Montaigne e a Modernidade

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    76etemidade na figura da misetabil idade aparente (pobreza, humilhacao ...).Quanto ao futuro, a revelacao do sentido da historia pela conjugacao dainterpretacao das figuras do passado com0reconheci mento do Evento Absol utofaz com que a dimensao futura da temporalidade deva ser pensada comodestinacao transcendente tendo em vista a restituicao, pela graca, da pos-sibilidade de contato com a transcendencia - 0 Logos ouvido a partir dosilencio de Deus, audivel ao coracao. A dirnensao de etemidade que 0destinohumano assume a partir da redencao faz do futuro historico, na aberturaindefinida de sua sucessao, algo a ser pensado sob a egide do infinito. E isto,nao porque a mera sucessao indefinida figuraria 0infinito (0indefinido nao efigura do infinito), mas sim porque a recuperacao da transcendencia do destinohumano muda qualitativamente 0 significado da duracao, Assim como 0passado se toma compreensivel pelo designio salvifico expresso nas figuras, 0futuro se compreende pela possibilidade de, atraves dele, nos prepararmos paraa gloria, vlvencla do infinito. Por isso 0futuro tem de ser visado tambem nasua dimensao interna, portadora do sentido transcendente. A mudanca qualita-tiva da duracao deve expressar-se na transformacao das relacoes entre aconsciencia e 0tempo. 0passado reapresentado no presente e 0futuro comoo-que-sera-prescnte nao significam, como no pensamento antigo, 0 ciclo darepeticao, mas a insercao da Presenca na temporalidade historica. Assim, 0passado se define como a expectativa da presenca enquanto presentificacao dagraca, eo futuro como esperanya de sua realizacao plena. Mas como Deus estaoculto, no seu ser enos seus designios, essa esperanca tem a dimensaoindefinida da incerteza e ao mesmo tempo 0carater infinito daquilo que se poecomo seu objeto. A relacao entre a consciencia e 0tempo regendo-se agora poresta expectativa, 0homem tem como reconhecer-se deoutra maneira no seu serhistorico: nao apenas como um ser imerso na sucessao, mas como ur n ser-de-esperanca, se nos for permitido adaptar a esse contexto as palavras de E. Bloch.E a esperanca enquanto sentimento da presencra do futuro, ou da FuturaPresenca, e a outra face do sentimento de ausencia. Pois 0tempo e imagem daeternidade, "mas e somente aimagem".

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    MONTAIGNE E A MODERNIDADE

    Telma de Souza Birchal r

    RESUMO: Neste artigo, procura-se definir 0 estatuto d~ subjetividadeem Montaigne, em contraposiriio ao sujeito moderno (car~e~zano). Busc~-sedeti . - elaciio do Eu com 0 Ser. tanto no domznlO da metafisica,esta eJInztraona r :r ' uanto no da moral e no da religiiio - encontrando-~e, em Montazg.ne, a;uptura das pontes entre 0 homem e 0 Ser. A afirmatrao de uma radical epositivajinitude do homem, assim como a situatriio do E~ como E~ ~o mundo,distinguemfllndamentalmente asubjetividade em Montazgnedosujezto moder-no.

    ABSTRACT: In this paper, we search to define the main laws ~fSllbjec-tivity according to Montaigne as opposed to the Modern Self(Cartes~an) ..Sucha defini tion is searched in the relation between the Self and the Bezn~,.znthedomain of metaphisics as well as in the domains of morals and. religion, InMontaigne, we find a gap between Man and Being. Both the claim th~t thereis a radical and positive finitude in Man and the claim that the Self z~ t~ ~eunderstood as Self in the world fundamentally distinguish the Subjetivi tyaccording to Montaignefrom the Modern Self.

    Observa~oes Preliminares: Apresentamos aqui algumas ideias a partirde uma aproximayao dos Ensaios1 . de Montaigne, iluminadas me~os. peloscomentadores do fil6sofo - pois nao setrata dotrabalho de um especial ista -

    Professora do Depto ~e Filos_?fia~ FAFIC.Hd/UFMtGd -0para l ingua portuguesa de Sergio Mil liet . editadaAs c ita oe s do s EOSSI08 serao feltas seguin 0 a ra uca .. ,pela A~r il Cul tu ra l. Sao Pau lo . 1972. ( lndicada no texto pela inicial E.) .

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    e mais por alguns problemas que tem sido objeto denossa reflexao nos ultimosanos: a questao da subjetividade na filosofia modema e os temas correlatos dasituacao dohomem em relacao ao Ser, ao mundo e ao outro. A filosofia modemaa qual nos referimos e diante da qual situaremos Montaigne limita-se a tradicaoracionalista, cartesiana.

