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O PROBLEMA DO ETHOS DA ESCRITA DE SI EM MONTAIGNE E EM PETRARCA: DO ENSAIO À EPÍSTOLA Sergio Xavier Gomes de Araujo* [email protected] RESUMO Montaigne insiste ao longo dos Ensaios em seu desprezo pela retórica. Mas como procuraremos mostrar aqui, sua “forma natural” inscreve-se em grande medida dentro dos termos da própria retórica, sob uma mobilização particular dos preceitos e convenções tradicionalmente apropriados à escrita em primeira pessoa, especialmente aqueles que regulavam o sermo familiaris, gênero recuperado pela primeira vez na Renascença por Petrarca. Retomamos assim, para desenvolvê-la, a fecunda intuição de Hugo Friedrich que, em sua clássica obra sobre os Ensaios de Montaigne, aponta o seu parentesco com a forma epistolar de Petrarca, sem, porém, acompanhá-lo quando distancia o ensaio da epístola familiar, por entendê-lo como marco de ruptura com os procedimentos da retórica e, assim, com toda a prosa artisticamente trabalhada do humanismo. Palavras-chave Montaigne, Petrarca, Sêneca, Ensaio, Epístola. ABSTRACT Montaigne insists throughout the course of the Essays on his disdain for rhetoric. But as we try to expose here, his “natural form” includes itself to a large extent in the terms of rhetoric itself, under a particular usage of the precepts and conventions traditionally appropriate to the discourse in first person, especially those which regulated the sermo kritErion, Belo Horizonte, nº 126, Dez./2012, p. 543-557 * Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Artigo recebido em 30 de maio de 2012 e aprovado em 25 de julho de 2012.

Araujo, Sergio Xavier Gomes de - o Problema Do Ethos Da Escrita de Si Em Montaigne e Em Petrarca - Do Ensaio à Epístola

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  • O PROBLEMA DO ETHOS DA ESCRITA DESI EM MONTAIGNE E EM PETRARCA:

    DO ENSAIO EPSTOLA

    Sergio Xavier Gomes de Araujo* [email protected]

    RESUMO Montaigne insiste ao longo dos Ensaios em seu desprezo pela retrica. Mas como procuraremos mostrar aqui, sua forma natural inscreve-se em grande medida dentro dos termos da prpria retrica, sob uma mobilizao particular dos preceitos e convenes tradicionalmente apropriados escrita em primeira pessoa, especialmente aqueles que regulavam o sermo familiaris, gnero recuperado pela primeira vez na Renascena por Petrarca. Retomamos assim, para desenvolv-la, a fecunda intuio de Hugo Friedrich que, em sua clssica obra sobre os Ensaios de Montaigne, aponta o seu parentesco com a forma epistolar de Petrarca, sem, porm, acompanh-lo quando distancia o ensaio da epstola familiar, por entend-lo como marco de ruptura com os procedimentos da retrica e, assim, com toda a prosa artisticamente trabalhada do humanismo.

    Palavras-chave Montaigne, Petrarca, Sneca, Ensaio, Epstola.

    ABSTRACT Montaigne insists throughout the course of the Essays on his disdain for rhetoric. But as we try to expose here, his natural form includes itself to a large extent in the terms of rhetoric itself, under a particular usage of the precepts and conventions traditionally appropriate to the discourse in first person, especially those which regulated the sermo

    kritErion, Belo Horizonte, n 126, Dez./2012, p. 543-557

    * DepartamentodeFilosofiadaUniversidadeFederaldeSoPaulo(UNIFESP).Artigorecebidoem30demaiode2012eaprovadoem25dejulhode2012.

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    familiaris, genre recuperated for the first time in the Renaissance by Petrarch. We retake, in order to develop it, the fruitful intuition of Hugo Friedrich in his classical work about Montaignes Essays, indicating its kinship with Petrarchs epistolary form, without, however, following him when he moves the essay away from the familiar epistle by interpreting the essay as a rupture with the rhetorical procedures and therefore with all the artistically worked prose of humanism.

    Keywords Montaigne, Petrarch, Seneca, Essay, Epistle.

    I

    Em seu clssico estudo sobre os Ensaios de Montaigne destacado particularmente pelo exame das relaes destes com a produo literria da renascena, Hugo Friedrich nos mostra que o interesse que movera Petrarca, pela investigao de sua personalidade profana e autnoma1 especialmente no caso do Secretum e de suas correspondncias reunidas nas Familiares e nas Seniles o situa no ponto de partida de uma linha que nos leva diretamente ao autorretrato dos Ensaios, com seu sentido mais profundo, contudo, da prpria individualidade. Desse modo, ao examinar o estilo ensastico de Montaigne, mais adiante Friedrich postula seu parentesco com a escrita epistolar do primeiro grande representante do humanismo renascentista nos volumes das cartas familiares Rerum Familiarum libri. A forma aberta da epstola familiar, segundo ele, teria servido de inspirao ao ensaio, pondo-se j bem antes deste, segundo a tradio, como gnero mais adequado escrita em primeira pessoa, servindo j manifestao livre da conscincia individual2. Mas Friedrich insiste, sobretudo, na diferena que marcaria ruptura radical entre os dois. o ensaio se distinguiria por fundar-se numa conscincia bem mais aguda da singularidade irredutvel de seu objeto, desprendendo-se do recurso s convenes codificadas pela retrica clssica, para servir ao conhecimento emprico e representao da natureza particular do eu de seu autor. o programa de Montaigne seria, assim, para Friedrich, absolutamente incompatvel com os esquemas literrios e as noes livrescas, nas quais Petrarca ainda buscava acesso sua prpria personalidade, recuperando a

    1 Friedrich,H.Montaigne,p.233.2 Idem,p.368.

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    forma clssica da carta3. Com efeito, ao tomar a si mesmo como matria, Montaigne teria compreendido bem melhor do que o italiano os riscos de comprometer a veracidade de sua representao, de sorte que, enfim, sua proximidade com a forma epistolar de Petrarca no ultrapassaria os termos de uma certa afinidade de carter superficial.

