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Em busca da inocencia perdida? Oralidad e, tradicao . mu sica no novo mil eni o Samuel Araujo A.entrada do novo milenio vinha sendo vista pelos mais otimistas como esperanca de superacao de horrores cr6nicos da pre-humanidade, algo como a debelacao. senao de todos os males. ao menos daqueles que cingern a comunidade humana como urn todo em acoes desesperadas e violentas. individuais ou coletivas. a busca de urn poder absoluto e exclusivo sobre 0 desconhecido e as diferencas.' Nao que se esperasse que tal acontecesse naturalmente. pela simples ultrapassagem de urn marco temporal. mas a exis- tencia do mesmo parecia acenar positivamente a certos coracoes e mentes no sentido do reexame de conceitos, preconceitos e para- digrnas ate entao formulados, de modo a tornar possivel uma existencia menos predadora em escala global. Nesta perspectiva. destacava-s e urn interesse crescente por expe riencias sociais que resistiarn a margem dos sistemas dominantes e tambern pelas categorias desenvolvidas no meio academico para compreende-las em sua aparente estranheza. Readquiriram. assim, particular irnportancia as expenencias de vida comunitaria (real ou virtual). que reavivassem rnanifestacoes aparentemente comuns e poten- cialmente agregadoras como 0 contato interpessoal, em que sobres- sai 0 papel da categoria "oralidade" (real e. gracas as redes de comu- nicacao a distancia, virtual). 0 cultivo de valores compartilhados de tonga duracao. ou "tradicao", e uma procura nao-paranoica e nao- materialista de qualidade de vida e de diversidade. com decisivo 59

ARAÚJO, Samuel. Em busca da inocência perdida

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  • Em busca dainocencia perdida?Oralidade, tradicao ~ .musica no novo milenioSamuel Araujo

    INTRODU~Ao

    A.entrada do novo milen io vinha sendo vista pelos maisotimistas como esperanca de superacao de horrores cr6nicos dapre-humanidade, algo como a debelacao. senao de todos os males .ao menos daqueles que cingern a comunidade humana como urntodo em acoes desesperadas e violentas. individuais ou coletivas. abusca de urn poder absoluto e exclusivo sobre 0 desconhecido e asdiferencas.' Nao que se esperasse que tal acontecesse naturalmente.pela simples ultrapassagem de urn marco temporal . mas a exis-tencia do mesmo parecia acenar positivamente a certos coracoes ementes no sentido do reexame de conceitos, preconceitos e para-digrnas ate entao formulados, de modo a tornar possivel umaexistencia menos predadora em escala global. Nesta perspectiva.destacava-s e urn interesse crescente por expe riencias sociais queresistiarn a margem dos sistemas dominantes e tambern pelascategorias desenvolvidas no meio academico para compreende-lasem sua aparente estranheza. Readq uiriram. assim, particularirnportancia as expenencias de vida comunitaria (real ou virtual).que reavivassem rnanifestacoes aparentemente comuns e poten-cialmente agregadoras como 0 contato interpessoal, em que sobres-sai 0 papel da categoria "oralidade" (real e. gracas as redes de comu-nicacao a distancia, virtual). 0 cultivo de valores compartilhados detonga duracao. ou "tradicao", e uma procura nao-paranoica e nao-materialista de qualidade de vida e de diversidade. com decisivo

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    papel desempenhado pela "musica", com sua materialidade evanes-cente, em acepcao inclusiva e universal.

    o proposito desta intervencao e revisitar alguns quesno- ,namentos sobre essas tres categorias. que ocupam espaco con-sideravel da reflexao etnornusicologica. como ponto de apoio adiscussao sobre suas respectivas pertinencias num mundo emtransforrnacao. Seu argurnento central e que 0 movimento acimaassinalado possui lastro, por mais que isso seja negado ou negli-genciado, em fenorneno caracteristico da era do capital, nornea-darnente, a de busca desesperada de uma suposta inocencia perdidaem experiencias humanas remotas ou estranhas, inocencia essafrequenternente representada pelas nocoes de oralidade, tradicao eate mesmo a de rnusica, visando responder a transforrnacao dacultura em mercadoria no processo de formacao das sociedadesindustriais e pos-industriais, Em outras palavras, 0 desencanto coma cultura da mercadoria teria levado a procura da inocencia perdidaem formas idealizadas do passado e do distante, assumidas como"concertos"