    ~te texto se inspira tambern, no que diz respeito especificamente aMontaigne, num belo artigo publicado recentemente por Jean Michel LeLannou, em torno da comemorayao dos 400 anos da morte do filosofo 2.

    1- INTRODU

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    inabalavel de toda certeza" 4. Partiremos aqui da definicao heideggeriana desujeito, que corneca por uma retomada e interpretacao da etimologia: sujei to esub-jectum,o quesubjaz, 0que esta dado antes dequalquer outra coisa - suacondicao ou seu fundamento. Neste senti do, quando a filosofia crista afinna umSujei to, este 6 Deus; na filosofia grega, 0fundamento pode ser encontrado naordem do Todo; na modernidade, de forma completamente original, este lugare dado ao homem, como consciencia de si e consciencia do mundo: a sub-jet ividade se toma sujeito, pois ela e aquele dado anterior a partir do qual tudoo mais se dispoe, fundamento, 0Sujeito, coloca-se, na formula cartesiana, como certezade si, presenca imedia ta de si a si. Cer tamente que desde a filosof ia antiga sepensou 0homem como consciencia, como algo distinto do mundo, e mesmocomo sujeito do conheci mento e da representacao. A propria origem dafilosofiana admiracao sup6e a consciencia de si e um certo distanciamento entre 0homem e 0mundo. No entanto, so a partir de Descartes 0homem se toma juizdo Ser e tern a chave da sua verdade - 0distanciamento se transforma emruptura, de forma que ele possa recolocar 0problema do real a partir de si: aconsciencia toma-se fundamento. Assim, a certeza do Cogito funda todas asoutras certezas, 0Eu e 0Igar das verdades elaras e fonte deuma bem sucedidaordenacao do real. Enfim, depois do desligamento do Ser provocado peladuvida - onde a experiencia vivida, as opinioes e ate as ciencias estabelecidasnao resistem a uma investigacao racional mais detida - reconstroem-se aspontes do homem com 0Ser a partir do Cogito e de tudo 0que ele estabelececomo verdadeiro. Ora, claro esta que 0real que encontraremos agora nao guardamais nenhum aspecto do mundo vivido. pedaco de cera - com seu odor, core forma - que Descartes julgava perceber a traves de seus sentidos tomou-sea ideia geometrica de extensao, sob a vigorosa ac;aodo Eu, ou seja, do sujei to.Menos viva que a sensacao, esta ideia sera no entanto muito mais certa, abrindoo caminho inelusive para 0ji tao analisado projeto de dominaciio que se instaurana modernidade.

    Nao apenas em relacao it esfera do mundo fisico, mas tambern it da moral,o Sujeito impoe a autor idade do seu olhar : a era moderna faz a experiencia daautonomia - as regras que nos dizem respeito tern de se colocar a partir denos. Mais do que uma af irmacao da liberdade do homem, esta sera a garantiade uma seguranca: ha regras, nao estaremos, no campo moral /historico, numdominio incerto, assim como nao 0estamos no dominic da ciencia . Enf im, a

    4 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Paris,Galiimard, 1989,vol.2, p.l0S.

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    subjeti vidade moderns nao quer.d~zerrelati vismf' incerteza, subjetivismo. Pelocontrario ela se instala no dominic da certeza.Dire~os entao, neste momento, que 0Sujeito moderno, ~alcomo 0vemos. D rt . mais que 0homem, pois encontra em S1mesmo a certezasurgrr com esca es, e . . d Mder ue a antropologia antiga (muito menos relat1Vlsta. que a e on-~~g:) lheqnegava. Mas, perguntamos nos, nao sera ele tamb~m menos que 0homem? A leitura de Montaigne pade nos alertar a este respeito.

    III _RUPTURA COM 0 SER E FINITUDEDOHOMEM EM MONTAIGNE

    Retomamos aqui a formulacao de LeLannou, segundo a qual com Mo~-tai ne "0homem se descobre outro que 0ser" , ou seja_,ele na~ ~~contra matsnenhum modelo - seja na metafisica, seja na moral , seja na rehgtao - que lhe. d .' er Essas tradicionais instrumentos do homem nade a medida e seu propno s., .' Ebusca da Verdade, do Bern, de Deus, nao podem mats cumpnr sua tarefa. mseu lugar, surge 0homem, a quem tudo afinal se remete.

