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ATELIER V 2017 “O subúrbio, pelos sentidos de Giulia, Juliane, Lua, Luiza, Paula e Rita.”

Apresentação do PowerPoint · Seu dono vem logo atrás, à vontade em sua calça de pano e par de havaianas nos pés. -Bom dia. – Disse a duas meninas sentadas no banco do quiosque

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ATELIER V 2017

“O subúrbio, pelos sentidos de Giulia,

Juliane, Lua, Luiza, Paula e Rita.”

CHEGADAS E DES-ENCONTROS 1

Num ponto, ali pelo Rio Vermelho, ia passando um bocado de

ônibus. Só não passava o bendito ônibus amarelo que mandaram as

meninas pegarem pra chegar ao Subúrbio. Demorou quase meia

hora pra avistarem o dito cujo. E por sorte –ou azar, depende do

ponto de vista-, bastou cruzarem a catraca que começou a cair foi

um pé d’água daqueles. O ônibus rodou um monte de rua, deu cada

volta miserável e nada de chegar. Tiveram que fechar as janelas,

muito embora o pinga-pinga continuasse vindo do teto. O ônibus

ia enchendo e logo não tinha lugar pra sentar. Em uma hora

ainda faltava metade do caminho e aquilo ali virou uma sauna

ambulante. Até que nem ambulante era mais, porque engarrafou

tanto que quase nem saía do lugar.

Chegando ao destino, encontraram uma outra menina que esperava

há um bom tempo. Ela vinha de outra direção e a o trajeto era

menor. Juntas, desceram para a rua 19 de Março em direção à

creche. Batiam na porta de metal enferrujada, sem resposta,

quando dois jovens de uns 17 anos as abordou:

-É Dona Janice?

-É, queremos falar com ela.

-Saiu ainda agorinha. Não deve voltar hoje não.

-Poxa, obrigada. – E agora decidiam entre si – Vamos na enseada

então.

Mas os dois jovens voltaram a interferir:

-Olhe, é meio perigoso vocês seguirem por aqui. Se forem mesmo,

cruze as bolsas igual à de sua amiga – e apontou pra uma delas,

que carregava uma bolsa de pano nos ombros. Curiosamente, os

dois jovens seguiram para a enseada.

As meninas acabaram seguindo pra o Emaús. Sr. Geraldo, o padre

que coordena a Associação 1º de Maio, disse que estaria lá agora

de tarde. A escola ao lado tinha acabado de liberar os alunos e a

fachada se escondia por trás de dezenas de adolescentes

fardados.

-Ei, de calça preta. Psiu. Ei. Calça preta.

Alguns estudantes se engraçaram uma das meninas. Outros só

olharam, curiosos. As quatro responderam com um “boa tarde” e

seguiram para seu destino.

-Eita, meninas. Geraldo e Jandiara tiveram que sair. Foram

resolver umas coisas na cidade.

-Que cidade?

-Lá pelas bandas da Federação.

-Mas não é tudo a mesma cidade?

-É, só modo de falar.

As meninas entenderam. E só o modo de falar, às vezes, quer dizer

muita coisa. Saíram do Emaús. A noite ia chegando e preferiram

acatar o conselho daqueles dois jovens: não foram à enseada

naquele dia. Subiram para o ponto de ônibus e ali esperaram o

Terezinha, a mesma linha da longa e escaldante viagem de ida.

Dessa vez, o caminho foi generoso. O ônibus não demorou de passar

e São Pedro tinha dado uma trégua. Aliás, a volta das meninas era

quase uma experiência gastronômica. Bolinhos de chocolate, balas

de iogurte, saco de salgadinho e até abará por 1 real, quase

sempre acompanhados de uma rima improvisada ou um apelo aos

passageiros mais sensíveis. Entre uma compra e outra, as meninas

foram conversando com uma mulher sentada na cadeira ao lado:

-Você mora por aqui?

-Moro em Fazenda Coutos, tava na casa de minha mãe em

Plataforma e agora to indo pro trabalho lá na cidade – de novo, a

tal cidade – e vocês, meninas?

As meninas contaram de suas experiências no subúrbio. Que foram

no trem, na enseada, no barco. Contaram dos Geraldos e Nelsons e

Janices. Do lixo, do muro da paquera na escola, da menina Júlia

que queria ser médica.

