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Este livro surge com a preocu- pação de discutir a aprendizagem na sua integração com o trabalho pedagógico. A aprendizagem toma- da como uma necessidade imposta pela vida social mutante, o que a torna um desafio tanto para cada pessoa em particular, quanto, e principalmente, para as instituições, como a escola, que se justificam com este fim e com o trabalho pedagógico entendido nos aspectos que compõem o fazer do professor e seus elementos subjacentes e condicionantes. Assim, interessou trazer para discussão esse eixo pedagógico do ensinar e aprender, refletindo sobre seus pressupostos e desdobramentos e enfocando, também, experiências vivenciadas e seus resultados. Os autores escreveram para o livro capítulos refletindo o desenvol- vimento de suas pesquisas relacio- nadas aos processos de aprendiza- gem e ao trabalho pedagógico em áreas específicas do conhecimento, como matemática e alfabetização, ou discutindo aspectos de maior abrangência, relativos à aprendiza- gem em seus aspectos constitutivos como: a produção de sentido Aprendizagem e Trabalho Pedagógico Maria Carmen V. R. Tacca Organizadora Alínea EDITORA

aprendizagem e trabalho pedagógico

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Este livro surge com a preocu-pação de discutir a aprendizagem na sua integração com o trabalho pedagógico. A aprendizagem toma-da como uma necessidade imposta pela vida social mutante, o que a torna um desafio tanto para cada pessoa em particular, quanto, e principalmente, para as instituições, como a escola, que se justificam com este fim e com o trabalho pedagógico entendido nos aspectos que compõem o fazer do professor e seus elementos subjacentes e condicionantes. Assim, interessou trazer para discussão esse eixo pedagógico do ensinar e aprender, refletindo sobre seus pressupostos e desdobramentos e enfocando, também, experiências vivenciadas e seus resultados.

Os autores escreveram para o livro capítulos refletindo o desenvol-vimento de suas pesquisas relacio-nadas aos processos de aprendiza-gem e ao trabalho pedagógico em áreas específicas do conhecimento, como matemática e alfabetização, ou discutindo aspectos de maior abrangência, relativos à aprendiza-gem em seus aspectos constitutivos como: a produção de sentido

Aprendizagem e Trabalho Pedagógico

Mar ia C a r m e n V. R. T a c c a Organizadora

Alínea E D I T O R A

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2 O Sujeito que Aprende Desafios do desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica

Fernando L. González Rey

Introdução A aprendizagem é, sem dúvida, uma questão de caráter

interdisciplinar, sendo a psicologia uma das ciências que tem feito importantes contribuições à produção de representações teóricas nesse campo. As contribuições da psicologia têm tido muito a ver com as representações da mente dos autores que mais contribuíram nessa direção. Na aprendizagem, foram significativas teorias que negaram a mente, como o behaviorismo, que foi muito influente nesse campo, assim como as que enfatizaram o caráter operacional da mente, como a teoria de Piaget e a psicologia cognitiva.

A ênfase nos aspetos cognitivo-intelectuais da aprendizagem, a qual foi entendida mais como o resultado de capacidades intelectuais e dos processos de operação com sistemas de informação, deixou pouca margem para a compreensão dos aspetos subjetivos e sociais que são parte do processo de aprender. Isso não

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foi apenas uma questão teórica, mas também epistemológica, pois a epistemologia dominante nas ciências humanas, desde os finais do século XIX até a primeira metade do século XX, o positivismo, também defendeu uma visão instrumental do processo de construção do conhecimento, em que o sujeito produtor desse conhecimento não foi reconhecido na dimensão teórica de suas idéias, e, portanto, o aprender que a ciência implica foi considerado como o resultado da coleção de evidências por meio dos métodos empregados.

Neste capítulo, pretendemos apresentar como a aprendizagem tem uma dimensão subjetiva envolvida com a ação singular do sujeito que aprende, na qual participam, em forma de sentidos subjetivos, "recortes de vida" que representam as formas em que essa vida se configurou na dimensão subjetiva de cada pessoa. Por outra parte, tentaremos também, no curso do presente capítulo, apresentar a aprendizagem como processo de desenvolvimento, muito associado aos processos sociais da instituição escolar. O trabalho pedagógico tem muito a ver com a organização da sala de aula como espaço de diálogo, reflexão e construção, mesmo que essa concepção do espaço social da sala de aula tenha sido, até o presente, algo pouco trabalhado na educação e nas próprias ciências do homem.

A epistemologia e o aprender : as relações entre a produção do conhecimento nas diferentes atividades humanas

O fato de a psicologia ter dado pouca atenção aòs fundamentos epistemológicos dos diferentes sistemas de conhecimento produzidos nela, tem influenciado em algo que hoje chama muito a nossa atenção: o fato de não ter nunca considerado, como modelo de aprendizagem, a aprendizagem envolvida permanentemente na produção do conhecimento científico. No ensino escolar, ainda predomina uma visão de aprendizagem como a reprodução daquilo que se apresenta ao aluno: a aprendizagem é reprodução e não criação.

A representação descritivo-reprodutiva da aprendizagem que norteia as práticas associadas ao ensino na instituição escolar é responsável por uma série de atributos que vão se assumindo no processo de ensino como "princípios" do ensino, os quais, na maior

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partes das vezes, são inconscientemente assumidos por professores e aluno. Assim, a aprendizagem no cenário escolar está orientada mais pela transmissão de conhecimentos verdadeiros, do que pela discussão e reflexão dos conteúdos apresentados: aos alunos lhes é transmitido um mundo feito, não um mundo em processo de construção e representação, o que desmotiva a curiosidade e o interesse deles. Nesse processo, desestima-se o pensamento em prol da reprodução e da memória. Existe um conhecimento "certo" que já está pronto e que o aluno tem que saber, mas nada existe de novo que possa ser acrescentado por ele.

Do anterior, desprende-se três grandes problemas: a representação de objetividade que se associa ao conhecimento, a exclusão do erro como momento da produção de conhecimento e a idéia do conhecimento como algo terminado. Aprende-se aquilo que já está resolvido e o conhecimento converte-se assim em um referente verdadeiro que deve ser assimilado. A dúvida, as hipóteses, a reflexão crítica são excluídas do cenário da aprendizagem.

O termo aprendizagem é reduzido à reprodução de um saber dado, pelo que a aprendizagem se dissocia do desenvolvimento humano e passa a ser representada apenas em uma dimensão cognitivo-reprodutiva. As estruturas que, segundo Piaget, estão na sua base são desconsideradas pelo ensino institucionalizado da escola.

Quais são as considerações epistemológicas que poderiam acompanhar uma revisão dessa concepção mais tradicional da aprendizagem? Em primeiro lugar, acho muito importante superar a idéia do conhecimento como algo despersonalizado, a idéia de objetividade que se apóia na separação do objeto em relação à pessoa, sej a esta o aluno, o cientista ou qualquer outra pessoa. O grande físico Heisenberg (2000, p. 104) escreveu: ...a idéia de objetos materiais completamente independentes do modo em que os observamos mostrou não ser mais do que uma extrapolação abstrata, que não corresponde a algo real. Todo conhecimento precisa de uma representação geral do que se aprende, que oriente o posicionamento da pessoa ante ao que está aprendendo. Em lugar disso, a aprendizagem institucionalizada cobra com grande freqüência a omissão da pessoa do aluno em relação ao que aprende.

Em segundo lugar, em uma perspectiva epistemológica, acho importante enfatizar a importância da reflexão e da produção de idéias como momento central da aprendizagem em seus diferentes

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níveis. A criança, quando aprende as palavras, deve ser colocada em situações de inventar palavras, de imaginar palavras em diferentes contextos, de trazer fantasias associadas às palavras, de construir famílias de palavras. Os números devem ser compreendidos, não repetidos, para o que podem ser apresentados exercícios muito variados, que estimulem a imaginação e a atividade reflexiva da criança. Um grande erro que tem derivado da relação entre aprendizagem e estrutura, o que é defendido por Piaget, é considerar que a reflexão só pode ser desenvolvida a partir do estágio lógico-formal. A reflexão implica uma orientação a pensar.

Muito cedo, quando a criança está aprendendo a multiplicar por meio da memória, pode ser estimulada a raciocinar suas operações com os números, o que leva ao envolvimento da reflexão. A orientação à produção, à definição de alternativas e caminhos diferentes sobre o que se aprende, a estimulação à formulação de hipótese e de suposições é um aspecto essencial, que o desenvolvimento dos modelos de ciência tem aportado e que as teorias de aprendizagem não têm incorporado. O sujeito só vai desenvolver-se na tensão de sua produção singular ante a possibilidade de alimentar com sua experiência o que aprende e de alimentar o seu mundo com aquilo que aprende.

Outra questão decisiva que a reflexão epistemológica sobre as ciências nos traz é a necessidade de entender as questões dentro de sistemas, dentro de conjuntos mais abrangentes, o que pressupõe a formulação de representações abertas capazes de se manter em desenvolvimento em relação a tudo aquilo que está sendo aprendido. As habilidades e sistemas de operações possíveis de uma aprendizagem se apoiam em uma representação que as alimenta e em relação à qual se organizam as diversas representações parciais que se produzem no processo de aprender. A idéia não é a expressão isolada de um grande talento, senão uma expressão particular de uma representação teórica em desenvolvimento.

P. Bourdieu (2003, p. 32) escreveu:

Construir o objeto supõe também que se tenha, perante os fatos, uma postura ativa e sistemática. Para romper com a passividade empirista, que não faz senão ratificar as pré-construções do senso comum, não se trata de propor grandes construções teóricas vazias, mas sim de abordar um caso empírico com a intenção de construir um

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modelo - que não tem necessidade de se revestir de uma forma matemática ou formalizada para ser rigoroso -; de ligar os dados pertinentes de tal modo que eles funcionem como um programa de pesquisa que põe questões sistemáticas, apropriadas a receber respostas sistemáticas; em resumo trata-se de construir um sistema coerente de relações, que deve ser posto a prova como tal. Trata-se de interrogar sistematicamente o caso particular constituído em caso particular do possível...

Essa idéia de modelo que nos apresenta P. Bourdieu, em que, além das relações que o autor nos fala, eu colocaria a produção permanente de idéias que se articulam ao redor desse núcleo representado pelo modelo e que por sua vez se estimulam por esse núcleo, representa, na minha visão, um aspeto central da produção do conhecimento dentro de uma perspetiva qualitativa de caráter construtivo-interpretativo (González Rey, 2005).

Esse modelo ao qual refere-se o autor é a representação que deve acompanhar a produção de qualquer tipo de conhecimento, para evitar que ele se converta em um conjunto de elementos desconexos que, ao não ter nenhum sistema como referente de organização e de enriquecimento da continuidade intelectual do sujeito que aprende, termina se fixando em rotinas rígidas de reprodução ou sendo esquecido.

A ciência representa um sistema de aprendizagem em contínua tensão e desenvolvimento e, nesse sentido, é um modelo de aprender que deve alimentar as nossas representações teóricas sobre a aprendizagem. Porém, o medo de enfrentar a natureza humana e complexa da aprendizagem, apoiado em fortes tradições institucionalizadas de ensino que, por sua vez, se apoiam em um imaginário instrumentalista e despersonalizado de ciência, levanta uma verdadeira barreira entre os processos de construção científica e os de aprendizagem.

Sentido subjetivo e aprendizagem Recuperar o sujeito que aprende implica integrar a

subjetividade como aspeto importante desse processo, pois o sujeito aprende como sistema e não só como intelecto. O sentido subjetivo,

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na forma em que temos desenvolvido essa categoria, representa um sistema simbólico-emocional em constante desenvolvimento, no qual cada um desses aspectos se evoca de forma recíproca, sem que um seja causa do outro, provocando constantes e imprevisíveis desdobramentos que levam a novas configurações de sentido subjetivo (González Rey, 1997, 1999, 2001, 2004). Os sentidos subjetivos constituem verdadeiros sistemas motivacionais que -diferente das teorias mais tradicionais da motivação - permitem-nos representar o envolvimento afetivo do sujeito em uma atividade, não apenas pelo seu vínculo concreto nela, mas como produção de sentidos que implica em uma configuração única, sentidos subjetivos, emoções e processos simbólicos resultantes de subjetivação que integram aspetos da história individual, como os diferentes momentos atuais da vida de cada sujeito concreto.

As emoções que o sujeito vai desenvolver no processo de aprendizagem estão associadas não apenas com o que ele vivência como resultado das experiências implicadas no aprender, mas emoções que têm sua origem em sentidos subjetivos muito diferentes que trazem ao momento atual do aprender momentos de subjetivação produzidos em outros espaços e momentos da vida. Daí a importância de considerar o sujeito que aprende na complexidade de sua organização subjetiva, pois os sentidos subjetivos que vão se desenvolvendo na aprendizagem são inseparáveis da complexidade da subjetividade do sujeito.

A motivação e a emoção sempre foram consideradas como externas, extrínsecas ao processo de aprender, o que gerou uma dicotomia cognição-afeto que alimentou uma idéia de motivo como unidade afetiva direcionada por um conteúdo psicológico concreto, proliferando, assim, taxonomias descritivas de motivos como unidades quantitativas portadoras de um contendido concreto e suscetíveis de mensuração, como por exemplo , motivação pelo estudo, pelo esporte, necessidade de reconhecimento , auto-estima etc. Esses motivos eram analisados como unidades isoladas que atuavam influenciando as diferentes atividades humanas. Nesse tipo de definição são compreendidos como caraterísticas gerais da pessoa que atuam como elemento motivador externo nas diferentes atividades desenvolvidas pela pessoa.

Essa representação teórica do motivo, longe de estimular representações complexas da mente, levou ao desenvolvimento de

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definições operacionais sensíveis a uma aproximação metodológica estatístico-correlacional. Os sentidos subjetivos, pelo contrário, são expressões de uma teia simbólico-emocional na qual as emoções, sentidos e processos simbólicos de procedência muito diferentes integram-se na definição das diversas configurações subjetivas que acompanham os diferentes tipos de atividades humanas. O conceito de sentido subjetivo, de fato, começa a aparecer na pesquisa psicológica no Brasil na base de uma cultura que enfatiza o diverso na constituição de formas concretas de atividade, não reduzindo a construção dos problemas psicológicos estudados a operações concretas circunscritas pelo seu caráter à atividade estudada (Scoz, 2004; Gomes, 2005; Prandini, 2005, entre outros).

O sentido subjetivo não se contrapõe ao aspeto operacional da aprendizagem, senão que acrescenta uma qualidade da aprendizagem que não tinha sido considerada como intrínseca ao aprender. Assim, Piaget, por exemplo, expressou-se da seguinte forma em relação aos aspectos afetivos da aprendizagem em sua conversação com J. C. Bringuier (1978, original em francês 1977):

J. Cl. B - E no campo afetivo, não há fatos? Piaget - Este problema não me interessa como científico, porque não é um problema do conhecimento, que é de meu interesse especial, e depois porque todas as teorias que se tem feito sobre a afetividade, me parecem extremamente provisórias, aguardando que os fisiologistas nos dêem explicações endocrinológicas precisas... ].CI. B - Mas como pode alguém se ocupar de um indivíduo, de uma criança, nesta ocorrência, somente do lado de sua inteligência, sem se ocupar de sua personalidade afetiva? Um pode viver sem o outro? Piaget - É inteiramente evidente que, para que a inteligência funcione, é preciso um motor, que é o afetivo. Jamais se procurará resolver um problema se ele não lhe interessa. O interesse, a motivação afetiva, é o móvel de tudo (p. 71 -72).

Pode-se observar como Piaget reconhece a importância do afetivo, mas muito mais como o combustível da ação, como o detonador da ação, mas não como parte de um sistema mais complexo que vai envolver a ação e sua qualidade. Isso fica bem claro um pouco mais adiante na entrevista quando Piaget expressa:

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É a energética, certamente. Tome apenas, por exemplo, duas crianças, em relação às lições de aritmética. Uma que gosta de matemática e progride; a outra que tem a impressão de não compreendê-la e que tem sentimentos de inferioridade e todos os complexos bem conhecidos nas lições de matemática, nos fracos em matemática. O primeiro irá mais rápido; o segundo, bem mais lentamente. Mas para ambos, dois mais dois farão quatro. Se o problema que se estuda é a construção das estruturas, a afetividade, bem entendida, é essencial como motor, mas não constitui explicação das estruturas (p. 72).