    1 _AMetafisica, Ciencia e 0Problema da verdadeMontaigne elabora a cri tica dos fundamentos da filoso_fia de seu tem~:

    esses sao a logica aristotelica, por um lado, eo antropomorf:smo, par out~o..Quanto it logica ela so e ef icaz porque supoe 0conheClmento dos prmci-

    pios das ciencias, dos quais tudo mais se d~uz .. ora, de onde vern esteconhecimento dos principios? Escutemos Mo~tal~e. ..' . . os" Aristoteles e 0Deus da ciencia escolast ica, e ~cnleglO discutir- l~~

    itos como 0 era em Esparta discutir os de Licurgo ... Como admitir aconce , . ., ncontram naopin iao de Aris toteles no que concerne aos pnnc~pI~s ~ue se e . .origem danatureza, e assentam em tres elementos p.nn:I~a1S~a mat~~. af~~:~

    ~ .?" (E II 12 P 254). Nao seriam estes pnnclplos tao arbltranosa carencra: .,,' E . ?quaisquer outros, as ideias de Platao ou os ato~o~?e PlcurO... e

    N raciocinio se assenta pais sobre pnnci p ios supost~~, I t~aglnados ,osso .' . 1 da a das ciencias torna dasassim entramos num circulo VlClOSO,o qua ~ uII_l- ursa do saber itoutras seus supostos como verdades. Quanto as defimyoes, tee

    S Idem, p. 1 04144. . _ d BRUNSCHVICG L Descartes et P ascal, lecteurs de M ontaigne.6 Neste item, sigo de perto a exposl~o e New Yor\(/Paris.Brentano's. 1944. p.113-1S6.

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    82 83mo~. de A?st~teles, elas se assentam na crenca de que somos dotados de umaespecie d~m~myao, .capaz de nos dar a ..substancia" das coisas. Mas a intui yaodas ~bStiinClas, a~lm como ados primeiros principios, tambem e ilusoria:_ Uma PAedr~e um corpo, mas se perguntarmos 0que e um corpo, respon-derao: substancia, eo que e substancia? . .. Sei 0 que e urn homem, mas sei

    ~enos 0 que seja ~~ a~mal.' um mortal, um set dotado de razao: paralibertar-me de uma duvida, lmpIngem-me his: e a cabeca da hidra." (E. III 13p . 483). 7 -Y, ,. ~ logica e n~sso instrumento e nao podemos abrir mao dela. No entanto,J~mal~no~ podera fomecer uma certeza absoluta - isto porque os principiosnao sa~ eVlde!1tes- sao suposies, imaginay6es, artificios. Sao supostos, nao~on?e:ldos. E presuncao atribuir a um recurso tao precario uma especie demtUl~o_ca~az ~e nos ~omecet 0segredo das coisas, seja por abstracao, seja por~ma visao mterior; seja pe!o proprio raciocinio. Seculos rnais tarde na mesma .linha, Nietzsche did nao dos filosofos, mas dos cientistas, que e!es se asseme!-ham a um hornem que se alegra por ter encontrado um tesouro ali onde elernesmo 0 havia enterrado. "Como a virtude, a ciencia falha nos pontos ex-trernos" (E. II, 12, p. 262), nos seus principios e em seu acabamento.

    Tanto ~~an~oda logica, Montaigne e tarnbem urn critico do antropomor-f ismo das cle~clas de seu tempo: julgam-se os ceus pela terra, 0universo pornossas nec~ssldadeS. Lanca ~le um olhar arguto sobre as convicy6es de seuscontemporaneos: que constroem 0 universo na medida do homem e para 0homem, e em cujomundo, tao belamente descrito por Foucault, as coisas falamaos hom~ns todo 0tempo atraves de imimem, sinais. Isto so e possfvel porque:

    ..existe uma criatura privilegiada que reproduz, nas suas dirnensoes restri-tas, a ordem.irnensa .doAe?>dos astros, das montanhas, dos rios e das tempes-~adas... Por isto, a distaneia entre 0microcosmos e 0macrocosmos pode serimensa, mas nao e infinita", 8

    A ideia do homem como microcosmo no macrocosmo the confere umacentralidade, uma situacao privilegiada que Montaigne recusa veementementepo~ exemp~o, na "Apologia de Raymond Sebond", 0 homem e parte d~~verso, nao seu centro; como parte, nao pode nern mesmo situar-se defini-tivamente, nao conhece este universo que se desdobra no diverso e no maravi-Ihoso: Enfi~, ~ situacao do homem no cosmo jamais nos dara a chave paradefirur 0proprio homem, Em si ~esmo, porem, 0antropomorfismo e insupe-

