Montaigne e o Ceticismo - Jaimir Conte

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  • MONTAIGNE E O CETICISMO

    Jaimir Conte

  • Nota

    Este texto uma verso ligeiramente modificada, mais na forma do que no contedo, de minha monografia apresentada como Trabalho de concluso do Curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina , defendida em 16 de dezembro de 1996. Agradeo aos professores Luiz Henrique de Arajo Dutra e Sara Albieri, orientadores, por acolherem meu interesse pelo ceticismo e por Montaigne.

  • Introduo O ceticismo filosfico surgiu praticamente na mesma poca do aparecimento das principais doutrinas filosficas que a Antiguidade grega produziu. No entanto, ao contrrio das filosofias platnica, aristotlica, epicurista e estica, que aps terem surgido se mantiveram em voga por muito tempo, a filosofia ctica passou por um logo perodo de esquecimento. Esse perodo estendeu-se praticamente por quase toda a Idade Mdia. Somente no sculo XV, com a introduo, na Itlia, das obras do mdico grego Sexto Emprico[1] e, um pouco mais tarde, com sua traduo para o latim, o ceticismo voltou a figurar entre as demais filosofias e seus argumentos passaram a ser novamente empregados nas discusses filosficas. O filsofo que melhor reflete a retomada e os novos desenvolvimentos do ceticismo no Renascimento, podendo ser considerado como o principal responsvel por sua difuso no incio da Idade Moderna , sem dvida, Michel de Montaigne (1533-1592). Com seus Ensaios, escritos e publicados no perodo de 1570 a 1592, Montaigne contribuiu para a ascenso e divulgao do ceticismo. Nessa obra ele apresenta inmeros argumentos que levam incerteza sobre a apreenso de um conhecimento verdadeiro e justificado. Seu procedimento o de opor a toda razo uma razo igual, a fim de negar o dogmatismo e instaurar a dvida em relao s teorias que se apresentam pretendendo ter encontrado a verdade acerca das coisas. Ele o faz recorrendo tradio ctica antiga, especialmente obra Hipotiposes pirrnicas de Sexto Emprico, qual teve acesso na traduo latina de Henri Estienne, publicada em Paris em 1562.

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    Dada a importncia de Montaigne para o ressurgimento do ceticismo no perodo moderno, o estudo de sua obra merece, sem dvida, nossa ateno. Este trabalho consiste, portanto, numa anlise do ceticismo professado por Montaigne em seus Ensaios. Mais precisamente, consiste numa breve apresentao e reconstruo dos principais argumentos que Montaigne desenvolve no ensaio Apologia de Raymond Sebond. Publicada em 1580, a Apologia , talvez, o mais famoso de todos os textos pirrnicos modernos e a principal fonte do interesse pelo ceticismo no incio da filosofia moderna. De todos os ensaios de Montaigne, a Apologia destaca-se por ser o ensaio em que o ceticismo aparece de forma mais ntida. Ao mesmo tempo, procuraremos mostrar os argumentos e exemplos que so retomados a partir de Sexto Emprico e que indicam a filiao de Montaigne tradio ctica grega. Mostrar a presena de Sexto Emprico no texto de Montaigne servir para melhor caracterizar a natureza do ceticismo deste, que no deixa de ser original. Abordaremos tambm um aspecto novo que Montaigne vincula dvida ctica. Trata-se do posicionamento fidesta que aparece na discusso que empreende acerca do problema da verdade religiosa; problema central do captulo mais longo de seus Ensaios: a Apologia.

  • A Apologia de Raymond Sebond O interesse de Montaigne pelo ceticismo situa-se num contexto em que os argumentos cticos j eram empregados nos debates em torno da Reforma e da Contra-Reforma religiosa. A Apologia de Raymond Sebond , particularmente, um captulo dos Ensaios que reflete bem o uso que Montaigne faz de uma extensa argumentao ctica voltada para o debate de algumas questes suscitadas por tais acontecimentos religiosos. Nela fica evidente que Montaigne interessou-se pelas idias dos pirrnicos e acadmicos antigos, percebendo sua relevncia para as discusses religiosas da poca. Pierre Villey, em seu estudo sobre as fontes e o desenvolvimento dos Ensaios, mostrou que uma grande parte da Apologia foi escrita entre 1575 e 1576, quando Montaigne tomou contato com os escritos de Sexto Emprico e experimentou o que ele chama de uma crise pirrnica (Villey, 1987, p. 32)[2]. Nessa poca Montaigne fez gravar sobre as vigas de sua librairie vrios ditos e frases tirados principalmente de Sexto, o que comprovaria seu interesse pelo pirronismo quando comps a Apologia. Foi nesse perodo tambm que Montaigne adotou a famosa frmula Que sais-je? Ele a fez gravar sobre uma medalha com seu nome, com a data (1576) e sua idade (42 anos), na qual figurava ainda, do outro lado, uma balana que, pesando as contradies, encontrava-se com pratos horizontais em perfeito equilbrio. Ela era um smbolo da suspenso ctica do juzo, ou seja, de uma completa indiferena filosfica. Na Apologia, o objetivo explcito de Montaigne defender Sebond, um telogo espanhol fiel Igreja, dos ataques dos luteranos e dos ateus. Raymond Sebond era o autor de uma obra de teologia natural que Montaigne traduziu para o francs.[3] Montaigne diz ter feito a traduo dessa obra a pedido de seu pai,

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    a quem ela tinha sido recomendada por ser muito til e apropriada s circunstncias da poca. Essa confisso no deixa de ter sua importncia, pois pode ser tomada como uma primeira indicao da falta de comprometimento de Montaigne com as idias de Sebond: traduziu a obra do telogo por solicitao de seu pai, nada podendo recusar ao melhor dos pais (II, XII, 419). A Apologia, como procuraremos mostrar, no constitui uma defesa das idias apresentadas por Sebond em sua Teologia natural. Por isso que a defesa que Montaigne oferece tem sido considerada um tanto estranha. Como o prprio Montaigne diz, a Reforma religiosa proposta por Lutero abalou as crenas vigentes: as novidades de Lutero comearam a entrar em crdito e abalar em muitos lugares nossa antiga crena (2.12.418). Com a Reforma o problema do critrio para o estabelecimento de uma verdade religiosa nica passou a ser um dos principais pontos dos debates religiosos. Ao apresentar um novo critrio de verdade para as questes de f, Lutero ops-se Igreja tradicional. Segundo ele, a verdade no deveria ser ditada pela Igreja, pois esta poderia estar errada. O que props, ento, que aquilo que o exerccio individual da razo ou conscincia levado a acreditar ao ler a Bblia a verdade. Surgiu, assim, uma grande controvrsia. Os defensores da Contra-Reforma no concordaram com esse novo critrio proposto por Lutero. Se a verdade dependesse da Razo ou conscincia de cada um ao ler a Bblia, no se alcanaria uma verdade religiosa nica. Ao contrrio, cair-se-ia numa multiplicidade e numa diafonia de opinies. Defendiam, desse modo, que o critrio da verdade religiosa deveria continuar sendo o critrio tradicional e institucional da Igreja. Uma outra tendncia reformista, liderada por Calvino, tambm props um novo critrio de verdade para as questes religiosas. Para Calvino, s os que fossem escolhidos por Deus

  • poderiam alcanar a verdade religiosa. Sem receber a iluminao divina, ningum poderia oferecer uma interpretao correta ou ter qualquer certeza ao ler a Bblia. Para saber se algum tinha sido iluminado por Deus, o critrio apresentado era o da convico interna. Essa convico interna que tornaria a pessoa capaz de reconhecer as verdades da Bblia. Esse critrio calvinista para a interpretao da verdade baseado numa escolha divina tambm no foi aceito. Sua refutao era feita mostrando-se a circularidade viciosa que ele implicava.[4] Sabia-se que se estava iluminado por Deus quando se tinha uma convico interna, e sabia-se que essa convico era verdadeira quando se tinha a iluminao divina4. Contra o individualismo calvinista mostrava-se ainda que se cada um dissesse ter uma convico interna de sua iluminao divina e, assim, quisesse impor a sua verdade, no final, resultaria a existncia de muitas verdades diferentes e contraditrias. nesse contexto das controvrsias teolgicas e da falta, ou, pelo menos, da impossibilidade de se estabelecer um critrio de verdade para as questes religiosas que se deve situar a Apologia de Montaigne. Nela, como j dissemos, Montaigne prope-se a defender o telogo Raymond Sebond de objees feitas pelos reformistas e ateus sua obra Teologia Natural. Segundo Montaigne, Sebond pretendia estabelecer e provar, contra os ateus, todos os artigos de f da religio crist, baseando-se unicamente em razes humanas e naturais (2.12.419). Ou seja, sem recorrer iluminao divina ou revelao. No entanto, dois principais tipos de objees foram levantadas. A primeira: que a religio crist deve ser baseada na f e no na razo. Em outros termos, que os cristos se enganam ao quererem apoiar sua crena em razes humanas, pois ela no se concebe seno pela f e por uma inspirao particular da graa divina (Cf. 2.12.420). A segunda: que as razes de Sebond no eram realmente firmes ou boas (Cf. 2.12.427).

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    Para responder primeira objeo, e defender o autor da Teologia Natural, Montaigne procura desculpar o racionalismo teolgico de Sebond afirmando que embora ele, Montaigne, no seja versado em teologia, sua opinio de que a religio baseia-se somente na f que nos dada pela graa de Deus.[5] Posio que o coloca, pelo menos aparentemente, de acordo com os objetores. Assim, ao manter essa opinio, a base da argumentao da Teologia natural dissolvida, o que demonstra que Montaigne no est preocupado em fazer uma defesa dos argumentos de Sebond, mas antes de sua inteno. Apesar de achar que a religio deve basear-se na f, julga que nada haveria de errado em usar a razo para alcan-la. Sempre, porm, sob a reserva de no imaginar que por si s, pela fora que pode alcanar, lhe seja dado adquirir essa cincia sobrenatural que provm de Deus (2.12.420). A alegada supremacia da f em relao razo leva Montaigne a apresentar uma defesa da religio baseada exclusivamente na f. Ele sustenta que a verdade da religio somente pode ser baseada na f, e que qualquer fundamento humano muito dbil para suporte do conhecimento divino. Que a razo incompetente para falar acerca das coisas sobre as quais a f que deve se pronunciar. Para mostrar isso, a saber, que a f o suporte da religio, Montaigne aponta as fraquezas desta quando ela baseada em fatores humanos como os costumes e a localizao geogrfica. Atentai para os acontecimentos e vereis como acomodamos a religio tal qual uma cera mole, a nossos caprichos, obrigando-a a assumir as formas que queremos (2.12.422). Argumenta que a crena s se estabelece pelos meios humanos, se fosse por outro meio no veramos a religio alterada e abalada por consideraes puramente humanas. O amor novidade, a imposio dos prncipes, a sorte de um partido, a mudana irrefletida e fortuita de nossas opinies (2.12.421).