    Como contribuicao as discuss6es ora vindo a publico de urnencontro de musicos e pesquisadores, julgo oportuno desenvolveruma perspectiva critica em tres direcoes basicas, A primeira delas einsistir, como ja apontado desde os anos 70 pela etnologia de urnJack Goody, na exlsrencia de urn continuo, e nao uma dicotomiaestanque, entre as formas de pensamento e acao associadas a ora-lidade e a escrita. Em complemento, tenta-se conceber a tradicao,com apoio em determinadas correntes das ciencias humanas, comoconfiguracoes de valor que se desenham e transformam segundoestraregias sociais determinadas, nao se constituindo portanto ematributos intrinsecos a quaisquer culturas, sen do muitas vezes ilu-soria a sensacao de sua tonga duracao, sugere-se ainda que inflarcontinuamente a categorta "musica", para que possa dar conta decontradicoes a cada dia mais evidentes entre modos e intencoesdiversas de producao e apropriacao significativas de sons, talvez sejao mais desesperado gesto face a proliferacao da cultura-rnercadorraPor fim, procura-se apontar, apos a critica as referidas categorias, a

  • potencialidade transformadora dos fen6menos a qu e as mesmastentam se remete r.

    ORALIOAOE, EsCRlTA E P RAxIS CULTURAL

    No interior de urn processo de dimens6es globais originadono Ocidente, que se ere proprieta rio exclusivo da razao, a oralidadetern sido equacionada a um modo de pensamento irracional, 0 que,de algum modo, afeta ate mesmo categorias desenvolvidas napr6pria hisroria da Antropologia como as de pensamento pre-Iogico(Levy -Bruhl) ou pensamento selvagem (Levi-Strauss). Nao se pode,evidentemente, reduzir qualquer dessas cat egorias a urn meroreflexo ou resquicio de teorias evolucion istas? (a oralidade comoestagio evolutivo antecedente, donde inferior, a escrita), mas apenasassinalar que as criticas eventualmente dirigidas as mesmas noambito da pr6pria Antropologia se remetem a ideia de uma dico-tom ia de base temporal, explicita (pre) ou implicita (selvagern) emtais "concertos". Dito de outro mo do , tornam-se disrincoes funda-mentais e inegaveis no modus operandi de diferentes sociedadescomo geradoras de conceitos antagonicos e rec iprocamente imper-meavei s (pa r exernplo, Iogico vs. pre- logico) e, assim, encontra-sejustificado a usa cientifico daqueles mes mos "conceitos",

    Uma das polarizacoes conceituais mais importantes a basede tal dicotomia tern sido precisamente aquela entre oralidade eesc rita .3 Sua ideia basica e aparentemente descritiva . mas na ver-dade produtora de um a "rea lidad e", muito precariamente formu-lada aqui, e a de que estaria excluida, entre culturas agrafas, apossibilidade de emergencia de pensamento racional, ou seja, aracionalidade seria funcao da esc rita .

    Embo ra reconhecen do a extstenc ia de distincoes impor-tantes entre os do is modos de pensamento e expressao. oral eescrito, 0 etnologo britanico Jack Goody (1988), em texto classicodos anos 70, critica a base preconceituosa de sua oposicao emcategorias antagcnicas e demonstra ser mais adequado entende-lascomo doi s ter mos de urn conti nuo. Urn exemplo interessan te invo-c ado por ele e 0 de sociedades em que ha rnetodos diferentes de

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    contagern de grandezas. dependendo do objeto especifico que estasendo contado, apesar da existencia de urn principio comum decontagem. Conforme Goody. 0 sistema numerico "abstrato" existe,embora 0 emprego do mesmo a grandezas concretas varie, a depen-der da natureza de cada uma delas; assirn, nessas sociedades, aescolarizacao e todo legado racionalista (e colonial) por ela repas-sado apenas acentua a enfase num tipo de pensamento abstrato.que. de algum modo. ja existia.