    : ~~ua~~~aC::d:t~ ~urnento porD.escarte_s,aSegundaMedita~o, agoraapontandoparaurnasolu~iio.,. a avraa e as COlaaa. SaoPaulo, Martins Fontes, 1981, p.47.

    ravel - podemos critica-lo em sua pretensao it verdade, m~ est_amos,de~-tinados a so ver 0mundo com os nossos olhos. Uma prova ?lst~ e 0propnotexto de Montaigne: a descricao que ele nos apres~ta?os arumais, ~ mesma"Apologia" e deliciosamente antropomorfica, atr:~umdo-lhes, ~entimentos,intencoes e ate mesmo 0conhecimento das matematicas ..:~ c~tIC.~d~ antro-pomorfismo deve ser compreendida sobretudo como cntica a clencl .a , quepretende uma objetividade quando, 0 tempo todo, fala do ponto de VIsta dohomem.

    Embora Montaigne nao nos ofereca outras bases para uma filosofia danatureza, ele percebe 0quanta a ciencia de seu tempo, por seu antropomorfismo,se aproxima da supersticao: . " . A "Se eu fosse medico, apelaria mais para 0misterio e a providencia ... Apropria escolha de suas drogas tem algo de misterioso ,esagrado: .p e esquerdode tartaruga, urina de lagarto, excremento de elefante, figado def~nha, san~~ede asa direita de pombo branco ... e outras prescricoes absurdas, mats dodominicda feiticaria do que da ciencia" (E. II, 36, p. 354). ..,

    Ora, analisando a metafisica e a ciencia, que em ruveis diversos no~deveriam dar 0Ser, Montaigne so encontra 0homem. E um homem que por ~lnao pode construir sua ponte com 0 Ser, pois os instrumentos co~ os quaisconta - a logica e a decifracao dos sinais do mundo pela nos~a linguagemcomum - de novo 0remetem a si mesmo. "0 olho do homem so apreende ascoisas sob as formas de que tem nocao" (E.II, 12, p. 252). Ou, como diz aindaMerleau-Ponty, as ciencias e a metafisica nao explicam 0 homem, mas se 9explicam por ele: fundamento sem fundo, mo~~ e mlst~o.

    A logica nos leva a paradoxos e circulos VICIOSOS,linguagem comum aimagens e fantasias. Procuramos 0Ser,.encontram.os nos~~ medos : esperan-r;as. Para cumprir esta tarefa, seria pr~lso, para ale~ .dalogica e da lingua~emcomum uma "outra linguagem". Ate mesmo os ceticos, para poderem dizer"duvid~" sem incorrer em contradicao, "precisariam deuma outra lingua" (E.II, 12, p. 248). A tarefa deDescartes e da ciencia modema sera a.de encontraresta "outra l ingua", tanto para duvidar , quanta para afirmar radicalmente. 0metoda das matematicas, segundo creern os modernos, possibilitar~ ao hOI_TIemo acesso a princf pios verdadeiramente evidentes, superando ass~m a circu-laridade dos fundarnentos da antiga logica denunciados por Montaigne,

    Os objetos da duvida em Descartes sao os mesmos que em Mont:"gne: aexperiencia sensivel, os conhecimentos de seu tempo, e os conteudos da

    9 MERLEAU-PONTY,M. 'Le~ura deMontaigne"In Sinai. Usboa,Ed. Minotauro, 1962,p.307.

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    reli,gHio,No entanto, enquanto ad' ida 'e dificil , dirizido pela vontad UtVI para Descartes e urn exercicio met6dicoda ,0 e con ra a tendenci t al ds coisas e as opinioes recebidas M ' c!a na ur e adesao a evidenciametodo, ela the e por ,I di ' _?ntrugnee por ela tornado de assalto: sem, assirn zer tao pres tquanto estas nao pode ser absolutizada en e qu~to su~ opinioes, e tantoultrapassada. Se 0 result ado da diivida 'cTalv~z por,lsto nao possa jamais serconstrucao da ciencia 0 da A :mes1ana e, na sua ultrapassagem, ainterpretacao infinita ~ ho permdanenc1a da duvida em Montaigne sera amem e 0mundo.