  • Tudo isso sinal muito evidente de que no compreendemos nossa religio seno a nossa modo e a nosso bel-prazer, como compreendemos qualquer religio. Se nossa, porque muito antiga ou porque os homens que a estabeleceram merecem nosso respeito, ou porque tememos os castigos com que ameaam os que no a seguem, ou ainda porque nos seduzem suas promessas. Todas essas consideraes podem pesar em nossas crenas, mas so secundrias, laos de ordem puramente humana. Em outras regies, outras influncias, promessas e ameaas poderiam impor-nos outra crena, (b) Somos cristos como somos perigordinos ou alemes (2.12.424).

    Mas, se no temos a iluminao da f, podemos empregar meios humanos como os argumentos que Sebond apresenta. Assim, a fim de defender a tese de Sebond de que as verdades da f podem ser demonstradas racionalmente, Montaigne antes coloca a f como o fundamento da religio, para s admitir que esforos como os de Sebond so vlidos posteriormente f, em seu auxlio, mas no antes da iluminao divina. Ilustrando os argumentos do telogo a f os tornaria firmes e slidos. A abordagem de Montaigne, em verdade, atinge a teologia racional, e abre caminho para um tratamento fidesta da religio, uma defesa de que a religio s pode e deve ter sua base na f. assim que sua posio fidesta inicialmente apresentada. O fidesmo pode ser entendido, ento, como a insistncia de que a f no necessita da razo, mas o juiz da razo e de suas pretenses (cf. Penelhum, 1983, p.1). Para responder segunda objeo, e criticar os que consideram as razes de Sebond fracas e incapazes de estabelecer o que pretendem, isto , todos os dogmas da religio por meios naturais, Montaigne procura mostrar que, dado que todo raciocnio imperfeito, Sebond no deveria ser censurado por seus erros. Sua estratgia combater a vaidade dos objetores de Sebond atravs de uma ampla e diversificada argumentao ctica. A vaidade destes apareceria nas vrias formas que assume a vaidade humana, principalmente na crena do homem em achar- 11

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    se superior s outras criaturas, na confiana no saber e nas cincias, e, para dizer tudo de uma vez, na confiana que o homem tem na razo. Num primeiro momento, ento, Montaigne comea com uma crtica vaidade do homem, e por refutar teorias derivadas do estoicismo e do neoplatonismo que colocam o homem no centro do universo e acima das outras criaturas e consideram a posse da razo uma exclusividade humana. Na verdade, com tal argumentao pretendendo atingir os crticos de Sebond , Montaigne acabar destruindo tambm todas as teses usadas por Sebond para demonstrar os artigos da f.

    O meio que escolho para rebater esta objeo e que me parece o mais adequado o de humilhar e espezinhar o orgulho e a arrogncia do homem; o de fazer-lhe sentir a sua inanidade, a sua vaidade (vanit) e seu vazio, o de arrancar-lhe das mos as mesquinhas armas de sua razo; o de fazer-lhe baixar a cabea e morder a terra sob a autoridade e reverncia da majestade divina. S a esta pertencem a cincia e a autoridade; s por ela pode avaliar sozinha alguma coisa e dela tiramos aquilo com que nos enfeitamos e tanto prezamos em ns (2.12.429).

    O homem julga que desprovido da luz divina pode compreender o universo; mas no passa de uma criatura vaidosa, insignificante, cujo egocentrismo o faz acreditar que ela, e somente ela, conhece o mundo, e que este foi feito e gira em seu benefcio.

    Quem o autoriza a pensar que o movimento admirvel da abbada celeste, a luz eterna dessas tochas girando majestosamente sobre sua cabea, as flutuaes comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuam a existir unicamente para sua comodidade e servio? Ser possvel imaginar algo mais ridculo do que essa miservel criatura, que nem sequer dona de si mesma, que est exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se no lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como h de

  • dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilgio que se arroga de ser o nico capaz, neste vasto edifcio, de lhe apreciar a beleza? (2.12.429).

    um erro, segundo Montaigne, querer justificar ou explicar atravs de suas luzes naturais, realidades que se subtraem compreenso do homem. O homem parte do universo, no seu centro. E como parte, no pode ousar, atravs de sua cincia, estabelecer limites ao poder divino e submeter Deus s leis de seu entendimento. Como se o Ser Eterno e Infinito no ultrapassasse qualquer medida ou capacidade humana. Inicialmente, para melhor marcar a vaidade do homem, e criar uma atitude ctica com relao s pretenses intelectuais humanas, Montaigne introduz uma extensa comparao deste com os animais, com o que visa humilhar o homem e sua razo orgulhosa e mostrar que ele no tem bons fundamentos para declarar-se superior a eles. (Cf. 2.12.432 e seg.). Trata-se em grande medida do desenvolvimento do primeiro Tropo de Enesidemo. (Cf. Sexto, H.P. I, 40-79). Em Sexto Emprico h um esclarecimento acerca dos motivos que o ctico tem para comparar o homem com os animais que serve para esclarecer tambm o objetivo de Montaigne. Diz Sexto: ns comparamos os animais que consideramos privados de razo com os homens ... pois no nos furtamos de zombar dos dogmticos cegados pelo orgulho e pela jactncia... (H.P. I, 62-64). Quando comparamos o homem com os animais, diz Montaigne, descobrimos que eles possuem algumas faculdades admirveis que nos faltam, ou ainda, que a racionalidade do homem no deixa de ser uma forma de comportamento animal. A vaidade do homem em achar-se superior aos outros animais residiria no fato do homem considerar que o uso da razo privilgio seu, enquanto os animais no seriam dotados dela. No esquecendo que a Apologia se insere num contexto de uma polmica religiosa, percebe-se que esta argumentao de

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    Montaigne atinge os ensinamentos da Igreja. Pois a Igreja distingue o homem dos animais, e privilegia o homem. J a comparao que feita acaba mostrando que no h entre eles uma diferena fundamental, que a pretensa superioridade do homem no passa de vaidade. Se levarmos em conta este e ainda outros argumentos seus, no parece que Montaigne tenha, de fato, se preocupado em fazer uma defesa da religio catlica enquanto tal, como sendo a nica verdadeira. Se em certo sentido a defende, como ainda indicaremos, por razes de utilidade e conservao da ordem social. Em funo de sua utilidade para a manuteno da ordem pblica (Eva, 1994, p. 38). Para criticar essa manifestao da vaidade humana, Montaigne cita vrios exemplos que mostram que, dada a definio de razo apresentada, os animais tambm parecem estar providos dela. Ele ilustra isso com exemplos de animais que parecem empregar raciocnios lgicos em suas condutas, tais como o da raposa que serve de guia aos habitantes da Trcia[6], ou o do co lgico que, supostamente, empregava o silogismo disjuntivo9, dentre outros casos de animais que parecem possuir faculdades e sentimentos semelhantes aos do homem. So capazes de raciocnio, de previdncia, de gratido, de ressentimento, e tm as mesmas necessidades e os mesmos prazeres que os nossos. E, lembra ainda Montaigne, no que concerne linguagem, temos a palavra, mas os animais tambm so capazes de se comunicar entre si e s vezes at com os homens. Se o homem no entende as suas linguagens, isto talvez seja um defeito seu e no deles. Alm disso, nesta comparao do homem com os animais, Montaigne sugere que o instinto no est abaixo da razo. Ao contrrio, diz que o instinto atende sua finalidade de forma mais eficiente e natural do que a razo. Diz que nossas alegadas realizaes da razo no tm ajudado a descobrir um mundo melhor que o dos animais, (as abelhas seriam capazes de uma organizao social mais perfeita do que a nossa), que nossa

  • sabedoria no nos impede de sermos tiranizados pelas funes e paixes do corpo e no nos livra dos maiores males. Encontra-se a felicidade mais entre os simples (vulgaire) e ignorantes do que entre os sbios e filsofos.[7] Ainda que a cincia produzisse os resultados que os filsofos lhe atribuem, ainda que atenuasse a violncia dos males a que estamos expostos, que poderia fazer a mais do que faz a ignorncia, e melhor? (2.12.471). Montaigne cita ento o exemplo de Pirro, pai do ceticismo, que, vtima de uma tempestade no mar, teria permanecido impassvel e animado seus companheiros a imitar a serenidade de um porco que estava a bordo e contemplava o fenmeno sem se apavorar. Com esse exemplo Montaigne sugere que a ignorncia propicia a tranqilidade, enquanto o conhecimento provoca a inquietao e s traz a infelicidade. E, assim, passa a fazer um elogio da ignorncia. A cincia, diz, tem muitas vezes efeitos funestos e no beneficia o homem. Ao contrrio, a ignorncia e a simplicidade propiciariam ao homem uma vida tranqila, sem perturbaes ou inquietaes, favorecendo-o a aproveitar os prazeres da vida e a encontrar a felicidade. Tal seria o caso, para Montaigne, dos recm descobertos moradores do Brasil. Ignorantes, iletrados, sem lei nem rei, nem religio alguma, sua vida desenvolve-se numa admirvel simplicidade (2.12.472). Este e outros fatos revelariam que a ignorncia prefervel ao conhecimento; que a ignorncia e no a cincia das coisas que traz a felicidade e a tranqilidade da alma. Por isso, diz, que certos filsofos antigos consideravam a felicidade suprema termos conscincia da fraqueza de nosso juzo (2.12.472). Todo esse elogio retrico da ignorncia prepara o terreno para Montaigne avanar sua defesa fidesta da religio. O mal do homem est em pensar que sabe, por isso nossa religio recomenda-nos com tanta insistncia a ignorncia como meio adequado a determinar em ns a f e a obedincia (2.12.469). O ensinamento dos autores bblicos , segundo ele, cultivar uma ignorncia a fim de acreditar somente

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    atravs da f. Pois somente a f capaz de apreender os grandes mistrios de nossa religio, ou pelo menos a parte dos mistrios que Deus julgou conveniente revelar aos homens. Sem ela todos os raciocnios seriam vos e estreis. Seria justamente por no haver razo para sustentar a f crist que se poderia ser um cristo mais puro e receber melhor aquilo que Deus quisesse revelar.

    A participao grande ou pequena que temos no conhecimento da verdade, no a obtemos com nossas prprias foras; demonstrou-nos Deus, escolhendo no povo gente simples e ignorante para revelar seus admirveis segredos. Nossa f, no a adquirimos, um presente purssimo de liberalidade alheia. No foi pelo raciocnio, pela inteligncia, que escolhemos nossa religio; foi porque assim o quis uma autoridade situada fora de ns. Ajuda-nos a fraqueza mais do que a fora de nosso juzo, e nossa cegueira mais do que nossa clarividncia. Graas nossa ignorncia, mais do que ao nosso saber, temos conhecimento das coisas divinas. No de espantar alis que nossos meios, que so os que recebemos da natureza e se aplicam s coisas da terra, no nos permitem conceber as coisas sobrenaturais e celestes. Tudo o que podemos fazer submeter-nos e obedecer (2.12.482).