    Do estudo de Hugo Friedrich retemos aqui, especialmente, a nfase no parentesco que liga as obras dos dois autores por seu intento e forma, ressaltando, contudo, parecer-nos precipitado e demasiado simplificador o modo como diferencia o ensaio da epstola, concebendo aquele como escrita espontnea, destituda de arte, adequada ao registro fiel o quanto possvel das manifestaes livres da subjetividade de seu autor. De fato, o intrprete separa desse modo a obra de Montaigne do domnio em que se dava toda a produo humanstica de seu tempo, assimilando-a, no limite, a uma noo de mtodo intelectual, consolidado, como nos diz, enquanto meio mais eficaz para o conhecimento do homem do que qualquer metafsica4.

    A tese de Friedrich situa-se numa corrente bastante bem assentada na tradio do comentrio que remonta obra seminal de Pierre Villey e passa pelo clssico captulo que Eric Auerbach dedica a Montaigne em seu Mimesis concentrada em geral, na noo de mimese da natureza particular do indivduo como chave para a compreenso dos Ensaios. tal corrente tende a tomar como base uma interpretao bastante literal da Advertncia ao leitor, o texto de apresentao situado na primeira pgina do primeiro volume. Montaigne nos diz a que no pretende mais do que retratar-se em seu livro em sua maneira simples, natural e ordinria, sem esforo e artifcio: porque a mim que pinto (Advis au Lecteur, 3).

    Mas a despeito da riqueza ainda longe de ser superada e importncia inconteste desses estudos sobre os Ensaios, seu pressuposto da ideia de um eu como realidade objetiva a ser representada j foi combatido, como se sabe, por autores que pautaram suas leituras, por sua vez, na crtica ctica da Apologia de raymond Sebond, atentando para as contradies constitutivas que perpassam o discurso dos Ensaios. representativas dessa outra corrente so as obras de Frederic Brahami, Jean Yves Pouilloux e terence Cave, afirmando, cada um a seu prprio modo, a inanidade do eu nos Ensaios5.

    3 Idem.4 Friedrich,H.op. cit.,p.372.5 Afastando-nosdeFriedrich,nossaleituraseaproximamaisdaposiodeAndrTournondoquedados

    queconcluempelaconstataoreiteradanosEnsaios dafraquezadarazoedaignornciahumanaainanidadedoeuedarazo.Comefeito,concentrando-setambmelenocontedocrticoqueatravessaeconstituiolivro,Tournonnooreduz,porm,aumdiscursodesegundo grauqueseesgotariatotalmente

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    Sem pretender adentrar em tais questes, reforamos a ideia da pintura de si como motivao primeira do discurso de Montaigne, rechaando, porm, a noo do eu como natureza individual compreendida empiricamente como objeto de uma mimese. verdade que Montaigne reitera e desenvolve em diversas ocasies seu desprezo pelos artifcios de linguagem a partir do prlogo de sua obra, entretanto, como procuraremos mostrar, o faz em grande medida dentro dos termos da retrica mesma. Com efeito, sob a gide do autorretrato de sua natureza particular ele proclama com nfase seu anseio de autonomia em relao aos preceitos e regras de ao preestabelecidos, apontando para alm da imitao emulativa dos antigos. Mas , porm, como bom rebento da tradio humanista e do interior dela mesma que empreende a transgresso de seus limites6, aplicando ao seu prprio modo muitas das mesmas tpicas utilizadas por Petrarca, que cerca de dois sculos antes, j empreendera descrever-se. Longe assim, de tom-la como obstculo sua efetivao, o autorretrato de Montaigne opera no mbito da inveno literria, enraizado no terreno tico e retrico do humanismo; retomando e transformando convenes e preceitos previstos pela tradio clssica como adequados ao discurso em primeira pessoa, especialmente os que se ligam arte epistolar. Propomos assim outra leitura do texto que serve de porta de entrada dos Ensaios, a Advertncia ao leitor, luz da carta proemial das Familiares de Petrarca, para em seguida examinarmos a maneira como Montaigne aborda o tema de seu repdio retrica no captulo Da Educao das Crianas.