-No trem? VOCÊS? Mas meninas, cês são doidas. Eu nunca andei nesse

trem.

-E por que não?

-Eu?! Morro de medo. Ali é um perigo só. Cuidado vocês andando por

aí, viu?

Mas o ônibus chegou “à cidade”. À cidade onde os Geraldos e os

Nelsons e as Janices talvez se sentissem turistas. À cidade,

dentro da cidade. E desceram do ônibus, pensando em tudo que

conheceram daquela outra cidadezinha. E em tudo que ainda

haveriam de conhecer.

1

1 CHEGADAS

E

DESENCONTROS

LASQUINÊ 2

O relógio apontava quase 9:00 de uma quinta-feira quando a Rua

dos Ferroviários ganhava movimento. Os moradores saíam de suas

casas em direção ao ponto de ônibus e seguiam para seus

trabalhos. Em meia hora, a rua já era outra: comércios abertos,

meninas indo para o ballet, meninos a caminho do futebol,

caminhões passando com materiais de construção, gente comprando

pão. O galo cantava (atrasado, ao meu ver), competindo com uns

carros de som que começavam a tocar, com a buzina dos moto

taxistas, com o homem que gritava “ó o cafezinho” e com as

conversas cruzadas no meio da rua. O galo perdeu feio, como um

artista de rua pelo qual todos passavam despercebidos.

Os carros seguiam em ambos os sentidos pela rua estreita. Se

preciso fosse, paravam ali mesmo. Bem uns cinco ônibus passaram

ali de manhã e o motorista que se virasse passar. As calçadas

tinham seu estreito espaço disputado entre buracos, postes,

tapetes secando e homens parados, conversando. Aliás, tirando

algumas mulheres que passavam com crianças, a maioria do

pessoal ali era de homens. Nos depósitos, nas janelas, na

barraquinha de salgados, a conversa não variava muito.

-Ei, Jair. Já fez a sorte da semana?

-Rapaz, fiquei de jogar hoje.

-E você viu o jogo de domingo? Que porra de time é aquele?

-A gente é que gosta de sofrer, meu amigo.

Entre papos de loteria e futebol, três mulheres faziam seu

próprio jogo na porta de casa, e narravam sem discrição as

partidas de dominó.

-Bucha de sena, começo.

-Passo.

-Tá escondendo peça, mulher?

-Tá doida? Joga logo que é sua vez.

E a manhã se estendia ensolarada. Bem ali defronte, já perto de

meio dia, os alunos saíam da escola. Em alguns minutos o que já

era conhecido como “muro da paquera” tinha sido tomado por

adolescentes fardados. As conversas não pude ouvir, e talvez

tenha sido melhor assim.

Sol a pino, alguns pais e mães buscavam as crianças na creche

ali perto. Pela rua, um carro da polícia estacionava mais à

frente, um único ônibus passou no turno da tarde, além do

caminhão de lixo e um carro de manutenção de TV a cabo entrou

numa das ruas transversais. E tá aí um negoço engraçado: tinha

era um monte de casa sem reboco, obra inacabada, ostentando uma

antena da sky na laje de cobertura. Escolhas.

A tarde caía, a paisagem mudava e o movimento oscilava. Uns

homens entravam em suas casas, outros se juntavam à conversa.

Alguns brindavam uma cerveja gelada, outros comiam um belo PF

de dez reais. O caminhLá pelo meio da tarde o movimento diminuía,

e, em meio à rua quase silenciosa, ouviu-se um estampido agudo, de

pedra batendo na mesa. Todos olharam:

-É lasquinê, mainha!

LASQUINÊ

2

2

OS MENINOS E O LIXO 3

O meio da semana amanhecia chuvoso, alagando a rua do Emaús.

Os bueiros dali não eram lá muito frequentes, e possivelmente os

que tinham estavam entupidos por lixo. Curiosamente, o caminhão

de lixo acabava de passar naquela rua. Os Garis recolhiam o que

havia nas lixeiras da rua principal e iam em direção à enseada

com uma vassoura e um carrinho de mão. Eis que se ouve um grito

de uma mulher furiosa, batendo a vassoura no chão:

-Desce daí, menino. Onde já se viu, brincar com lixo? Você tem um

minuto pra descer daí!