Uma coisa é a estrutura que permite a operação sobre a qual se deve aprofundar na pesquisa psicológica atual, mesmo considerando as importantes contribuições de Piaget nesse campo, e outra coisa é como a criança usa essa operação na aprendizagem para a produção de novas idéias, operações e problemas. O sistema dentro do qual funciona a operação não é apenas um sistema lógico-cognitivo, mas um sistema de produção de sentido subjetivo que é parte essencial da operação intelectual complexa de produção de conhecimento, da aprendizagem de novos sistemas de ação intelectual, no que uma operação concreta é apenas uma ferramenta, mas não a condição que assegura a produção de um sistema de conhecimento.

Tem uma criança que, uma vez que aprende a operação de dois mais dois, consegue fixá-la e é capaz de atuar com ela na soma dos números, mas tem outra que relaciona dois mais dois com dois por dois e começa a pensar em opções de pensamento que lhe conduzem a conhecimentos inacessíveis para a primeira criança. Essa operação de representação de uma campo numérico, de relacionar operações, de representar novos problemas e de exercer a fantasia em relação ao aprendido será parte inseparável de um aprendido qualitativamente diferente, no qual a operação aprendida sobre a base de uma estrutura se integra a um novo sistema em que o intelecto é inseparável de uma produção de sentido subjetivo que cria, no nível da aprendizagem, algo semelhante ao que Bourdieu (2003) chamou de modelo teórico. Os modelos que relacionam conhecimentos, que se alimentam de uma atividade reflexiva que compromete a imaginação da pessoa, são produções subjetivas

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muito mais complexas que as simples operações associadas ao funcionamento do tipo de estruturas apresentadas por Piaget.

No fundo, as idéias defendidas por Piaget em relação ao lugar do afetivo na construção do conhecimento são uma expressão coerente de sua representação mais geral da mente humana, a qual também fica muito clara quando ele afirma:

... mas no estudo dos sentimentos, quando você encontra estruturas, são estruturas de conhecimento. Nos sentimentos de afeição mútua, por exemplo, há um elemento de compreensão, há um elemento de percepção. Tudo isto é cognitivo. Nas condutas, você tem - e eu creio que todos os autores estão de acordo a este respeito - uma estrutura de conduta e uma energética da conduta. Há o motor e há o mecanismo (p. 72).

O afetivo, para Piaget, não faz parte de nenhuma qualidade da aprendizagem e da produção do conhecimento, é apenas a energética do processo, o que implica uma visão totalmente fisicalista e reducionista da aprendizagem. Os sentimentos a que Piaget se refere são verdadeiras produções de sentido subjetivo em que a compreensão e a percepção são operações de uma configuração subjetiva que define as possibilidades e limites dessas operações cognitivas. A organização de uma expressão moral não se garante apenas pela compreensão e o juízo. As emoções que se integram no espaço simbólico de um valor moral são decisivas no sentido subjetivo que ele terá para o sujeito e constituem um aspeto central da capacidade da pessoa para se conduzir de acordo com esse valor, para desenvolver posições carregadas desse sentido subjetivo.

Considero que a categoria sentido subjetivo de fato abre uma possibilidade para integrar na significação da aprendizagem aspetos que têm sido totalmente ignorados até hoje, o que leva não apenas a uma adição, mas a uma representação diferente da aprendizagem com importantes conseqüências para a prática profissional nos diferentes campos da atividade humana. Aprender é toda uma produção subjetiva cuja qualidade não está definida apenas pelas operações lógicas que estão na base desse processo.

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O sujeito que aprende e suas implicações para repensar as práticas pedagógicas escolares

Enfatizar o conceito de sujeito que aprende leva-nos a destacar aspetos subjetivos da aprendizagem até hoje muito pouco considerados nas práticas pedagógicas. Quais são esses aspetos? Em primeiro lugar, o caráter singular do processo de aprender, o que vai implicar romper definitivamente com a representação do ensino como exposição do mestre que estimula uma posição passivo-reprodutiva em relação com o aprendido. Nessa posição passivo-reprodutiva o aluno, como Piaget afirmava em citação anterior, se for aluno de psicologia, vai saber definir o complexo de Édipo, mas não vai conseguir refletir sobre a significação dessa construção freudiana para o desenvolvimento de outros temas da psicologia. Mesmo compreendendo-a, possivelmente não poderá articular a relação necessária dessa categoria com a representação teórica integral de Freud, nem ter uma crítica sobre o pensamento desse autor. A estrutura, nos termos de Piaget, vai nos ajudar a explicar a operação concreta, mas não vai explicar o sistema de relações articulados com as idéias do sujeito que aprende, as quais são inseparáveis de seus sentidos subjetivos, como o foi para Freud a sua própria obra.

O caráter singular da aprendizagem vai nos obrigar a pensar em nossas práticas pedagógicas sobre os aspetos que propiciam o posicionamento do aluno como sujeito da aprendizagem, o que necessariamente vai implicar o aluno com suas experiências e idéias no espaço do aprender. Isso é conseguido não apenas com os aspetos técnicos envolvidos na exposição de um conteúdo, mas com o desenvolvimento de relações que facilitam o posicionamento ativo e reflexivo dos alunos, o que nos leva a uma outra conseqüência ao considerar o sujeito que aprende nas práticas pedagógicas -: a compreensão da aprendizagem como uma prática dialógica. A criação de um sistema que recupere a posição criativa do aluno no processo de aprendizagem tem sido elaborada por Mitjáns Martínez (1997).

A exposição como centro de nossas práticas pedagógicas influencia fortemente um posicionamento passivo do aluno que, no intuito de compreender, não reflete nem questiona o que ouve. O posicionamento reprodutivo é cumulativo, o que dificulta as sínteses

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e recortes necessários que uma aprendizagem reflexiva implica. O aluno deve ter tempo para elaborar as questões, levantar as suas perguntas, avançar no caminho de suas conclusões, até porque essa é a única forma de compromisso pessoal com o que aprende. As emoções que permitem a emergência dos sentidos subjetivos só aparecerão com o compromisso pessoal, com o interesse em se posicionar ante o aprendido e defender e avançar por meio de posições próprias. Não existirá sentido subjetivo em uma atividade despersonalizada; portanto, o maior inimigo da aparição dos sentidos subjetivos na aprendizagem será a aprendizagem padronizada, centrada em exigências externas que impedem o aluno de tornar-se sujeito de seu percurso na aprendizagem.

A conversação, o diálogo em sala de aula, estimula o envolvimento do aluno, define um processo de aprendizagem-norteado pela reflexão. O aluno vai entrando em um caminho que o obrigará a assumir posições, processo facilitador da emocionalidade na atividade de aprender. O caráter dialógico das práticas pedagógicas não se relaciona só com a exposição e o trabalho em sala de aula, mas com a própria avaliação do aluno. A avaliação não pode se constituir em um processo frio e despersonalizado, pois ela tem que estimular a reflexão do aluno, a compreensão de aspetos que ainda não domina.

No meu trabalho de ensino universitário, algo que está dando muito resultado é o desenvolvimento de seminários em duas sessões de trabalho. Na primeira, os alunos debatem um tema a partir da leitura de textos indicados. Essa atividade é organizada por meio de questões que uma equipe de alunos levanta sobre as leituras feitas. A aula é dividida em diferentes equipes e uma delas é informada de que organizará a discussão no mesmo dia em que esta vai acontecer. Essa prática obriga não apenas a leitura individual dos temas por parte dos alunos, mas a uma organização prévia do material pelas equipes. No segundo momento do seminário, realizado na aula seguinte, são dadas aos alunos duas ou três perguntas as quais eles devem responder por escrito, e, na segunda parte, faz-se uma discussão das respostas e se conclui o tema do seminário.

Essa forma de organização do seminário facilita o entrosamento da turma como grupo, o que contribui para espaços de diálogo entre os próprios alunos estimulando-os para a reflexão e a leitura. A parte escrita permite aos alunos, de forma muito particular, sentirem as dificuldades que têm na compreensão do assunto tratado

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e leva-os a uma reflexão e a um aprofundamento das leituras para resolver o que não conseguiram na escrita. Esse processo pode ser ajudado pelo professor em conversações individuais com alunos ou com pequenos grupos que possam apresentar dúvidas. Esse processo, além de estimular a reflexão, favorece um compromisso do aluno com sua própria aprendizagem. Esse acompanhamento, centrado na reflexão e no aprofundamento na compreensão dos temas, ajuda cada aluno encontrar a si mesmo no roteiro de produção de seu próprio conhecimento e gera uma dinâmica de desafios constantes à reflexão que contribui para o envolvimento emocional do aluno com os conteúdos que aprende. Esse caminho representa, também, uma forma ótima por parte do professor de combinar seu trabalho coletivo com a turma, com um trabalho diferenciado com os alunos, caso tenham necessidade, o que concretiza o conceito de zona de desenvolvimento proximal de Vygotski no ensino universitário.

A avaliação, vista nessa perspetiva, cobre as funções que lhe atribuímos no nosso livro Personalidad, comunicación y desarrollo (1995), que eram: avaliar, estimular, retroalimentar e favorecer o vínculo professor-aluno. Hoje enfatizaríamos também o desenvolvimento da capacidade crítica e reflexiva, que vai se desenvolver em decorrência do desenvolvimento dos sentidos subjetivos do aluno em relação ao que aprende.

O aluno torna-se sujeito de sua aprendizagem quando é capaz de desenvolver um roteiro diferenciado em relação ao que aprende e a se posicionar crítica e reflexivamente em relação à aprendizagem. Esse posicionamento só será possível na medida em que ele é capaz de gerar sentidos subjetivos em relação ao que aprende. É nesse processo que vão aparecer verdadeiros modelos construtivos sobre o aprendido que facilitarão operações e construções próprias e originais sobre a base do aprendido.

A sala de aula tem que se converter em um espaço de diálogo e reflexão. Para isso, podem ser empregadas opções muito diversas, como a discussão em pequenos grupos quando se trata de uma turma muito numerosa, a apresentação de painéis e mesas redondas seguidas de perguntas escritas ou orais aos apresentadores sobre o tema tratado, apresentação de filmes ou trechos de filmes com seu correspondente debate etc. Os professores devem estar conscientes que, sem a conquista do interesse do aluno, a aprendizagem nunca poderá transcender seu caráter passivo-reprodutivo.

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A condição de sujeito no processo de aprender leva à organização própria e diferenciada do material aprendido, o que implica erros nesse percurso, os quais não podem ser desestimados. Uma conclusão errônea ou equivocada a que o aluno possa chegar, mas que mostra uma boa fundamentação argumentativa e evidencia leitura e trabalho por parte dele sobre o problema, deve ser adequadamente valorizada. O medo do erro é um dos piores inimigos da educação atual: o aluno fica engessado em fórmulas rotineiras para evitar errar e termina sendo incapaz de produzir pensamento sobre o que aprende.

Uma análise epistemológica das grandes figuras do pensamento humano mostra-nos como suas teorias eram sistemas vivos que se articulavam em torno de uma produção permanente de pensamento próprio, o que tornou as teorias, com grande freqüência, verdadeiros processos contraditórios, geradores de inteligibilidade de forma progressiva sobre um tema particular. Nenhuma teoria representou um conjunto de princípios rígidos e a-históricos. Os modelos individuais de conhecimento têm que ser, nesse aspecto, parecidos com as teorias, constituindo-se em verdadeiros processos norteadores de novos conhecimentos e elaborações sobre nossas experiências e práticas, em qualquer campo de atuação.

A aprendizagem, em seus diferentes níveis, deve procurar a atividade criativa do aluno. O aluno deve passar da compreensão de um tema à elaboração de novos conhecimentos, a partir do modelo teórico que se desenvolve como unidade subjetiva do aprendido. Sem modelo, a aprendizagem não passa de ser uma soma de "peças soltas", que só podem ser usadas de forma reprodutiva perante situações previamente identificadas com essas operações .

O processo de tornar-se sujeito da aprendizagem vai envolver o professor como facilitador, não como "transmissor" do conhecimento. Como salienta Mitjáns Martinez (1997, p. 160): Assegurar, mediante as ações e as reflexões do professor, o envolvimento do aluno em seu próprio processo de aprendizagem. O aluno, e não o professor, é quem é o sujeito do processo. O professor é o facilitador da aprendizagem.

O fato de tornar-se sujeito do processo de aprendizagem implica leitura. A produção intelectual nova alimenta-se não só de um posicionamento diferente do aluno em relação com o que aprende e de sua capacidade para participar de forma reflexiva e criativa na aprendizagem, mas também do conhecimento

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permanente do novo material que ele vai usar em novas produções de pensamento. O pensamento novo precisa alimentar-se de novas e inúmeras fontes de informação, as quais ajudarão a aparição e precisão de novas idéias do aluno.

Na literatura, a partir do próprio referencial construtivista, enfatiza-se a necessidade dos conhecimentos prévios como condição para a assimilação de novos conhecimentos, o que, sem dúvida, é importante no processo de aprender. Porém, os momentos de ruptura criativa na aprendizagem são momentos de produção de novas estruturas, que vão além das anteriores e, sem ruptura com aquelas, não se consegue produzir em um nível diferente. A relação entre continuidade e ruptura na aprendizagem é um tema importante a ser aprofundado em pesquisas futuras.

A dimensão do sujeito que aprende, em sua riqueza e diversidade singular e na multiplicidade dos processos subjetivos envolvidos nas configurações subjetivas de aprender, é um dos principais desafios no desenvolvimento da teoria da aprendizagem em uma perspectiva da subjetividade.

Algumas reflexões finais O tema da aprendizagem durante muito tempo ficou ancorado

nas teorias pioneiras que, de uma ou outra, o desenvolveram; porém, cada uma dessas contribuições, por sua vez, apoiaram-se em concepções gerais do homem e da psique que limitaram a incorporação daqueles aspectos diferentes às concepções mais gerais que estavam em sua base. O presente trabalho, alimentando-se de outra representação de homem e de psique, traz novos aspectos da aprendizagem que, sem negar os aspectos desse complexo processo já desenvolvidos por outras teorias, permitem incorporar novos elementos qualitativos que trazem como resultado uma representação qualitativa diferente.

A dimensão de sentido subjetivo, que marca de forma particular o caráter subjetivo da aprendizagem, sem dúvida, confronta-se com as visões objetivistas derivadas da epistemologia positivista da ciência, as quais não apenas influenciaram o campo da ciência, mas todas as representações associadas com a construção do conhecimento, entre elas, aquelas relacionadas com a aprendizagem.

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O desinteresse e a subestimação pela teoria marcaram o posicionamento dos cientistas e também as representações mais gerais da produção do conhecimento, compreendendo-o como conhecimento de algo e não como produção do conhecido. Assim, enfatizou-se o conhecimento como a aprendizagem de operações pontuais em relação a um objeto concreto, definido. Mas, quando a ciência começou a encarregar-se de temas complexos que não se concretizavam em objetos, as produções começaram a se tornar mais complicadas. A necessidade de modelos teóricos de inteligibilidade que não mantivessem uma relação direita e imediata com nenhuma representação objetiva passou a nortear as rupturas epistemológicas que aconteceram na ciência, na filosofia e na sociologia das ciências ao longo do século XX.

Essas mudanças e desafios epistemológicos que tiveram um forte impacto na metodologia de todas as ciências, tanto naturais como antropossociais, até hoje não têm tido um impacto particular no âmbito da aprendizagem. Considerar a importância dos modelos teóricos como sistemas de relações e representações que expressam sua unidade em núcleos de pensamento pessoal, configurados sobre o aprendido, implica incorporar dimensões subjetivas à representação da aprendizagem, as quais até hoje ficaram excluídas desse campo.

Na elaboração deste capítulo, tentei trazer alguns aspetos necessários a uma nova visão de aprendizagem, relacionados com o reconhecimento da aprendizagem como uma função construtiva que implica em sua integridade o sujeito que aprende. À luz dessa representação de aprendizagem, devem aparecer, com uma freqüência cada vez maior na literatura sobre o tema, pesquisas orientadas à aprendizagem em sujeitos adultos, em um nível superior, assim como pesquisas que considerem o aspecto criativo do aprender, temas que não encontraram subsídio nas teorias dominantes do cenário da aprendizagem até hoje.