    2 - A Moral e 0Problema do BernNo campo da moral, colocam-se a Montaimento dos criterios do bem azi , gne os problemas do estabeleci-I' em agir ou da virtude da b daava 1ayao dos diferentes costu d ,usca felicidade dad sd mes os povos Ou sej delimi - 'se e obra nos quadros da etica re :, a, a e imitacao da questaoepicuristas, No entanto para I t g ga, pn~c1palmente ados estoicos e dos, e e ornou-se muito m . difi 'Iencontrar 0modelo, algo que nos di a aI~ 171que para os antigosFora e dentro de nos a exp , A , g afinal 0que seja a virtude oua felicidadeenencia se desdobra multi pla: 'Quanto a felicidade "" Os homens, diz antigo ditado re 0das coisas, nao com as coisas ? En atormentam-se com a ideia que ternem si.; ncaramos a m rt bcomo nossos piores inimigos 0 0 e, a po reza e a dor

    h ' ' ra, essa morte que alg 'deornvel entre as coisas horrf z : , uns consi ram "a maisiveis outros a julga "" betormentos da vida _ 0 be " m uruco neficio contra os, maior eneficio que nos dgarantia de nossa liberdade ' . eu a natureza - a iinicaI " .. - 0umco amparo imedi tma es. Aguardam-na I a 0e comum a todos osid a a guns a tremerem de medo: tVI ,., contente esta quem edi ' ou ros, preferem-na a, , se acr ta contente e - I1m~~mam contente. Nossa cren a ' nao ~que es que os outr

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    virtudes. Urn pode ser 0complemento do outro, ou sua outra face, companheirosinseparaveis. A virtude absoluta, sem sombras, significaria a propria destruicaoda condicao humana: "Nosso ser e urn aglomerado de qualidades que sao aomesmo tempo defeitos ... quem extirpasse 0germe dos maus sentimentos docoracao do homem destruiria nele as condicoes essenciais de nossa vida" (E.III, 1,p. 366)." Com pensamentos desta natureza, pode-se ver ~ue osfundamen-tos da etica tradicional estao sendo gradualmente erodidos". 1 0ideal estoicode virtude e imitil para 0hom em real.

    Os preceitos da moral de Montaigne - porque os ha - consistem noequilibrio entre 0corpo e a alma (que esta nunca recuse aquele seus prazeres,mas que osregul e), noamor a vida, no contentar-se com osseus limites: " grandee tudo 0 que e suficiente", nos diz 0 f ilosofo, A ambicao, ou 0 orgulho, adesmedida, seja como busca da gloria , seja do conhecimento, e a forma porexcelencia do vicio. Devemos tambem saber que 0ser humano abriga nao so 0equilibrio e a sabedoria, mas uma dose salutar de loucura. Ou melhor, que urnpouco de desequihbrio faz parte de uma vida equilibrada. (E. III, 5). Tentarordenar-se e tarefa do homem, e tambem reconhecer 0irrealizavel desta tarefa.

    Mas quais seriam as bases desta afirmacao? Estao, e nao poderia ser deoutra forma, no Eu que vive e que julga, no Eu empirico de Montaigne, nao emnenhum ponto de vista absoluto. Assim, a natureza pode ser tambem compre-endida como a natureza de cada urn, e viver segundo a natureza, como viversegundo a sua propria natureza. Definindo-se como timido, sem altos ob-jetivos, irresoluto, amante da tranqiiilidade e do conforto, Montaigne afirmaque, entre dais modelos de vida, urn "tranqiiilo, isento de superst icoes, e bempreparado para 0sofrimento e a morte ... uma existencia anonima, sem brilho"e "outra gloriosa eexemplar ... se me coubesse escolher, entre uma e outra, diriaque a primeira esta a meu alcance, a outra me ultrapassa fortemente" (E. III , 7,p. 420). A virtude e relativa ao temperamento de cada um, e 0Eu, situado,definido, empirico e 0 juiz. 12Montaigne convida 0 seu lei tor, como juiz, a darou nao 0assentimento a s suas proposicoes, Mesmo nao tendo ideias claras edistintas, cabe a cada um bern usar a sua razao, Dai se deduz que a eticamontaigniana e uma etica fundada no mundo da vida, e nao em qualquer t ipode universalismo, numa linha que nos levaria, por exemplo, ate Nietzsche.

    11 M cFA RL AN E, D . ' The C on ce pt of V irt ue i n Mo nta ig ne" i n Mc fA RL AN E & MA CLE AN (e d). Mo nta ig ne.E ss ay s i n m emo ry o f R ic ha rd S ay ee . C la re do n P re ss . O xf ord , 1982, p. 80.12 ' In tima te ly bound upwi th par ti cu la r tem perament o f the ind iv idua l in quest ion, v ir tue is a lso an e lement tha tbenet its from, but contr ibutes atthe same time to, the growing conscience orseH- awareness ofthe personali ty.I n t hi s s ens e, i t c an not b e a c od e o f et hi cs dr aw n fr om s ome o ut si de s ou rc e, su ch as i s a dv an ce d f rom ti meto t ime byp rofessional phi losophers" i t is par t and parce l o f the person conce rned". (Mc fa rlane, op. c it . p.90).