    optando por caminho diverso daquele apontado por Friedrich, detendo-nos com mais vagar nos elementos que ligam a escrita pessoal de Montaigne epstola de Petrarca conforme o fizeram os estudos de Marc Fumaroli7 , sugerimos a maior fecundidade do tema, considerando necessrio, para

    na crtica das opinies herdadas. Para ele o textomantm um significado positivo como enunciaode juzos e de pensamentos, que, conquanto destituda de qualquer pretenso verdade, explicitaumlugarapartirdoqualse fala,assimcomoaconscinciadesuaorigemedeseuautor.preciso,enfatiza o comentador, relacionar seu ceticismo com sua prtica doensaio em sua inteno semprereafirmadaderegrarseupensamentoesuavidaconformeoexercciodas faculdadesdo juzo,sobaplenaconscinciadeseucartercontingente:Oautorretratos,pois,amaismanifesta figuradotrabalhoconstitutivodoensaio:otipodereduofenomenolgicapelaqualainvestigaosereorientadoobjeto,bemoumalconhecido,paraosujeitoqueconhece,doveredictopronunciadosobretalfatoparaainstnciadejulgamentoqueopronuncia(...).Dessaperspectiva,osEnsaiosdeixamentreveraslinhasdeumafilosofiadealcancetotalmentenovo,fundadanafidelidadeasienabuscadoexerccioautnomodesuasfaculdadesintelectuais:seujulgamentopronunciaveredictosseguros,teremosaoportunidadedeconstatar;enadaautoriza-nosanegligenciaresteaspectodesuaobra.Tournon,A.Montaigne,p.114.SobreoassuntoverBirchal,T.O Eu nos Ensaios de Montaigne,p.123-211.

    6 Cardoso,S.Montaigneumaticaparaalmdohumanismo,p.265.7 Fumaroli,M.Gensedelpistolographieclassique:rhtoriquehumanistedelalettre;verLesEssaisde

    Montaigne:lloquenceduforintrieur.

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    uma melhor compreenso da forma do ensaio montaigniano em sua natureza e desgnios especficos, abord-la em suas relaes com a tradio humanista em que se insere e no enquanto expresso de uma ruptura radical com ela.

    Entendemos, assim, a empresa do autorretrato em Petrarca e em Montaigne como levada a cabo essencialmente no plano artstico da constituio do prprio ethos de autor, ou, em outras palavras, da construo discursiva do prprio carter como digno de confiana mediante o uso de procedimentos disponibilizados pela tradio literria clssica8. De fato, tomando a si prprios como matria, ambos reclamam cada um a seu modo, a autoridade dos antigos e movem-se, basicamente, dentro de um mesmo universo de tpicas herdado da moralidade clssica, esforando-se por legitimar sua forma pessoal; procurando enfim oferecer sua prpria imagem como prova tica persuasiva pistei de modo a garantir a adeso dos leitores. Mas em suas apropriaes diversas da herana clssica, implicam relaes distintas com o leitor consubstanciando-se em figuras tambm distintas de cultura e de disciplina da vida moral, emblemticas respectivamente do perodo de constituio do projeto humanista e de sua fase mais tardia, quando seus mtodos, centrados na imitao dos antigos, j institucionalizados em toda a Europa degeneravam em mero formalismo vazio e pedantesco9. Como se ver, em sua crtica aos mtodos humanistas Montaigne promove menos um rompimento com esta tradio do que uma recuperao e radicalizao de seus postulados originais, voltados para a excelncia dos modelos do passado com vistas formao de agentes morais livres no presente e em plena posse do uso das prprias faculdades10.

    8 Oethosdefine-senaRetricadeAristtelescomoumadastrsfontesdaspisteis,provasdepersuaso,aoladodologosedopathos.Umoradorpersuadepeloethos quandoofereceaimagemdeseuprpriocartercomoprovatica favorvelaosseusargumentos: todavezqueodiscursopronunciadodetalmodoa tornarooradordignodeconfiana.Aristteles sublinhaocarterdeconstrutodoethos,enquanto prova entcnica elaborada no interior das tcnicas discursivas. Assim, ao atentar para aimportnciadoethos,acreditamosmaisebemmaisdepressaempessoashonestas,cuidadedistinguiressahonestidadequeefeitodepersuasoepartedaarteretrica,daautoridadequeumoradorpodeextrairdeseusatosprecedentesaodiscurso:,porm,necessrioqueestaconfianasejaresultadododiscursoenodeumaopinioprviasobreocarterdoorador[I,1356a1-13].Oethosrespondeporumelementocentraldaarteretrica,ouseja,suaessnciacvica,penetradadatica;praticadaporcidadosenquantocidados.DeAristtelesaostratadoslatinos,osprocedimentosdiscursivosdapersuasoestolongedereduzir-seeficciadaargumentaolgica,ouadequaoirracionalidadedoauditrio,paramanipularsuasemoes,mastmcomoprocedimentocrucialaconquistadaconfianadosouvintes.Pondoemjogoafiabilidade,oethos implicanaconstruodeumarelaodeidentidadedeopiniese de crenas homonoia entre o orador e auditrio, na qual aquele autoriza seu prprio discurso,apresentando-secomoalgumqueage,falaepensasegundoavirtude.