O menino, que devia ter lá uns 7 ou 8 anos, se despendurou da

traseira do caminhão e saiu correndo em direção à enseada. Fugiu

da fúria da mãe e se juntou a uns outros que jogavam bola na

quadra de areia. A orla era bem diferente das ruas ali de dentro.

Também tinha comércio, mas lá era itinerante, como o rapaz que

passava vendendo bananas no carrinho de mão e o homem que

caminhava oferecendo lanche a um real. Se bem que de ponto fixo

tinha o geladinho, que era vendido na casa de uma senhora bem

simpática.

As casas da enseada eram bem distintas umas das outras. Quase

todas aparentavam ser auto-construção, mas nem todas puderam

ser acabadas. Enquanto umas fachadas exibiam um revestimento

cerâmico, outras tinham a pintura desbotada e a maioria sequer

tinha reboco. Umas poucas eram como barracos, sustentadas por um

amontoado de ripas de madeiras.

Mas sim, voltando ao lixo. Esse é um assunto que não dava pra

passar despercebido por ali. Na orla, onde havia dois quiosques e

uns equipamentos de madeira, a grama se escondia sob a imundice.

Panos sujos, garrafas, restos de comida, fezes de animais. Não

havia lixeira no entorno, à exceção de um tonel a uns duzentos

metros de distância, e a paisagem poluída parecia se tornar

comum. Uma criança de uns dois anos perambulava pelo local

quando se abaixou para pegar algum resto de alguma coisa que

alguém ali descartara. Cachorros de rua e pombos comiam desses

mesmos restos.

Do outro lado da calçada, os garis levavam o que varriam nos

carrinhos de mão até o caminhão, parado na outra rua. Uma ou

duas horas depois, passaram duas meninas, também com carrinho

de mão, recolhendo materiais reciclados. Os moradores jogavam de

suas varandas, elas apanhavam e seguiam pela rua, sempre

olhando para o chão. Caminhar ali era como pisar em ovos, não

podendo desviar a atenção, sob o risco de pisar em cheio num

“presente” que algum cachorro ou cavalo deixara.

O lixo invadia também o mangue, d’onde muitos tiravam sustento.

Contaminava o córrego, que seguia correndo para o mar. Seguia.

Assim como a água, todos seguiam. Cachorros, cavalos, carrinhos de

mão, vendedores ambulantes, meninos. Todos ali seguiam sua

rotina, sem nem mais notar o lixo, que também seguia a compor a

paisagem e a vida de todos que por ali seguiam. E vida que segue.

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3 OS MENINOS

E O LIXO

PAPO DE QUIOSQUE 4

A quarta-feira amanhecera indecisa na enseada. Mas, entre as nuvens e

o sol que pedia licença, o dia seguia normal. Às 8:30 a maré estava seca

e o mangue dava o ar da graça, junto a um cheiro forte de lixo ao qual

todos pareciam habituados. Dentre os demais cachorros que ali

passeavam, um deles, do pelo preto e branco desgrenhado, corre em

direção à orla. Sua maratona é interrompida por uma coceira de dar dó.

Seu dono vem logo atrás, à vontade em sua calça de pano e par de

havaianas nos pés.

-Bom dia. – Disse a duas meninas sentadas no banco do quiosque ao lado.

O cachorro ainda coçava.

Logo mais chegou um outro homem, um pouco mais velho, ostentando uma

barriga avantajada. Sentou ao lado do outro.

-Tá sabendo? – O primeiro homem, dono do cachorro (que ainda coçava)

contou ao amigo.

-De que, rapaz?

-Os cara falou que ia pegar ele porque ele bateu na mãe, vei. Ó praí a

onda desse bicho. O cara deu dois socos na mãe. Ele disse que tá difícil,

eu falei: oxe, vá vender peixe.

-É, vei. O cara não quer nada da vida.

-É, infelizmente nossa amizade não dá, não.

Dois outros homens interrompem a história e se juntam ao grupo: um de

bermuda e camiseta, ornados por uma muleta e uma bota de gesso do pé

até o joelho esquerdo. O outro, com um macacão laranja neon, uniforme sei

lá de que, vinha logo atrás. Este último foi o primeiro que pareceu não

estranhar a presença das duas meninas, brancas, de rostso

desconhecidos, ali sentadas na enseada. Ao contrário, sua recepção foi

calorosa:

-Bom dia meninas! Podem ficar à vontade aí, viu? – E se voltou aos amigos.