    Segundo Montaigne, o homem incapaz por si mesmo de obter certezas sobre questes como a imortalidade da alma. Confessemos, diz, que estas questes s nos so reveladas por Deus e pela f. Montaigne lembra que os autores bblicos tambm tiveram a inteno de humilhar a razo e rebaixar suas excessivas pretenses quando proclamaram a vaidade da sabedoria humana, que somente loucura diante de Deus. Loucura e principalmente orgulho, pois o homem seria uma simples criatura que com muita dificuldade coloca-se como ser superior aos outros animais, e quer resolver por si mesmo questes que ultrapassam sua compreenso. E ento cita as expresses do Eclesiastes ou as recomendaes de So Paulo contra a filosofia mundana: Estai de sobreaviso para que

  • ningum vos engane com a filosofia e com vos sofismas baseados nas tradies do mundo (2.12.469), ou ainda: pois est escrito: destruirei a sabedoria dos sbios e deitarei por terra a prudncia dos prudentes. Onde est o sbio do sculo? E o censor? No reduziu Deus a zero a cincia humana? Pois em no chegando o mundo ao conhecimento de Deus pela cincia, prouve a Deus que pela prdica dos ignorantes e dos simples, fossem salvos os crentes (2.12.482). Num segundo momento da resposta segunda objeo feita aos argumentos de Sebond, apesar desses argumentos terem sido considerados vulgares, Montaigne procura mostrar que eles tm tanta fora e verossimilhana quanto quaisquer outros que poderiam ser apresentados, ou seja, que so to desprovidos de solidez demonstrativa quanto quaisquer outros produzidos pela razo humana. Ele ento procura combater a razo com a prpria razo. Para refutar os que pensam poder encontrar razes mais slidas que as do telogo, Montaigne se prope a considerar o homem s, sem socorro externo, armado unicamente com suas armas, e desprovido da graa e conhecimento divino (2.12.429). Ou seja, para mostrar que a razo inteiramente cega, ele procura manter-se no plano da prpria razo humana. Diante das razes dos opositores ateus, que, confiantes no poder da razo em fundamentar a verdade, atacam as demonstraes de Sebond e a religio, Montaigne procura apresentar somente razes contrrias que eles possam aceitar, ou ainda, demonstrar a fraqueza da razo com base nela mesma, sem recorrer a qualquer interveno sobrenatural ou apoiar-se em autoridades. At porque, segundo Montaigne, tais objetores querem ser aoitados suas prprias custas e no admitem que se combata sua razo, seno com a prpria razo (2.12.429). Para minar determinadas teses sustentadas pela razo, Montaigne apresenta, ento, outras teses, tambm defendidas pela razo, que se contrapem s primeiras. assim que procura derrotar aqueles que pretendem provar a

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    religio por razes especulativas. Trata-se de um artifcio metodolgico, como explica destinatria de seu ensaio, atravs do qual acaba negando razo qualquer poder. Alegando como desculpa um exagero ao qual se diz obrigado pela prpria polmica, Montaigne vale-se de uma estratgia ctica a fim de demolir a razo e recusar-lhe qualquer poder.

    Dei-me ao trabalho de, contra meus hbitos, estender-me a esse respeito por vossa causa, mas vs no deveis deixar de defender as proposies de Sebond com a argumentao habitual e que se encontra nas instrues que cotidianamente recebeis. Isso exercitar vosso esprito e vos parecer um objeto interessante de estudo. Quanto ao mtodo de discusso que venho empregando, cumpre s recorrer a ele em ltima instncia, um golpe desesperado, pelo qual preciso que abandoneis as vossas armas para fazer vosso adversrio perder as dele; um lance secreto, de que preciso se servir rara e reservadamente. uma grande temeridade que vos percais a vs mesma para que outro se perca. (2.12.543).

    Para justificar o fato de Sebond basear-se em razes naturais a fim de defender a f, Montaigne alega no podermos conceber outras. deste modo que procura justificar a fraqueza dos raciocnios de Sebond. Mostrando que ningum, raciocinando de outra maneira, seria melhor sucedido e, por fim, que ningum pode alcanar qualquer certeza por meios racionais. Dado que as mais altas inteligncias humanas tm sido incapazes de alcanar a verdade sobre qualquer assunto, no haveria motivos para criticar os argumentos de Sebond por no serem convincentes. O que conviria criticar seria a razo humana e no a incapacidade de Sebond. Ora, como j dissemos, mostrando a fraqueza da razo, a Apologia acaba se tornando uma crtica da prpria obra de Sebond e de seu fundamento racional, no constituindo, portanto, uma apologia. Montaigne constri a defesa de Sebond sem se comprometer com as razes que este alega em defesa da

  • religio (pois as refuta uma a uma, embora sem atac-lo, ao atacar a vaidade do homem)[8]. A defesa fidesta da religio crist, feita por Montaigne, estaria baseada numa exposio da fraqueza dos argumentos usados contra ela e no no poder dos argumentos de Sebond. criticando os adversrios de Sebond com o emprego de argumentos cticos, e no julgando que os argumentos apresentados por Sebond em sua Teologia Natural so corretos, que Montaigne o defende das objees que lhe eram feitas. S deste ponto de vista que a Apologia pode ser considerada, de fato, uma apologia. Considerada de outro modo, a defesa de Sebond apresenta-se ambgua, pois o mesmo argumento que Montaigne emprega para defend-lo, serve tambm para critic-lo. Pois Sebond tinha em comum com os ateus e reformistas a crena de que a razo era capaz de determinar algo a respeito de Deus. Tanto Sebond quanto os ateus aceitavam a idia de que a razo era um instrumento de conhecimento eficiente (embora o primeiro acreditasse que a razo podia conhecer Deus e os ateus sustentassem que no era possvel conhec-lo). Assim, ao atacar esse pressuposto e demonstrar os limites e a imperfeio da razo, Montaigne terminada criticando indiretamente o prprio Sebond. Ele acaba, em verdade, concordando com os objetores que alegavam que a razo no alcana a altura divina, mas somente a f o faz. Na seqncia de seu vasto ensaio, apresentando argumentos aps argumentos e introduzindo uma exposio da filosofia ctica, Montaigne estende sua crtica razo e passa a destruir a confiana que podemos ter na cincia, na filosofia, nos sentidos, e em todas as manifestaes do intelecto humano. essa exposio da filosofia ctica e sua argumentao visando solapar a confiana na razo que apresentaremos a seguir.

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  • A exposio da filosofia pirrnica No desenrolar da Apologia, Montaigne introduz uma longa exposio dedicada a mostrar as incertezas da Filosofia e que na busca filosfica pela verdade o homem apenas obteve a confirmao de sua ignorncia natural. Trata-se de uma exposio aparentemente distanciada do objetivo inicial do ensaio, a saber, a defesa de Sebond frente controvrsia religiosa. No entanto, ela se apresenta, tambm, como mais uma estratgia argumentativa de Montaigne em defesa de uma posio fidesta, e no significa, portanto, que ele se afaste de seu propsito inicial. Assim, ao relatar os resultados que a filosofia conseguiu alcanar, e fazer uma descrio e defesa da filosofia pirrnica, ele no deixa de acompanhar esta defesa de uma explicao de seu valor para a religio. Procuraremos reconstruir aqui, ento, parte da apresentao que Montaigne faz do pirronismo, indicando qual o seu vnculo com a defesa fidesta da religio catlica. Aqui a reconstruo da exposio do pirronismo, qual Montaigne procede, ser importante tambm para podermos mostrar a intensa utilizao que ele faz da obra de Sexto Emprico e ver, assim, como este rico e acurado conhecimento que ele tinha do ceticismo antigo marca seu prprio desenvolvimento ctico. Assim como Sexto, Montaigne tambm distingue trs tipos de filosofias, de acordo com os resultados que cada uma delas acredita ter alcanado na investigao filosfica. Ele divide os filsofos em dogmticos, que so os que afirmam ter alcanado a verdade; cticos acadmicos, que negam categoricamente a possibilidade de conseguir uma certeza absoluta, admitindo, no entanto, a verossimilhana de certas opinies; e, cticos pirrnicos, que no afirmam ter encontrado a verdade, nem que no seja possvel alcan-la, e continuam investigando.

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    Quem procura alguma coisa acaba por declarar, ou que a encontrou ou que no a pde descobrir, ou que continua a busca. Toda filosofia tende a uma dessas trs concluses; seu objetivo procurar a verdade, alcan-la e convencer-se dela. Os peripatticos, os epicuristas, os esticos e outros pensam t-la encontrado; estabeleceram o rol dos nossos conhecimentos e os consideram indiscutveis. Clitmaco, Carnades e os acadmicos em geral desesperam de encontrar a verdade e julgam que nossas faculdades so incapazes de descobri-la; da conclurem pela fraqueza e ignorncia do homem. Sua doutrina foi a que mais se expandiu e conta entre seus adeptos os mais nobres espritos. Pirro e outros cticos ou efticos (epechistes) ... ainda esto em busca da verdade. Eles julgam que aqueles que pensam t-la encontrado [os dogmticos] se enganam infinitamente, e que h ainda muita ousadia da vaidade nesse segundo grau que assegura serem as foras humanas incapazes de alcan-la. ... Pois isto, estabelecer a medida de nosso poder e julgar a dificuldade das coisas, uma cincia grande e extrema, e duvidam que o homem seja capaz dela.[9]

    A utilizao dessa passagem permite a Montaigne manter a diferena que muitas vezes se procurou suprimir entre dois tipos de ceticismos. Ou seja, a diferena entre o ceticismo acadmico e o ceticismo pirrnico. Ele um dos raros autores do Renascimento e o primeiro historiador da filosofia Moderna a estabelecer uma distino entre o niilismo dos acadmicos e o pirronismo (Dumont, Scepticisme, p. 512). O pirronismo distinguido do dogmatismo negativo ou probabilstico professado pelo ceticismo acadmico e considerado por Montaigne mais coerente.[10] Os pirrnicos duvidam e suspendem o juzo sobre todas as proposies, mesmo sobre a proposio de que tudo duvidoso. Montaigne percebe que, negando a possibilidade da verdade, o ceticismo acadmico extrapola a dvida. Pois, a ignorncia que se conhece, que se julga e se condena, no uma ignorncia completa, para que o fosse seria preciso que se ignorasse a si mesma, de modo que a tarefa dos pirrnicos

  • consiste em duvidar das coisas, investigar (enquerir), sem afirmar nem assegurar (2.12.485); parecendo, assim, mais conseqente e ousado aos olhos de Montaigne do que a posio dos acadmicos, que procuram sustentar que, embora no possamos conhecer a verdade, podemos afirmar que alguns juzos so mais provveis que outros. A opinio dos pirrnicos mais ousada e, ao mesmo tempo, mais verossmil. Pois esta inclinao acadmica e esta propenso a uma proposio antes que a outra, apenas o reconhecimento de que h aparncia maior de verdade numa mais do que na outra? (2.12.547)[11]. O que Montaigne quer dizer ento que, se podemos reconhecer a aparncia da verdade, ou a grande probabilidade de um juzo de preferncia a outro, somos capazes de alcanar algum acordo geral sobre o que uma coisa semelhante, ou provavelmente semelhante. Em outros termos, que a noo de verossmil (vray-semblable) envolve a noo de verdadeiro, que uma no existe sem a outra. Da dizer: Ou podemos julgar de fato, ou no podemos julgar (2.12.548), com o que nega noo de verossimilhana o estatuto de critrio de conhecimento. Para ele, um contra-senso dos acadmicos admitir uma inclinao para a verdade, enquanto afirmam a impossibilidade de alcan-la. A clara diferena mantida por Montaigne entre o ceticismo acadmico e o ceticismo pirrnico est baseada na diferente atitude diante do saber. Para Montaigne a atitude zettica dos pirrnicos, que mantm a esperana da verdade, seria mais conseqente que a atitude dos acadmicos, que desesperaram de alcan-la. Segundo Montaigne, a atitude dubitativa dos pirrnicos, mantendo a investigao e a esperana da verdade, no s mais plausvel como a que tem predominado na histria da filosofia. Homero, segundo ele, teria lanado os fundamentos de todas as escolas de filosofia para mostrar at que ponto era