O grande desafio é encontrar aspetos comuns entre essa aprendizagem adulta criativa, muito mais orientada à produção de modelos teóricos inseparáveis da produção de idéias, e a aprendizagem infantil que, em nosso critério, mesmo quando não têm o mesmo grau de abstração, alimentam-se da fantasia e da imaginação, aspetos estes que alimentam o sentido do aprender e a qualidade intelectual na aprendizagem infantil.

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3 Estratégias Pedagógicas Conceituação e desdobramentos com o foco nas relações professor-aluno

Maria Carmen V. fí. Tacca

Quando o professor planeja suas aulas, ou pensa na situação ensino-aprendizagem que vai empreender, ensina-nos a didática, que ele deve relacionar objetivos de ensino, conteúdos e estratégias pedagógicas que possibilitem o envolvimento dos alunos em atividades que os levem a apreender os conteúdos do currículo. Todo planejamento de ensino giraria, assim, ao redor desses três componentes. Os objetivos de ensino seriam os orientadores da escolha dos conteúdos e dos procedimentos pedagógicos, o que permitiria a eficiência e efetividade do ensino. Seria de se esperar, portanto, que essa trilogia, em suas diferentes possibilidades de composição, explicitadas nos planejamentos, fosse suficiente para a boa prática pedagógica, o que seria evidenciado na produção em sala de aula. No entanto, sabemos nós que é justamente pelo não funcionamento do modelo, ou pelo fato de a orquestração soar desafinada, que estamos todos a refletir sobre o que poderia interferir e

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impedir que cheguem a um bom termo os processos de ensino-aprendizagem.

Em relação aos objetivos, estamos a pensar que, embora, muitas vezes, eles estejam muito bem explicitados e tecnicamente bem formulados, ficam comprometidos no desenrolar da situação pedagógica, na medida em que giram em torno dos conteúdos apenas, pois os sujeitos do processo nem sempre são devidamente considerados. Assim sendo, muitos outros aspectos que se fazem presentes de forma implícita na situação acabam dando a cor e o tom dos processos de aprendizagem. Estamos querendo considerar que, apesar de existir uma disposição dos professores em orientar o processo para um determinado lado, ou para o lado para o qual os objetivos foram definidos, os acontecimentos acabam levando para outra direção, às vezes até indesejada, ou perdendo-se, o que não leva a lugar nenhum.

Existe também um discurso pedagógico, muito difundido, que considera que as falhas podem ser explicadas pelas inadequações dos métodos de ensino e, assim, novos procedimentos ou técnicas pedagógicas precisariam ser utilizados de acordo com os diferentes conteúdos e contextos. Dessa forma, estaria no método e na técnica apropriada a solução para os desacertos pedagógicos. Embora seja um ponto muito importante a ser considerado, duvidamos que novos métodos criados e repassados aos professores dariam solução aos problemas que aparecem na sala de aula. Ainda, a inserção no contexto escolar como observador nos distancia das explicações que propõem que os desacertos da prática pedagógica estariam relacionados às escolhas e aplicações de procedimentos metodológicos, o que nos incita a outros questionamentos.

A nossa preocupação permanente com o fracasso escolar e muitas discussões sobre seus mecanismos de permanência leva-nos a compartilhar com aqueles que vêem nas interações entre professores e alunos o ângulo de estudo que, com seus desdobramentos, poderia trazer novas contribuições. Em nosso último estudo (Tacca, 2000), estivemos enfocando dois professores e a forma de eles orientarem os processos de aprendizagem de seus alunos, o que nos indicou a conclusão de que o cenário educativo precisava ser compreendido a partir das relações sociais estabelecidas. Pudemos também concluir que essas relações repousam em concepções, crenças, histórias de vida e outros aspectos emergentes no processo relacionai, que geram

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as escolhas e opções a serem, necessariamente, feitas. Por exemplo, as concepções do professor sobre educação, sobre quem são e como pensam os alunos e quais suas possibilidades é sem dúvida um grande balizador da forma como as relações são constituídas com eles e de como e por que objetivos, conteúdos e métodos são selecionados. Compreender isso ajuda-nos a tecer outras explicações, pois o eixo do processo ensino-aprendizagem passa a ser pensado a partir de significações e entrelaçamentos que o professor faz entre o seu conhecimento sobre o aluno, sobre si mesmo e sobre o próprio conhecimento a ser explorado, incluindo também o contexto vivido por ele.

Foi com o foco nesses entrelaçamentos que passamos a focalizar e analisar as estratégias pedagógicas de professoras do ensino fundamental, procurando explicitar suas implicações. Explorando como as professoras propunham e desenvolviam atividades e como eram constituídas as relações sociais na sala de aula é que fomos capazes de compreender muitas de suas concepções e, assim, chegar ao tipo de desenvolvimento que possibilitavam aos seus alunos. Dessa forma, olhar as estratégias pedagógicas possibilitou alcançar o propósito e tendências no seu uso e, ainda, explorando os diálogo estabelecidos, buscou-se compreender a direção dos processos de significação da aprendizagem.

Estratégias pedagógicas: conceituação As estratégias pedagógicas aparecem como capítulos nos

livros didáticos e são entendidas como métodos e técnicas que apoiam a transmissão de conhecimento. Para tanto, devem ser variadas colocando os alunos em diferentes situações, integrando-os, motivando-os e incentivando-os para a participação ativa na sala de aula, dinamizando a situação pedagógica (Mazetto, 1992). Abreu e Mazetto (1990, p. 50) trazem a seguinte conceituação: meios que o professor utiliza na sala de aula para facilitar a aprendizagem dos alunos, ou seja, para conduzi-los em direção aos objetivos daquela aula, daquele conjunto de aulas ou daquele curso.

Nessa perspectiva, as estratégias têm sido entendidas como o conjunto de atividades ou diferentes passos organizados para o desenvolvimento de determinado conteúdo curricular e dos quais se

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ocupam professor e alunos durante a aula. São recursos externos que lança mão o professor para manter o aluno ativo e, assim, motivado para aprender. Uma estratégia será tanto melhor quanto mais novidade trouxer, despertar e manter, no aluno, a vontade de aprender.

O nosso argumento, no entanto, encaminha-se na direção de trazer outro enfoque na compreensão do conceito de estratégia pedagógica. Em nossa proposta, estamos entendendo as estratégias pedagógicas acopladas, enraizadas e nitidamente implicadas com as relações sociais estabelecidas. Nesse sentido, elas seriam recursos relacionais que orientam o professor na criação de canais dialógicos, tendo em vista adentrar o pensamento do aluno, suas emoções, conhecendo as interligações impostas pela unidade cognição-afeto. Nesse sentido, seriam recursos, principalmente pessoais, que implicam captar o outro, dispor-se a pensar com o outro para fazer gerar as significações da aprendizagem. O compartilhamento do pensar implicando o alcance de novos entrelaçamentos e conclusões do objeto de conhecimento, tanto por parte do professor como do aluno, exige uma disponibilidade constante de um e de outro. Essa conceituação está intimamente coordenada com aquilo que Vygotsky (1991) propõe no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. O real entendimento desse conceito ajuda a diferenciar orientações no uso do termo "estratégias pedagógicas". A estratégia pedagógica não pode ser simplesmente um recurso externo, algo que movimenta o aluno em direção ao conhecimento. Em uma outra perspectiva, ela se orienta para a relação social que passa a ser uma condição para a aprendizagem, pois só ela dá possibilidade de conhecer o pensar do outro e interferir nele. Nesse caso, a prioridade na atuação pedagógica estará nas possibilidades do desenvolvimento do pensamento, e para isso há que se ter muita perspicácia e criatividade. A idéia é a de que a estratégia pedagógica esteja orientada para o sujeito que aprende e não para o conteúdo a ser aprendido. Assim sendo, fica diminuído o valor do conteúdo, pois, ao se operar mentalmente com ele, a dúvida ou o certo e errado passa a ser visto como inerente ao processo de constituição do pensamento de um sujeito que aprende.

Nesse caso, ao receber uma resposta do aluno, o professor vai dialogar com ele a fim de compreender o processo de significação percorrido e alcançar, se for o caso, os momentos em que ocorreram equívocos, o que lhe esclarecerá sobre os novos apoios para reflexão

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que deve dar ao aluno, para que ele retome e reelabore sua aprendizagem. Nessa compreensão, fica clara a argumentação de que os conteúdos deveriam ser os meios e não o fim da aprendizagem.

Somente quando a estratégia pedagógica enfoca o pensamento do aluno que se sustenta em suas emoções, ela pode criar zonas de possibilidades de novas aprendizagens. Estratégia pedagógica seria, assim, o processo pelo qual os alunos e o professor entram em sintonia de pensamento, tendo em vista compreender as relações entre as coisas. Percebemos que o debate, a discussão entre as duas partes em uma relação pedagógica, constitui o desafio ao pensamento e que reside aí a chave mestra de um recurso que visa a aprendizagem. Uma aprendizagem só se realiza quando se compreende que um conceito implica relacionar outros conceitos e que existem princípios que podem ser generalizados. Isso significa ganhar autonomia no processo de estabelecer relações e gerar conclusões.

Nessa perspectiva, estamos dando um entendimento às estratégias pedagógicas da aprendizagem àqueles procedimentos que implicam uma relação pedagógica cujo objetivo não é manter o aluno ativo apenas, mas captar sua motivação, suas emoções, para, a partir daí, colocar o seu pensamento na conjunção de novas aprendizagens.

Assim sendo, não é possível pensar o processo de aprendiza-gem fora de uma relação entre pessoas, cujo eixo não seja o proces-so dialógico. Entende-se que a participação ativa em sala não está na seqüência das ações empreendidas, mas na possibilidade de as pessoas que compartilham esse espaço expressarem seus pensa-mentos e ouvirem a comunicação do outro, tendo em vista uma construção conjunta de conhecimento.

No entanto, para acontecer esse tipo de relação, faz-se necessário que cada interlocutor se disponha a entrar em relação com o outro, procurando uma compreensão que muitas vezes vai acontecer além das palavras, pois alcança os motivos de cada um. Isso significa que os sentidos subjetivos (González Rey, 1997,2003) compõem o processo relacionai, o que nos traz de volta a afirmação de Vygotsky (1987) de que, para ensinar alguém, antes de tudo é necessário identificar seus motivos e de que, nas situações de aprendizagem, há sempre uma convergência entre pensamento e emoção. Todo processo reflexivo traz em si um aspecto motivacional.

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Na sala de aula, portanto, atividades reflexivas motivadas serão aquelas que unem o sujeito e o pensamento. A estrutura motivacional projeta-se nos processos de pensamento e orienta a conduta do sujeito (González Rey, 1995). Ensinar, assim, significa mais do que transmitir conteúdos: implica atuar procurando atingir a estrutura motivacional do aluno que encontra-se unida aos processos de pensamento.

Essa perspectiva implica processos comunicativos efetivos, cuja confiança entre as partes permite que um se exponha ao outro, sem medo de críticas e situações constrangedoras. Não haverá processo de intervenção para a aprendizagem consistente se, por medo ou insegurança, o aluno esconder seu processo de pensamento, evitando externalizá-lo. Conhecer e comunicar o próprio pensamento não é uma atividade fácil, situação na qual muito pouco se coloca os alunos no cotidiano escolar. No entanto, esta seria uma habilidade a ser desenvolvida, tanto para que aluno possa se tornar mais consciente de seus processos de aprender, como seria de muito valor para que o professor pudesse encontrar recursos ou canais dialógicos mais adequados para seu grupo de alunos, ou para um aluno em especial.

Entendemos, assim, que a estratégia pedagógica necessária aos processos de ensino-aprendizagem tem seus alicerces nas rela-ções com a utilização plena do diálogo no trabalho compartilhado. O diálogo é o cerne da relação na aprendizagem, em que as partes envolvidas fazem trocas e negociam os diferentes significados do objeto de conhecimento, o que dá relevância ao papel ativo e alta-mente reflexivo, emocional e criativo do aluno e do professor. O co-nhecimento, assim, distancia-se de uma perspectiva mecanicista ou cognitivista que enfatiza quase que exclusivamente o produto de aprendizagem, ficando entendido como uma dinâmica que se cons-trói na confluência dialética entre o individual e o social, tendo em vista o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos na educa-ção. Alunos cada vez mais interessados, participativos reflexivos e cooperativos (características sempre apreciadas) só podem ser en-contrados em um ambiente interativo cuja comunicação seja esti-mulada e estruturada dentro de relações de confiança entre todos. Para isso, estratégias pedagógicas só podem ser aquelas que possi-bilitam essas relações entre pessoas e entre elas e o conhecimento.

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Compreendendo as interações e a mediação em sala de aula

As reflexões e conclusões destacadas foram possibilitadas a partir do acompanhamento de duas professoras do ensino fundamental, na rede pública de ensino do Distrito Federal, quando elas foram observadas no contexto do cotidiano de seu grupo de alunos de segunda série, ou quando atuaram com um grupo selecionado de seus alunos, com os quais foi desenvolvida uma seqüência de atividades, a que se chamou de "atividade estruturada", acontecida em três dias com uma hora de sessão cada. Olhando os processos comunicativos imbricados no desenvolvimento das atividades mediadas pelas professoras, por nós chamadas de Vilma e Yolanda, pudemos compreender aspectos importantes das relações com o conhecimento que elas possibilitavam no processo ensino-aprendizagem a seus alunos.

Nessa oportunidade, ficou claro que as "estratégias pedagógicas", utilizadas pelas duas, diferenciavam-se muito pouco no que dizia respeito aos materiais que usavam, exercícios ou técnicas que freqüentemente eram organizados. A grande diferença entre elas não estava no livro didático ou nos materiais de apoio, como jogos e brinquedos que uma podia ter e a outra não, ou o fato de eles serem de qualidade diferente. Longe disso, as duas trabalhavam, muito costumeiramente, com folhas soltas que continham uma atividade preparada por elas e também propunham várias atividades utilizando materiais de artes plásticas, por exemplo. Para a "atividade estruturada", da mesma forma, elas não se apoiaram em nenhum recurso material sofisticado. Usaram aqueles mesmos que transitavam no dia-a-dia da sala de aula. Portanto, a diferença marcante entre as duas não estava nas condições externas, mas nitidamente naquilo que, implicitamente, parecia comandar a relação que estabeleciam com seus alunos. Seus pressupostos, crenças e valores sobre como deveriam proceder com os alunos, para encaminhá-los rumo aos objetivos de aprendizagem selecionados, era o que, muito claramente, distinguia essas duas professoras.

A postura avaliadora ou examinadora da professora Vilma fazia com que as suas escolhas em relação ao conteúdo de modo geral e também à "atividade estruturada", assim como os recursos que utilizava, tivessem uma perspectiva muito pouco flexível. Por

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exemplo, a seleção do texto: A Cigarra e a Formiga, para trabalhar com o grupo selecionado de alunos, conforme sua afirmação, aconteceu de forma casual, quando ela se deparou com ele entre o material que conservava guardado. Por já estar pronto, considerou adequado usá-lo naquela ocasião. O texto e os exercícios interpretativos, que ali estavam, correspondiam, muito proximamente, ao tipo de atividade que a professora usava com sua turma. Podemos dizer que eles pediam muito mais a reprodução do conhecimento do que desafiava o pensamento e, mesmo que indicassem abertura para a criatividade, ficavam comprometidos pela forma de atuação da professora.

Por seu lado, a professora Yolanda trouxe uma atividade apoiada em um livro de histórias infantis e elaborou alguns exercícios interpretativos, que se apresentavam em um formato mais flexível e criativo, do qual ela fez uso. Esses exercícios relacionavam-se com o conteúdo do livro, não no sentido de cobrar o conteúdo da história ou a reprodução dela, mas utilizando-o de forma exploratória para novas possibilidades de atividade a partir do texto.