    9 Garin,E.LImitationetlapedanterie,p.99-105.10 Garin,E.LEducation de lhomme moderne,p.103;CardosoS.,op. cit.,p.263.

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    II

    na carta proemial de suas Familiares Petrarca assim enuncia o intento de descrever-se: no fiz quase nada alm de dar a conhecer aos meus amigos os estados de minha alma. Define seu epistolrio como imagem de minha alma animi mei effigiem e retrato de minhas capacidades ingenii mei simulacrum composto em sua maior parte de textos escritos em tom familiar familiariter ou ntimo, numa narrao simples e no elaborada.11 Petrarca articula a alguns dos topoi clssicos fundamentais que regulavam a escrita epistolar, conforme aparecem de modo disperso nas correspondncias de Ccero e de Sneca, dois dos mais influentes modelos do gnero. Prxima ao dilogo sermo o estilo da carta devia imitar a maneira informal da conversa entre amigos, evitando, por princpio, o excesso de artifcios dos discursos pronunciados nos fruns e assembleias. trata-se assim de arte que tem por finalidade especfica afetar o fcil e o no elaborado, constituindo a imagem dos interlocutores como verazes e sinceros. Distingue-se mais propriamente como sermo familiaris, devendo ser rico na descrio dos caracteres de quem escreve, j que se pode dizer que cada interlocutor redige a carta como retrato do prprio nimo12. Sneca atribui ao sermo o ofcio de ensinar docere propondo a carta como forma por excelncia do discurso filosfico, definido este como bonum consilium: Muito mais aproveita a conversa, pois que subrepticamente se imiscui no nimo.13

    recuperando a tradio, Petrarca se diz impelido pela afeio dos amigos caritas amicorum , dignificando sua escrita pessoal como cumprimento de importante obrigao moral, de no deixar jamais de respond-los e de bem aconselh-los de que nem a excusa de minhas mltiplas ocupaes me pode liberar.14 desta perspectiva que destaca o quanto sua forma se distancia da excelncia dos modelos clssicos. Afetando modstia, reconhece que os escritos que compem seu epistolrio formam um panorama diversificado a tal ponto que chega por vezes a contradizer-se e diferir de si prprio15. Como esclarece, teria sido bem mais fcil para os antigos alcanar a beleza de uma

    11 Petrarca,Fam.I,1,33.12 Estespreceitosaparecemno tratadoDe elocutione deDemtrio, numpequenoexcursodedicadoao

    tema;que,conquantobreve,tratadeumadasraraspreceptivasdognero.Defato,aomenosnoqueconcernesfontesquechegaramatns,aescritaepistolarjamaisfoitidanaAntiguidadecomoobjetode uma arte autmoma: fazia parte das formas no abrangidas demodo sistemtico pelosmanuaisderetrica.OspreceitosafirmadosnotratadodeDemtrio,contudo,aparecemdemaneiradispersaeregulamascartasdeCceroedeSneca.Tin,E.A Arte de escrever cartas,p.18.

    13 Sneca,Cartas a Luclio,38,I.14 Petrarca,op. cit:I,1,45.15 Idem,30.

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    unidade de disposio, j que em geral teriam de atender somente a um s ou a poucos. J ele, por sua vez, tivera de enderear-se a um grande e diversificado nmero de correspondentes, sendo forado a tornar proveitosas suas cartas a caracteres os mais diferenciados.16

    Com efeito, conferindo importncia capital ao topos da adaptao e solicitude para com a identidade especfica dos destinatrios que Petrarca sanciona o carter inslito de sua forma17: o primeiro cuidado dos que escrevem o de estar atento quele para quem se escreve; esta , com efeito, a nica maneira de compreender no s a matria, mas tambm o tom e as restantes circunstncias da carta.18 Desse modo manipula os elementos do gnero antigo, articulando-os aos objetivos do projeto intelectual que atravessa sua obra como um todo. o colquio privado ou ntimo travado com vrios interlocutores ao longo das Familiares promove a constituio de uma pequena comunidade entre os que se devotavam em sua poca s bonna litterae. Afinal, conquanto diversificados, os destinatrios que Petrarca forja para si tm em comum o fato de partilharem com ele a mesma convico acerca da dignidade superior da cultura clssica e latina em geral, oradores, poetas e patronos e o repdio concepo do saber e de seus mtodos conforme a Escolstica medieval. no mbito dessa comunidade literria ou res publica das letras, para ficarmos com a clebre expresso de Eugenio Garin eminentemente textual, bem entendido , Petrarca constitui sua autoridade moral, falando nas cartas como intelectual laico, escritor, poeta e filsofo. Como se sabe, compe ento a figura exemplar de vida intelectual e de aspirao sabedoria que iria consolidar-se como paradigmtica para os autores do Quatroccento19.

    16 Idem,20.17 ApartirdessaconsideraocrucialNancyStruevercriticaainterpretaodeThomasGreeneemseuThe

    Light of troy. SegundoaautoraGreenereduzocarterinovadordoestilopessoaldePetrarcanasepstolasaoidentific-locomaemergnciadeumeu autnomo.Defato,sublinhaStruever,oestilopessoaldascartasqualificaantesdetudoarelaodeamizadeeseconstituicomotalnombitoda interlocuontimaoufamiliarcomooutro.Struever,N.,Theory as practice: Ethical Enquiry in the Renaissance,p.11.

    18 precisoenderear-sedeumamaneiraaumhomemcorajoso,deumaoutraaumcovarde;deumaoutraaumhomemjoveminexperientedeumaoutraaumvelhoquepossuigrandeexperincia;deumaoutraquelequeaprosperidadetornaorgulhoso,deumaoutraquelequeaadversidadeabate;deumaoutramaneira,enfim,aoestudiosoilustreemengenhoeobras,deumaoutraquelequeincapazdecompreendertemasdemasiadoelevados.Petrarca,op. cit.,29.