    . _ cartes assim Como nos Ensaios, temos a presen~aNasMedltacoesdeDes , E ,ia oj'uiz, que 0que eu penso seja. ~ . moral' que 0 u seJde uma mesma eXlgencla '. - . marca trazida pelo subjetivismo deEst talvez seja a maier .eu quem 0pense. a _ . a razao de cada um, que nos permite. , til fi modema: a razao eMontalgne a 1 oso a 13 dade urn preceito moral que atravessa. . .' Este e na verser nosso propno jUlZ '. ~ . nstituir'jio da virtude. Lemos em. . - d ClenCla como a co r- .' dtanto a consntulcrao a Td ntentamento e preciso segult a VIrtu e,Descartes: "Para rermos urn so 1 a tantedeexecutar tudo 0que nosjulgamosdi rna vontade fume e consquer zer, u .. Eli beth, 18 de agosto de 1645). .ser 0melhor (Carta a ~. metafisicas (como a ideia disnnta deMesmo assentada em solidas bases _ ' construida com ideias c1aras eId Descartes nao seracorpo e de alma), a mora e . 1 uniao da alma e do corpo nossadistintas, pois no plano da incompre:nsdlve rteza mas do melhor julgamentodete tamos no campo nao ace , Sciencia se etem: es . di t de si mesmo que diante do er.d h se encontra mats Ian e .~ .possivel, on eo omem .." m sua moral que em sua ciencia., b . "montaton1ano eDescartes e em malS O~ - do Suieito-1 1 ' assunto do homern, nao ~Diriamos que ne e a mo~a e 1 til fi modema sera a do progressivoo movimento re~lt:ado ~oa ~i~~:~uanto Espinosa reconstr6em estaafastamento desta poslyaO. Tan 1 _ assente mais no homem que julga,ponte com 0Ser de modo que a mor~ nao seEste e 0 sentido da ttiea More

    mas num todo que 0 precede e a ~ange. onde 0 principio est6ico do agirGeometrieo Demonstrata de Es1pmosa,t (esforco empenho) que nada mais, t madope oeona us l' y , 4"segundo a natureza e re 0 _ l 'dade do agir' 1 , ou seja, agir~ . da firmaceo do ser na atua 1 . e que" a potencla a T file ofo conhece clara e distinta-d ' natureza que a 1ossegundo a natureza 0que e, .' st belecl' da que tudo dispoe para.' ide i d harmomapree a, .mente. Em Lelbmz, a lela e _ . . ta da Provi&ncia dos estolCOSe, ' ie de versao mecantClSo melhor, e uma espec ., Nossas acoes sera a sempre asdi ar a homem como jUlZ. T ,que acaba por spens de vi d 11 do eistoindependentementedenos.melhores possiveis do ponto e VIsta a a ,

    3 _ A ReligHio eo Problema de Deus- .1:< S r nas suas formas. .~. moral nao nos Ul:10 0 e,

    Se, em Montmgne, a c rencia e a homem resta saber se a religHiodaVerdade ou doBem, mas remfiet:mdsemdpreoanhcimen~o e da vontade humana. ~ 1 R onhecer a nitu e 0c 1 -podena faze- o. ec 1 '1 b os auspicios da Reve acao,.' so para coioca- os so .sempre foi um pnmelro pa s

    1 3 B RU NS CH VI CG , L oP c it p. 1 ~5 C n hee lm en to . S ao P au lo , L oy ol a, 1 99 1, p .1 16 .14 DOMINGUES,I. 0 Grau Zero 0 0

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    no ~aso do conhecimento, ou da Graca, no caso da Vontade, reconstruindo assimo ~tnculo do h~mem com 0Absoluto. Montaigne nao da este passe _ e umfilosofo que es_tadem~siadamente ocupado em ser "simplesmente homem" _e nem pode da-le, pots, na verdade, para ele, nao e a experiencia da finitudeque leva ~ homem a ver-se em face do divino, e muito mais 0orgulho humanea pretensao. '

    A "Apologia de Raymond Sebond" nao e uma apologia, pois Montaignese coloca claramente contra as pretensoes do autor de demonstrar racional mentece.rta_:>e.r~ade_sda fe. Ora, ate aqui nada de novo, alguns entre os mais piedososcnstaos Ja.0disseram, e apontavam, entao, a Revela