    Estou ciente da redundancia em que incorro ao afirmar queeste ponto nos induz a pensar em alguns dos maiores problemasmetodologicos enfrentados pelo etnornusicologo ao estudar asassim chamadas tradicoes orais. 0 mais comum deles seria enten-der caregorias formuladas oralmente sobre a pratica musical.notadamente as que parecem estranhas a experiencia cultural dereferencia do pesquisador e que. apesar da inexistencia de umacornunicacao escrita. ajudam a formar urn sistema de referenciaspara a producao e recepcao de uma determinada musica, Ao tentarcompreende-las da melhor forma possivel, 0 pesquisador procurafamiliarizar-se pouco a pouco com aquelas categorias de enten-dimento formuladas por comunicacao oral. verificando a consis-tencia de sua operacionalizacao no dia-a-dia atraves da observacaoparticipante, e buscando meios de traduzir de modo coerente todaessa experiencia em texto escrito efou outros suportes.

    A essa textualizacao, afirmam os criticos da empreitadaantropologica, corresponderia tambern uma descontextualizacao,em que as eventuais hesitacoes e os possiveis equivocos de inter -pretacao de parte a parte (em geral. do pesquisador. mas tarnberndos pesquisados) passariam a "fazer sentido" e. com consequenciasainda mais dramaticas, a temporalidade pr6pria aexperiencia vividaestaria irremediavelmente sup rimida . Em outras palavras, haveriarealmente urn sistema musical. ou aquilo que parece como tal notexro resultante da pesquisa seria apenas uma funcao da escrita? Ouainda, radicalizando a pergunta. seria a escrita etnografica a ultimae talvez mais perversa forma de colonizacao cultural?

    Sem condicoes de dar respostas a estes questionamentos deprofundas Implicacoes. limito-me a assinalar aqui que todo este

  • dificil movimento de reflexao sobre as relacoes entre 0 que se ve,ouve, observa e escreve tem side a medida de competencia em cam-pos disciplinares como a antropologia e a etnornusicologia. sen docre nca corrente nesses meios que 0 produto da textualizacao poreles gerado tenha impacto restrito ao proprio ambito acadernicoHoje, porern. e inegavel que estes textos produzem efeitos sobre asculturas de "tradicao oral" que sao seu objeto de estudo, na medidaem que as mesmas obtern acesso crescente ao conhecimento nelesproposto. Isto tem frustrado ate mesmo alguns leitores de Goody,que, em seu olhar persistentemente avido par uma inocenciaidealizada, ainda reagem negativarnente e ate mesmo com repro -vacao- diante de culturas musicais que nao se comportam "adequa-damente", isto e, interpolando oralidade e outros meios de repre-sentacao do pensamento e da acao musical , como livros, discos,partituras etc., ou ainda cultivando repertcrios classificados a prioricomo externos a sua identidade cultu ral.

    Uma ultima observacao se faz, neste ponto, oportuna: estadicoto mia entre a base agrafa e a escrita do pensamento e cornu-rucacao humanas tern side tomada como pertinente no caso damusica, justi ficando discussoes sob re a rnusica na tradicao oral, quecomportaria traces marcadamente distintos de culturas musicaisem que sao empregados sistemas de grafia representando os sons esuas relacoes (par exemplo, uma partitura) e/ou 0 pensamento cultu-ralrnente produzido sobre as praticas constituintes do universomusical.

    E, no entanto, possivel identificar-se, pelo exame da proprialiteratura etnomusicologica. um outro continuo, talvez ainda maisimportante, entre os sistemas musicais. Em 1950, Charles Seeger jahavia antevisto 0 deslocamento do foco da pesquisa musical contern-poranea, afastando-se progressivamente dos objetos habituais detnvestigacao (pecas musicais, repertorios, autoria) rumo ao conti -nuo de relacoes em torno da recorrencia a suportes verbais e nao-verbais a pratica musical (apenas para registro, bem antes de JackGoody). Isto engloba nao apenas a cornunicacao verbal sobre rneiooral ou escrito, mas rambern 0 recurso cada vez mais freqiiente acornunicacao nao-verbal sobre suportes de tecnologia variavel

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    (partituras, registros de audio. video etc.) e seu respectivo impacto,refletido sobre a existencia de praticas associadas a oralidade (verNettl , 1983).

    A oralidade aparece hoje, portanto, como urn entre outrosmodos intercarnbiaveis, efet iva ou pote ncialmente. de praxiscultural. faro que nao pode mais ser exc1uido a pr iori da abo rdagemde qualquer fenorneno contemporaneo . constituindo-se. acima detudo , em campo de emergencta de confl itos entre categories.enunciadas oralmente ou em forma escrita, e as praticas a elascorrespondentes.