    19 SegundoUgoDottiaescritadascartasdePetrarcarespondediretamenteaoseuprojetointelectual:Oescritordeseja,sim,fazersaltardeseuepistolriooretratodosbio,masnaverdade,dosbioquedesejas-lo,aindamuitoamarradoapaixesouilusesnodefinitivamentedomadas.Dotti,U.,Vida de Petrarca,p.511.NacurtaautobiografiadaEpstolaPosteridade redigidaoriginalmenteparaservircomoumaespciedeprefciosSeniles,querenemascartasdavelhicepelafamaeexcelnciadesuasobrasquePetrarcalegitimaoatodeenderear-sealeitoresdistanciadosnoespaoenotempoparafalardesisemqueseafigurassecomissocomoorgulhoso:Talvezalgosobremimtenhasidoouvidoporti(...)eistotalvezdesejars:conhecerquetipodehomemfuiouqueobrasproduzi,aquelas,especialmente,cuja

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    De fato, como sublinha nancy Struever20, as Familiares afirmam-se como espao discursivo tpico da investigao moral, tica e literria em que a tradio humanista ganharia forma, alheia aos mtodos estabelecidos nas Universidades. A epstola familiar se consolida ao longo dos sculos XV e XVi como uma das formas de expresso mais peculiares do humanismo, largamente empregada de Coluccio Salutati a Angelo Poliziano e Lorenzo Valla; de Erasmo a Justus Lipsius21. no captulo Considerao sobre Ccero Montaigne declara, por sua vez, que a teria adotado de bom grado caso tivesse um endereo forte e amigo a quem dirigir-se, como tivera outrora com tienne de La Botie (i, 40, 252).22

    De todo modo, embora destitudo de um interlocutor determinado Montaigne no deixa de mobilizar os mesmos preceitos que Petrarca, situando os Ensaios, de modo bastante particular, no plano da maneira simples e privada do sermo familiaris, ao apresentar a obra no texto proemial da Advertncia ao leitor quando de sua primeira publicao em 1580. Declara ento que seu livro antes de tudo obra de boa f, tendo como mote fundamental a empresa de retratar-se em sua maneira simples, natural e ordinria, conforme j vimos. Como nos diz: Se fosse para buscar o favor do mundo me paramentaria melhor e me apresentaria em comportamento mais estudado. Seu discurso possui natureza domstica e privada, voltada apenas para alguns parentes e amigos (Advis au Lecteur, 3).

    o captulo Da Educao das crianas23 um dos muitos captulos em que Montaigne retorna ao tema de seu desprezo pela retrica ao longo da

    famatenhaalcanadoati.Petrarca,EpstolaPosteridade,I,In:Enenkel,Modelling the Individual,p.243-283.

    20 Struever,N.Theory as Practice: Ethical Inquiry in the Renaissance,p.14-23.21 ComoobservaFumaroli,apesardecultu-la,ohumanismoreiteraolutojafirmadonaIdadeMdiada

    oratiomaneiradeCceroedeDemstenesqueremontaaTcitoemseuDilogo dos Oradores,dadaaausnciadeespaosinstitucionaispropciosaodiscursooraldeintervenopolticadiretacomexceodoregimerepublicanoflorentinodeinciosdosculoXVe,noquedizrespeitosmonarquias,emseusperodosdecrise,comofoiocasodaFranadasegundametadedosculoXVI,assoladapelosconflitosreligiosos.Defato,ognerodaepstolafamiliarfoidomniodonicograndedebatedapocasobreaprosa,frequentementelevadoacabosobaformamesmadecartas,opondoosquepostulavamaimitaoestritadeCcerocomonicomodeloaoseclticos,quedefendiam,porsuavez,avariedadedosmodelos,comvistasaestabeleceromelhorestilolatino(Fumaroli,M.op. cit., p. 886). SobreissovertambmMesnard,P.Lecommercepistolaire,commeexpressionsocialedelindividualismeHumaniste.

    22 AscitaesdosEnsaios deMontaigneseguemaEdioVilley-SaulnierdosEssais (PUF).Asrefernciastrazem,emalagarismosromanos,onmerodolivroeemalgarismosarbicosocaptuloeapginadareferidaedio.

    23 Alguns captulos dos Ensaios cumprem propriamente a finalidade proclamada na Advertncia, deenderear-seaamigoseparentes,chegandoaconstituir-seefetivamentecomoepstolas,destinadosemgeraladamasdecortedefamliassquaisMontaigneerabastanteligado.DaEducaodascrianasest entre estes, assimcomo DaAfeiodospaispelos filhos, oprimeirodirigidoaDianedeFoix,condessadeGurson,dedicadocrianadequeestavagrvidaeo segundoMadameD`Estissac.SobreesseassuntoverGoyet,F.MontaigneandtheNotionofPrudence.

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    obra. Explora-o, neste caso, em contexto particularmente significativo, com a apresentao de uma nova maneira para a educao das crianas, contraposta quela institucionalizada em seu tempo sob a gide do humanismo. o eixo fundamental do ensaio da oposio entre a figura do savant, possuidor de cincia e arte e a do homem habil, destacado no por um saber escolar e terico, mas como detentor de sabedoria prtica (i, 26, 150). Com vistas formao deste ltimo, Montaigne exige uma nova conduta por parte do preceptor, acusando de exagerada e intil a valorizao humanstica das artes da palavra. Sua tarefa fundamental no seria a de transmitir a autoridade das grandes obras e preceitos da Antiguidade, mas a de fazer a alma que tiver nas mos experimentar as coisas [gouster les choses] , escolh-las e discerni-las por si mesma (Ibidem). recomenda assim que o preceptor lhe pea contas no apenas das palavras de sua lio, mas sim do sentido e da substncia, e que julgue sobre o benefcio que tiver feito no pelo testemunho de sua memria, mas sim pelo de sua vida (i, 26, 151).