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    indiferente o caminho a seguir (Cf. I2.12.491). Muitos pr-socrticos teriam exercido, na sua opinio, uma forma de escrever que, no fundo, dubitativa, (b) Eles possuem uma forma de escrever dubitativa em substncia e um desejo de investigao antes que de ensino, ainda que entremeiem seus estilos com tons dogmticos (2.12.492). Inclui ainda Scrates entre os zetticos: Scrates sempre pergunta e promove a disputa, nunca a resolve, nunca se satisfaz e diz que no h outra coisa a no ser a cincia de se opor (2.12.491). Sneca e Plutarco tambm so apresentados como exemplos de filsofos que propem as diversas possibilidades de um tema sem tomar partido. Para ele, no estranho, nem incompatvel que mesmo quem j tenha desesperado de encontrar a verdade, continue a investigar. Ou seja, aqui os prprios acadmicos estariam sendo defendidos por Montaigne por, pelo menos, no abandonarem a investigao: (a) No h como achar estranho se pessoas desesperanosas quanto presa no deixaram de ter prazer na caa (2.12.493). Muito menos estranho, ento, se o ctico pirrnico ou zettico mantm a esperana da verdade mesmo no sabendo o que esta seja. O ctico, para Montaigne, seria algum que tem a verdade por horizonte e anela por alcan-la, mesmo se confessa ignorar ainda do que se trate (Porchat, 1994, p. 90). Para Montaigne o ctico continuaria a investigar porque a investigao prazerosa. Demcrito... no queria ser esclarecido a respeito daquilo que estava em dvida, para no perder o prazer de investigar (2.12.493); a investigao mesma das coisas ocultas e grandes agradvel, mesmo quele que no logra seno maior respeito por ela e temor em alcan-la (2.12.494). Nessa exposio e elogio que dedica filosofia ctica, Montaigne fala tambm do mtodo de oposio dos argumentos praticado pelos pirrnicos a fim de suspender o juzo (epoch) e, assim, alcanar a tranqilidade de alma (ataraxia). A respeito do mtodo dos pirrnicos diz: S apresentam proposies no

  • intuito de as opor s que supem se encontrarem na mente dos adversrios. Se adotamos seu ponto de vista, defendem de bom grado a tese contrria: no tm preferncia (2.12.485). a contradio (diafonia) das opinies, ou seja, a disputa de razes opostas, que gera a dvida ctica, e esta, por sua vez, dada a impossibilidade da deciso, provoca a suspenso do juzo (epoch). A aguda percepo da diafonia dos discursos e opinies , alis, uma marca constante de Montaigne, e est presente de forma intensa na argumentao de seus Ensaios. Tal diafonia , para Montaigne, como para os cticos em geral, um ndice suficiente das contradies presentes nas doutrinas filosficas. Para o pirrnico, basta perceber que os juzos emitidos acerca das coisas se anulem entre si (sentrempeschent), para que a dvida se imponha e o leve a um estado de epoch. Assim, diante de duas opinies ou teorias divergentes sobre uma mesma aparncia, e sustentadas como certas tanto por um lado como pelo outro, o ctico suspende o juzo, no sobre a aparncia, mas sobre os discursos que so emitidos sobre ela e que pretendem dizer a coisa em si. Neste estado de epoch, o ctico desfruta da ataraxia, que Montaigne caracteriza como um estado de alma sereno e tranqilo, inatingvel s agitaes que nos causam o sentimento e o conhecimento que podemos ter das coisas (2.12.485). Para dar conta da inteno pirrnica e oferecer uma noo da epoch Montaigne resume citaes de Sexto Emprico e apresenta as expresses usadas pelos prprios pirrnicos para caracterizar este estado.

    Seus modos de falar so: nada estabeleo; no mais assim que de outro modo, ou nem um nem outro; no compreendo; as aparncias so iguais para todos; a lei de falar pr e contra a mesma; Nada parece verdadeiro que no possa parecer falso; (a) Sua palavra sacramental epoch ou seja, suspendo, no falo. Eis seus refres, e outros de igual contedo. Seu efeito uma pura, inteira e perfeita absteno e suspenso de juzo. Eles se servem de sua razo para investigar e para debater, mas

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    no para decidir e escolher. Quem imaginar uma perptua confisso de ignorncia, um juzo sem inclinao em qualquer ocasio que possa ser, concebe o pirronismo. Leus faons de parler sont: je nestablis riena; il nest plus ainsi quainsin, ou que ny lver ny lautreb; je ne l comprens point;c les apparences sont gales part toutd; la loy de parler et pour et contre est pareilleeRien ne semble vray, qui ne puisse sembler fauxf (a)Leur mot sacramental cest pcwg, cest dire, je soutiens, je ne bouge. Voyl leurs refreinsh, et autres de pareille substance. Leur effect, cest une pure, entiere et tres-parfaite surceance et suspension de judgement. Ils se servent de leur raison pour enquerir et pour debatre, mais non pas pour arrester et choisir. Quiconque imagenera une perpetuelle confession dignorance, un jugement sans pente et sans inclination, quelque occasion que ce puisse estre, il conoit le Pyrronisme (2.12.487)

    Porm, estas expresses que caracterizariam o estado de epoch pirrnica parecem, para Montaigne, ainda muito afirmativas. Elas seriam dotadas de uma dimenso afirmativa problemtica. No seriam muito adequadas para expressar as prprias concluses cticas sobre a incerteza do conhecimento humano. A linguagem, segundo ele, oferece dificuldades para que possamos exprimir conceitos precisos. Ela tem seus defeitos e suas insuficincias, como todas as coisas. A maior parte das ocasies de dvidas no mundo so devidas gramtica

    a H.P.I, 197 je ne definis rien / I determine nothing. b H.P.I, 189 plus ceci que cela, dans uns sens comme dans lautre/ Not this more

    than that, up than down. c H.P.I, 201 je ne comprends pas / I apprend not. d H.P. I, 196 les choses nous paraissent galement dignes ou indignes de crance /

    the objects appear to us equal as regards credibility and incredibility. e H.P.I, 203-204 toute raison soppose une raison de force gale / To every

    argument an equal argument is opposed. f the object of passing judgement on the sense impressions and ascertaining which of

    them are true and which false. g H.P.I, 206. h expressions.

  • (2.12.510) e tambm pode induzir-nos ao erro. Mesmo na lgica, paradoxos como o do mentiroso minam completamente nossa confiana na linguagem (Cf. 2.12.510). Montaigne tem conhecimento de que o mero fato de um pirrnico dizer eu duvido visto por outros filsofos como sendo uma afirmao.[12] Pois se diz que duvida, ele se trai, assegurando pelo menos que duvida; o que seria formalmente contra sua inteno. Ele percebe que declarar como Scrates que nada sei, ter ao menos a certeza de sua ignorncia. Desse modo, adota para exprimir seu ceticismo uma frmula interrogativa: Que sais-je?, Nada afirma assertivamente para no cair em contradio. O uso da interrogativa por parte de Montaigne um novo desenvolvimento em seu pensamento ctico, exprimindo um estado de dvida e, ao mesmo tempo, implicando a possibilidade do conhecimento. Para Montaigne, o que h de interessante no pirronismo o fato de se poder atacar as teses e pontos de vista adversrios, e no precisar defender um ponto de vista prprio. Este, alis, o seu prprio procedimento na Apologia, pois vemos que ataca os objetores de Sebond sem defender um ponto de vista prprio, ou que no assume convictamente as opinies que defende, pretendendo que tal seja o caso. Visando criticar um adversrio e usando de todos os recursos, percebemos que Montaigne avana muitos argumentos que no assume convictamente. Os pirrnicos usariam a razo, segundo Montaigne, para perguntar e para debater, mas no para decidir e escolher (2.12.487). Nesse caso, o pirrnico apresentar-se-ia como um filsofo que no tem uma opinio a ser defendida. Se ele sustenta uma opinio, apenas para criticar uma opinio contrria. Para mostrar que a tese e a anttese podem ser defendidas. O ctico, explica Sexto Emprico e isso o que Montaigne faz , muitas vezes se vale de argumentos que no o convencem pessoalmente, mas que podem convencer o interlocutor dogmtico acerca da

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    fraqueza das razes que defende e s quais se agarra (Cf. H. P. I, 12-16; 202-206). Segundo Montaigne, o pirrnico se ope a qualquer afirmao do mesmo modo, e sua posio, se tem xito, mostra a ignorncia dos oponentes; se fracassa, a ignorncia dele. Assim procedendo, diz, os pirrnicos argumentam totalmente isentos do amor (jalousie) sua disciplina, ou seja, debateriam as questes filosficas sem vaidade, pois no filosofam com objetivo de preservar suas prprias concepes da crtica, mas simplesmente apresentam proposies contrrias s de seus interlocutores para provocar a suspenso do juzo. Para eles, igualmente bom vencer ou no as disputas, tendo sempre, por um ou outro exemplo, um meio de fazer ver a fraqueza das opinies, sendo levados com vantagem dvida que se fortificaria tanto pelo triunfo deles na argumentao quanto pelo fracasso.

    Os pirrnicos levam grande vantagem nas discusses, pois pouco lhes importa os ataques dos adversrios, desde que possam atacar tambm. Tudo lhes serve de argumento; se vencem, nossas razes no tm valor; se ganhamos, as deles que no prestam; se erram, fica demonstrado que a ignorncia existe; se nos enganamos, ns que fornecemos a prova de sua existncia; se conseguem convencer de que nada certo, confirmam a tese que defendem; se no o conseguem, ei-la naturalmente confirmada: encontrando a propsito de um mesmo assunto razes idnticas a favor ou contra, -lhes fcil suspender seu juzo em um sentido ou outro. (2.12.487).[13]

    Nesse elogio do ceticismo pirrnico, que num outro ensaio dir ser o mais sbio partido dos filsofos (2.15.599), Montaigne critica as objees, muitas vezes levantadas, de que semelhante filosofia tornaria a vida impossvel. No concorda, por exemplo, com as histrias que se contam de Pirro para mostrar a impossibilidade de se aplicar o ceticismo na vida prtica. Pois quanto s aes da vida eles procedem da maneira comum (2.12.487). As crticas decorreriam de uma m

  • compreenso da atitude pirrnica. Montaigne, ento, adota uma interpretao do modo pirrnico de proceder na vida prtica perfeitamente compatvel com a idia de uma praticidade da epoch, opondo-se assim, aos que a julgam impraticvel. Nesse particular, Montaigne tambm segue Sexto Emprico. Segundo Sexto, os cticos no pretendem ir contra o senso comum, nem subverter a vida, nem desejam permanecer inativos (H.P. I, 23-24). Eles deixariam de lado a cincia dogmtica, reconhecendo sua impossibilidade, e adotariam um modo emprico de viver (H.P, I, 246). Limitar-se-iam a uma observao prtica e sem filosofia. (H.P. II, 254). este reconhecimento que leva Montaigne a defender Pirro, e mostrar que a suspenso ctica no atinge tudo, mas apenas o estabelecimento da verdade.