Uma grande limitação da professora Vilma dizia respeito ao comando da atividade ou à explicitação daquilo que as crianças deveriam realizar; em síntese, sua estratégia de condução pedagógica. Sobressaíam as instruções confusas, ambíguas e até mesmo equivocadas. Para ela, parecia que a atividade poderia perder o valor se estivesse facilitada por explicações ou exemplos claros. Nitidamente, ela conduzia um grupo que era visto em sua coletividade, ou seja, não apareciam as pessoas, mas alunos abstraídos, idealizados que, por isso, não atendiam às suas expectativas. Ela se mantinha distante e era difícil estabelecer um diálogo, pois ela sempre esperava uma determinada resposta dada de forma reprodutiva e homogênea pelos alunos. Esse procedimento pareceu ter apoiado, decisivamente, a professora quando fez a intervenção pedagógica para as crianças em vários momentos das atividades. O diálogo a seguir indica as relações sociais estabelecidas, revelando o distanciamento que tinha em relação ao pensar da criança e um constante apelo, não para o pensamento reflexivo, mas para a memória. Claramente, a professora esperava que as crianças reproduzissem lições ensinadas anteriormente. Ela falou incluindo conceitos de forma confusa, não estabeleceu relações de forma adequada e, ainda, pouco valorizou as respostas das

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crianças ou procurou sintonizar com seus processos de significação. No diálogo a seguir, no qual foram observadas contradições, incoerências e certa desconfiança nas relações com o grupo de crianças, a professora estava com quatro alunos: Lúcia, João Paulo, Roberto e Elizer (nomes fictícios).

1. Professora Vilma: Agora vamos ver se vocês leram esse texto com atenção mesmo. Oh Nós começamos a semana passada, quando vocês começaram aquele trabalhinho de teatrinho, de criação de texto pra teatrinho... nós estávamos conversando sobre esses dois pontinhos aqui, esses dois sinais de pontuação, que é o dois pontos e o travessão. Não é? E eu falei que esses dois pontinhos aí, eles apareciam em que tipo mesmo de texto? Quem lembra? 2. João Paulo: Quando uma pessoa tá falando. Quando uma pessoa vai falar. 3. Professora Vilma: Quando uma pessoa? Quando tem uma pessoa falando é um monólogo. 4. Lúcia: Com uma outra quando outra vai responder. 5. Professora Vilma: Será que é isso mesmo? Foi isso mesmo, Roberto ? Você lembra quando nós conversamos sobre esses dois pontinhos? Travessão e dois pontos. Eles indicavam alguma coisa. 6. João Paulo: E a outra pessoa falando. 7. Professora Vilma: E. Mas é quando uma outra pessoa vai falar. Então se é uma outra pessoa que vai falar, ela fala sozinha? 8. O grupo: Não 9. Professora Vilma: Ela fala com quem? 10. Roberto: Com outra pessoa. 11. Professora Vilma: Com outra pessoa. E eu disse que isso daí se chama o quê? Uma conversa entre duas pessoas é o quê? 12. Lúcia: Uma fábula 13. Professora Vilma: Não!!! Cabecinhadura, né? Diálogo. Uma conversa entre duas pessoas Aqui, no caso, são duas personagens, não é? Uma formiga e uma cigarra, não é? Vocês estão vendo que aqueles dois pontinhos que eu estava falando que é tão importante prá que a gente entenda o que está se passando, eles estão aparecendo aí,

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na fala da formiga e na fala da cigarra. Travessão e o dois pontos. Dá a idéia de... diálogo.

Podemos identificar, além dos apelos da memória dos turnos 1, 5 e 11, que, claramente, no turno 5, a professora se distancia da resposta de Lúcia no turno anterior, a qual lhe dava possibilidade de fazer sua intervenção em sintonia com a resposta ou pensamento dela. Ao invés disso, ela volta-se para questionar Roberto, procurando nele a resposta única que lhe servia: diálogo. O apoio que ela dá aos alunos não apela para o sentido do texto que ajudaria os alunos estabelecerem as relações necessárias. No entanto, são os aspectos formais, ou seja, os dois pontos e o travessão, a forte referência para a formação do conceito em jogo, o que ela confirma no turno 12 final de sua fala. As tentativas das crianças, nos turnos 2, 4,6e 10 , não foram utilizadas para a construção do conceito, ou seja, para que de fato se utilizasse uma estratégia pedagógica significando, como propusemos, o pensar junto com a criança. A resposta equivocada de Lúcia do turno 12, que mostra uma tentativa extremada, buscada na memória como solicitada pela professora, induz a professora à recriminação final do turno 12.0 próprio termo, "cabecinha dura", permite-nos confirmar o foco da professora nos processos de memorização, ou seja, mente que não retém aquilo que a professora ensina. No conceito em foco, as crianças precisariam utilizar a memória mesmo, pois o que estava sendo exigido delas era um pensamento reprodutivo, ou seja, que fossem capazes de repetir que um diálogo é uma conversa entre duas pessoas que tem dois pontos e travessão. Essa forma de pensar a aprendizagem do aluno afasta-se de uma perspectiva que pede o apoio em processos reflexivos, que permitam o desenvolvimento.

Em continuação, a intervenção da professora continuou na mesma direção, agora tentando introduzir o conceito de "fala" e de "conversa", pois os alunos precisavam destacar, no exercício, quais eram as "falas" dos personagens da história:

Professora Vilma: Olha só. Aqui tá dizendo que é pra colocar as falas. As falas têm sinais que vão dar a idéia de fala. Quem falou e quem respondeu. Então o pontinho aí, ó... é... imprescindível, tá? Tem que ter o pontinho. Senão ninguém vai saber onde começou a fala de uma e onde terminou a fala de outro.

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Tendo em vista que o exercício estava organizado com espaços delimitados, onde as falas dos personagens deveriam ser reproduzidas separadamente, essas orientações não se justificavam. As crianças seguiram na atividade sem haver clareza sobre o que deviam executar, o que era percebido pelas conversas entre eles e o uso constante da borracha. Após 15 minutos, quando elas ainda estavam em suas tentativas, a professora detém-se diante da carteira de Lúcia e diz:

Professora Vilma: Colocar as falas. Quais são as falas? Quais as falas que são da formiga e quais as falas que são da cigarra? Fala não é conversa, conversa é só das duas. João Paulo: E a conversa das duas? Professora Vilma: Fala é conversa. A conversa é das duas. A fala é das duas. Onde é que está aqui no texto? Você errou, a Lúcia errou. Tá ouvindo, Lúcia.?

João Paulo e Lúcia começaram a apagar o que haviam realizado, mas certamente ainda se encontravam incertos sobre o que deviam realizar, pois a professora atuou de forma incoerente e imprecisa e, infelizmente, não recorreu a um exemplo oportuno. Ao contrário, introduziu confusamente novos conceitos. Para realizar a atividade, na verdade, os alunos tentavam adivinhar como responder ou reproduzir aquilo que estava na cabeça da professora, por isso aconteciam várias tentativas e erros. Quando, em seguida, ela procurou dar esclarecimentos a Roberto, sua intervenção vinha carregada de um conteúdo simbólico de menor valia da capacidade da criança e de sua atividade de brincar, dado o tom de voz impaciente e o próprio conteúdo do diálogo:

Professora Vilma: Roberto, colocar as falas. Vamos supor; estou aqui, agora, conversando com você. Aqui na sua frente, certo? eu tô aqui conversando com você. Olha pra mim. Eu falo uma coisa. Eu falo: Roberto, o quê que você fez ontem? (e baixinho ela pede) Responde pra mim, o que você fez ontem? Roberto: Eu brinquei Professora Vilma: Então você me dá uma reposta completa: "Ontem eu brinquei". Aí eu posso te falar: "Que ótimo, enquanto você estava brincado eu estava em casa corrigindo as provas". Então nós estamos...

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conversando. Eu falo uma coisa e você fala outra, mas tudo de acordo com o que um pergunta o e outro responde. ...Então um diálogo, uma conversa. Foi o que aconteceu aqui dentro desse texto. Houve uma conversa onde a cigarra conversa com a formiga. Então o que eu quero são falas delas, o que é que elas falaram uma pra outra.

No diálogo, fica claro que a professora, ao intervir na situação, o fez destacando o que era secundário ("resposta completa", por exemplo), além de desqualificar a resposta da criança (grifo no diálogo) e incluindo, na sua contra-argumentação, um conteúdo também recriminativo, sobre o que supostamente a criança havia feito, ou seja, brincar. Essas mensagens explícitas e implícitas dispersavam a criança, uma vez que ela teria que discernir, na fala da professora, o que era conteúdo simbólico (significando algo para além do aqui e agora do trabalho) e que precisaria ser interpretado neste nível, e o que era conteúdo relacionado com a atividade, constituindo-se apoio importante para a realização da mesma. A professora era dúbia, assim como evitou usar um exemplo simples, talvez indicando para a criança o próprio texto como referência.

Ao evitar ir direto ao assunto, evidenciava-se na professora um estilo "homeopático", ou seja, ela ia fornecendo informações parciais à medida que iam aparecendo as dificuldades das crianças, mas sem refletir junto com elas o que as estava confundindo. Ela dizia: Coloque aqui, é só isso\ Ou então: Não é assim, tá errado\ Ésó isso que eu quero! Olha lá e copie aqui é tão simples! Uma vez que não entendia a dúvida das crianças, ora explicava de um jeito, ora de outro, o que as confundia terrivelmente. Dessa forma, tornou-se muito difícil afirmar que as dificuldades das crianças apareciam porque a tarefa apresentada estava acima de suas possibilidades de desenvolvimento. Parecia mais pertinente considerar que elas não sabiam ou não conseguiam entender o que deveriam realizar porque isso não lhes era explicado de forma clara. Nessa conjuntura, a tarefa não sendo devidamente contextualizada, havia a possibilidade de tomar rumos diferentes conforme fosse se desenvolvendo.

Observa-se com clareza que a professora não conduzia sua intervenção apoiando o pensar da criança. Ela evitava dialogar, o que lhe daria possibilidade de conhecer o que impedia a execução da tarefa e lhe indicaria como intervir estrategicamente utilizando, como proposto, um recurso apoiado em um processo relacionai.

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Não era difícil constatar que ela não entrava em relação com as crianças e nem as crianças com ela.

A professora Yolanda, por seu lado, conseguia simplificar bastante a tarefa das crianças. Ela explicitava com clareza aquilo que elas deviam realizar, e, para isso, tanto repetia várias vezes o mesmo comando da atividade, como usualmente lançava mão do recurso de apresentar um exemplo ou fazer um exercício junto com as crianças, o que apoiava bastante o pensamento delas. Dessa forma, demonstrava que era muito importante garantir a compreensão, pelas crianças, do que deveria ser realizado. Foi possível identificar nela o modelo de estratégia pedagógica tal como conceituamos aqui, pois era constante a sua atenção aos processos de pensamento dos alunos. Ouvimos várias vezes ela perguntando ao aluno: O que você quer dizer com isso? O que você estava pensando quando falou isso? Alguma coisa ele deve ter pensado, vamos deixar ele falar? Vamos lá, pense que você dá conta! Assim, a professora ia investigando o caminho que o aluno percorria conseguindo identificar a ajuda que ele precisava. Ela partia do pressuposto de que, ao aprender, o aluno elaborava e de que ela precisava alcançar essa elaboração sintonizando seu pensamento com o dele. Tanto em situação individual, como coletiva ela abria espaços para ouvir as crianças. Observou-se isso quando ela aceitava as contribuições que eram trazidas, as incluía na sua fala, valorizando-as, mas as colocava também na direção de seus objetivos e, para isso, ampliava o quadro de referências das crianças. Isso fazia com que os processos de significação do conhecimento pudessem ocorrer de forma negociada entre ela e o grupo. Ela tinha seus objetivos, queria uma convergência do grupo em relação a eles, mas isso não significava uma resposta pronta, pois ela queria sempre se certificar de que o que estava sendo respondido estava sendo entendido e, para isso, ela desafiava e subsidiava, gerando alternativas para o pensamento das crianças. Ao acompanhar as crianças, ela era capaz de perceber isso de forma a propor situações para elas escolherem. Como por exemplo: Tem outro jeito para fazer isso? Onde ela poderia estar agora? Por que será que isso aconteceu? O que eu posso colocar aqui? O que a gente pensa quando desenha um coração? Eram formas simples de instigar a criança ao mesmo tempo em que ia também apresentando informações e dando algumas conclusões. Com isso, ia aparecendo

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uma sintonia de idéias, em um processo interativo que considerava e valorizava o pensar das crianças. Era um apelo para que as emoções vividas viessem ao encontro do que estava sendo proposto. Ela entendia que deveria trabalhar com o aspecto motivacional do aluno, pois parecia compreender que isso estava unido aos processos de pensamento. Assim, de forma bastante simples e adequada, estimulava as crianças a refletirem sobre o que faziam, por que faziam e o que sentiam. Por exemplo, em uma atividade proposta com a história: Se as coisas fossem mães, de Silvia Orthoff, parou para analisar a palavra "coisa" e em um diálogo rápido foi fazendo perguntas, ouvindo, confirmando e concluindo e só prosseguiu quando percebeu que eles haviam compreendido a palavra no contexto da história que se desenrolaria.

O entendimento da professora de que precisava entrar no pensamento do aluno e dar suporte para que ele convergisse para a direção desejada era sempre visível. O conteúdo do livro girava em torno de proposições do tipo: Se a casa fosse mãe seria mãe das janelas.... Se a terra fosse mãe seria mãe das sementes ....Se a fada fosse mãe seria mãe da alegria e, assim, cada página trazia essas relações em forma de poesia. Um atividade correspondente, proposta às crianças, foi criar novas possibilidades em torno de outros objetos. Para que as crianças compreendessem o que era para fazer, ela deu o seguinte apoio ao pensamento delas:

Professora Yolanda: Olha, eu vou dar um exemplo meu. Se a autora tivesse pedido assim pra mim: Yolanda, o armário...quem você acha...para você o armário seria mãe de quem? Aí eu vou pensar bem no armário. O que que eu guardo no armário? (fazendo gesto de colocar o dedo na testa) Eu guardo roupa, eu guardo....livro. Rodrigo: Livro (junto com professora. Aponta o armário no fundo da sala). Ih! Tem muita coisa. Juliana: Caderno. Professora: E. Tem sapato. Tem bijuterias. Tem cinto. Tem meia. Juliana: Tem vestidos. Professora Yolanda: Tem vestidos. Então, o armário seria mãe das roupas, concordam? (as crianças fazem gesto afirmativo com a cabeça). Agora (levanta), eu vou distribuir essa folhinha. Tem...é...sete perguntas. E para vocês

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completarem. Vamos ver! a primeira: Se a rua fosse mãe, seria mãe de quem? Rodrigo: - Dos carros (imediatamente)"

Ao indicar para as crianças a sua estratégia de pensamento (grifado): "o que eu guardo no armário?", deu às crianças a idéia de inclusão, trabalhando os elementos do "conjunto armário". Quando indicou que ela ia pensar essas relações, as crianças seguiram fazendo o mesmo, o que lhes deu uma estratégia operacional clara, simples e fácil. A tarefa, assim facilitada, possibilitou a elas que, junto com a professora, fossem dando respostas rápidas para as questões que se seguiram. Após cada pergunta, todos apresentavam suas respostas, depois faziam comentários sobre outras possibilidades além daquelas que apareceram no grupo e, juntos, prosseguiam na atividade.

Foi exatamente quando a professora não percebeu que existia um elemento diferente na atividade que propunha e não conseguiu utilizar um recurso operacional por meio de um exemplo, que pudesse apoiar conceitualmente o processo de pensamento das crianças, que apareceu o momento mais difícil para todos. A dificuldade foi percebida pela professora e confirmada pela atitude das crianças. Isso aconteceu em um momento da "atividade estruturada" quando as crianças tiveram que indicar um objeto que poderia ser identificado com a sua própria mãe e justificar a relação que faziam. A pergunta era: "Se sua mãe fosse uma coisa, que coisa ela seria e por que?". As crianças levaram um tempo muito maior que o esperado para elaborarem suas respostas e, mesmo assim, o fizeram sem firmeza e segurança e não convergiram totalmente para aquilo que objetivou a professora.

Em uma das entrevistas feitas com a professora, quando se perguntou sobre essa dificuldade das crianças, ela afirmou ter se surpreendido com o fato, pois a questão lhe parecia fácil. Nas hipóteses levantadas pela professora, veio a consideração de que a questão trazia uma dificuldade, exigindo um pensamento mais elaborado, mas que as crianças também não conseguiram "soltar a imaginação". Assim, para a professora, a situação estava relacionada com o tipo de pergunta, mas também podia estar ligada com algumas dificuldades das próprias crianças.

