arbítrio das nossas ações no mundo ?

2. E o que se pode entender como o papel

significativo dos instintos na constituição da

nossa ‘natureza humana’ ?

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Unidade VII

Condição biológica de vida, comportamento e natureza humana.

Ser incestuoso não parece corresponder primordial ou naturalmente a uma característica moral – ser incestuoso (ou não) é parte da nossa condição ou po-tencial biológico. Aqui talvez esteja patente que a existência de invariantes e potencial biológico não eliminam os diferentes modos de diversidade cultural, mas, ao contrário, podem muito bem acomodar a interpretação das práticas e comportamentos nos grupos socialmente organizados. Embora ter um compor-tamento incestuoso seja sempre uma prática possível, mas reprimido moral e socialmente entre diferentes culturas, ele não é senão um ‘subproduto’ da nossa condição de ser no mundo – o problema é como lidar com uma tendência na-tural ou instintiva da espécie, suas implicações morais e significado cultural em termos de comportamento. Mas por que, exatamente, preferimos a repressão moral ao comportamento incestuoso se, como característica, ser incestuoso é parte da nossa condição e potencial biológicos? A resposta parece estar na nossa própria história evolutiva, que mostra ser uma desvantagem biológica o desejo dessa prática porque ela tem um baixo grau de satisfação na realidade da média populacional da espécie e, portanto, não vale o custo da reprodução.

A repressão dos comportamentos incestuosos ou agressivos corresponde a um princípio natural ou moral ? Por analogia ao comportamento incestuoso, cuja natureza biológica primordial é desprovida de característica moral, igual-mente a agressividade não parece corresponder a uma suposta ação de instin-tos naturais aos quais precisamos impor um padrão de comportamento moral exterior. Porque se este for o caso, parece ser a moralidade o que nos torna de-sumanos em função de atribuir ao comportamento uma característica estranha à nossa condição de vida biológica – não é o que atribuímos a nós mesmos de fora da nossa condição de vida que nos torna humanos, mas somente aquilo que somos ou podemos ser nessa condição.

Assim, quanto à nossa condição biológica de vida, os instintos têm disposições na-turais específicas que atuam diretamente no comportamento do organismo. As situa-ções externas, que causam mal-estar ao organismo, são equilibradas por ação de me-canismos de regulação interna. Mecanismos instintivos de defesa do organismo têm a função de reprimir comportamentos de risco. Posteriormente, no uso e desenvolvimen-

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to da linguagem, a esses mecanismos físicos de defesa do organismo é associado um conteúdo simbólico. A exaustão muscular durante uma corrida a pé, por exemplo, causada por esforço físico excessivo, é resultado de uma descarga do cérebro que altera a circulação do sangue e impede a continuação do movimento (Lorenz, 1995, p. 204) – a extinção do movimento físico responde a um mecanismo interno de regulação sangüínea e que não é determinado por um estímulo externo. Essa é uma performance instintiva do organismo, realizada por um sistema complexo, que impede as situações de mal-estar e restabelece a situação de bem-estar. Nosso organismo desenvolveu evolutivamente a capacidade de representar e comunicar na lingua-gem o que acontece no interior do corpo – ao caso da repressão da exaustão muscular, por exemplo, pode corresponder na linguagem sentenças como ‘se eu não parar de correr, vou morrer !’.

Muitos comportamentos, cujo significado atribuímos à relação com o contexto externo (como o sentido da moralidade ou da agressividade, por exemplo), parecem ter evoluído biologicamente por meio da ação de instintos. Assim, quanto à idéia de uma ‘na-tureza humana’ singular no mundo, cuja importância parece re-lativa à imagem de nós mesmos, se, afinal, não somos tão impor-tantes quanto queremos ser, pelo menos não seremos frustrados por uma ilusão dualista e podemos morrer em paz. O que somos ou podemos ser, por um lado, está geneticamente determinado; no entanto, por outro lado, o que somos ou podemos ser é parte do potencial da nossa condição de vida e história evolutiva – poten-cial biológico não significa determinismo genético.

Se a origem e o desenvolvimento da vida no mundo têm um sentido ao longo da história evolutiva, este não parece ser determinista e hoje estamos longe de um compromisso com a concepção da ciência moderna de uma natureza-máquina cujo estado passado determina o presente e assim sucessivamente. Reconhecer, portanto, o sentido da história evolutiva na compreensão de ‘natureza humana’ parece ser crucial: o que éramos, o que somos e o que podemos ser. Se, por um lado, o patrimônio genético representa um imperativo interno na evolução das espécies, por outro, o meio representa uma tendência externa associada ao comportamento adaptativo (co-evolução). Com efeito, as estratégias adaptativas de comportamento sugerem que não estamos sujeitos a determinismo interno ou externo;

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há, ao contrário, um processo constante de co-evolução entre organismo e meio e nosso potencial biológico de vida.