    Isso faz com que eu no possa concordar com esta concepo sobre Pirro. Eles o descrevem estpido e imvel, adotando um modo de vida cmico e insocivel, sem se desviar dos carros e precipcios e se recusando a se acomodar s leis. Isso caoar de sua filosofia. Ele no quis se fazer pedra nem tronco[14] mas homem vivo, refletindo e raciocinando, fruindo todos os prazeres e comodidades naturais, empregando todas as suas faculdades (pieces) corporais e espirituais, de fato e de direito. Ele renunciou e deixou de boa-f apenas os privilgios fantsticos, imaginrios e falsos que o homem usurpou de reger, ordenar e estabelecer a verdade. (2.12.488).

    A suspenso do juzo por parte do pirrnico incide sobre as questes tericas que extrapolam o mbito do que aparece (os fenmenos) e pretendem falar como as coisas so em si mesmas. Ou seja, a suspenso atinge a pretenso que o homem tem de estabelecer a verdade derradeira. Essa suspenso, porm, no retira ao ctico a possibilidade de agir. Pois no nvel prtico da vida, o pirrnico limita-se a seguir as aparncias, sem precisar recorrer a uma verdade de ordem superior.

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    Segundo Brochard (p. 361), pode-se dizer que o pirrnico aquele filsofo que foi seduzido por um momento pelas promessas dos dogmticos de alcanar uma explicao para todas as coisas, de uma cincia que lhe permitisse agir com pleno conhecimento de causa. Por ter sido seduzido ele escutou e seguiu os dogmticos. Mas, refletindo, percebeu que as promessas dos dogmticos so enganosas, que as esperanas so falaciosas. Diante desta iluso, ele volta a seu ponto de partida. Aps essa aventura especulativa, ele retoma, desiludido, sua posio anterior; torna-se um homem comum como antes: com a nica diferena entre ele e o homem do povo de que este no se pergunta se h uma explicao para as coisas, enquanto que o ctico cr que ela no existe ou que ela inacessvel, pelo menos por enquanto. Mas quanto s aes da vida o ctico, como Pascal diz de Montaigne, nada teria de extravagante em sua vida, agiria como os outros homens (Pascal, 1955, p. 42). Segundo essa perspectiva, o ctico no aquele que duvida de tudo. Ele no duvida dos fenmenos, das sensaes que se impem a ele com necessidade; ele distingue seus estados subjetivos da realidade situada fora dele. Quando o ctico, tal qual Montaigne o faz, fala das sugestes da natureza, de suas disposies passivas, das leis e costumes de seu pas, ele se refere a fatos simples, sentidos e experimentados por ele. Ele no os julga, e nada afirma para alm dos fenmenos. como se ele fosse persuadido pelos fenmenos (Cf. Sexto H.P. I, 22). Mas essa persuaso involuntria e passiva, ele a distingue da adeso refletida e desejada que os dogmticos concedem s pretensas verdades de ordem cientfica. Como diz o neo-pirrnico Porchat a fora irresistvel da natureza, esta nos obriga a ter juzos e crenas a despeito da anlise racional. Temos crenas irresistveis, crenas que se podem dizer instintivas e naturais, que independem totalmente de deliberao ou escolha e prescindem de justificao e fundamento (Porchat, 1994, p. 106). A crena

  • do ctico nos fenmenos no tem a conotao que a palavra crena adquire no discurso dogmtico.[15] Porm, essa crena nos fenmenos que garante sua ao, sua ocupao com o desenvolvimento de certas artes. Ao lado da cincia que nega, h uma espcie de cincia, ou arte, na qual os cticos tm confiana. Podemos dizer que uma espcie de empirismo a base que fornece aos cticos o meio de responder s exigncias da vida prtica e do senso comum. o que se pode constatar nas entrelinhas do ceticismo de Montaigne, uma vez que ele confere experincia um papel importante, nada tendo a objetar experincia.[16] Apenas as teorias que ultrapassam os fenmenos dados e os juzos contrrios ao plausvel que so condenados pelo ctico, que os considera sempre dogmatismo ou especulao. Seu ceticismo dirige-se apenas contra a especulao metafsica que no apoiada pela experincia, que postula entidades inobservveis como as coisas tal como so em si mesmas. O ctico limita-se ao mundo fenomnico, ao que lhe aparece. Seu propsito o de manter uma atitude de conhecimento que no v alm da esfera fenomnica. Por isso no postula uma dimenso objetiva e real para a experincia e nem pretende isso. Seu discurso no transcende a empiria (Porchat, 1994, p. 94). Para agir no parece imprescindvel dispor de determinada teoria e de certezas a respeito de como as coisas so em si mesmas. Basta confiar nas aparncias. o que sugere Montaigne em defesa de Pirro. Quando, por exemplo, quer viajar por mar tem que o fazer sem saber se ter xito ou no; calcula que o navio bom, o piloto experimentado, favorvel o vento. So probabilidades apenas a que precisa entregar-se, confiando nas aparncias (2.12. 488). Seguindo mais uma vez o texto de Sexto Emprico, Montaigne indica os quatro aspectos do phainmenon aos quais os pirrnicos assentem para agir: Eles se entregam e acomodam s inclinaes naturais, aos impulsos e poder das paixes, s

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    constituies das leis e dos costumes e tradio das artes (2.12.487).[17] Essa indicao de que no estado de completa dvida os pirrnicos vivem de acordo com a natureza, os costumes e a tradio, permite a Montaigne avanar ainda mais sua defesa do pirronismo, do qual faz uma extensa exposio e procura mostrar sua compatibilidade com a religio. Diante das dvidas geradas pela Reforma e das dificuldades em se determinar atravs da razo a verdade religiosa, a filosofia pirrnica , ento, apresentada e defendida por Montaigne visando sugerir que o melhor a se fazer seria aceitar a tradio vigente; que seria sbio viver de acordo com a sociedade em que se nasceu. Pois, j que todos os costumes se equivalem, tanto os bons quanto os maus, a sabedoria aconselha a se conformar queles da sociedade em que nascemos e na qual continuamos a viver. Assim, tambm, como nenhuma opinio terica a respeito da religio ou mesmo da moral prefervel outra, no resultaria recomendvel ao ctico agir contra os costumes e instituies existentes. Aceitar os costumes do pas em que se vive, conforme prope Montaigne, assim como Sexto,[18] seria uma alternativa prtica para o ctico que adequaria sua conduta aos costumes sociais, e no s suas convices pessoais ou a alguma teoria filosfica ou de outra natureza. A obedincia tradio e s leis teria a mesma fora que as imposies da natureza, os costumes constituindo-se como que numa segunda natureza.[19] No tomar parte da resoluo (dcision) e deixar que a sociedade decida, a estratgia que resta ao ctico para guiar suas aes. essa estratgia que faz com que o ceticismo deixe subsistir uma forma de adeso s crenas religiosas, polticas e outras da coletividade. As regras sociais, os mandamentos morais, segundo Montaigne, decorrem do uso, variando com o tempo e o lugar. A autoridade que possuem, isto , sua validade, no assenta numa justificao racional, antes, na autoridade do

  • costume e da tradio.[20] Por isso uma (a primeira) das regras da moral provisria de Descartes.[21] essa regra que lhe permitiu permanecer fiel ao catolicismo.[22] O pirrnico que, como sabemos, conclui sobre o desconhecimento humano da verdade e adota como guia para a vida prtica os costumes comuns, no teria dificuldade em aderir s crenas tradicionais. Como Montaigne bem notou, a reflexo dos antigos cticos preconiza a aceitao das leis e dos costumes (inclusive religiosos) do pas... essa adeso, porm, se d de maneira no-dogmtica, isenta de crenas sobre a verdade acerca dos valores e formas relativas que o costume contingencialmente amolda (Eva, 1994, p. 38). Ou seja, aceitando as leis e costumes de sua comunidade, ele aceitaria o catolicismo. Porm, h uma diferena entre a adeso dogmtica e a adeso ctica. Se o dogmtico adere a uma determinada religio, porque est convencido pelas razes apresentadas. J o ctico, se decide permanecer sob as tradies da antiga religio, no porque esteja satisfeito com as razes alegadas em defesa dessa religio. Sua experincia argumentativa acerca da fraqueza da razo o impede de deixar-se convencer por quaisquer argumentos e sua adeso s pode dar-se, portanto, de uma forma no-dogmtica. Em verdade, no tendo encontrado uma resposta acerca da divindade e da verdadeira religio, se ele admite a religio e a crena nos deuses, apenas do ponto de vista prtico, em vista da utilidade dessa crena. Se o homem fosse sensato, a cada coisa daria um valor segundo sua utilidade e sua adequao vida (2.12.468). O ceticismo reduziria a profisso de f a uma convenincia, pregaria uma moral da convenincia. Sendo as razes de igual peso de um e de outro lado, o exemplo e a comodidade seriam os fatores determinantes que levariam o ctico a aceitar as crenas vigentes. Parece-nos que segundo essa perspectiva que deve ser visto o elogio de Montaigne ao catolicismo. Se ele faz sua defesa por j estar adequada natureza da crena humana e devido fora e autoridade

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    atribudos s leis e costumes tradicionalmente aceitos. A incapacidade de conhecer a verdade apresenta-se como uma razo para que o ctico mantenha as opinies primeiramente aceitas e para que ele se submeta forma de religio e ensinamentos que o cercam. Pretender afirmar ou negar a religio de um ponto de vista objetivo uma arrogncia que s o dogmtico assume, pois ele se considera capaz de nos dizer as coisas como elas realmente so em si mesmas. Mas essa arrogncia o ctico procura evitar, aceitando a religio tradicional e os costumes de seu pais.

    Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e, excepcionalmente, cheguei a uma continuidade de opinio, conservando mais ou menos intactas as que a princpio tivera. Pois, qualquer que seja a aparncia de verdade que pode ter a novidade, no mudo de medo de perder na troca. Incapaz de escolher por mim mesmo, confio na escolha de outrem e atenho-me s condies em que Deus me colocou, sem o que no poderia impedir-me de variar amide. Assim que, com a graa de Deus, conservei inteiras, sem inquietaes nem casos de conscincia, as antigas crenas de nossa religio, a despeito de tantas seitas e divises observadas em nosso sculo (2.12.555).