De fato, a pergunta exigia que fossem estabelecidas relações bastante abstraídas, mas também pôde ser constatado que a professora,

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por não perceber isso, não conseguiu apresentar um apoio operacional pertinente. Mesmo insistindo, ela não compreendeu que o pensamento simbólico das crianças precisaria ter sido antes investigado, para que ela pudesse recorrer a um exemplo ou outro recurso como havia acontecido outras vezes em sala de aula. Como pesquisadora, também foi necessário procurar entender o que havia acontecido e isso foi possivel quando passamos a jogar essa mesma pergunta para outras pessoas. Tivemos como resultado, por exemplo, uma aluna de graduação que respondeu: "Minha mãe seria um baú, pois ela traz tudo sempre muito bem guardado". Outra respondeu: "Seria um travesseiro, pois ela me acolhe sempre". Muitas pessoas ficaram vários minutos pensando na questão, o que significava que havia algo mais elaborado a ser apresentado. Foi aí que identificamos que, para realizar as relações, as pessoas primeiro identificavam um sentimento em relação à própria mãe e depois ele era transformado em um símbolo, e as explicações vinham a partir de relações e correspondências das características de cada um dos elementos em foco.

As crianças da professora Yolanda poderiam ter identificado coisa semelhante? Acreditamos que sim, desde que a professora tivesse identificado a complexidade da atividade e tivesse dado a elas o recurso operacional pertinente. As crianças realizaram a atividade, mas não abstraíram simbolicamente como pretendia a professora. Elas demoraram bastante para tecer relações e conseguiram realizar aproximações mais diretas, embora isso também indique uma operação abstraída. Por exemplo, ao perguntar, várias vezes, para a criança, por que elas consideravam o "anjo", a avó, o "coração", uma "dama" ou a "lua", como "objetos" que podiam ser parecidos com a mãe, eles conseguiam tecer explicações da seguinte maneira: "E porque parece que... ela é igual a lua";"Seria uma dama porque ela gosta de vestido". "Parece com um coração que é...parece com a cara"; "Eu disse a minha vó... eu disse que seria a minha vó"

A criança que sugeriu "Seria um anjo", quando a professor perguntou Por que um anjo? O que que ele temi, encontrou a seguinte explicação que exprimiu com tom de obviedade: E... porque o anjo tem perna, a minha mãe também, o anjo tem braço, a minha mãe também, o anjo tem corpo, a minha mãe também, o anjo tem nariz, a minha mãe também, o anjo tem ouvido, a minha mãe também. Ham... (risos). Isso demonstrava a forma de pensar das crianças que se

Estratégias Pedagógicas

prendiam em correspondências a partir de outra lógica, diferente daquela que pretendeu a professora ao propor a questão.

No momento da pesquisa em que se conversou com as crianças e professora sobre todas as experiências relacionadas com as atividades desenvolvidas, Rodrigo, ao procurar lembrar o que foi realizado, mostrou claramente os seus processos de significação da aprendizagem, pois deu sua própria interpretação para a questão em foco, o que pode ser constatado em sua fala: "Ontem ontem foi aquela pergunta. Se você... Se a sua mãe não fosse a sua mãe, o que que você queria que ela fosse? Percebe-se claramente a distorção da sua interpretação. No entanto, essa foi a forma como compreendeu a questão e foi isso que ele elaborou na sua resposta, quando colocou a avó no lugar da mãe. O que ele respondeu foi que, se ele tivesse outra mãe, essa mãe seria a sua avó. Essa criança era, de fato, criada pela avó, pois tinha passado com ela a maior parte de sua vida até então.

Esse foi um momento no qual Yolanda, apesar de suas tentativas, não encontrou uma estratégia bem sucedida para criar um canal, visando a compreensão e execução da atividade pelas crianças. Isso, também, permite-nos a inferência de que faltou às crianças um apoio conceituai, para que pudessem colocar seu pensamento na direção daquilo que a questão pedia. Outra possibilidade de análise é a consideração de que havia na tarefa a exigência de estabelecer relações, envolvendo um tipo de abstração, que precisaria ter sido trabalhada mais especificamente e a partir de outras estratégias. Nessa perspectiva, podemos considerar que, com um apoio operacional adequado, a solução poderia ter sido facilitada para a criança e sempre haveria a possibilidade de avanço em seu desenvolvimento.

Dessas exemplificações, podemos avaliar que o grande desafio no ensino é, então, encontrar as estratégias que permitam ao aluno operar reflexivamente na direção da apropriação do conhecimento. Se lhe for dado o apoio adequado para suas operações mentais, ele avança (mesmo que minimamente) no seu processo de conhecimento e assim também no seu desenvolvimento. Para isso, os professores precisam coordenar o seu conhecimento sobre criança, sobre si mesmo, sobre o próprio conhecimento com as exigências operacionais que trazem e o contexto vivido.

Nesse sentido, o trabalho do professor só será direcionado rumo ao desenvolvimento dos alunos se forem estabelecidas

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genuínas relações entre eles. Isso é condição para que aconteça a sintonia de idéias, pensamento e motivação. O aluno também precisa querer expressar-se, pois só assim poderá dialogar com o professor, apresentando suas dúvidas e mostrando as elaborações e relações que faz. Isso é essencial para que o professor possa encontrar apoio conceituai necessário, o que faz muita diferença para a compreensão e aprendizagem dos temas tratados em sala de aula.

A exploração de Vygotsky (1987) sobre as fases de formação dos conceitos permite uma importante consideração a respeito da construção do conhecimento pelo aluno. Todo o processo de aprendizagem pode sofrer rupturas decorrentes da falta de clareza em um conceito anterior necessário ou mesmo aqueles que se relacionam com os significados de certas palavras, que compõem a estrutura de um texto ou que aparecem na fala do professor. Essa ruptura compromete o aprendizado do tema em questão, o que pede uma atenção e busca constante do professor para intervir adequadamente nos processos de construção conceituai.

Ao usar diferentes estratégias para dialogar e conhecer o processo de pensamento do aluno, ele poderá verificar se os alunos já possuem os conceitos básicos e aprofundar ou incluir naturalmente aqueles que ainda mostram-se necessários. Essa atenção do professor e seu diálogo com o pensar do aluno lhe permitirão identificar que tipo de estratégia seria conveniente para o aluno prosseguir constituindo seu aprendizado. Muitas vezes, o professor organiza uma situação de ensino-aprendizagem sem verificar se determinadas formulações conceituais necessárias já fazem parte do repertório do aluno ou, então, ele não tem clareza dos alicerces que o tópico em estudo exige, ou não sabe como trabalhar isso, o que vai comprometer toda a aprendizagem.

A Professora Yolanda apresentava essa preocupação, pois atuava procurando esclarecer conceitos, conferindo com as crianças o que havia sido compreendido, o que lhe daria maior garantia das significações das crianças no contexto do tema em foco. A professora Vilma, entretanto, muito freqüentemente, fazia uso de uma linguagem apoiada em construções conceituais fora do contexto das crianças, sem se preocupar em dar esclarecimentos (ou fazendo-os equivocadamente), para que novas construções pudessem ocorrer no momento da aprendizagem.

Estratégias Pedagógicas

Nessa perspectiva, mesmo se o professor tem consciência e clareza de que determinados conceitos prévios são importantes e fazem-se necessários para uma unidade em estudo, não significa que deverá partir para uma avaliação formal disso, visando identificar o nível de desenvolvimento já alcançado pelos alunos. Ele deverá acompanhar os alunos no cotidiano de sua sala de aula, de forma que lhe seja possível identificar, com certa rapidez, o mais adequado caminho ou canais mediadores que fornecerão as bases para a compreensão de um novo conceito ou sistema conceituai a ser trabalhado. A solução para defasagens, da mesma forma, não se encontra na postura de esperar um "amadurecimento" de funções que estão para aparecer no desenvolvimento intelectual, mas pede a proposta de atividades que articulem a integração e inter-relação dos conceitos já constituídos, visando ao desenvolvimento conceituai como um todo. Considerando que até mesmo os adultos recorrem aos pseudoconceitos na vida cotidiana, pressupõe-se que sua utilização pelos alunos do ensino fundamental e médio seja recorrente e natural. Nessa constatação, o trabalho a ser realizado será identificar o que é básico e o que precisa ser trabalhado como estrutura ou como sistema conceituai ou, então, apenas como simples conceito ligado a uma palavra, que se liga a esse sistema de generalizações (Tunes, 1995). Vale assim identificar, previamente, os conceitos âncoras para que sejam trabalhados adequadamente e alcancem novas generalizações conceituais, o que permitirá o seu uso futuro em diferentes situações, tanto da vida cotidiana, como escolar. Diz Vygotsky (1987, p. 20),

... um conceito se forma não pela interação das associações, mas mediante operações intelectuais em que todas as funções mentais participam de uma combinação específica. Esta operação é dirigida pelo uso da palavra como meio para centrar ativamente a atenção, abstrair determinado traço, sintetizá-lo e simbolizá-lo por meio de um signo.

O emprego da palavra será sempre parte integrante de todo o processo, conservando sua função diretiva.

Isso significa trabalhar relações, ordenamentos, separação, união, análises combinadas com sínteses, o que conduzirá a um processo contínuo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Todas essas perspectivas de trabalho pedagógico

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devem estar presentes no momento de planejamento do professor e pairam acima dos materiais e técnicas de ensino que possam vir em auxílio do professor na realização de seu trabalho.

No contexto dessas reflexões, outro contraste que foi possível estabelecer nas estratégias das duas professoras correspondeu ao tipo e diversidade de recursos utilizados, justamente no sentido de colocar o pensamento das crianças na linha mais avançada do desenvolvimento conceituai.

Nos episódios analisados, nas sessões em que contracenaram a professora Vilma e seus alunos, ficou evidenciado que ela não via a importância de identificar o que pensava o aluno e, com isso, era pouco vibrante ao interagir, o que a fazia recorrer a poucas estratégias de intervenção. Ela muitas vezes se limitava a perguntar, pedir a confirmação e repetir, reafirmando os elementos que as crianças traziam. Havia, ainda, na utilização dessas estratégias, a constatação de que as crianças deveriam ser capazes de justificar a coerência do pensavam e expressavam. O desafio da criança, nas perguntas vindas da professora, era provar sua capacidade e, assim, não aparecia um clima de aprendizagem conjunta a partir das relações estabelecidas, direcionando um processo criativo de aprendizagem e de alargamento dos sistemas conceituais do tema enfocado.

Por outro lado, a professora Yolanda mostrou que muito facilmente lançava mão de uma diversidade maior de estratégias para dialogar, fazendo a intervenção pedagógica, na direção da apropriação dos conceitos trabalhados. Em um espaço de cinco minutos, trecho em que contava a história para as crianças, notou-se que a professora utilizou onze estratégias diferentes na forma dialogada de interagir com elas. Ela coordenou a atividade perguntando, pedindo confirmação, deixando espaço na sua fala para as crianças completarem, criou suspense, elogiou, pediu contribuições, deu espaço para as crianças falarem de si próprias e outras tantas formas mais. Enfim, se diversos eram os alunos, diversas também precisavam ser as estratégias para conhecer seus processos de pensar e significar a aprendizagem. A professora, com isso, conseguia manter a atenção das crianças e abria a possibilidade para maior compreensão do conteúdo trabalhado, pois eram vivenciadas situações relacionais que permitiam a expressão dos modos de pensar.

Estratégias Pedagógicas

A pesquisa de Maciel (1996), que acompanhou uma díade composta por uma professora experiente e um aluno que enfrentava dificuldades no processo de leitura e escrita, mostrou que uma das características da professora também era a diversificação de estratégias, de forma muito parecida como fazia a professora Yolanda. Essa outra professora também interagia para conhecer a criança e seus motivos e dar suporte para ela operar mentalmente, o que fazia com que fosse ganhando autonomia no trabalho. Ela procurava, por diferentes formas, conduzir seu aluno à participação ativa, buscando as suas bases motivacionais. Nesse contexto, podemos dizer que as estratégias diversificadas da professora Yolanda eram, da mesma forma, recursos pessoais com os quais ela conduzia o processo, não se distanciando dos sujeitos com os quais interagia. Seu objetivo era dialogar com a criança, tendo em vista tanto a sua participação ativa, sua autonomia, como também o alcance de suas emoções para as novas estruturas conceituais a serem desenvolvidas. Articulava-se, assim, uma estratégia pedagógica que, apoiando-se nas relações sociais, alcançava o sujeito, suas emoções, o seu pensamento e a realização da atividade em foco.

Conclusões Entendemos que trabalhar a Zona de Desenvolvimento

Proximal só é possível quando o sujeito mais experiente atua por meio de estratégias que, de fato, significam encontrar os processos de pensamento do aluno e suas bases motivacionais. Nessa conjuntura, poderá ocorrer uma aprendizagem que inclui o pensamento reflexivo. Para isso, haverá um sujeito menos experiente que encontra não simplesmente um "outro social" com quem interage realizando uma tarefa, mas um "outro" que lhe apresente apoio operacional coerente com seus processos de significação, no sentido de lhe possibilitar um salto qualitativo. Não há relação pedagógica que, por si mesma, signifique a promoção do desenvolvimento potencial do aluno. Não basta, também, favorecer-lhe a convivência com colegas mais velhos. O desafio é descobrir os canais e estratégias pedagógicas que poderão atuar promovendo, de fato, o desenvolvimento. Encontrar esses canais, às vezes, torna-se bastante difícil para o professor. Era com esse

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desafio que se deparavam, continuamente, as duas professoras da pesquisa, pois, na medida em que tinham focos e estratégias pedagógicas com bases em processos diferentes, também promoviam processos de significação bastante diferenciados em relação ao conhecimento.

Na atuação da professora Yolanda, percebia-se que esses processos estavam muito ligados a formas de pensar e apreender o objeto de conhecimento, trabalhando significações que iam se ampliando dentro do foco da atividade, ou seja, o objetivo que direcionava o processo interativo. Percebeu-se muito claramente que, quando introduzia a história para as crianças, sua estratégia implicava desafiar a imaginação, incentivando a participação das crianças, que traziam suas contribuições alargando os significados; porém, aconteciam também várias convergências conceituais. Havia uma negociação constante na construção dos significados, e eram incorporados vários elementos não-verbais como gestos, entonação de voz, vibração, como recursos presentes nos processos comunicativos, que transitavam no percurso da atividade, compondo a negociação do processo ensino-aprendizagem. No contexto dos processos de significação, transparecia a unidade cognição-afeto comandando o processo, no qual evidenciavam-se situações bastante criativas.

No entanto, a professora Vilma, com sua forma rígida de interagir com as crianças e sua mínima flexibilidade na busca de diversidade e no uso das estratégias interativas, fazia com que o momento do conhecimento se dispersasse em relação aos objetivos a serem alcançados, o que conduzia a processos de significação também dispersos, com a possibilidade de relacionarem-se menos às estruturas conceituais necessárias e aos objetivos da atividade. Atingia-se, quase que exclusivamente, significações de outro nível (muito provavelmente negativas), ou seja, aqueles que diziam respeito à valorização da escola, do aprender, do valor pessoal, da posição e capacidade do aluno e do papel do profess.or. Com vivências carregadas de emoções contraditórias, o pensamento deslocava-se para fora da dimensão da apropriação do saber.

Entretanto, independente do nível e da qualidade das realizações pedagógicas e da direção que assumissem, os processos de significação emergiam, constituindo os sujeitos da interação pedagógica. Na relação dialética entre o inter e o intrasubjetivo, os

Estratégias Pedagógicas

processos de significação para cada momento pedagógico eram experienciados pelos sujeitos concretos, constituídos por suas crenças e valores, resultado da convivência social, em um contexto cultural e tempo determinados.

No espaço orientado pelas duas professoras, as relações cons-tituíam-se envolvidas em um contexto intersubjetivo, continuamente alicerçado nas vivências, características de personalidade e história dos sujeitos em relação (Smolka, 1994).

O estudo das duas professoras fez-nos aprofundar análises para compreender as contraposições que emergiam. Destacar as di-ferenças foi uma forma de fazer crescer o seu impacto para anunciar suas implicações. Não quisemos, com isso, propor simplesmente uma visão maniqueísta entre os estilos das professoras.