Se considerarmos que princípios biológicos (por exemplo, hereditariedade genética) determinam estruturas invariantes (alimentação, defesa, reprodução, etc.), os comportamentos individual e coletivo parecem realizar um universo de valores na vida prática (economia, organização social, práticas sexuais, etc.). Mas aqui temos um problema a considerar: são princípios biológicos que regulam a ação e o comportamento humano ou são valores estabelecidos fora dessa condição por referência ao contexto social ? Porque, se considerarmos o universo dos valores na nossa vida social, a justificação dos comportamentos éticos só poderia ser explicada por referência às normas do dever ser, enquanto os processos biológicos de sustentação da vida teriam como objeto a descrição das formas e organização dos seres vivos.

Assim, tem sido um ponto de vista comum (acadêmico e popular) sustentar a oposição entre níveis de explicação normativo e descritivo dos comportamentos. Mas resultados empíricos têm mostrado que a oposição ou a distinção entre esses níveis de explicação não parecem suficientemente precisos. Desde o trabalho pioneiro do russo Luria na neurobiologia do século XX, sabe-se que as lesões ocorridas no lobo frontal alteram significativamente o comportamento humano e o sentido da compreensão de valores morais adquiridos social e culturalmente. Luria chamou a região lobo frontal o ‘órgão da civilização’ ou aquilo que podemos entender como o ‘centro’ da ética, mas não exatamente um centro em função de um conjunto hierarquizado e funcional de grupos neurais (ver imagem ao lado).

O neurocientista António Damásio, recentemente, ao estudar a relação entre a organização do cérebro e a afetividade, analisou sistematicamente um caso curioso (Damásio, 1998). Um homem chamado Phineas Gage, 25 anos, teve o crânio transpassado por uma barra de ferro, após a explosão de uma carga de dinamite, arremessada longe, coberta de sangue e miolos. Aproximadamente uma hora depois, Gage contava ao médico-cirurgião o que tinha acontecido. Embora Gage não tivesse tido seqüelas imediatas, progressivamente a lesão levou a uma alteração de ânimo no seu comportamento e ele passou a ter uma agressividade excessiva. No ponto de vista do estudo de Damásio, o caso Gage sugere que o cérebro é constituído por diversos ‘centros’ que cooperam entre si ao longo de vários níveis de organização na sustentação do comportamento. O comportamento agressivo de Gage mostrou ser resultado de uma recomposição das funções do cérebro – embora tenham sido preservadas as funções cognitivas, raciocínio e compreensão, o trauma levou a uma alteração nos padrões dos estados emocionais e discriminação de valores morais. Uma idéia fundamental nesse caso é que a organização funcional e a

Imagem 03 : ‘crânio de Gauss’.

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plasticidade das ‘arquiteturas neurais’ parecem mostrar sinais evidentes de limites entre as condições biológicas do comportamento e hábitos e costumes adquiridos social ou culturalmente.

Ser agressivo, como sugere o caso Gage, corresponde a um potencial da nossa condição biológica de vida humana. Se não tivéssemos essa condição ou se nossa história evolutiva tivesse sido diferente, muito provavelmente não teríamos a menor chance de ter uma gama potencial de comportamentos (agressivos ou não) e muito menos compreender e discriminar valores.

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Conclusão

Esta disciplina, organizada em três módulos, teve como objetivo mais amplo mostrar que a realização de diversos e distintos comportamentos e nossa capacidade de compreensão e discriminação de valores parecem mobilizar elementos internos e externos entre modificações internas no organismo e variações no meio ambiente. Quanto à nossa ‘natureza humana’, ou o que nos torna humanos, nos parece que só podemos compreender o significado de comportamentos agressivos, benevolentes, incestuosos e outros, em função de uma condição biológica, da história e de contextos específicos das nossas experiências no mundo – nada acima e além! Porque não precisamos ser ou querer ser importantes no mundo. É suficiente entender nossa condição de vida (entre outras possibilidades de experiência) em um mundo do qual somos unicamente um ponto de vista, não o centro, e cuja importância é relativa.

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Avaliação

Atividade final/grupo de discussão ou chats: Tentar compreender porque nossa condição de vida não torna a ‘natureza humana’ diferente, ou o centro do mundo, mas que, ao contrário, sua importância é relativa entre diferentes organismos vivos.

Atividade de avaliação da disciplina: Elaboração de texto-comentário de tópicos e temas das unidades (escolher um tema e apresentar um texto: 7 páginas no mínimo e espaço 1/2).

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Referências bibliográficas

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Arthur Araújo

Graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (1989), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1992) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). É professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (graduação e mestrado em filosofia) e atualmente está em trabalho de cooperação técnica com a Universidade Federal do Espírito Santo. Áreas de pesquisa e interesse: Filosofia da Mente e Filosofia da Biologia – mente-cérebro-representação, redes neurais (conexionismo), consciência/qualia, mente-biologia-evolução, darwinismo e etologia.

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