    Seguramente, no porque uma determinada religio pode ser mais bem defendida, racionalmente, do outra que convm abra-la. Na verdade, a argumentao ctica de Montaigne mostra que a religio no tem um fundamento racional, que devemos aceitar a f como fundamento da religio em detrimento de uma fundamentao racional. essa defesa, alis, que configura seu fidesmo ctico que pode ser constatado na passagem a seguir onde fala da compatibilidade do pirronismo com a f. O pirrnico, consciente da impossibilidade de uma fundamentao racional para a religio, consciente de sua prpria fraqueza, daria espao para a f.

  • Como so mais dceis e obedientes s leis da religio e s leis polticas os simples de esprito e sem curiosidade, do que os que investigam o dogmatismo acerca das coisas humanas e divinas! Nada do que concerne ao homem apresenta mais incontestvel utilidade do que essa simplicidade. Nessa filosofia pirrnica ele aparece nu e vazio, consciente de sua fraqueza natural e susceptvel de receber de cima, at certo ponto, a fora de que carece. Estranho a todos os conhecimentos humanos, acha-se tanto mais preparado a se tornar um domiclio para a cincia divina, faz abstrao de sua prpria inteligncia a fim de dar maior espao a f, cr e no prope nenhum dogma contrrio s leis e aos costumes, humilde, obediente, disciplinado, estudioso, inimigo declarado da heresia, est, portanto, livre dessas vs opinies contrrias religio e introduzidas pelas seitas dissidentes; uma pgina em branco, preparada para receber tudo o que apraz a Deus nela traar (2.12.489).

    Essa forma de fidesmo sugere que a atitude pirrnica mais compatvel com a religio porque quando o homem abandona a busca dogmtica pelas verdades ltimas, ele poderia, porm, abra-la, j que a graa divina entraria para preencher o espao vazio (a pgina em branco) que fica. O pirronismo aparece, desse modo, como porta de entrada da f. Ao mostrar que a razo nada pode alcanar de seguro ou certo, torna o homem humilde e prepara o seu esprito para receber as crenas crists e a revelao divina. Revelando-lhe a fragilidade de sua razo e seu estado de ignorncia, a filosofia pirrnica prepara e dispe o homem para receber a revelao divina num esprito de humildade. No parece, contudo, que Montaigne tenha testemunhado a ocorrncia de tal inscrio da verdade divina que o maior espao para a f deixado pelo pirronismo poderia propiciar. O aspecto fidesta aparece em Montaigne como uma possibilidade terica que poderia conferir certeza e fundamentao crena religiosa. Mas a crena religiosa enquanto tal, a crena que o prprio Montaigne diz ter aderido, segundo a passagem acima, no decorreria de uma interveno

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    sobrenatural favorecida por um maior espao para a f. Ela faria parte do conjunto das crenas humanas que, enquanto tais, seria conveniente aderir em vista de sua utilidade. Diante da dvida filosfica, diante da diversidade dos costumes, diante do nascimento de novas religies que pem em dvida a religio antiga, a adeso nossa crena, poderia evitar os efeitos ignorados da mudana. No s quanto s questes religiosas que Montaigne julga que o homem tem que confessar sua ignorncia. Ele mostra que em todo campo de investigao intelectual os filsofos so incapazes de chegar a alguma concluso definitiva. Analisando vrias teorias sustentadas pelos filsofos, nota que essas doutrinas e esses sistemas se entrechocam numa incrvel confuso. Ele estende, assim, sua dvida sobre a prpria seriedade das teorias filosficas. Levanta a hiptese de que o empreendimento de grandes filsofos como Epicuro, Plato, Aristteles, foi o de apresentarem teorias das quais eles mesmos no estavam inteiramente persuadidos. Movidos pela paixo dogmtica teriam apresentado teorias falsas com algum brilho ou imagens de luz, e que por suas explicaes, embora no sendo provadas como verdadeiras, podiam manter-se contra as posies contrrias. com evidente ironia que se dedica a crtica das teses apresentadas por tais filsofos sobre a essncia de Deus, a natureza da alma, a constituio do universo.

    No me persuado facilmente que Epicuro, Plato e Pitgoras nos tenham deixado como moeda corrente seus tomos, idias e nmeros. Eles eram sbios o bastante para no estabelecerem seus artigos de f em coisa to incerta e discutvel. Mas, nessa obscuridade e ignorncia do mundo, cada um desses grandes personagens trabalhou para obter alguma imagem de luz, fazendo sua alma passear por invenes que tivessem ao menos uma aparncia sutil e agradvel e que, mesmo falsa, pudesse se manter contra as opinies contrrias. (2.12.494).

  • Em outros termos, Montaigne sugere que a verdade enunciada por esses filsofos seria ao mesmo tempo uma verdade que nenhum deles estaria disposto a sustentar at as ltimas conseqncias. Que esses filsofos em questo mostrar-se-iam muito desconfiados com relao suas prprias teorias, e no pretenderiam mais que mostrar de uma maneira agradvel at onde chegaram com suas especulaes sobre a verdade. Pitgoras no acreditaria nos nmeros, Plato no acreditaria nas Idias, Epicuro no acreditaria nos tomos. Eles seriam bastante sbios para no defenderem, a qualquer preo, verdades que certamente enunciaram, mas que saberiam serem duvidosas. Quiseram os filsofos tudo examinar, tudo comparar, e assim encontraram uma ocupao suscetvel de alimentar a curiosidade natural que h em ns (2.12.494). Eles se ocuparam com questes que debateram em vrios sentidos, cada qual sua maneira, mas como pretenderam se ocupar com as coisas mais altas (no-aparentes), foram levados a fazer conjecturas sem consistncia, no raro extravagantes, que eles prprios no consideravam valiosas, exceto para exercitar o esprito. Se no admitirmos que assim tenha sido, como explicar, pergunta Montaigne, essa to grande variedade de opinies, por vezes frvolas, constantemente modificadas, que emitiram espritos to eminentes e admirveis? (Cf. 2.12.495). Pois quando se faz um balano dos resultados de todos os esforos dos filsofos, percebe-se que pouco alcanaram. A filosofia tem sido somente um jogo engenhoso e divertido. Ela o mais sublime esforo da cincia humana, mas apenas produz um conflito de opinies igualmente incertas, teorias que no possuem nem corpo nem base, que no passariam de sonhos e fantasias. Disso tudo, diz Montaigne, uma coisa somente podemos concluir: A filosofia no passa de uma poesia sofisticada (sophistiqu) (2.12.521). Ela pode servir de passatempo para o esprito, de ocupao para a vida, para nos distrair de nossos males com uma busca que pode durar para

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    sempre, j que sem objeto real e sem fim (terme), mas presuno e loucura esperar mais dela. Todas as cincias que tratam de questes que excedem a inteligncia do homem vestem-se de licenas poticas (2.12.521). Tudo o que os filsofos apresentam em suas teorias so invenes humanas. Se a natureza se mostrasse nua e pudssemos ver o que produz e regula seus movimentos, quantos erros e abusos acharamos em nossa cincia raqutica! Duvido que observssemos uma s dessas asseres justificada e no adquirssemos a convico de que o que mais ignoramos a nossa ignorncia (2.12.521). Mas, em lugar desse conhecimento que poderamos alcanar se a natureza se mostrasse em suas leis e princpios, algumas opinies tradicionais so aceitas como explicaes de vrios eventos, e tomadas como legtimas, como princpios slidos e inquestionveis.[23] Todas as cincias assentam seus princpios em hipteses, o que por todos os lados amarra o raciocnio do homem. Se tentamos derrubar essa barreira que constitui um erro capital, objetam-nos logo com este aforismo: No se discute com quem nega os princpios. Mas, insiste Montaigne No pode haver entre os homens seno os princpios que Deus lhes revelou; fora dessa revelao o princpio, o meio e o fim de todas as coisas no passam de sonho e fumaa. Aos que, para combater, se apiam em hipteses, cumpre opor como axioma as teses contrrias quelas acerca das quais se discute. [24] Todas as que o homem capaz de imaginar podem emitir-se; tm todas igual autoridade, se entre elas a razo no estabelece uma diferena. preciso, pois, sopes-las; e antes de tudo as que se apresentam como regras gerais e pesam mais. Querer chegar a uma certeza absoluta , at certo ponto, prova de loucura e de extrema incerteza (2.12.525). Com semelhante argumentao, que evoca as divergncias entre os antigos filsofos a respeito de vrias questes, Montaigne apresenta sua constatao pirrnica de que

  • tudo passvel de dvida. Todas as coisas produzidas pelo nosso prprio discurso e capacidade, tanto verdadeiras como falsas, esto sujeitas incerteza e ao debate (2.12.535). Aqueles que afirmam que a razo humana capaz de conhecer e compreender as coisas, tero que mostrar como isso possvel. Se eles apelarem para nossa experincia, tero que mostrar que ela nossa experincia, e que ainda por nossa experincia efetiva das coisas que julgamos nossas experincias (Cf. 2.12.526) E se alguns dogmticos se aventuram a dizer-nos, por exemplo, o que o calor ou o frio, ou qualquer outra coisa e o que ela em sua natureza real, cabe mostrar-lhes ento que eles nem sequer so capazes de determinar qual a essncia que nossa faculdade racional pode ter. Por que meios poderamos melhor aquilatar a razo, do que por ela mesma? Se no podemos acreditar nela quando fala de si, no ser capaz de apreciar o que est em si. Se pode conhecer alguma coisa, deve ser pelo menos o que e onde se aloja, visto que est em nosso esprito, de que faz parte ou efeito (2.12.526). Mas, examinando o que a razo humana nos ensina acerca de si mesma e da alma ou do esprito, encontra-se a mesma discordncia que a existente entre as teorias filosficas. Montaigne mostra-nos que as opinies so no s contraditrias como extravagantes. Que os filsofos que se ocupam com essas altas indagaes e querem ver mais longe, so vtimas de sua curiosidade e de sua presuno, e se expem aos mais absurdos devaneios.

    Quem, com competncia, andasse a compulsar as asneiras que emanam da sabedoria humana, assombraria os outros. Eu mesmo, apresentando algumas, a ttulo de amostra, fao obra mais til do que dissertando a respeito. Podemos julgar por elas em que estima devemos ter o homem, seu bom senso e sua razo ... Quanto a mim, prefiro crer que esses filsofos s se ocuparam de cincia ocasionalmente, como divertimento. Usaram a razo como instrumento frvolo e vo, avanando toda espcie de idias estranhas, ora com seriedade, ora com ironia...Tais opinies variveis

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    e instveis constituem uma confisso tcita, mas evidente, que os filsofos no tm vontade de sair da indeciso. Esforam-se para que seu modo de ver nem sempre aparea com nitidez; escondem-no sob as folhagens que lhes oferecem a fbula e a poesia... No querem pronunciar-se francamente acerca da ignorncia e da fragilidade da razo humana para no fazer medo s crianas, mas as revelam suficientemente sob a aparncia de sua cincia confusa e contraditria (2.12.530).