O trabalho marcadamente diferenciado de professores de um mesmo sistema de ensino estimula importantes questões para discussão e pesquisas. Uma delas relaciona-se à formação de professores, ou seja, às formas de incorporar no trabalho docente uma prática reflexiva em relação ao conhecimento, ao aluno, ao contexto vivido e em relação a ele próprio, enquanto sujeito e profissional. Nessa perspectiva, os cursos de formação de professores, poderiam contemplar menos teorias desconectadas com a realidade do professor e, principalmente, menor número de treinamentos em métodos e técnicas de ensino, para considerar mais de perto a formação e instrumentalização do professor em termos de uma reflexão pedagógica que o leve a pensar no valor das relações sociais para o processo de ensinar e aprender, o que pede que ele exerça sua autonomia enquanto profissional. Isso significa saber identificar como colocar em prática o objetivo maior da educação, ou seja, o desenvolvimento humano no contexto social em que vivemos.

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SMOLKA, A. L. B. Discourse, practices and the issue of internalization. In: DEL RIO, P.; ALVAREZ, A.; WERTSCH, J. V. (Orgs.). Explorations in socio-cultural studies, historícal and teoretical discourse. n. 1. Madrid: Fundación Infância y Aprendizage, 1994.

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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. . A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

4 Criatividade no Trabalho Pedagógico e Criatividade na Aprendizagem Uma relação necessária?

Albertina Mitjáns Martínez

Nos últimos anos, a palavra criatividade tem estado cada vez mais presente no vocabulário cotidiano das escolas, paradoxalmente, para fazer referência a algo que não se tem e que se precisa ter. Por exemplo, as expressões: "temos que utilizar a nossa criatividade", "devemos formar alunos criativos", "sem criatividade não será possível resolver este problema", entre outras, são expressões comuns quando se faz referência à criatividade .

O adjetivo "criativo" também é muito utilizado, seja para qualificar pessoas - alunos criativos, professores criativos- seja para qualificar produtos, na maioria das vezes, de natureza artística: um desenho criativo, um mural criativo ou uma festa criativa. Parece que existe um reconhecimento da importância da criatividade, de que ela deve existir no contexto escolar e de que, de alguma forma, existe. No entanto, o que está sendo entendido como criatividade?

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Qual o sentido que realmente tem para os que se referem a ela? Que certeza podemos ter de que não constitui um modismo a mais ou uma expressão de um discurso politicamente correto, porém sem um sentido real que oriente o trabalho na direção de sua promoção?

O objetivo deste capítulo é analisar duas das principais formas em que se expressa a criatividade no contexto escolar e suas inter-relações: a criatividade no trabalho pedagógico e a criatividade na aprendizagem.

A criatividade no trabalho pedagógico: sua significação e formas de expressão

Assumimos que a criatividade é um processo complexo da subjetividade humana1 na sua simultânea condição de subjetividade individual e subjetividade social que se expressa na produção de "algo" que é considerado ao mesmo tempo "novo" e "valioso" em um determinado campo da ação humana (Mitjáns Martínez, 2001). A partir dessa consideração, podemos entender a expressão da criatividade no trabalho pedagógico como as formas de realização deste que representam algum tipo de novidade e que resultam valiosas de alguma forma para a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos.

Existe um conjunto interessante de pesquisas e trabalhos sobre a criatividade do professor2 (Starko, 1995; Woods, 1995; Giglio,

1. Entendemos a subjetividade a partir de uma perspectiva histórico-cultural tal como tem sido conceituada na Teoria da Subjetividade elaborada por González Rey. Princípios básicos dessa teoria aparecem no seu livro Sujeito e Subjetividade. São Paulo: Thomson (2003a).

2. Em trabalhos anteriores (Mitjáns Martínez, 1997, 2001, 2002, 2003), temos utilizado a expressão criatividade do professor para nos referir a suas possibilidades de produzir novidade e valor ao seu trabalho profissional, essencialmente no seu trabalho pedagógico. No entanto, preferimos utilizar a expressão criatividade no trabalho pedagógico, por permitir uma precisão maior sobre a expressão da criatividade que queremos focalizar: aquela que se expressa no trabalho que o professor realiza intencionalmente com o intuito de contribuir com a aprendizagem e o desenvolvimento de seus alunos. Além disso, a utilização da expressão criatividade no trabalho pedagógico pode favorecer a compreensão da complexidade desse processo, no qual não participa apenas a subjetividade individual do professor, mas também, elementos da subjetividade social de diferentes espaços sociais tal como se manifestam na subjetividade social do espaço escolar.

Criatividade no Trabalho Pedagógico e Criatividade na Aprendizagem 71

1996; Mitjáns Martínez, 1998; Fresquet, 2000, entre outros). Entre as tendências que neles aparecem, uma especialmente chama a nossa atenção: a de analisar a criatividade do professor a partir do que ele faz do " novo" sem, em muitas ocasiões, analisar o critério de valor, que, mesmo que extremamente relativo, constitui um dos critérios definidores da criatividade.

Em correspondência com essa interpretação, existe uma tendência a produzir coisas "novas" em sala de aula sem uma preocupação em analisar seu impacto real na aprendizagem e no desenvolvimento dos alunos. Às vezes, parece ser mais um modismo que uma estratégia pensada, acompanhada e avaliada em termos de sua pertinência e eficácia. Um exemplo disso consiste na proliferação da utilização de "dinâmicas" e "jogos vivenciais" em sala de aula que aparecem, de fato, como objetivos em si mesmos e não como recursos para incrementar os níveis de aprendizagem e desenvolvimento, já que não são acompanhados de um interesse real para analisar sua eficiência e integrá-los com outros elementos do trabalho pedagógico, para produzir as melhorias necessárias na aprendizagem e no desenvolvimento.

Criatividade e novidade não são palavras sinônimas. A criatividade implica a novidade; porém, a novidade não é suficiente para se considerar um processo como criativo. O valor que o novo que se produz tem - no caso do trabalho pedagógico, algum tipo de valor para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos - resulta essencial para sua consideração como criativo. A introdução de "novidade" no trabalho pedagógico é importante sempre que essa novidade permita novos níveis de aprendizagem e desenvolvimento. A novidade pela novidade pode ser perigosa, sobretudo, nos casos em que são introduzidas estratégias novas que mostram ter piores efeitos que as "tradicionais" ou que desviam a atenção e desvirtuam os objetivos da aprendizagem.

Por outro lado, na maioria dos casos, essa novidade está referida aos métodos de ensino e não a outros importantes componentes do trabalho pedagógico. Sabe-se que o trabalho pedagógico não se reduz aos métodos de ensino e, mesmo que tenha menor visibilidade, a novidade pode e deve expressar-se em todos os elementos deste. Sabemos que existe o perigo de que a não introdução de mudanças em outros componentes do trabalho pedagógico, focalizando-se apenas os métodos de ensino,

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"neutralize" os possíveis impactos das modificações introduzidas nestes (Mitjáns Martínez, 1995).

Quando formulamos o que denominamos Sistema didático integral para contribuir ao desenvolvimento da criatividade (Mitjáns Martínez, 1997), mesmo que o foco fosse o desenvolvimento da criatividade dos alunos, estávamos, de fato, apresentando "novas" formas de realizar o trabalho pedagógico, as quais constituem expressões potenciais de criatividade nesse tipo de atividade. Salientamos o caráter de potenciais para reforçar a idéia da necessidade de que o processo educativo se concretize em resultados desejáveis para ser considerado como criativo.

Naquela ocasião, analisamos a possibilidade e a necessidade de introduzir modificações em um conjunto de aspectos:

• A forma de trabalhar com os estudantes a formulação e seleção dos objetivos de aprendizagem;

• A seleção e organização dos conteúdos de ensino e das habilidades e competências a serem desenvolvidas;

• As estratégias e métodos de ensino; • A organização do processo docente; • A natureza das tarefas a serem realizadas em classe ou

extra-classe e as orientações para sua realização; • A natureza da bibliografia e do material didático e as

orientações para sua leitura; • O sistema de avaliação e auto-avaliação da aprendizagem; • As relações professor-aluno e o clima comunicati-

vo-emocional que caracteriza a sala de aula e a instituição escolar no seu conjunto.

Insistimos que a possibilidade da criatividade no trabalho pedagógico existe em qualquer um de seus elementos constitutivos -desde a formulação dos objetivos de aprendizagem até o sistema de avaliação e as formas de relacionamento com os alunos. Perante a complexidade dos processos de aprendizagem e desenvolvimento, mudanças sistêmicas de aspetos constitutivos do trabalho pedagógico podem contribuir em maior medida que mudanças isoladas para incentivá-las e favorecê-las.

A necessidade de introduzir mudanças no trabalho pedagógico justifica-se pelo seu próprio fim: ensinar, educar. Para cumprir adequadamente seus próprios objetivos, o trabalho

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pedagógico tem que ser, em alguma medida3, criativo. A complexidade, diversidade e singularidade dos processos de aprendizagem e desenvolvimento humanos demandam ações diversificadas e criativas se a pretensão é realmente promovê-los de forma efetiva. A consideração dos alunos como sujeitos singulares implica o reconhecimento da diversidade presente na sala de aula e a exigência de uma atuação diversificada em virtude das múltiplas situações de aprendizagem e desenvolvimento que o professor tem que promover e gerenciar.

O valor das mudanças e das novidades introduzidas no trabalho pedagógico está dado, essencialmente, pela sua significação para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos: envolvimento com o processo de aprender, aprendizagem significativa, aquisição de habilidades e competências, superação de dificuldades escolares, desenvolvimento de outros importantes elementos da subjetividade como valores, autovalorização adequada, projetos, capacidade de reflexão, criatividade etc.

Também as mudanças no trabalho pedagógico podem ser importantes para favorecer o clima emocional em sala de aula ou o bem-estar emocional dos participantes, aspectos não apenas importantes para a aprendizagem, mas também para a saúde.

Particular importância tem a criatividade no trabalho pedagógico no cenário atual da escola inclusiva (Mitjáns Martínez, 2003, 2005; Tunes, 2003), já que a concepção de inclusão escolar supõe, precisamente, a mudança da escola para dar oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento a todos os alunos com independência de classe social, raça, características individuais e outras diferenças. A concepção de inclusão implica uma alta dose de criatividade e de inovação na instituição escolar, já que esta tem uma longa história de padronização e homogeneização dos processos educativos e, conseqüentemente, de exclusão daqueles que "não aprendem" segundo as ações padronizadas que caracterizam boa parte do trabalho pedagógico.

Mudar a representação da escola e da sala de aula, compreen-dendo-as como espaços de aprendizagem e desenvolvimento para todos a partir das mudanças necessárias no trabalho pedagógico, já

3. Resulta importante frisar que a criatividade se expressa em diferentes graus ou níveis e não necessariamente em dois extremos: existe criatividade ou não existe criatividade.

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implica uma primeira expressão de flexibilidade e abertura, ele-mentos essenciais para a ação criativa.

O sucesso do processo de inclusão escolar depende de fatores de diferentes ordens (estruturais, ideológicos, políticos, técnicos) em todos os quais a criatividade resulta importante. No trabalho pedagógico, essa necessidade faz-se mais evidente por ser o espaço onde a inclusão se efetiva. No entanto, vemos com preocupação alguns casos em que se pretende trabalhar na perspectiva da inclusão sem serem realizadas as transformações sensíveis que o trabalho pedagógico requer.

Uma das maiores preocupações em relação ao processo de inclusão refere-se à falta de preparação dos professores, preocupação reiterada por eles mesmos. É certo que resulta necessária determinada preparação para trabalhar na perspectiva da inclusão, em razão das mudanças substantivas que esta implica; porém, o problema essencial, no nosso ponto de vista, radica em qual o tipo de preparação que se considera mais necessária. Na maioria das vezes, quando se referem à preparação, os próprios professores a identificam com uma preparação técnica, ou seja, com conhecimentos sobre as deficiências, sobre adaptações curriculares, sobre como fazer ou quais atitudes assumir perante determinadas situações e problemas. Não significa que esse tipo de preparação não seja importante. O problema é que ela não é a única necessária nem, talvez, a mais relevante. A preparação em termos de mudanças de representações de o que é educar e para quem educar e de valores em relação ao outro e de recursos pessoais, que permitam o trabalho pedagógico criativo necessário, é decisiva para o trabalho na perspectiva da inclusão. Isso porque, os conhecimentos pretendidos não farão sentido nem poderão ser utilizados efetiva e oportunamente, se não se configurarem em sistemas mais complexos, nos quais os recursos pessoais para a criatividade ocupam um importante lugar.

A criatividade no trabalho pedagógico tem também outro significado: ela não é apenas importante para o objetivo central da aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, mas também para o próprio professor, para seu bem-estar emocional e seu desenvolvimento.

Uma importante e promissora linha de pesquisa é aquela que indica as inter-relações entre criatividade e saúde. Existem evidências de que a ação criativa pode se constituir em um espaço

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de promoção de saúde, na medida em que se constitua como um momento de realização do sujeito e como gerador de vivências emocionais positivas. Isso pode ser extremamente importante tratando-se do trabalho pedagógico, cujas características demandam importantes exigências para o professor, chegando a configurar-se, para alguns, como causadores de doenças.

Outra interessante linha de pesquisa em aberto é a significação do trabalho pedagógico criativo para o desenvolvimento do professor. Estudando a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a prática pedagógica com projetos, Mourão (2004), na sua dissertação de mestrado sob a minha orientação, encontrou uma relação recursiva entre ambos. Por um lado, o sentido subjetivo da criatividade participa na regulação das ações criativas dos professores na prática pedagógica com projetos e, por outro, a vivência dessa prática "alimenta" o sentido subjetivo da criatividade. Mourão também encontrou que aspectos contraditórios do sentido subjetivo da criatividade, expressos em contradições na prática pedagógica com projetos, podem ser potencialmente importantes para o desenvolvimento do professor. Mesmo que sejam necessários outros estudos que permitam compreender os processos de desenvolvimento de recursos subjetivos do professor, a partir dos sentidos subjetivos que gera o seu trabalho pedagógico criativo, os resultados preliminares sugerem uma interessante possibilidade de desenvolvimento a partir dessa sua ação .

Elementos envolvidos na criatividade do trabalho pedagógico

A consideração da criatividade como processo complexo da subjetividade humana remete para as articulações dinâmicas dos elementos e processos que nela se expressam. Da criatividade no trabalho pedagógico participam elementos e processos diversos, tanto da subjetividade individual quanto da subjetividade social. A criatividade não é um processo intrapsíquico, como não o é a subjetividade na concepção assumida. O processo de produção de "algo novo", "com valor", é possível pelo inteijogo de configurações subjetivas constituídas no sujeito no percurso de sua história de vida individual, da sua própria condição de sujeito e das configurações da

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Albertina Mitjáns Martínez

subjetividade social, especialmente constituídas no espaço social em que o sujeito realiza sua ação.

Assim, da criatividade no trabalho pedagógico participam tanto as configurações subjetivas do professor e sua condição de sujeito, quanto as configurações subjetivas do espaço escolar e de outros espaços sociais vinculados com ele. Vejamos muito brevemente cada um deles:

a. As configurações subjetivas constituídas no professor no percurso de sua história de vida: - Configurações subjetivas, diretamente relacionadas com a

ação criativa do professor, são articulações dinâmicas, altamente individualizadas de processos subjetivos que constituem o que denominamos configurações criativas (Mitjáns Martínez, 1997)4. Alguns elementos comuns às configurações criativas de pessoas com um alto nível de criatividade no seu trabalho profissional, entre eles professores, encontrados por nós, foram:

- Alto grau de desenvolvimento da motivação para a profissão - a profissão é uma tendência orientadora da personalidade;

- Clara orientação de futuro na esfera profissional; - Força da individualidade - a autovalorização como

importante elemento dinâmico da expressão criativa; - Orientação muito ativa para a superação profissional; - Orientação consciente pra a criação.