    Desse modo, em contraste com a figura do homem habil ou de juzo que assimila o contedo das lies dos antigos para correo dos costumes e do entendimento, conforma-se o ethos vicioso do savant como contra exemplo, dono de uma cultura livresca de pura ostentao, cuja finalidade resume-se a encher a memria [remplyr la memoire] (Ibidem). A prtica que o caracteriza, da imitao servil e puramente exterior dos modelos, Montaigne vincula metfora da m digesto: o estmago no realizou sua operao se no fez mudar a caracterstica e a forma do que lhe deram para digerir (Ibidem). A boa expresso do discurso no homem habil, por seu turno, no resulta do talento nas artes da palavra, mas da boa assimilao de sua matria pelo esprito; provindo naturalmente da 'imaginao viva e clara' que possui acerca daquilo de que fala. (i, 26, 168) Montaigne, portanto, desqualifica uma a uma, no ensaio, as artes da palavra gramtica, retrica, poesia e dialtica , tomando-as em primeiro plano como alheias ao ideal que pretende obter de sua proposta pedaggica de tornar-se melhor e mais sensato (i, 26, 152-168).

    Mas com isso ele apenas aprofunda uma tendncia crtica j dada no mbito mesmo do humanismo inerente ao elogio da imitatio dos antigos. Como salienta Eugenio Garin24, em seu vnculo constitutivo com os estudos das Letras clssicas, o programa humanstico teve como alvo primordial desde suas origens a boa formao moral e a liberao das energias criadoras

    24 Garin,E.LEducation de l`homme Moderne,p.36.

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    dos homens, de modo que seus representantes se mostraram sempre atentos para que a proposio dos modelos clssicos funcionasse no no sentido da produo de cpias, mas no do estmulo realizao da prpria excelncia em afirmar-se em sua autonomia. o que se v, por exemplo, no elogio dos estudos da eloquncia que Petrarca desenvolve na carta 9 do primeiro livro das Familiares. Exalta ento as qualidades do estilo lexis em que se exprimem as virtudes da alma bem formada contrrias s que denotam apenas a habilidade artstica nos ornamentos da oratria:

    Pois de que adianta que te tenhas mergulhado inteiramente nas fontes de Ccero, que nenhum escrito, nem dos gregos nem dos romanos te escape? Poders, com efeito falar de modo ornado, com graa, com suavidade e de modo elevado; certamente no podes com gravidade, com austeridade, com sabedoria e, o que mais importante de tudo, com uniformidade.25

    Mas, sem traduzir-se, como ocorre no caso de Petrarca, em determinadas qualidades de estilo, o homem habil montaigniano surge como um ponto de culminncia dessa tendncia, avesso a conformar-se no registro exemplar de uma conciliao ideal entre eloquentia e sapientia. De fato, como bem observa Sergio Cardoso: com Montaigne a afirmao dessa autonomia ganha significao mais ampla, mais desvencilhada de referncias externas, mais centrada no prprio agente e em suas capacidades.26 Ainda assim, o desprezo primeira vista to enftico pela retrica em Da Educao das crianas revela-se bastante ambguo afinal numa leitura mais atenta. Logo aps destacar a inutilidade das artes da palavra Montaigne passa a discorrer sobre a maneira de escrever que mais lhe agrada, enumerando tambm, afinal, os elementos de um estilo que, a exemplo da forma aberta da epstola, estipulam a informalidade e naturalidade da conversao: o falar que aprecio um falar simples e natural, tanto no papel como na boca (...) livre de afetao, desordenado, descosido (i, 26, 172). Consubstancia em seguida essa maneira num modelo que, sem abandonar a arte, maneja seus recursos visando simular sua ausncia. Como nos diz, costuma ele mesmo tomar como exemplo a displicncia [desbauche] no porte das vestimentas por parte de certos jovens que v sua volta:

    o manto de banda, o capote em um ombro, uma meia mal esticada, o que manifesta uma altivez desdenhosa [fiert desdaigneuse] desses ornamentos estrangeiros e despreocupada [nonchalante] de artifcios. Mas acho-a ainda mais bem empregada

    25 Petrarca,op. cit.,I,9,3.26 Cardoso,S.op. cit.,p.263.

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    na forma do falar. (...) fazemos bem em desviar-nos um pouco para o natural e o despretensioso. (Ibidem)

    Sua fala livre de afetao, portanto, no se confunde de modo algum com espontaneidade; mesmo pensada e arranjada a partir do emprego da fiert desdaigneuse e da nonchalance calculada da juventude que o cerca: fruto de um desvio assumidamente intencional para o natural e o despretensioso. Montaigne repe assim a tradio da diligentia negligens, recomendada pela arte epistolar, segundo a qual a negligncia da elocuo efeito da diligncia efetiva do discursador.27 tendo tradicionalmente, como j vimos, a instruo docere como seu ofcio prprio e o verdadeiro e o falso como objeto, tarefa do sermo familiaris justamente dar primazia inventio sobre a elocutio, sobressaindo pela dignidade das matrias res e no pela beleza das palavras verba.