    Aps essa longa exposio dedicada a mostrar a confuso e incerteza existente nas teorias filosficas, Montaigne volta a introduzir seu tema fidesta. Diz, ento, que nossa nica base para compreender a verdade atravs da revelao de Deus. Tudo o que produzem nossa razo sozinha e nossa inteligncia, tanto o verdadeiro como o falso, est sujeito incerteza e discusso... Tudo o que empreendemos sem que a graa de Deus nos ilumine no passa de vaidade e loucura (2.12.538); e ainda: Nada mais justo e razovel do que recebermos s de Deus e por Sua graa unicamente a possibilidade de conhecer a verdade (2.12.539). Assim continua a argumentao de Montaigne, que, apelando para as interminveis variaes nos juzos, mostra que cada mudana em ns mesmos mudamos nossas opinies e que sempre h dissonncia em ns mesmos ou entre ns e os outros. Como poderamos nos apoiar em nossas faculdades naturais, quando a percepo que temos das coisas varia em funo do estado em que nos encontramos e muda de um sujeito para outro? Nossas faculdades mudam com nossas condies fsicas e emocionais, de modo que aquilo que julgamos verdadeiro num momento nos parece falso ou duvidoso em outro.[25] Nossos juzos variam segundo o estado de nosso corpo, segundo as condies atmosfricas, a idade, a doena, a sade, etc. (Trata-se aqui do desenvolvimento do quarto tropo de Enesidemo segundo Sexto Emprico Cf. H.P. 100-118). Toda essa argumentao leva

  • Montaigne a declarar que s as coisas que vm do cu tm direito de persuaso e a indispensvel autoridade, s elas trazem a marca da verdade (2.12.549). No parece, contudo, que em Montaigne isso constitua um ato de conhecimento propriamente dito. Para que essa marca da verdade chegue at ns tem de passar pelos meios humanos. No poderamos conceber a verdade divina sem a representar sob a forma humana e adequ-la aos meios humanos. Embora as coisas que vm do cu sejam as nicas que tm direito e autoridade de persuaso, as nicas que trazem as marcas da verdade, Montaigne logo acrescenta: mas nossos olhos no as distinguem se no as obtemos por nossos prprios meios (2.12.549), ou seja, que o olho do homem s apreende as coisas sob as formas de que tem noo. Outro momento distinto da argumentao de Montaigne na Apologia aparece quando ele se ocupa em mostrar que nas teorias e realizaes cientficas v-se a mesma diversidade e diafonia de opinies que a encontrada na filosofia. Analisando as vrias cincias, Montaigne chama a ateno para as incertezas e eternas disputas reinantes em cada uma delas. Sugere que no se pode conferir cincia um fundamento seguro, que permita dizer que o conhecimento cientfico no esteja sujeito a dvidas e incertezas. Ora, e em lhe faltando o fundamento, seu raciocnio (discours) cair por terra (2.12.546). Para tanto, no deixa de evocar algumas das concluses absurdas e ridculas a que alguns dos maiores gnios chegaram a partir dos princpios da razo humana. Desconfia de toda doutrina que talvez seja to falsa quanto qualquer outra (2.12.556). Pois, todas as teorias esto consagradas a ser, algum dia, superadas por outras, a ponto de no podermos ter certeza sobre nenhuma. Comprometer-se com uma teoria resulta algo sempre limitado, pois nada garante que ela permanea de p para sempre. Montaigne lembra que preciso ter presente que diante de cada nova doutrina outra j a precedeu, a qual, em determinado momento, tambm esteve em

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    voga, e por fim, que uma terceira poder vir substituir a atual. Evoca, assim, o carter provisrio das teorias. No h percepo, no h doutrina, no h verdade que outra percepo, outra doutrina, outra verdade no desminta um dia. Assim como opinies que defendemos com apaixonada convico so abandonadas por outras, contrrias s primeiras, tambm as teorias, todas esto condenadas a ser, algum dia, superadas por outras. Constata-se isso em fsica, em medicina, em astronomia, e at na geometria, que pensa ter alcanado o mais alto grau de certeza entre as cincias. Olhando para as realizaes cientficas do homem v-se, ento, a mesma diversidade de opinies que caracteriza outras reas, e a mesma incapacidade para descobrir qualquer verdade.

    O cu e as estrelas foram durante trs mil anos considerados em movimento. Todos acreditaram , at que Cleantes de Samos, ou segundo Teofrasto, Nicetos de Siracusa, se lembrou de sustentar que a terra que girava em torno de seu eixo, segundo um crculo oblquo do zodaco; e em nosso tempo Coprnico demonstrou to bem esse princpio, que dele se vale em seus clculos astronmicos ... Temos, portanto, quando se apresenta uma nova doutrina, razes de sobra para desconfiar e lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta. Assim como esta foi derrubada pela recente, no futuro uma terceira substituir provavelmente a segunda. Antes que os princpios de Aristteles tenham tido crdito, outros existiram que tambm davam satisfao razo humana. Que carta de recomendao trazem os ltimos? Que privilgio especial lhes garante que ao menos nossas investigaes os preservaro eternamente? ... H quanto tempo existem a medicina? Afirma-se, entretanto, que um inovador chamado Paracelso modifica e destri as regras antigas e sustenta que at hoje s serviram para matar... Afirmaram-me que em Geometria (cincia que pretende ter alcanado o mais alto grau de exatido) h demonstraes incontestveis que contradizem tudo o que a experincia declara verdadeiro. Assim que Jacques Peletier me dizia, em casa, haver descoberto duas linhas que embora se dirigissem uma na direo da outra, aproximando-se sem cessar, jamais se encontravam, nem mesmo no infinito, o que demonstrava. ... H mil

  • anos, fora agir como os pirrnicos pr em dvida o que ento ensinava a cosmografia e as opinies aceitas por todos; referir-se existncia de antpodas era heresia, e eis que neste sculo se descobre um continente de enorme extenso... (2.12.556)[26]

    A descoberta do Novo Mundo, mencionada no final dessa passagem, um pretexto para Montaigne passar a desenvolver o tema do dcimo tropo de Enesidemo sobre a variao dos costumes, das leis e opinies, (Cf. H.P. I, 145 e seg.; III, 232-235). Sua argumentao pe em questo a verdade moral e suscita a dvida acerca das leis oferecidas sobre o comportamento humano. Mostra que os costumes e as instituies apresentam de um povo para outro uma extrema diversidade; que os homens tm, a respeito do bem e do mal, opinies variadas e contraditrias. Relata que o que tido como verdade por um povo no o por outro, pondo em questo, deste modo, a definio do Bem em si. Verdade aqum dos Pirineus, erro alm deles. Para isso Montaigne vale-se do conhecimento propiciado tanto pela redescoberta do mundo antigo quanto pela descoberta do Novo Mundo que mostram a diversidade cultural, o que o leva a defender uma aparente relatividade de todas as leis e costumes e a duvidar das leis existentes. Montaigne afirma: A autoridade das leis decorre de existirem e terem passado para os costumes; perigoso faz-las remontarem sua origem. Como rios, elas se avolumam com o rolar das guas, adquirem importncia e considerao em se aplicando. Remontai-lhe o curso at a nascente e vereis um insignificante filete de gua(2.12.570). Em sua crtica vaidade da razo, Montaigne apresenta argumentos que mostram a impotncia e finitude dessa faculdade. Ele o faz no mesmo estilo de Sexto, procurando solapar a confiana no poder da razo humana para chegar verdade em qualquer esfera, pelo uso da prpria razo. A sua estratgia apontar para todas as variaes e contradies que ela 43

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    assume de homem para homem e inclusive num mesmo homem em momentos diferentes. Quantas vezes mudamos de idias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possvel; todas as nossas faculdades, todos os nossos rgos se apossam dessa opinio e por ela respondem quando podem; no poderia aceitar outra verdade nem a conservar com maior convico; a ela dei-me por inteiro. Mas no me aconteceu, e no s uma vez porm cem ou mil, e diariamente, ter aceitado do mesmo modo alguma coisa que posteriormente considerei falsa? (2.12.549). Assim procedendo, mostrando a instabilidade de nossos juzos e a inconstncia de nossas opinies, Montaigne conclui que a razo um instrumento de chumbo e cera alongvel, dobrvel, acomodvel a todos os moldes e a todas as medidas, podendo igualmente sustentar cem opinies contraditrias sobre um mesmo assunto (2.12.551); ou, ainda, que a razo d s coisas as mais diversas aparncias, que ela como um pote de duas alas que podemos pegar tanto pela esquerda quanto pela direita (2.12.568). Ou seja, a razo nos permite justificar uma tese quanto sua anttese. E, sendo as aparncias iguais de uma parte e de outra, ela no constituiria nenhuma garantia para nossas crenas. A razo impotente frente a muitas questes e se enreda em contradies. Ela leva a antinomias insolveis. Essa aparncia de juzo que cada um forja em si mesmo e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciaes diversas e contraditrias (2.12.551). Para liquidar a presuno do homem, Montaigne esfora-se por demonstrar a impotncia da razo. Essa faculdade que tanto envaidece o homem no tem, segundo ele, nenhum fundamento slido. igualmente amiga da verdade e da mentira. A crtica da razo ganha um acento ainda maior quando Montaigne passa a mostrar a insuficincia dos sentidos como instrumento ou critrio do conhecimento verdadeiro.

  • A crtica aos sentidos e razo A fim de mostrar a vaidade da razo e sua incapacidade de chegar verdade, Montaigne retoma, na Apologia, a crtica ctica aos sentidos como instrumentos do conhecimento humano. No s a razo que falha e gera a incerteza de nossos juzos, os sentidos tambm falham e no so melhores guias. Portanto, a deficincia da razo mostra-se ainda maior porque depende dos sentidos. O homem no pode impedir que os sentidos sejam os meios do conhecimento que possui: todo conhecimento chega a ns pelos sentidos: eles so nossos mestres (2.12.574-5) e no se pode negar que os sentidos sejam os soberanos mestres de seu conhecimento (2.12.579); o privilgio dos sentidos o de constiturem o extremo limite da nossa percepo; no h nada para alm deles que nos possa servir para os descobrirmos, e nenhum sentido pode descobrir outro (2.12.576); mas eles so incertos e podem induzir o julgamento do homem em erro em qualquer circunstncia; o que leva Montaigne a apont-los como a grande causa e prova, a um tempo, de nossa ignorncia (2.12.574). Montaigne admite que nosso conhecimento deriva dos sentidos e que por eles se inicia a cincia. Afinal, seramos ignorantes como uma pedra se no conhecssemos a existncia do som, do odor, da luz, do sabor, da medida, do peso, da moleza, da dureza, do amargor, da cor, do tato, da largura, da profundidade, o que constitui a base e o princpio de toda cincia (2.12.575). Mas, se os sentidos nos do nossas mais seguras informaes, existem, contudo, determinadas dificuldades aparentemente insuperveis no conhecimento sensvel que nos deixam em completa dvida.