A mulher do sonho passou na calçada. Não sonho, sonho mesmo. Aquele

sonho doce, que levava numa bacia à sua cabeça. A mulher, negra e

robusta, parecia acostumada ao sol que agora aparecia, e gritava

vendendo sonhos pelo bairro. Os quatro a cumprimentavam enquanto

botavam um reggae pra tocar no celular e compartilhavam um cigarro de

maconha.

-E aí, rapaz. Cê agora é líder comunitário, viu? Se você mora no areal, a

gente vai dar a chave da quadra pra você;

-Oxe, aí não pode botar cadeado não;

-Rapaz, mas eu não entendo. Ó quanto banco nessa quadra. Cadê que usam?

Devia botar ali na calçada que os cara não tem onde sentar;

-Agora o que podia mesmo era dar um grau nisso aqui né?

Todos se voltam pra grama, coberta por todo tipo de lixo, onde o

cachorro ainda coçava.

-Ó aqui, quatro cabeça e quatro vassoura;

-É, mais aí a gente vem, ajeita tudo e vem um desgraçado com uma porra

de um cavalo e suja tudo de novo;

-É, mas a gente tá falando de fazer a nossa parte, né.

-Ah, mas dá raiva. Se lembra da ciclovia, que botaram as placas? Os cara

arrancaram as placa, vei.

Ironia do destino ou não, um quinto rapaz sem camisa, também ostentando

uma barriga avantajada, aparece com um balde e molha um arbusto

plantado no meio da grama, solitário em meio ao lixo. Olha para as

mesmas duas meninas, sorri, acena e sai.

Eu, como narrador, sou um ótimo distraído, e já tinha me perdido na

conversa dos quatro. Peguei o bonde andando, como sempre.

-Oxe, mas os cara mora ali há mais de 10 anos. Como é que tira?

-Não tira. Os cara manda passar o trator com você dentro e a porra.

-Quando era tudo de pau não tinha dono não, pai. Aí ninguém queria.

-E é, hoje em dia os cara tem prazer de pagar 4 a 5 milhão pra tirar nóis

tudo.

Dois dos quatro se levantam, depois chega mais um, depois outro vai

embora e depois chegam mais dois. O cachorro ainda coçava. Um dos

homens estava consertando uma carro em frente da sua casa, onde havia

um monte de peças e lataria sobre a calçada. Aliás, a calçada toda era

extensão das casas: servia de varal, depósito de tijolo, sucata...

O som agora estava mais alto e mudou pra samba. Um outro amigo, de uns

dezoito anos, chutaria eu, chegou com uniforme escolar e uma gaiola de

passarinho e sentou ao quiosque. Logo mais aparece o que regou a

planta e ficou olhando as meninas, com curiosidade. Enquanto as duas

escreviam num caderno e revezavam quem descansava as costas no pilar

do quiosque, ele tomou coragem e puxou assunto:

-Vocês são estudantes de que?

-A gente tá escrevendo histórias sobre a cidade. Veio aqui pra se

inspirar.

-Ah, aqui inspira muito mesmo. O povo é que não sabe dar valor. Mas

parabéns aí e bom trabalho, podem voltar sempre que o pessoal é

tranquilo.

E voltou a conversar com os outros dois rapazes, ao que as meninas

agradeceram e voltam a anotar seu em seus cadernos. Acho que elas são

distraídas que nem eu, porque olhavam tudo. O sol já apontava umas 10:30

quando o movimento na rua aumentava. Mulheres de touca sentadas na

calçada lavando roupa, o pescador tecendo sua rede, crianças brincando,

homens ao mangue tomando banho de mangueira, senhoras com baldes para

catar marisco, homens lavando e consertando carros, soldando sabe lá o

que, conversando no quiosque...

Assim o dia seguia. E o cachorro ainda coçava.

PAPO

DE QUIOSQUE

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INTERLOCUÇÕES 5

Seguida por seu pai, ela chegou meio tímida à enseada. Com quatro

trancinhas de cada lado da cabeça, vestia uma camisa da seleção

brasileira, que não combinava muito com sua bermuda cor-de-rosa. Mas

ela não parecia ligar. Observava tudo ao seu redor, como quem

investigava algo. Se pendurou num aparelho de ginástica ignorando sua

real funcionalidade, mas logo percebeu que malhar não era realmente

divertido.