Esses elementos comuns não são os únicos integrantes das configurações criativas. Pelo caráter altamente singularizado delas, muitos processos e sentidos subjetivos diversos podem integrá-las. Um exemplo disso aparece com clareza em um dos professores estudados por Mourão (2004), no qual o interesse por experimentar , pelo desafio e pelo improviso, constituía um importante elemento de sua configuração criativa, expressando-se no seu trabalho pedagógico com projetos.

Queremos destacar, entre os elementos subjetivos que participam na criatividade, o papel da implicação motivacional na

4. Utilizamos o termo configurações criativas para aludir à integração dinâmica dos elementos personólogicos que intervém na expressão criativa do sujeito (Mitjáns Martínez, 1997, p. 82).

Criatividade no Trabalho Pedagógico e Criatividade na Aprendizagem

atividade de ensinar e de educar .Muitos autores têm destacado o papel da motivação na criatividade (Amabile, 1996;Cskszentmihalyi, 1996; De la Torre, 2003; Gardner, 1996; Mitjáns Martínez, 1997; Sternberg e Lubart, 1995, entre outros). No caso do trabalho pedagógico, a implicação motivacional com o objetivo central de ensinar e educar revela-se como essencial. Introduzir mudanças no trabalho pedagógico nas condições muitas vezes difíceis nas quais o professor trabalha e vencer inúmeros obstáculos, muitos dos quais provenientes da instituição escolar como espaço social complexo, implica altos níveis de motivação em relação à atividade profissional. Uma das nossas atuais direções de pesquisa refere-se a como formas complexas de expressão da motivação, especialmente o sentido subjetivo que para o professor tem o ensinar, participam na configuração de elementos que podem permitir compreender a criatividade no trabalho pedagógico.

b. A condição do professor como sujeito:- assumimos a concepção de sujeito tal como expressada na Teoria da Subjetividade de González Rey, compreendendo-o como o indivíduo concreto, portador de personalidade que, como características essenciais de sua condição, é atual, interativo, consciente, intencional e emocional (1995, p. 61).

O professor, na sua condição de sujeito, elabora representações do espaço escolar pelas quais organiza sua ação, toma decisões, resolve conflitos e exerce intencionalmente sua ação educativa. No seu trabalho pedagógico, experimenta vivências emocionais diversas, susceptíveis de organizar-se em sentidos subjetivos que, surgidos na ação, também a mediatizam participando em alguma medida na caracterização de sua ação como mais ou menos criativa. É o professor, na sua condição de sujeito, quem planeja e desenvolve o trabalho pedagógico a partir de suas configurações subjetivas, das características do contexto em que atua e da subjetividade social que o caracteriza.

c. As configurações da subjetividade social que caracterizam o espaço escolar: - a subjetividade social é entendida como um sistema integrado de configurações subjetivas (grupais ou individuais) que se articulam nos diferentes níveis da vida social... (González Rey, 1997, p. 133) e está constituída pelos processos de significação e de sentido que caracterizam os cenários da vida social... (González Rey, 2003a, p. 205).

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A subjetividade social da escola está integrada por significados e sentidos diversos; entre eles, o clima emocional, as formas de relação, o sistema de crenças e valores em relação ao ensinar, ao aprender, ao aluno e ao trabalho pedagógico, o sistema de regras (explícitas e implícitas) que regem o trabalho institucional, o significado dado a criatividade e muitos outros aspectos. Com independência da valorização que o próprio professor tenha da criatividade de seu trabalho pedagógico, a partir de suas ações, sentidos e resultados, a valorização existente na escola sobre a criatividade e a concepção que se tenha de sua expressão no contexto escolar vão fazer parte da configuração de elementos subjetivos com que, nesse espaço social, vai se apreciar o trabalho pedagógico em termos de criatividade.

O professor contribui com suas configurações subjetivas e com suas ações na constituição da subjetividade social da escola; porém, também é constituído por ela de alguma forma, por exemplo, a partir de como ele se representa elementos dessa subjetividade social, ou na medida em que alguns dos significados e sentidos que a constituem são assumidos ou rejeitados. É importante salientar que a subjetividade social da escola, como contexto social específico, está perpassada pela subjetividade social de outros espaços sociais. Assim, na subjetividade social de uma escola concreta, expressam-se sentidos e significados da sociedade em um sentido mais amplo e também da família e da comunidade como espaços sociais intimamente vinculados ao espaço escolar. Os sistemas de crenças dominantes na sociedade sobre a função da escola e do professor ou as expectativas dos pais em relação a educação dos filhos no contexto escolar aparecem de alguma forma na rede de sentidos e significados da escola como espaço social.

Por que a criatividade no trabalho pedagógico torna-se difícil? Algumas hipóteses.

Se analisarmos a complexa configuração de elementos implicados na criatividade no trabalho pedagógico, podemos tentar compreender por que a criatividade não tem-se constituído como uma questão significativa no contexto escolar. Com independência da

Criatividade no Trabalho Pedagógico e Criatividade na Aprendizagem

existência de muitos professores que exercem sua ação pedagógica com implicação e criatividade, conseguindo resultados muito satisfatórios e inclusive relevantes, deve-se reconhecer, em sentido geral, que a criatividade no trabalho pedagógico dos professores ainda está longe do desejável e, especialmente, longe do necessário em termos de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos.

Algumas hipóteses podem ser levantadas em relação a essa questão. Uma delas consiste na função de transmissão de conhecimentos e de adaptação social conferidos à escola. Em virtude de razões históricas, ideológicas, econômicas e culturais, a escola tem sido compreendida como um espaço de transmissão da cultura e de preparação dos indivíduos para sua inserção na sociedade, essencialmente no mercado de trabalho. Com independência das tendências que percebem a escola como uma via de mudança e transformação social, a concepção da escola como espaço de transmissão e adaptação tem tido um peso significativo na subjetividade social.

Infelizmente, os processos de transmissão da cultura são vistos, essencialmente, como espaços de transmissão de conhecimentos, de conteúdos acadêmicos necessários para a vida profissional. As exigências de ascensão no sistema educativo e os processos seletivos utilizados para atingir os níveis superiores, como é o caso dos exames vestibulares, estão atrelados a uma concepção de acúmulo de conhecimentos essencialmente reprodutivos que, de fato, direcionam a organização do trabalho pedagógico em outros níveis do sistema educacional. Nessa concepção, o aprendiz ocupa uma posição passiva no sentido de receptor e uma posição adaptativa pelas exigências que lhe são impostas, ao que se vê obrigado a cumprir. Essa compreensão da educação que aparece, às vezes, até sutilmente em discursos supostamente "revolucionários" não contribui para se enxergar a necessidade da criatividade no trabalho pedagógico, já que a passividade e adaptação são elementos bem distantes da criatividade. Em outras palavras, trabalhar em uma perspectiva de "passar conhecimentos" demanda menos criatividade do que trabalhar em uma perspectiva de incentivar processos de aprendizagem e desenvolvimento reais.

Concordamos com a idéia central de Tharp et al. (2002, p. 57) quando afirmam:

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Resulta muito mais fácil ensinar de uma maneira rotineira, com níveis mínimos, porque desafiar os estudantes para estimular seu crescimento cognitivo exige que os professores se desafiem, se avaliem e se ajudem a eles mesmos conjuntamente com os estudantes. O custo percebido em relação ao esforço por parte dos professores ao preparar atividades cognitivamente desafiadoras impede freqüentemente esta atividade. Porém este é o nível de atividade que pode outorgar vitalidade à profissão (e aos professores como indivíduos).

Uma outra hipótese é que a criatividade, na medida que implica algum tipo de mudança, de transformação, pode ser vista como "subversiva". E a subversão da ordem, na maioria das vezes, não é bem vinda, nem facilmente tolerada ou aceita, essencialmente quando se trata de um trabalho realizado em sistemas sociais complexos como as instituições; entre elas, a instituição escolar.

Uma terceira hipótese é o fato de que, em grande parte pelas razões anteriores, não existem fortes demandas externas para introduzir novidades significativas no trabalho pedagógico. De forma diferente em relação a outros tipos de organizações como as de produção e as de prestação de determinados tipos de serviço, que em uma sociedade altamente competitiva estão obrigadas a serem criativas e inovadoras para subsistir como tais, a escola não sofre fortes pressões externas para realizar mudanças. Sabe-se que criatividade e necessidade têm uma estreita relação. A mudança tem, em última instância, sempre sua origem em uma necessidade. Inclusa na chamada criatividade por acaso, em oposição à criatividade normativa e à criatividade exploratória (Majaro, 1991), a necessidade expressa-se na possibilidade de enxergar algo relevante em um fato acontecido por acaso. Essa possibilidade de enxergar o fato casual de forma significativa explica-se pela necessidade dos sujeitos de compreender a importância do fato e relacioná-lo com outras demandas relevantes ou de sua curiosidade para compreender e tentar dar resposta ao inesperado. No trabalho pedagógico, não existem fortes demandas, externas ao sistema, que gerem uma imperiosa necessidade de respostas criativas, como acontece em outros campos. A necessidade de criatividade emerge de sujeitos concretos, na maioria das vezes restritos a uma sala de aula ou a uma escola específica.

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Uma outra hipótese possível é o fato de que os professores tendem a reproduzir no seu trabalho profissional o que vivenciaram na sua vida como estudante, o que vivenciaram e aprenderam durante anos em um sistema educativo que, historicamente, por razões compreensíveis, não tem valorizado nem tem se caracterizado pela criatividade e pela inovação. (Mitjáns Martínez, 1998). E mais, além do que é ensinado explicitamente nos currículos dos cursos de formação de professores, ainda tem sido reforçado nesse nível de ensino, de múltiplas formas, geralmente implícitas, um aprendizado sobre o que é ser professor e de como se ensina, que realmente pouco tem a ver com a criatividade, que supostamente deverá ser promovida depois. Aliás, conteúdos e atividades incentivadoras da criatividade e da inovação no trabalho pedagógico aparecem muito raramente nos projetos acadêmicos e nas grades curriculares das instituições que formam professores.

Se aos elementos anteriores somarmos ainda outros, como a situação salarial dos professores que os leva à necessidade de trabalhar em mais de uma escola para manter um nível salarial razoável que corresponda a suas necessidade e planos de vida; como o excessivo número de alunos por turma em muitas de nossas escolas; como as exigências burocrático-administrativas que fazem a rotina de muitos aspetos da vida escolar, entre outros aspectos adversos, poderemos encontrar muitas outras razões para explicar a relativa falta de criatividade em muitas das nossas escolas.

Mesmo assim, muitos professores em contextos específicos expressam um alto nível de criatividade no seu trabalho pedagógico e se constituem em agentes de mudanças em termos de incremento da criatividade e da inovação no seu raio de ação. Isso é explicável pela complexidade de fatores envolvidos na criatividade, em que as situações tidas como adversas, algumas já mencionadas anteriormente, enquanto para alguns indivíduos constituem-se barreiras para a criatividade, para outros funcionam como incentivos para desenvolvê-la ou são elementos aceitos como inevitáveis, os quais não impedem a emergência da criatividade no trabalho profissional.

As barreiras à criatividade não são universais, mesmo que seu tratamento na literatura científica, durante muitos anos, tenha dado motivos para que fossem compreendidas dessa forma. As barreiras à criatividade não podem ser analisadas, nem consideradas com

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independência dos sujeitos que as percebem; portanto, não podem ser vistas como tais. A criatividade é possível a partir de complexas relações sujeito-contexto, em que o primeiro tem um caráter ativo e intencional que lhe permite atuar a partir dos recursos subjetivos que possui, da representação que se faz da situação vivida e dos sentidos subjetivos que emergem na sua própria ação.

Além das nossas pesquisas em relação às barreiras à criatividade (por ex: Alencar; Mitjáns Martinez, 1998; Alencar, Fleith, Mitjáns Martinez, 2003), em nosso trabalho de formação de professores a partir de cursos, oficinas e estágios, temos trabalhado o tema das barreiras à expressão da criatividade com o objetivo de desmistificar a forma simplista e reducionista dominante na consideração dessa questão. O elemento indutor para a reflexão que temos promovido tem sido uma prova de papel e lápis apresentada em uma folha de papel apenas com o seguinte conteúdo:

Complete da forma mais ampla e sincera possível a seguinte idéia:

Eu seria mais criativo se 5

Essa tarefa é sempre apresentada após ter se estabelecido uma boa comunicação com o grupo, ou seja, quando já existe um clima emocionalmente positivo de confiança e segurança psicológica entre todos. Mesmo assim, insiste-se no caráter anônimo da reflexão, porque para a discussão não interessa individualizar a produção, pois o foco do trabalho está na produção do grupo como um todo. Um cuidado que sempre é tomado consiste em apresentar a tarefa em um momento anterior ao momento em que o tema da criatividade começa a ser tratado ou discutido.

Como se pode verificar, a frase indutora não se refere de forma explícita à questão das barreiras, à expressão da criatividade; no entanto, ela permite obter informação destas de forma indireta, já que, quando o sujeito reflete sobre as situações, condições ou características que lhe permitiriam ser mais criativo, acaba refletindo sobre elementos que não estão favorecendo ou que se constituem em empecilhos para a expressão da sua criatividade no momento atual.

Logo após os professores terminarem sua reflexão escrita, utilizando todo o tempo que necessitem para isso, recolhemos os

5. Esta técnica foi idealizada por Alencar (Alencar; Mitjáns Martínez, 2003 ) com base em um exercício proposto por Necka (1992).

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trabalhos e, de forma aleatória, redistribuímos estes cuidando para que ninguém receba a reflexão que elaborou. A partir desse momento, o grupo é subdividido em subgrupos de aproximadamente 4 ou 5 professores, os quais têm como tarefa analisar as reflexões recebidas, identificar as barreiras que aparecem, classificando-as em pessoais e sociais e devendo quantificar as que aparecem com maior freqüência em cada uma das duas categorias..

Para o trabalho de reflexão com os professores, portanto, utilizamos uma classificação simples e tradicional de barreiras à expressão da criatividade em que aparecem os dois grandes grupos: barreiras pessoais e barreiras sociais:

Existe consenso em se considerarem como barreiras pessoais aqueles elementos que freiam o indivíduo internamente, ou seja, aquelas características do próprio sujeito que limitam sua criatividade. Essas características são essencialmente personológicas (insegurança, falta de motivação, medo, dificuldade para ver um problema sob diferentes ângulos , timidez etc), além de outras relativas à falta de conhecimento ou de informação. As barreiras sociais identificam-se com aqueles elementos culturais, institucionais, grupais, ideológicos etc. que, estando presentes no contexto onde o indivíduo atua, limitam sua expressão criativa (por exemplo, autoritarismo, falta de estímulo à criatividade, incompreensão pelos pares etc.) (Alencar; Mitjáns Martinez, 1998, p. 26-27).

Torna-se necessário salientar que, a partir da concepção histórico-social do desenvolvimento humano que constitui o marco referencial teórico com que trabalhamos, denominamos como barreiras pessoais os elementos subjetivos que não são inatos nem inerentes ao ser humano, mas que foram constituídos no processo de história de vida do sujeito, a partir de sua inserção e ação em múltiplos contextos sociais; porém, que se configuram hoje como parte da sua subjetividade.

A tarefa de classificação das barreiras e de sua quantificação permite uma rica discussão nos subgrupos em relação a se algo que foi colocado constitui realmente uma barreira, se a barreira identificada pode ser classificada estritamente como social ou como pessoal, assim como outras questões interessantes que são

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retomadas depois na discussão do grupo. Isso tudo aparece como ponto de partida para a discussão geral sobre formas mais complexas de enxergar o problema das barreiras à expressão da criatividade e de desconstruir o reducionismo e o simplismo no tratamento desse tema.

Na totalidade das quase três dezenas de grupos de professores com os quais temos feito este trabalho, as barreiras dominantes têm sido as barreiras pessoais. Isso tem promovido interessantes análises sobre a gênese delas na história de vida, em muitos casos associadas à vida escolar, sobre a importância da conscientização de elementos subjetivos que podem estar limitando a expressão criativa e sobre as possibilidades de delinear planos de desenvolvimento pessoal. Também têm sido discutidas muitas barreiras categorizadas como sociais, algumas das quais se relacionam estreitamente com algumas das hipóteses levantadas, anteriormente, para tentar explicar as dificuldades para a criatividade no trabalho pedagógico. Particular interesse suscitam as discussões em que se evidencia que, para professores de uma mesma escola, determinadas situações são percebidas como barreiras para a criatividade, justificando-se, em algumas ocasiões, a falta de criatividade pela existência destas. No entanto, para outros, as situações mencionadas são percebidas como desafios estimuladores de sua criatividade.