    Mas, ao destacar sua matria, Montaigne arrisca-se antes a perverter-se num ethos vicioso de presuno e orgulho, visto no se arrogar a capacidade de instruir e no constituir-se enquanto exemplo, portanto. De fato, a tica e a retrica antiga e humanista conceberam com maus olhos a forma discursiva em primeira pessoa quando no fosse adotada por personagens ilustres que pudessem servir instruo dos homens. o falar de si afigurava-se, dessa perspectiva, como uso mal e frvolo da palavra28. Desse modo no promio de Da Educao das crianas Montaigne mostra-se profundamente consciente da frivolidade de seu discurso:

    aqui esto meus humores e minhas opinies; apresento-os como algo que est em minha crena [ma creance] e no como algo em que se deva acreditar [ce qui est croire]. (...) no tenho autoridade para ser acreditado, nem o desejo, sentindo-me demasiadamente mal instrudo para instruir os outros.(i, 26, 148)

    27 MartinhodosSantos,Marcos, Artedialgicaeepistolar segundoasEpstolasmorais aLucliop.71.Sobreadiligentia negligensverCcero,Orator,23,78ePetrarca,Fam.XVIII,7.

    28 Essa noo parece remontar tica a Nicmaco em que Aristteles se refere a tal costume comoincongruente com a grandeza de alma prpria ao homem magnnimo megalopsuchia , j quedestacadoporsuaaversoaconversasfteiseporsuaindiferenaaoselogiosalheios(IV,1125a.).Plutarco,porsuavez,assimsepronunciasobreaquestonaMoralia: Falardesidiantedeoutremparaseatribuirqualquermritoouqualquerpoder,todomundoodeclaraempalavra,queodiosoevilereservatalprerrogativaexclusivamenteagrandeshomensdeestado(VII,539547f).TranspostoparaaEuropacristdaIdadeMdia,esseinterditoganharianovompetoedimensoligadocrticadavanitas,traodosorgulhososedosmpios.MesmoPetrarca,emsuarecuperaodogneroantigodaepstolatradicionalmenteapropriadoatalprtica,comojvimosprocuraevitarqueseudiscursopessoalafeteahybrisdapresunoquandonajcitadacartaproemialdasFamiliares,declaratertidoocuidadodesuprimirdeseusescritosoexcessodedadosprivadosquereconheceraereprovaranomodelodascartasdeCcero,poisqueseriam:fastidiososmesmoaoleitorcurioso(I,1,32).

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    Com efeito, nesta autodefinio como ma creance oposta a ce qui est croire o discurso ensastico de Montaigne afirma-se substancialmente diverso do programa epistolar de Petrarca, em sua funo do aconselhamento e instruo moral; que tem, como j vimos, na adaptao ao carter do interlocutor seu preceito primeiro e fundamental de regulao. Em Considerao sobre Ccero, Montaigne tambm reconhece que poderia ter sido mais atento e mais firme se tivesse um endereo forte e amigo; um comrcio que lhe atrasse ao invs de voltar-se para o anonimato das vrias faces de uma multido. inimigo jurado de toda falsificao, entretanto, recusa-se a forjar nomes vazios a quem dirigir-se e com quem entreter-se com coisas srias. Como nos diz: tenho naturalmente um estilo familiar e privado, mas este de uma forma toda minha, inapta aos contatos pblicos, como em todas as formas minha linguagem: demasiado concentrada [trop serr], desordenada [desordonn], fragmentada [coupp], particular [particulier]. (i, 40, 253). De fato, como observa Marc Fumaroli, a no exigncia de adaptar-se persona de um determinado leitor confere-lhe bem mais liberdade. Mas esta ltima, contudo, importante ressaltar, est longe de cifrar-se afinal num ethos de meditao solitria que prescinde de interlocutores para voltar-se exclusivamente para si mesmo, j que, atenta o estudioso: no h animosidade em Montaigne contra a retrica nem nas Consideraes sobre Ccero nem em Da Educao das Crianas, mas ele subordina esta disciplina formao do prprio entendimento e do jugement.29 Para cumprir tal finalidade com efeito, o ensaio se vale largamente de procedimentos persuasivos, buscando redimir a falta de interlocutores e efetuar-se ao menos como esboo de um dilogo.

    isso nos leva forosamente a retomar a frase final da Advertncia ao leitor em seu curioso modo de dirigir-se aos leitores para exclu-los de seus desgnios: sou eu mesmo a matria de meu livro, no sensato que empregues teu lazer em assunto to frvolo e to vo (Advis au Lecteur, 3). Concordamos com Andr tournon quando afirma que este conselho dissuasivo designa com bastante propriedade o programa diferenciado dos Ensaios, ou seja, o de des-ensinar. Com efeito, procede da uma determinada tica que postula uma relao de outra natureza com o leitor. Afinal, Montaigne s despede aqueles demasiado dceis, preparados segundo o contrato habitual para prover-se de verdades atestadas. 30 Constri por outro lado, em sua trama

    29 Fumaroli,M.op. cit.,p.893.30 Tournon,op. cit.,p.9.

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    textual, uma outra classe de leitores, que aceitem seu convite fundamental investigao; ativao plena do prprio jugement.