Caminhou à beira do guarda-corpo, perto de um outro rapaz ali parado,

ouvindo uma música gospel no celular. De costas para o manguezal, ela

via, na calçada, um menino que passava com sua gaiola de passarinho.

Mas se interessou mesmo foi pelas duas meninas ali sentadas. Nunca as

tinha visto por ali e elas não se pareciam em nada com seus amigos.

-Oi, tudo bem? – Uma das estranhas puxou conversa.

-Tudo – Falou sem sorrir, mantendo a pose desconfiada.

-Como é seu nome?

-Júlia.

-Quantos anos você tem?

Júlia mostrou cinco dedos na sua mão. As respostas eram curtas e secas,

mas ela parecia curiosa e pôs-se logo a sentar ao lado das meninas.

Outro homem passava com gaiola de passarinho por ali.

-O que você tá fazendo aqui?

-Tô com meu pai.

-E cadê seus amigos?

-Tão na escola.

-E porque você não tá na escola?

Júlia parecia já estar de saco cheio de todas aquelas perguntas, mas

não tinha muito o que fazer enquanto seu pai conversava com outros

três homens no quiosque ao lado – um deles, adivinha? Com sua gaiola de

passarinho.

-Eu estudo de tarde.

-Você gosta de estudar?

Ela fez que sim com a cabeça.

-E o que você quer ser quando crescer?

-Médica.

-E seus pais são o que?

-Meu pai tá desempregado e minha mãe tá no trabalho.

-Ela faz o que?

-Ela é assistente de secretaria no SESI.

-E você vem muito aqui brincar?

-Venho.

-De que?

-Pega-pega.

-Você e seus amigos?

-É.

-E o que mais você gosta de fazer?

-Brincar de boneca.

-Você gosta de princesas?

-Gosto.

-Que princesa você queria ser?

-Rapunzel.

Naquele instante, um outro homem chegou ao quiosque e prendeu sua

gaiola de passarinho ali, enquanto conversava com outros dois. Era o

quinto ou sexto com uma gaiola por ali.

-Mas não deve dar trabalho todo aquele cabelo?

-Deve.

-E quando é seu aniversário?

-Outubro.

-Que dia?

-Sexta-feira.

-Mas que dia?

-Não sei.

-Entendi.

Ao que seu pai aparece, cumprimenta as meninas com um levantar de

queixo discreto e chama a filha:

-Vamos, pai?

Júlia se levanta, interrompendo aquele diálogo desconexo, que esteve

muito mais pra monólogo, e sai andando com seu pai. Júlia, que faria

seis anos sabe-se lá que dia de outubro, queria ser médica. Júlia, que

brincava nos aparelhos de ginástica da enseada. E as meninas ficaram

ali, observando a absorvendo tudo sobre Júlia, sobre as crianças

brincando de pega-pega naquela grama cheia de lixo, sobre seu pai

desempregado e sobre o homem que acabara de prender um pombo branco

na gaiola.

-Bom dia, meninas! Como vão? – Um senhor de roupa social as surpreende,

imersas em seus pensamentos. – Gostaria de lhes entregar a palavra do

Senhor. Já são evangélicas?

-Bom dia, não senhor.

-O Senhor está lá em cima! Pois bem, vai ter uma festa no céu e vocês

estão convidadas. Fiquem com Deus!

-Amém – Disseram num coro meio desconsertado, enquanto observavam o

folhetim que dizia algo sobre sexo, amor e servir ao Senhor. O homem

seguiu espalhando a palavra de Deus pela Enseada do Alto do Cabrito.

Júlia continuava a andar com seu pai sem muito com o que se divertir

por ali. E as meninas continuaram ali, sentadas, num banco de concreto

sob um quiosque de telhas esburacadas, anotando tudo que viam e ouviam.

As últimas linhas falavam algo sobre Deus, desemprego, princesas e

passarinhos.