Este trabalho exemplifica como a caracterização de um elemento como favorecedor ou como inibidor da criatividade não pode ser feita de forma universal à margem dos sujeitos que são quem as percebem de uma ou outra forma, reforçando a idéia de que a criatividade, em qualquer área, constitui uma expressão de complexas configurações do sujeito-contexto, nas quais a dimensão subjetiva- social e individual - emerge como essencial.

Na nossa perspectiva, o professor pode e deve utilizar, para desenvolver seu trabalho pedagógico, todos os graus de liberdade disponíveis nos espaços sociais nos quais exerce sua ação e não deve se auto-impor barreiras a priori, sem explorar ao máximo as possibilidades de ação que realmente tem. Já na sua condição de agente de mudanças pode trabalhar intencionalmente na ampliação de seu espaço de ação, na necessária tensão entre sua ação intencional e os limites que todo espaço social impõe.

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A criatividade na aprendizagem e suas inter-relações com a criatividade no trabalho pedagógico

Na atualidade, é comum entre os especialistas em criatividade compreendê-la como um processo que se expressa em diferentes áreas da atividade humana, não ficando restrita a apenas algumas. Nesse sentido, já conceituamos o que constituiria a criatividade no trabalho pedagógico e, da mesma forma, podemos fazer referência à criatividade no processo de aprendizagem ou em relação à aprendizagem criativa, questão que tem constituído, nos últimos anos, um de nossos objetos de interesse.

Dentro das principais áreas de pesquisa sobre a criatividade no campo da Educação, os estudos sobre a criatividade no processo de aprendizagem emergem como uma direção de trabalho importante, mas relativamente pouco trabalhada, se comparada com as linhas de trabalho direcionadas a compreender os elementos inibidores e favorecedores da expressão da criatividade no contexto escolar e ao desenho de estratégias para o seu desenvolvimento (Mitjáns Martínez, 2001).

A criatividade no processo de aprendizagem tem sido trabalhada fundamentalmente a partir da caracterização dos alunos criativos, dos estudos sobre as representações que os professores têm da criatividade dos alunos e dos estudos sobre as representações que os alunos têm da sua própria criatividade. Interessantes trabalhos nessa direção têm sido desenvolvidos por Alencar (1974,1996,1997), Chan e Chan (1999) e Dawson (1999), entre outros.

Em um trabalho anterior (Mitjáns Martínez, 2003), procuramos precisar, em termos de expressão comportamental, quais poderiam ser os indicadores de criatividade no processo de produção de conhecimentos. Alguns indicadores gerais, derivados das investigações de diversos autores e daquelas realizadas por nós, podem ser considerados levando-se em conta sempre sua expressão diferenciada em razão da diversidade e da especificidade das disciplinas escolares, tipos de atividades e campos de conhecimentos. Estes são:

• Realização de perguntas interessantes e originais; • Questionamento e problematização da informação; • Percepção de contradições e lacunas no conhecimento;

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• Estabelecimento de relações remotas e pertinentes; • Proposição de várias alternativas e hipóteses ante os

problemas a resolver; • Solução inovadora de problemas; • Elaboração personalizada de respostas e proposições; • Procura de informações e realização de atividades que vão

além do solicitado pelo professor (Mitjáns Martínez, 2003, p. 193).

Também, a partir de pesquisas realizadas em Cuba, sinalizávamos a necessidade de atender a outros elementos da subjetividade que poderiam se constituir em indicadores indiretos das possibilidades criativas do aluno. Entre eles estão:

• Motivação pelo estudo; • Capacidades cognitivas diversas implicadas na aprendizagem

escolar; • Autodeterminação, independência; • Auto-valorização adequada, segurança; • Questionamento, reflexão e elaboração personalizados; • Capacidade para estruturar o campo de ação e tomar decisões; • Capacidade para se propor metas e projetos; • Capacidade volitiva para a orientação intencional do

comportamento; • Flexibilidade; • Audácia (Mitjáns Martínez, 2003, p.193).

No entanto, a diversidade de formas em que se expressa a criatividade no processo de aprender, as estratégias e processos que a caracterizam, a própria definição de aprendizagem criativa e a complexa rede de processos subjetivos, contextuais e interativos que a tornam possível, ainda apresentam desafios para a investigação.

Na produção científica, na área da aprendizagem humana, podemos encontrar outras direções de trabalho que, articuladas à produção científica na área da Psicologia da Criatividade, contribuem de modo a compreender a aprendizagem criativa como uma forma de aprender caracterizada por estratégias e processos específicos, em que a novidade e a pertinência são indicadores essenciais. Particular valor, do nosso ponto de vista, tem o conceito de aprendizagem significativa que, mesmo sendo um conceito

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heterogêneo e articulado a diferentes posições teóricas como analisa Coll (1996), tem importantes pontos de contato com o conceito de aprendizagem criativa, especialmente os referidos aos significados e sentidos que o caracterizam.

Um antecedente importante nesse sentido é o conceito de aprendizagem significativa de Ausubel em contraposição ao que denomina de aprendizagem automática. Segundo Ausubel (1980, p. 3 4 ) , a essência da aprendizagem significativa é que as idéias expressas simbolicamente são relacionadas às informações previamente adquiridas pelo aluno através de uma relação não arbitrária e substantiva (não literal).

Ao discutir as diferenças entre significado lógico e psicológico e apresentar a formação de significados reais como produto do processo de aprendizagem significativa, afirma:

A discussão precedente pôs em relevo uma distinção entre o significado potencial para determinados alunos de certas expressões simbólicas e de algumas conceituações de proposições, por um lado, e o significado real (fenomenológico ou psicológico) que é produto de uma aprendizagem significativa, por outro. O significado real, de acordo com este ponto de vista emerge quando este significado potencial transforma-se num novo conteúdo cognitivo, diferenciado e idiossincrático para um indivíduo particular, como produto de uma relação não arbitrária e substantiva, e a interação com idéias significativas em sua estrutura cognitiva [grifo nosso] (p.41).

Potencial importância conferimos à sua concepção de aprendizagem significativa por descoberta a qual se diferencia da aprendizagem significativa receptiva, exemplificada na citação anterior. Ausubel (1980, p. 51) expressa a diferença entre ambas da seguinte forma:

A diferença principal entre aprendizagem proposicional considerada por um lado como aprendizagem receptiva e, por outro lado, como situações de aprendizagem por descoberta reside no seguinte fato: se o conteúdo principal do material a ser aprendido vai ser apresentado ao aluno, ou pode ser descoberto por ele. Na aprendizagem receptiva esse conteúdo é apresentado sob a forma de uma proposição que não exige raciocínio e que necessita apenas

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ser compreendida ou memorizada . Na aprendizagem por descoberta, por sua vez, o aluno deve primeiramente descobrir este conteúdo através de produção de proposições que reapresentem a solução para problemas sugeridos ou a seqüência de etapas para sua solução [grifo nosso].

Todavia, analisando o processo de internalização significativa de estratégias de solução de problemas que desencadeia um processo de aprendizagem por descoberta, esclarece que

de fato, o único aspecto realmente criativo nessa seqüência total consiste no processo de transformar o substrato das proposições em proposições potencialmente significativas para a solução do problema [grifo nosso] (Ausubel, 1980, p. 51).

Com independência da visão cognitivista que impregna toda a teoria de aprendizagem de Ausubel, a forma com que trabalha os critérios de novidade, transformação, individualização e criação, nos processos específicos de construção de significados, pode resultar interessantes antecedentes na construção de uma concepção de aprendizagem criativa, a partir de uma concepção complexa da subjetividade que não desconsidera os aspectos operacionais da aprendizagem.

Outro autor de indiscutível importância para a elaboração de uma concepção complexa da criatividade no processo de aprendizagem é Carl Rogers a partir de sua concepção também denominada como aprendizagem significativa. Considerado um exponente das teorias de aprendizagem de caráter humanista, Rogers apresentou, a partir de sua concepção do homem e de sua experiência terapêutica, uma concepção de aprendizagem significativa extremamente sugestiva já que, para ele, a aprendizagem relaciona-se com a pessoa total.

Rogers (1986) considera que a aprendizagem pode se dividir em dois tipos ao largo do continuum que expressa sua significação. Um tipo de aprendizagem em que apenas participa a mente, que se efetua "do pescoço para cima" sem participação de emoções e das significações pessoais e sem importância para a pessoa como um todo, e um outro tipo de aprendizagem que é sugestiva, significativa, experimental e na qual participa a pessoa total. Ele caracteriza esse tipo de aprendizagem da seguinte forma:

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Permita-se me determinar com um pouco mais de precisão os elementos que intervém nessa aprendizagem significativa ou experimental. Esta tem o caráter de uma implicação pessoal: a totalidade da pessoa , no seus aspetos sensitivo e cognitivo e se encontra no ato de aprender. E de iniciativa própria, pois mesmo quando o impulso ou estímulo provenha de fora, a sensação de descobrir, de conseguir, de apreender e compreender vem de dentro. E difusiva pois faz que mudem as condutas, as atitudes e talvez até a personalidade do educando. É avaliada pelo aluno, pois este sabe se responde a sua necessidade, se lhe conduz a aquilo que quer saber, se ilumina a parte obscura da ignorância que experimenta. O foco da avaliação, poderia se dizer, encontra-se precisamente no educando. Sua essência é a significação, pois, quando acontece esse tipo de aprendizagem, o elemento de significação para o educando se estrutura dentro da experiência total (Rogers, 1986, p. 32-33).

Na concepção rogeriana da aprendizagem, salienta-se a significação que a aprendizagem tem para o sujeito que aprende a partir de sua implicação pessoal no processo de aprender. Esse elemento constitui um importante antecedente para a construção de uma concepção da aprendizagem em uma perspectiva complexa e para a elaboração de uma compreensão da criatividade da aprendizagem, especialmente porque é salientado o valor que esse tipo de aprendizagem tem para o desenvolvimento do aprendiz como pessoa. Mesmo sem uma conceituação elaborada da subjetividade, na concepção rogeriana de aprendizagem significativa, desloca-se a ênfase da cognição para o sujeito, questão essencial para avançar em uma concepção de aprendizagem em que seja reconhecida a subjetividade como constitutiva do processo de aprender.

Dentro dos estudos da cognição, trabalhos referentes aos processos de descobrimento e solução criativa de problemas (Runco; Chand, 1994; Jay; Perkins, 1997, Reiter-Palmon; Mumford; Threlfall, 1998), aos processos metacognitivos (Jausovec, 1994; Treffinger; Isaksen; Dorval, 1994) e aos estilos cognitivos e de aprendizagem (Weschler, 1993; Sternberg, 1997; Dowds, 1998; Cano-García; Hughes, 2000) resultam também interessantes para a compreensão e a conceituação da aprendizagem criativa.

A revisão de produções relevantes no campo da criatividade, da cognição e da subjetividade humanas, assim como os resultados das pesquisas que estamos desenvolvendo sobre a criatividade na

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aprendizagem a partir da perspectiva histórico-cultural da subjetividade (González Rey 1997, 1999, 2003a), entre elas as desenvolvidas por Guimarães (2004) sobre estratégias de aprendizagem e configurações subjetivas de estudantes criativos, permitem-nos elaborar a hipótese de que a criatividade no processo de aprendizagem escolar implica operações e estratégias que se caracterizam pela transformação personalizada dos conteúdos a serem aprendidos, processo no qual emergem sentidos subjetivos que de forma recursiva "alimentam" o processo de aprender criativamente. Toma-se importante a continuação das pesquisas e da elaboração teórica nesse campo, articulando a compreensão dos aspectos mais processuais da criatividade na aprendizagem com dimensões mais complexas, tais como o sujeito desse processo e as configurações subjetivas individuas e sociais, que nesse processo participam.

A criatividade no processo de aprendizagem deve ser incentivada e estimulada no contexto escolar pela significação que tem para o próprio processo de aprendizagem e para o desenvolvimento do aluno em um sentido geral. Além disso, da mesma forma que nos referimos quando analisamos a criatividade no trabalho pedagógico, não podemos subestimar a importância que a criatividade, no processo de aprendizagem, pode ter para a realização, o bem-estar emocional do aluno e, conseqüentemente, para os processos de saúde.

A criatividade tio processo de aprendizagem, como a criatividade em qualquer campo, se partimos da consideração da complexidade da psique humana, depende de configurações complexas de elementos. Particular importância ganham as configurações subjetivas do aluno constituídas no percurso de sua história de vida, do desenvolvimento de sua condição de sujeito, da subjetividade social do espaço escolar, dos sentidos subjetivos6 que emergem na relação pedagógica e no próprio processo de aprender, assim como outros sentidos subjetivos que adquirem significação no espaço da aprendizagem.

A criatividade no processo de aprendizagem tem estreitas relações com a criatividade no trabalho pedagógico; porém, essas relações não são causais nem lineares. Precisamente, uma das questões

6. O sentido subjetivo é conceituado por González Rey como a "organização subjetiva que se define por uma articulação complexa de emoções, processos simbólicos e significados que toma formas variáveis e que é susceptível de aparecer em cada momento como uma organização dominante" (2001, p. 16). Para esse autor, a não produção de sentido no processo de aprender conduz a uma aprendizagem formal, descritiva, rotineira, memorística, que não implica o sujeito que aprende (2003b, p. 81).

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com que queremos finalizar a análise realizada neste capítulo é a não linearidade dessas relações derivada da complexidade constitutiva de ambos processos.

Existe uma tendência a afirmar que, para que existam alunos criativos, são necessários professores criativos e que a criatividade na aprendizagem emerge em ambientes de liberdade e de incentivo específico à criatividade. No entanto, em nosso trabalho sobre criatividade no contexto escolar, temos encontrado alunos que aprendem de forma criativa em contextos escolares tradicionais e com professores que não se caracterizam pela criatividade no seu trabalho pedagógico. Por outro lado, encontramos professores que realizam um trabalho pedagógico com um alto nível de criatividade e obtêm resultados satisfatórios na aprendizagem e no desenvolvimento de seus alunos; porém, sem significativos avanços no processo de criatividade na aprendizagem.

Quando formulamos o Sistema Didático integral para contribuir ao desenvolvimento da criatividade (Mitjáns Martínez, 1997), ao qual nos referimos na primeira parte deste trabalho, o concebíamos como uma estratégia sistêmica intencional para favorecer o desenvolvimento da criatividade; contudo, sem perder de vista a complexidade constitutiva do processo de criatividade na aprendizagem e sem pretender relações lineares de causa efeito.

Na criatividade no processo de aprendizagem, podem participar, também, configurações e sentidos subjetivos oriundos de outros espaços sociais e não diretamente derivados das experiências no espaço escolar atual e das relações pedagógicas que caracterizam-no, o que constitui um fator que permite compreender sua emergência em espaços escolares, caracterizados por um trabalho pedagógico tradicional.

Ao se assumir a complexidade constitutiva da criatividade, não se pode pretender que estratégias estandardizadas contribuam de forma efetiva a incentivá-la na aprendizagem, em todos os integrantes do grupo de alunos. As configurações de elementos implicados na criatividade na aprendizagem são altamente individualizadas, o que exige um olhar personalizado se o que se pretende é incentivar sua expressão.

Na nossa perspectiva, uma possibilidade de expressão da criatividade no trabalho pedagógico radica na mudança de representação do que é uma sala de aula: a capacidade de enxergá-la como integrada por sujeitos diferentes com configurações subjetivas diferentes que exercem o processo de aprender de forma também

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diferente. O conceito de "turma", sem pretender subtrair a importância dos processos grupais que podem favorecer significativamente os processos de aprendizagem e desenvolvimento, tem que coexistir com a visão da diversidade, das individualidades, passo inicial para procurar estratégias de aprendizagem e desenvolvimento efetivos.

O desafio de contribuir para o desenvolvimento da criatividade na aprendizagem dos alunos não pode ser assumido com receitas e estratégias universais, o que negaria a própria criatividade. A utilização criativa de princípios e estratégias gerais na realidade pedagógica concreta constitui, na nossa perspectiva, o melhor caminho para cumprir esse objetivo.

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