    TRAOIC;Ao COMO IOEALIZAC;Ao E EsTRATEGIA

    Questoes semelhantes as levantadas na secao precedentesao perti nentes a uma critica da categoria "tradicao", Muitos autoresja apo ntaram a base ideologica da distincao. que teve legitirnacaoternporaria nas cienctas humanas. ernbora ainda persistente nosenso comum, entre sociedades assentadas sobre 0 cultivo de umaideia de tradicao, enquanto outras (em geral ocidentais, industriais,capitalistas etc.) a teriam como entrave. Como ideias associadas aoprimeiro tipo teriamos a de enfase na tonga duracao de valores erelacoes sociais e uma especie de atitude refratana a rnudanca,disposicoes estas diametralmente opostas as encontraveis entresociedades vistas como dinarnicas e inovadoras. E redundante dizerque. mais uma vez, nos vemos diante de urn quadro c1assificat6rioem que a racionalidade da vida social aparece como medidaabsoluta e inversamente proporcional de maior ou menor tradicao.

    "Evidentemente. os ditames da economia politica no mundoglobalizado tern se encarregado de expor a inconsistencia de taisdistincces, tornando amplamente conhecidos exemplos de ines-gotave is sinteses culturais operadas em diferentes contextos, Assim,uma "trad icao" como a da musica hindu pode admiti r "inovacoes"como aconteceu com 0 violino ocidental, capaz de acomodarcontornos mel6dicos que se desviam da escala temperada sed i-mentada na experiencia auditiva ocidental, submetendo-se avalores de longa duracao considerados essenciais a pratica musicallocal e criando ate mesmo uma nova "tradicao",

  • A propria ideia de longa duracao de determinados valores,embutida na nccao de "tradicao" pode ser questionada em termosdo que Eric Hobsbawm denomina "uso social do passado ",Conforme Hobsbawm (1998), a legitimacao de uma determinadamaneira de se en tender 0 passado, recortando de modo tendenciosoalguns entre os variados traces visiveis do mesmo, responde, grossemodo, a necessidades das geracoes posteriores de reproduzirem econsolidarem deterrninadas relacoes de hegemonia. Consequen-ternente. a maier ou menor duracao de certas concepcoes do pas-sado dizem muito a respeito das relacoes de poder entre segrnentosdiferenciados da sociedade, sendo que aquelas de mais longaexistencia chegam a produzir a sensacao - nao raro ilus6ria - deque as coisas realmente tiveram uma dada forma ou procederamnum determinado sentido. Porern , como alerta 0 historiador; apretensa durabilidade prolongada de tais vis6es e sernpre, de umamaneira ou de outra, igualmente ilus6ria:

    Claro que uma dorninacao total do passado excluiria todasas mudancas e inovacoes legitimas. e e irnprovavel queexista alguma sociedade humana que nao reconhecanenhuma delas . A inovacao pade acontecer de daismodes. Primeiro, a que e definido oficialmente como"passado" e e deve ser claramente uma selecao particularda infinidade daquilo que e lembrado au capaz de serlembrado. Em tada sociedade, a abrangencia desse pas-sado social jormalizado [grifo do autor] depende, natural-mente, das circu nstancias. (Hobsbawm, 1998: 23)

    As "inovacoes" que ocorrem em interpretacoes do passadose deveriam, ainda segundo 0 mesmo autor, exatarnente as possi -bilidades abertas pela revelacao e exploracao dessas omiss6es emfuncao de novos anseios sociais. Haveria nesse caso. diz Hobsbawm,duas possibilidades: uma que com porta mudancas do tipo em queas estruturas e relacoes sociais e as respectivas ideologias sub-jacentes nao sao modificadas (par exemplo, inovacoes tecnologicas.como no exemplo do uso do violino ja invocado); em tal caso, 0

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    passado continua a ser 0 padrao para 0 presente. ja na segundapossibilidade,

    ... 0 passado deve deixar de se c 0 pad rao para 0 presen te, ~pode, no maximo, tornar-se mo delo para 0 mesm o. (...)1550 implica uma transforrnacao fundamental do propriopassado. Ele agora se torna. e deve se tornar uma mascarapara inovacao. pa is ja nao expressa a repencao daquiloque ocorreu antes. mas acoes que sao. por definicao,diferentes das anteriores. (Idem: 26)

    Creio ser este 0 caso de diversas "tradicoes" que passam portransforrnacoes profundas em sua posicao relativa ao status quo,como observado em tantos casos de generos e estilos musicaiscomo 0 jazz, 0 choro ou 0 samba, em que a progressiva legitima~aosocial nao permite que se recupere hoje, ao menos em sentidopleno, os conteudos de transgressao neles emb utidos originaria-mente, mas poss ibilita, em outro sentido, que os mesmos se tornem"tradicoes", assumidas ate mesmo passionalmente, em arnbitossociais diversos dos de sua genese.