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    para sua constituiyao como Sujeito. Essa alienayao do mundo cumprir-se-iaprincipalmente com a ciencia modema: para construir este edificio seguro eestavel, 0mundo visto e percebido pelos nossos sentidos teve de ser abando-nado, dando lugar a sua construyao matematica. 0 homem passa a ver a Terranao a partir de urn ponto de vista terreno, mas de um ponto de vista universal .Juntamente com a Reforma e com as grandes navegayOes, a ciencia modemaafastou 0homem deseu cenario proximo e ..0amor pelo mundo foi a principalvitima da triunfal aIienayao do mundo na era moderna" 17. Tanto em religiao,como em moral, como em ciencia, uma razao universal que me habita, que naopassa pelo mundo nem pelo outro, que e a medida do verdadeiro e do falso, fazde toda intersubjetividade um conceito desnecessano e encerra 0 homem(sujeito) em sua solidao e incomensurabilidade.

    A certeza de si, fundamento de todas as outras certezas, demanda a solidaodoEu, eo sujeito moderno e portanto urn sujeito sem mundo: sem contingeneia,sua certeza se encontra nas formulayoes eternas das matematicas; sem nome,pois e preciso ultrapassar 0eu empfrico de" robe-de-chambre" para chegarmosao Eu penso; scm alteridade, pois todos podem ocupar igual e indiferentementeo lugar vazio do Sujei to; scm mundo da experiencia, pois dele em primeirolugar devemos nos afastar, pelo exercicio da diivida, Em Descartes, Espinosae Leibniz na o encontramos uma filosofia do mundo. 0 sacrificio do mundo e ,na aurora da modernidade, 0preyOda certeza de si como razao pura, Cogito,enfim, como sujeito, .

    Ora, em Montaigne, embora ele tenha em seus Ensaios a preocupayao detracar os Iimites entre 0Eu e 0outro, entre 0meu julgamento e os costumes,entre 0 que me aparece e a verdade, jamais pode-se dizer que ele faca umaruptura entre 0homem e 0mundo, Montaigne nos apresenta sempre 0homemem seu contexto, em seus lirnites - historicos, corporais, espirituais. Nunca sedesfaz da contingencia, nem transcende sua condieao humana. Tomamosdistancia, e certo, mas nao ha nenhum "ponte arquimediano" a part ir do qualpossamos estabelecer os fundamentos do Ser, nem nenhuma possibilidade decolocar de modo absoluto entre parenteses 0que nos cerca. Parte do mundo,nao seu centro, 0 homem Ihe sera sempre 0 interprete, nunca 0 ordenador.Mesmo a tarefa cri tica nunca deixa de ser interpretayao, ponto de vista de urnsujeito situado. Ou, retomando a expressao de Merleau-Ponty, em Montaignea consciencia nunca se torna espir-ito. 18

    17 A RE ND T, H . A C ond i~i io H uma na . R.J., Forense Univers~aria, p. 2761 8 " Ac on sc ien ci a de s i e a sua constan te , a m ed ida parae le de todas as dou tr inas . Poder .se. ia d izerque nunca

    91d rmanecem ligados na experiencia comum da variabilidadeuemun ope . .d (E III 13 p. 492). Quanto mais fundo eu vou em rmm, marse da mu anya . , , di _ , fa rtdescubro ai que 0mundo - os costumes, a educ~yao, a t ra cao - e ~ p a . e

    de mim mesmo quanto 0meu proprio corpo. A !dade, 0te~po, a expen~clanos constituem. Nao podemos abandona-los assim como nao podemos sair de, O' rio homem e observado sobretudo nos seus atos e gestos,os mesmos. prop... ' .. 19niio em seu interior . . . .o subjetivismo de Montaigne, como 0de Prota~or~, justifica-se a pa~Irdas diferentes insercoes do homem no mundo e na vida . ~da urn pe~ara eiul ara a partir de sua posicao no mundo e do que se presentific~ ?ela, . ~ sua~x~riencia, de seu contexto. Desta forma, 0mundo, c?mo cenano pro~Im~,recede e constitui 0Eu, queso depois podera ser "a rnedida de todas as coisas .Porque vinculado ao mundo e ao que 0cerca, porque ser terreno, 0home~ de

    . de Protagoras nao podera set medida de todas as COISas:ontaigne, como 0 o.a , _nao podera julgar sobre 0eterno e 0divino; nem mesmo c_olocarem qu~tao a. tA d mundo 0 olhar de Montaigne se volta entao para as coisas doXISencia 0 . t dmundo, para cada uma que a ele se apresenta, nao para 0mundo como urn 0 o.