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5 INTER

LOCUÇÕES

DO PONTO DE ÔNIBUS 6

Depois do almoço o sol abria sobre a Avenida Suburbana. O

fluxo de carros não dava folga naquela tarde de quinta. Nas

calçadas também não havia quietude: mães e filhas a caminho da

escola, catadores com seus carrinhos de mão e crianças brincando

no parquinho defronte ao Parque São Bartolomeu. A todo instante

alguém descia dos ônibus no ponto ali por perto. Todos passavam

despercebidos em meio ao movimento tão comum, a exceção de uma

moça, que surgiu sob o sol de quase 30 graus:

- Picolé 1 real! Picolé 1 real!

- Tem de quê? – Duas meninas, ali sentadas há uns 30 minutos,

perguntaram como quem via água no deserto.

- Tem de Manga, cajá, goiaba, limão, coco e tapioca, por apenas 1

real! – Veja que este era um detalhe importante, tantas vezes que

a mulher repetia.

-Um de cajá.

-O meu de tapioca, por favor.

Compra feita, a moça agradeceu e subiu no outro ônibus que agora

passava, dando sequência às vendas do dia.

Tirando aquelas duas meninas (que juro por Deus, nunca vi

alguém esperar tanto tempo por um ônibus), ninguém ficava por

ali muito tempo. A parada era ponto de passagem quase que

obrigatório, seja pra esperar o ônibus, comprar o pão ou chegar a

algum outro lugar. Mas ninguém se estendia muito por ali. Os

ônibus passavam com frequência e a presença das pessoas era

sempre muito rotativa. Na ciclovia da suburbana não se viu um

único ciclista (ao menos não naquela tarde) e os veículos

automotores eram os verdadeiros protagonistas por ali. Não

chegava a congestionar, mas o fluxo intenso de carros, ônibus e

caminhões marcava presença visual e sonora na paisagem. Além

dos ruídos de motores e umas buzinas esporádicas, os alto-

falantes no alto dos postes se revezavam entre propagandas e

músicas para não deixar o silêncio ganhar vez.

Logo ali, à esquerda, o fluxo de pedestres variava entre a

clientela da pizzaria, da padaria, da lanchonete, do “Vaval

Cabelo e Cia” e do famoso bazar do Emaús.

À direita o movimento era escasso, e a suburbana parecia avançar

sobre o relevo acentuado próximo ao parque.

O fluxo de pessoas, que a essa hora tinha dado uma caída, volta a

crescer conforme o sol vai descendo. Os hábitos quase sempre se

repetiam: as pessoas retornando dos trabalhos, buscando seus

filhos na aula, comprando o pão e seguindo para suas casas. O

comércio começa a fechar e a igreja abre as portas para a missa

das seis. O fluxo voltava a cair e a paisagem se tranquilizava

um pouco – até o alto-falante parecia entender, já que passava a

tocar músicas mais lentas. Em contraponto à calmaria, quem

parecia não descansar eram

Já estava quase escuro quando um homem começa a montar uma

barraquinha, que parecia ser de churrasquinho ou alguma outra

comida. Passou ali bem uns 40 minutos, sozinho, persistente em sua

própria engenharia. Não sei ao certo, porque o momento histórico

de alguém usando um orelhão em pleno 2017 me desviara a atenção.

E logo me desviei para uma senhora que desceu do ônibus com seu

andador, chegando com dificuldade até o parquinho das crianças.

E logo me desviei de novo, pra ver um carro que freava

bruscamente no sinal vermelho. E de novo, para o sol que se

escondia atrás do morro. E se, pra mim, era tão difícil

acompanhar a rotina movimentada daquela avenida, para todos os

outros era tão natural que talvez se faltasse carro ou barulho

ou o pão quentinho do dia é que fossem estranhar.

Ali todos circulavam, sem pressa, mas também sem perder tempo.

Seguiam aos seus destinos sem muito estender conversa. O serviço,

a janta, as crianças: sempre tinha algo a lhes esperar. E por

falar em espera, as meninas, que tanto esperaram no ponto, também

seguiram seu caminho. Logo se misturaram ao fluxo que

caminhava, de passagem, a algum lugar dentro ou fora do

Subúrbio. Não sei se seu ônibus nunca chegou, ou se só estavam

ali, como eu, vendo a tarde passar. Não sei, mas algo me diz que

dia desses elas hão de voltar.

6

6 DO PONTO

DE ÔNIBUS