    A rnodificacao de uma "tradicao" surge, portanto, igual-mente tanto sobre urn continuo que se desloca da manutencao dosvalores fundamentais de uma antiga ordern , camuflada por mu-dancas tecnol6gicas que alteram a superficie mais imediatamentevisivel, por assim dizer, da vida social, quanto a introducao de uma"nova ordern" , que apenas invoca certos traces do passado comoindicadores de continuidade e legitimidade.

    MOSlCA: UMA CATEGORIA NEUTRA?

    A pr6pria categoria "musica" vern tendo quest ionadas suaneutralidade e respectiva pcrtinencia para a analise de toda equalquer forma de producao. veiculacao e reproducao (vista aquicomo possibilidade ativa de recrtacao) de sentido sobre uma baseacustica.f Nao casualmente, este tema tern obtido relevancia emmomentos cruciais da reflexao etnomusicologica, surgindo:ora emdebates sobre ident idade da disciplina, ora em discuss6es sobre a

  • exisrencia de elementos universals observaveis entre as praticas"musicals" das diferentes culturas do mundo. Sendo fora de dimen-sao e prop6si to anaJisar em detalhe a diversidade de enfoque detoda essa empreitada critica, restrinjo-rne aqui a colocar emdiscussao urn de seus pr incipais argumentos: 0 de que, como obser-vado certa vez por Alan Merriam, 0 etnornusicologo com mais fre-quencia estuda algo que deveria ser mais apropriadamente con-ceituado como "nao-rnusica"

    Apenas urn numero relativamente pequeno de culturas domundo comportam ou creern comportar, como e 0 caso de socie-dades industriais capitalistas, dominies relativamente aut6nomoscomo politica, religiao e artes , ou subdorninios dos mesmos comoartes visuals. cenicas e musicais. Dai 0 pesquisador deparar-se, naoraro. com suuacces em que a "musica" depende de ligacoes estritascom 0 que sua pr6pria cultura de referencia tenderia a classificarcomo ambitos outros de praxis cultural. A cornpreensao destesmesmos laces, em tais casos, e fundamental e indispensavel naosornente a construcao de sentido pela "musica", mas ate mesmo aoengendrarnento de suas estruturas sonoras em tempo real. Emdiferentes lugares, Merriam se posicionou a esse respei to, chegandoa dedicar urn capitulo inteiro de seu classico The Anthropology ofMusic (Merriam, 1964) a importancia capital do que denominousynesthesia or the interrelationships between the arts [sinestesia ouinter-relacoes entre as artes] , a constatacao de que seria impossivel,em determinadas culturas, pensar-se, com o e habito no Ocidente,em campos aut6nomos de expressao e fruicao "artistica"6

    Poucas nao seriam, assim, as possibilidades de equivoco emtrabalhos de pesquisa direcionados exclusivamente ou mesmo prefe-rencialmente ao objeto "musica", devidos a aplicacao de criteriosanaliticos determinados a partir da cultura de referencia do obser-vador e a concomitante desconsideracao dos valores percebidoscomo "inte rnes" as pr6prias forrnacoes culturais em estudo. Maisuma vez. temos a ideia de urn continuo que permite juncoes edisjuncoes variadas, algo que transcende as especialidades rela-tivamente estanques com que a hisroria do Ocidente se habituou aapreender 0 dominic artistico. E 0 que possibilita 0 redirecionamento

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    da enfase da pesquisa para 0 con teudo exp ressivo e politico daexperiencia. mediador de experiencias rnultiplas e por vezescontraditorias, ma is do que para 0 impacto supe rficial, 0 que naosignifica se r menos decis ive , de sua forma ju nto aos sentidos.