    Nao ha, portanto, ponto de vista fora do mundo. . . .Ao Sabio, modelo inatingivel e imitil, e ao SUJeIto, esvaziado de suasdeterrninacoes, (e aqui eu nao faco mais que retomar 0 texto de Le Lannou),. _ homem 0saber de si como homem que se define por estaontaigne opoe 0 ,

    . _ no mundo por urn misterio radical e, fundamental mente, por suamsercao , . . .Ii a _0 essencial com a vida, esta vida que e sua. Saber de Sl ~?e ~ ma~squeg ca I mas que so se impoe de dentro da propria vida, daexpenencia, nao ~or:~' .: '. ;. necessidadc racional. A afirrnacao davida e 0mom:",? p O I ' exc::cia da ultrapassagem do ceticismo em Montaigne, mas ela nao e uma verda razao que dispensaria a propria vida.ohomem montaigniano nao seencontra ai para contemplar o,mundo, comoo sabio, nem para domina-lo, como 0Sujeito, mas par~ saborea-lo. An~es :f ilosofia do poder, na modernidade, temos em Montatgne uma filoso ia 0

    . . b t . de sua obra e da sua s abedoria. N uncasaiu de um cer to espan to peran te s ique const it ui t oda a ~u :ea :,a cada ins tante noamor, nav ida pol it ica,se cansou de experimentar 0parado~o de um ser ~o~~!e~z~mo.'a nossa . e rei ir am o-nos no entan to delan a v ida s il en ci os a d a p erc epc ao , ad enm os a a l~u m. ' a s ab er n ada . De sc ar tes s up era ra 0paradoxo ee mantemc-la a distancia, sem 0qual nunC? c. eganamos . smo se ve o e'antes 0esp ir it o, e s6 e le. . . it . "Nao e 0olho q ue a Sl me ...t rans lo rm an i a consa~naa em.e~ !"n 0.. . d M on tai gne n ao e desde logo espirito, e ao me~mo temp?,conhece ... 0o lh o e a S l ,: "e smo . c on scl be nc la e b iet os eX le ri or es e se ex pe ri me nt a e st ran qal ra a e lespresa e livre, e, num so ~to amblguo, a re-se a 0 J(M ERLEAUPONTY, op. at. p; 3?2). d ministrado durante a S emana Montaigne.19 Observa t; ii o lei ta pelo p ro f. Sergio Car oso , no curso

    2 0 H EI DE GGE R, M . o p. c it . p. 1 10 a 1 14 .

  • 8/2/2019 Montaigne e a Modernidade

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    prazer. Montaigne escreve que seu Iivro eque ele fornece apenas o corda um tamalhete de flores estranhas ecoroao que as amarra (E, III 12 'tambem eo que nos ofereceJ'unt t ' , p. 477). A vida. os es e amontoado de tr nhnos e 0mundo. Cabe-nos frui-Ia, . es a ezas que somosassim como aos Ensaios.

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    OSENSAlOSDEMONTAlGNEOU A ESCRITANOMADE

    Eliana Scotti Muzzi A escri ta de Montaigne exerce sobre seu lei tor uma seducao irresist ivel , pela

    l iberdade absoluta que reivindica. Ela produz um texto em movimento, um texto-mobile, jamais fixado, sempre mutante, incompleto, caleidoscopio, reunindo aeon-tecimentos fortuitos e dispersos, sem a menor preocupacao de unidade. Exatamenteo contrario do modele dominante no seculo seguinte, 0do texto classico: compacto,circunscrito em limites estaveis e fronteiras bern estabelecidas, organizado segundoprincipios de unidade e coesao, num espaco altamente codificado - conseqiienciaextrema e avatar supremo do advento da imprensa.

    Publ icados em 1580, os Ensaios inscrevem-se naturalmente nessa nova erada escrita inaugurada com a imprensa e situam-se ja a consideravel dist ancia dadesorientacao que caracterizou a producao dos primeiros l ivros que, nao dispondode outra referencia, imitavam a" dispositio" dos manuscritos medievais. Reprodu-zindo urn modelo linear e oral do texto, os primeiros l ivros impressos comecavam"in media res", sem a mediacao de nenhuma instancia int rodutoria; integravamtodos os elementos textuai s na continuidade do "flumen orat ioni s", sem admitirpausa, interrupcao ou espaco em branco; e terminavam com um colofao, ondef iguravam informacoes tais como 0titulo, 0nome do autor e do impressor, a datae 0local da impressao. Logo porem essas informacoes se deslocam para a paginade rosto. Todo um espaco inte rmedia rio entre 0 texto e 0extra-texto se desdobra

    Pro fessora da F aculdade de Let ras da UFMG