    Montaigne nomeia ensaio essa nova maneira de escrever, servindo-se, no por acaso de um termo que at ento nada tinha a ver com as Belas letras. Derivado diretamente do substantivo latino exagium o termo francs essai designa essencialmente em seu sculo uma atividade do julgamento que no visa seno a si mesma, avaliando criticamente, medindo e pesando. Vinculada, assim, noo de experimentao e movimento, punha-se fundamentalmente no registro do agente e no de uma finalidade objetiva e concreta que se realiza31. o ethos que desponta de sua forma reflexiva e interrogativa o do homem de jugement que se pretende contraposto ao do autor de obra bela e acabada, garantidora de glria imortal.

    III

    As proposies do ethos na epstola de Petrarca e no ensaio de Montaigne podem ser bem exemplificadas na prtica, quando observamos os usos diferenciados que fazem de uma metfora bastante significativa em seu tempo, tradicionalmente ligada relao transformadora e criativa com as obras dos grandes autores, ou seja, a metfora da produo do mel pelas abelhas. A imagem remonta pelo menos carta 84 das epstolas a Luclio de Sneca, que a emula como modelo ideal de uma vida de estudos. Segundo o filsofo, devemos operar com os alimentos da inteligncia um processo idntico ao das abelhas, quando colhem o plen das flores para delas produzir o mel, a partir de uma propriedade de seu organismo. Devemos, segundo Sneca, discriminar os elementos colhidos das diversas leituras; aplicar-lhes todas as atenes de nossa inteligncia para assimil-los pelo esprito e transform-los ento em um produto prprio, de sabor individual, diferente daqueles nos quais se inspirara32.

    31 Odicionrioetimolgicod'Ernout-MeilletreformulaasconclusesjtiradasporVarro,quantoaosentidoaproximadodosverbosagere/facere,queseapresentamcomoumasortedeuniversaisaindicaraideiadeaoeprocesso.Segundooreferidodicionrio,agere refere-seaosujeitoqueagee,portanto,aumaatividadequesedesenvolve,enquantofacere designaumacoisaquesefaz,vinculadoantesaumobjetoquesetorna.Apalavraexagium,ricadeimplicaessemnticasparaahistriadotermofrancsessai, formadeverbaldeexigere, que derivadiretamentedeagere; significativoo fatodequeosentidodeexagium, conquantosetratedeumsubstantivo, noperdedevistaanoododinamismodeumaatividadepensadaemrelaoaoagente,designandooprocessodeavaliaoeexamelevadoacabo.Berlan,F.Essai(s):Fortunesdunmotetduntitre.p.4.

    32 Sneca,op. cit.,84:3-5.

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    na carta Da Inveno e do Engenho, a oitava do primeiro livro das Familiares, Petrarca repe a metfora de Sneca e o sentido de sua lio, da assimilao ou digesto do alheio pelo esprito para a constituio de uma obra prpria. destacando ento essa natureza ativa e renovadora da inventio que preceitua a imitao das abelhas ao seu correspondente, o tambm poeta tommaso Caloiro: tenhamos um estilo nem deste nem daquele, mas nosso, forjado a partir de vrios33; desse modo refora mais adiante o conselho, no final da carta:

    a exemplo das abelhas esconde de tudo aquilo que se apresenta as coisas mais bem escolhidas na colmia do corao, poupa-as com diligncia e conserva-as tenazmente para que nada se perca se for possvel. E cuida para que no permaneam contigo tais quais tu as colheste, de fato no haveria glria para as abelhas se no convertessem em outra coisa melhor e diversa aquilo de que se apropriaram. (...) da pois, jorraro aquelas obras as quais com excelente razo tanto a idade presente quanto a vindoura a ti atribuiro.34

    Montaigne reinterpreta a mesma metfora em Da Educao das crianas. Ela aparece em sua proposta pedaggica, como reflexo da relao que ele prprio estabelece com os autores antigos que apresenta, recorrendo imagem das danaides35. Conforme nos diz ento, no travara relaes com nenhum livro slido exceto de Sneca e de Plutarco, nos quais se abastece, contudo, como as danaides: enchendo e vertendo sem cessar [remplissant et versant sans cesse]. Fixo alguma coisa disso neste papel; em mim praticamente nada. (i, 26, 146)

    Com efeito, a imagem das danaides vem excluir desde j do comrcio com os antigos a figura do bom escritor que, em Petrarca, esconde, poupa e conserva com diligncia os materiais coligidos de suas leituras. Ao invs de armazen-los na memria e selecion-los de modo adequado para constituir uma obra nova que lhe garantisse glria imortal, opera de acordo com a imagem das danaides, esquecendo-se de sua origem para naturalizar o alheio como prprio.

    Desse modo, quando, pouco adiante, Montaigne retorna a aconselhar a imitao das abelhas, como modo da relao ideal com os antigos em seu programa pedaggico, investe-a de novo significado. identifica ento o mel, resultado do processo de assimilao ou digesto das opinies de outros,

    33 Petrarca,op. cit.,I,8,5.34 Idem,23.35 Figuradamitologiagrega:DanaidessoascinquentafilhasdeDanao,irmodeEgito,punidasnohades

    porassassinaremseusmaridos,condenadasaencheremdeguaumajarracomfuros.

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    menos produo de uma obra concreta, do que a um estado da faculdade de julgar, a afirmar-se em sua plena autonomia: uma obra toda sua: a saber, seu julgamento. Sua educao, seu trabalho e estudo visam to somente a form-lo. (Idem) Ouvrage de jugement parece ser bem o caso dos Ensaios: afirmada enquanto obra concreta como fosse consequncia ou veculo da atividade do jugement, forma por excelncia do ethos de um homem habil.

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