    E M CONCLUSAo

    A critica a categor ias como "oralidade", "tradicao" e "rn usi-ca" se constitui em exigencia a pes quisa etno musicologica que sepretenda afinada com as discuss6es conternporaneas em cienciashumanas. Procurou-se lembrar aqui, de modo necessariamentesintetico, alguns questionamentos con tu ndentes a elas direc io-nados, abalando a base rornanti ca de seu emprego na literatura,enfeixada sob a ideia de busca de uma inocencia perdida. Aomesmo tempo, tentou-se vislumbrar a possivel pe rtinencia de urnuso renovado das mesmas, algo que, de algum modo, vern sendoempreendido por parte consid eravel da literatura acadernica. Nesteste rmos, a oralidade e entendida como urn modo entre diversosoutros de praxis cultural, cujo temivel atributo de interpelacao fisicade realidades artificialmen te congeladas (ning uern teme conceitosque nao sejam em algurn momenta voca lizados) torna imp res-cindivel seu papel entre as relacoes humanas. De maneira analoga,pode-se conceber a relevancia do conce ito de "tradicao", entendidocomo ponto fulcra! da reflexao sob re os rumos da sociedade e naomais exclus ivamente como pe rpet uacao do status quo. Assim recon-sideradas as categorias anteriores e tornando-se como refe rencia asecao precedente, sugere-se que 0 estudo da "musica" no mileniorecem-lniciado pode voltar a dialogar, agora de modo fecundo etransfo rmador, com a "oralidade" e com a "rradicao",

    NOTAS

    I A primeira versao deste texto foi apresentada na abertura do I Encontrolnternacional de Emornusicologia. promovido pela Escola de Musica daUFMG, em 2000. 0 autor; por mais critico que fosse desse otimismo inci- '1piente, obviamente nao contava com os suc ess ivos aco ntcc imc ntos que,

  • a partir de setembro do ana segui nte, contribuiriam para 0 arrefeci rnentogeral de tal estado de animo. Agradece, ainda, a Profa . Ora. BosangelaPerei ra de Tugny, representando a comissao organizadora do evento, pelo

    '- honroso convite. e a Profa . Ora. janere El-Haouli. da Unive rsidadeEstadual de Londrina. pe lo envio do registro feiro em MO da exposicaooral daq uela primeira versao, que adiciona a mesma inflex6es impor-tantes que se procura aqui recuperar.

    2 Ver, por exernplo. Goldman (1994) sobre a complexidade especifica docaso de Levy-Bruhl , cuja nocao de "pe nsa me nto pre-logico" passou de"conceito" influente ao tempo de sua elaboracao orig inal a exemplo deurn evolucion ismo ultr ap assado. impedindo ate mesmo uma ana lisemais isenta do conjunto de sua prcducao antropologica .

    3 Tome-so aq ui, como exernplo. a peso atribuido aoralidade em definicoesdo que caracrerizaria 0 dominio do folclore musical ou 0 objeto de estudoespecifico da etnomusicologia.

    4 Outra possibilidade. ainda mais problernatica, se apresenta sob a formade recusa absoluta it. ad rnissao de tal fato. passand o-se, assim, a tex-tualizacao de uma ortodoxia fabricada.

    5 0 autor deste artigo pro pos em sua tese de doutorado (Araujo. 1992) .desenvolven do-a em alguns arngos posteriores (Araujo. 1992/1993 .199 3/199 9). a categoria "trabalho acustico" para abordar Ienornenos designificacao em qu e 0 as pecto acustico e irnpresctndive l. embora naoexclusivamente. a co nfigu racao de sentido .

    6 Precede es te po nto uma re flexao sabre a existencia de urn sen timentoestetico em culturas que nao a do Ociden te industrializado e capitalista.chegando a autor a uma resp osta afir mativa (ver Merriam. 1964).

    BIBLIOGRAFIA

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  • e 2006. Os Autores

    e 2006 . Edito ra UFMG

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    M987 Musicas africanas e indigenas no Brasil I gosangeta Pereira de Tugny,Ruben Caixeta de Queiroz (Organizadores) . - Belo Horizonte : EditoraUFMG. 2006.

    359p. : il . + 2 CDs

    lnclu i refe rencias.ISBN: 85-7041-489-7

    I . Etnomusicologia. 2. indios - Musica. 3. Musica afro-brasileira.I. Tugny. xosangeta Pereira de. II. Queiroz. Ruben Caixeta de.

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