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Arabesco Poema de Jens Peter Jacobsen retirado do seu livro Niels Lyhne, editado pela Cosac &Naify. Arabesco Sobre um desenho de Michelangelo (Perfil de mulher com olhos baixios, nos Uffizi) por J. P. Jacobsen A vaga tocou terra? Tocou terra e num gorgolejante Perolar de seixos regressou Ao mundo das vagas? Não! Como um ginete alçou-se E ergueu bem alto o peito gotejante; Mais alva que o dorso de um cisne A espuma coruscava em sua crina. Poalha de raios, bruma de arco-íris Tremulavam no ar. Fizeram-na mudar de pele, Metamorfosearam-na, E em largas asas de cisne Ela voou em meio à branca luz do sol. Bem conheço, vaga, o ardor da tua fuga; Mas o dia de ouro logo vai se pôr, Envolto no sombrio manto da noite, E deitar-se e repousar, cansado, As flores lhe cercando o leito, O orvalho cintilando em seu respiro, Antes que possas tu chegar ao teu destino. E quando, alcançado o áureo gradil, Planares em silêncio, de asas espalmadas, Por sobre as largas alamedas do jardim, Por sobre o marouço de murtos e loureiros, Sobre a coroa escura das magnólias – Que te seguem com seu claro, calmo, cintilante, Que te seguem com teu fito olhar floral – Logo acima do sussurrante segredar das íris, Levada e embalada em sonhos de suave prantear Pelo aroma dos gerânios, Pelo denso eflúvio de jasmins e angélicas, Conduzida ate a casa branca Com suas vidraças enluaradas, Com sua guarda de ciprestes altos e sombrios, Altos e calados;

Arabesco - Jens Peter Jacobsen

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Arabesco - Jens Peter Jacobsen

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  • Arabesco

    Poema de Jens Peter Jacobsen retirado do seu livro Niels Lyhne, editado pela Cosac &Naify.

    Arabesco

    Sobre um desenho de Michelangelo

    (Perfil de mulher com olhos baixios, nos Uffizi)

    por J. P. Jacobsen

    A vaga tocou terra?

    Tocou terra e num gorgolejante

    Perolar de seixos regressou

    Ao mundo das vagas?

    No! Como um ginete alou-se

    E ergueu bem alto o peito gotejante;

    Mais alva que o dorso de um cisne

    A espuma coruscava em sua crina.

    Poalha de raios, bruma de arco-ris

    Tremulavam no ar.

    Fizeram-na mudar de pele,

    Metamorfosearam-na,

    E em largas asas de cisne

    Ela voou em meio branca luz do sol.

    Bem conheo, vaga, o ardor da tua fuga;

    Mas o dia de ouro logo vai se pr,

    Envolto no sombrio manto da noite,

    E deitar-se e repousar, cansado,

    As flores lhe cercando o leito,

    O orvalho cintilando em seu respiro,

    Antes que possas tu chegar ao teu destino.

    E quando, alcanado o ureo gradil,

    Planares em silncio, de asas espalmadas,

    Por sobre as largas alamedas do jardim,

    Por sobre o marouo de murtos e loureiros,

    Sobre a coroa escura das magnlias

    Que te seguem com seu claro, calmo, cintilante,

    Que te seguem com teu fito olhar floral

    Logo acima do sussurrante segredar das ris,

    Levada e embalada em sonhos de suave prantear

    Pelo aroma dos gernios,

    Pelo denso eflvio de jasmins e anglicas,

    Conduzida ate a casa branca

    Com suas vidraas enluaradas,

    Com sua guarda de ciprestes altos e sombrios,

    Altos e calados;

  • L, consumida em receoso vaticnio,

    A tremer no anseio ardente

    Que, como uma lufada, te chegasse do mar,

    Hs de morrer entre folhas de videira,

    No limiar marmreo do balco,

    Enquanto a fria seda das cortinas

    Ondula em dobras preguiosas

    E, dourados, em meio

    Aos enleios angustiados das vinhas,

    Os cachos tombam sobre a grama do jardim.

    Noite esbraseada

    Que lentamente queimas sobre a terra!

    Misteriosos, cambiantes, os fumos do sonho

    Rodopiam e tremulam no teu rastro.

    Noite esbraseada!

    - A vontade cera em tuas mos macias,

    A lealdade junco dcil ao teu sopro;

    E que da prudncia arrimada ao teu peito?

    E que da inocncia rendida ao teu olhar?

    Que nada v, mas suga, fero,

    O rubro fluxo das artrias

    Tal como a lua suga as guas frias do oceano?

    Noite esbraseada!

    Cega, poderosa mnade!

    Na espessura da treva luze e espumejam

    Ondas misteriosas de misteriosos sons:

    Tilintar de taas,

    Tinido de ao rpido, cantante,

    Gotejar de sangue estertor sanguinolento,

    Engrolado bramido de loucura

    A que se junta o grito rouco, rubro do desejo...

    - Mas e o suspiro, noite esbraseada?

    Suspiro que se alarga e morre;

    Morre antes que possa renascer,

    O suspiro, noite esbraseada?

    Olha: as ondulosas sedas da cortina se abrem

    E alta, magnfica, uma figura de mulher

    Se delineia em negro contra o negrume do ar.

    - Sagrada a tristeza nos seus olhos,

    Despedaada tristeza

    A que nada traz alvio,

    Causticante tristeza imersa em dvidas.

    - Noites e dias zumbem sobre a terra,

    Alternam-se as estaes como cores na face,

    Gerao aps gerao, em longas vagas sombrias,

  • Rolam sobre a terra,

    Rolam e se desfazem,

    Enquanto morrem os tempos devagar.

    Por que a vida?

    Por que a morte?

    Por que viver, se temos que morrer?

    Por que lutar, se sabemos que a espada

    Nos ser um dia arrancada da mo?

    Para que estas piras de martrio e dor:

    Milhares de horas vividas em lento sofrimento,

    O curso mortal de um lento sofrimento?

    Nisso que pensas tu, mulher esguia?

    Ei-la no balco, silente e calma, sem

    Uma s palavra, um s suspiro, um s queixume;

    Delineada em negro no negrume do ar,

    uma espada a atravessar o corao da noite.

    Traduo de Paulo Jos Paes