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    Para comear, a primeira pergunta que devemos fazer se temos todos os sentidos necessrios para alcanarmos o conhecimento verdadeiro ou se eles so em nmero insuficiente para nos revelar as coisas. Alguns animais so privados de viso, audio, ou outra faculdade, e no percebem esta privao. Quem sabe se, sem que tenhamos conscincia, tambm nos falta algum meio de percepo? Nesse caso ns somente teramos um conhecimento parcial e aproximado da realidade. Vejo vrios animais que vivem muito bem sem enxergar nem ouvir, quem nos diz que a ns no faltam tambm um, dois, trs ou at vrios sentidos? Pois se algum nos falta no h como sab-lo (2.12.575-6). No haveria uma maneira eficiente de responder a essa pergunta e poderamos estar bem longe de termos uma percepo exata da natureza das coisas, na mesma situao de um cego de nascena que no tem a percepo das cores. Concebemos a verdade sob um aspecto para o qual contribuem nossos cinco sentidos. Talvez, para que seja a verdadeira, e tenhamos a certeza de a apreender integralmente, careamos de oito ou dez (2.12.578). E mesmo que no nos falte qualquer sentido, os que temos nos enganam e no constituem instrumentos confiveis para nosso conhecimento do mundo exterior. Que os sentidos dominam muitas vezes a razo (discours) e nos impem impresses que ela sabe e julga serem falsas coisa que se v comumente (2.12.580). Montaigne dedica-se ento a dar vrios exemplos de iluses a que eles nos induzem. Quanto ao erro e incerteza das operaes dos sentidos, cada qual pode apresentar quantos exemplos lhe aprouver, to abundantes so essas falhas e enganos que eles nos apresentam (2.12.579). As vrias ocorrncias de iluses nos levam a suspeitar de nossos sentidos. Os efeitos das qualidades sensveis sobre as paixes indicam que freqentemente somos levados a falsificar ou duvidar das opinies segundo a fora e vivacidade das experincias sensveis a que nos submetemos. As

  • impresses dos sentidos modificam o estado da alma, perturbam o julgamento e nos induzem ao erro. O som vibrante das cornetas e dos tambores acelera o corao, a penumbra das igrejas, a pompa das cerimnias, a grave harmonia dos rgos nos enchem de temor e respeito.[27] O que vemos e ouvimos sob o domnio da clera, no nos aparece como realmente..., O objeto de nossa afeio nos parece mais belo do que na realidade ..., e mais feio o objeto de nossa animosidade (2.12.583). Alm disso, e este um argumento que foi retomado mais tarde por Descartes na Primeira meditao em sua rejeio dos sentidos como instrumentos fidedignos do conhecimento verdadeiro, nossa experincia sensvel e nossa experincia nos sonhos so s vezes to semelhantes que mal podemos distinguir uma da outra. Os que compararam nossa vida a um sonho foram mais judiciosos talvez do que pensavam. Em nossos sonhos nossa alma vive, tal como quando est acordada. Admitamos que o faa de um modo menos eficiente e visvel, a diferena ainda no ser to grande quanto entre um dia de sol e a noite, mas apenas como entre esta e o crepsculo... Como duvidar de que, em pensando e agindo, sonhamos? E estar acordado seja uma forma de sonho? (2.12.584). Em seguida Montaigne apresenta ainda outros argumentos pirrnicos tradicionais variaes de alguns dos dez modos de Enesidemo reportados por Sexto Emprico (Cf. Sexto. H.P.I., 36 e seg.). Sua argumentao baseia-se no fato de que nossa experincia sensvel difere da experincia dos animais (Cf. 2.12.585; e em Sexto Cf. Primeiro modo de Enesidemo, H.P. I, 40); que cada experincia individual difere sob diferentes condies (Cf. 2.12.586; e em Sexto Cf. Quarto modo de Enesidemo, H.P.I. 100); que nossos sentidos diferem um em relao ao outro e relativamente aos das outras pessoas; que o testemunho que nos do varia segundo as circunstncias e os humores (Cf. 2.12.586; e em Sexto Cf. Terceiro modo de

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    Enesidemo, H.P.I,90), e assim por diante. Com o argumento de que cada experincia individual difere sob diferentes condies Montaigne conclui que: percebemos as coisas segundo as nossas condies ou o que elas nos parecem ser. E o que nos parece to discutvel, incerto, que temos o direito de declarar que vemos a neve branca, mas no o podemos assegurar. Com to limitada certeza no ponto de partida, toda cincia vai por gua abaixo (2.12.586). Nossas experincias sensveis podem sofrer alteraes a ponto de as mesmas coisas antes percebidas nos parecerem agora diferentes, como se tivessem mudado de natureza. So, indago, os nossos sentidos que mudam de maneira anloga s condies diversas das coisas ou estas so assim? Diante dessa dvida, como julgaremos sua verdadeira natureza? (2.12.587). Nossos vrios estados de sade, o sono, a viglia, etc., produzem uma variao nas aparncias das coisas. Nos sonhos e alucinaes cremos na existncia de objetos ilusrios. Mesmo no estado de viglia, as faculdades so s vezes debilitadas pela doena e nos transmitem uma imagem alterada da realidade. No homem lcido e dotado de faculdades em estado normal, os sentidos nem sempre so testemunhos infalveis da verdade. Prova disso so as contradies que se manifestam quando confrontamos os dados de dois sentidos e, sobretudo, na diversidade de impresses suscitadas por um mesmo objeto em vrios indivduos. Se em caso de doena, devaneio ou sono, as coisas nos aparecem diferentes do que quando estamos com sade, em plena posse de ns mesmos, provvel que em nosso estado normal as vejamos de conformidade com as nossas condies. No as encaramos ento de uma maneira igualmente particular? (2.12.587). Enfim, o argumento visa mostrar, ento, que os sentidos mentem e se enganam, ou pelo menos somente nos informam sobre a aparncia, e no sobre a essncia real do mundo exterior. Por conseguinte, que no temos um meio seguro para distinguir qual

  • seria, ou a que corresponderia, a real natureza das coisas, da qual muitos filsofos julgam poder falar. Acomodam-se as coisas s nossas condies, como estas se transformam. No conhecemos a verdade a seu respeito, pois sempre as temos alteradas ou falsificadas pelos sentidos. Quando o compasso, a rgua, o esquadro, so falseados (gauches), todas as medidas o so tambm, e os edifcios com tais instrumentos construdos so forosamente defeituosos e pouco slidos. Da mesma forma, a insuficincia de nossos sentidos torna insuficiente o que produzem (2.12.588). Essa variao de nossas experincias sensveis torna necessrio que se encontre um padro (regle) para julgar quais so as verdicas. preciso encontrar alguma base objetiva para julgar, um juiz neutro. Notamos aqui que Montaigne relaciona o problema do conhecimento sensvel com o problema religioso. Sutilmente, ele sugere que a discusso acerca do critrio de verdade religiosa apresenta as mesmas dificuldades que existem no estabelecimento de um critrio para o conhecimento sensvel. Na verdade, a argumentao que Montaigne desenvolve a propsito das dificuldades do conhecimento sensvel, e da falta de um juiz neutro para ajuizar as aparncias, permite-lhe tambm atingir o problema da verdade religiosa. Dizemos que quando se trata de controvrsias religiosas seria necessrio um juiz neutro, isento de preconceito ou preferncia, o que no se encontra entre os cristos (2.12.588). A crtica ctica do conhecimento sensvel relaciona-se, pois, com o problema do critrio de verdade. Para julgar acerca das aparncias das coisas, precisaramos de um instrumento aferidor; para controlar esse instrumento necessitaramos de experincias e mais um instrumento para control-las. E isso gera um impasse. Nessa procura por uma base para o conhecimento, existe outra dificuldade que provoca um regresso ao infinito. Visto que os sentidos no podem decidir por serem imperfeitos,

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    preciso que a razo decida; mas nenhuma razo pode ser aceita sem que outra lhe demonstre a validade, e isso faz com que se acabe voltando ao ponto de partida, gerando assim um crculo vicioso. Por conseguinte, ser preciso concluir que nossas idias derivam de nossa experincia sensvel. Porm, nossa experincia sensvel no nos mostra como os objetos so em si mesmos, mas somente como nos aparecem. Ajuizar os objetos por nossas idias um procedimento muito duvidoso. Nunca poderemos distinguir se nossas idias ou impresses sensveis correspondem ou no aos objetos reais. Ao conhecimento sensvel falta um critrio seguro para poder distinguir as aparncias falsas das verdadeiras. No temos uma maneira de controlar as percepes sensveis mediante o confronto com as coisas que as determinam em ns; por conseguinte, no podemos verificar sua verdade, assim como quem nunca viu Scrates, no poder dizer se o seu retrato se lhe assemelha. nesta parte da argumentao da Apologia que podemos constatar mais explicitamente o uso que Montaigne faz do texto de Sexto Emprico. A fim de destacar essa apropriao quase literal das passagens das Hipotiposes Pirrnicas por parte de Montaigne, vejamos, a seguir, traduzidos, os dois textos lado a lado.

    SEXTO EMPRICO, Hipotiposes pirronianas II. 72 e seg.

    MONTAIGNE, Essais 2.12. p. 589.

    [72] a) Lentendement ne sapplique aux objets extrieurs et ne fait natre les images, commen ils disent, par lui-mme, mais par lintermdiaire les sens. [O entendimento no se aplica aos objetos exteriores e no faz nascer as imagens, como dizem, por sua conta, mas por intermdio dos sentidos.]

    Nostre fantasie ne sapplique aux choses strangres, ains elle est conue par lentremise les sens; [Nossa representao no se aplica s coisas exteriores, por conseguinte, ela concebida por intermdio dos sentidos;]

  • b) et le sens ne saisissent les objets extrieurs, mais seulement peut-tre leurs propres dispositions [e os sentidos no apreendem os objetos exteriores, mas talvez somente suas prprias disposies.]

    b) et le sens ne comprennent pas le subject tranger, ains seulement leurs propres passions. [e os sentidos no compreendem o objeto exterior, mas somente suas prprias afeces.]

    c) La reprsentation dpendra de la disposition des sens, qui diffre de lobjet extrieur. [ A representao depender da disposio dos sentidos, que difere do objeto exterior.]

    c) et par ainsi la fantasie et apparence nest pas du subjet, ains seulement de la passion et souffrance du sens; [ e deste modo a representao e aparncia no a do objeto, mas somente da afeco e dos efeitos dos sentidos;]

    [73] d) Si cette disposition diffre de lobjet extrieur, la reprsentation ser non celle de lobjet extrieur, mais de quelque autre chose qui en diffre (...) [Se esta disposio difere do objeto exterior, a representao ser, no a do objeto exterior, mas de qualquer outra coisa que dele difere (...)]

    d) laquelle passion et sujet sont choses diverses; [pelo que afeco e objeto so coisas diversas;]

    e) Si donc lentendement juge daprs elle, il juge mal et non selon lobjet. Aussi est-il absurde dire que les objets extrieurs sont jugs daprs la reprsentation. [Portanto, se o entendimento julga segundo ela, ele julga erradamente e no de acordo com o objeto. Deste modo, absurdo dizer que os objetos exteriores so julgados segundo a representao.]

    e) parquoy qui juje par les apparences, juge par chose autre que le subject. [Da porque, quem julga pelas aparncias, julga por outra coisa que no o objeto.]

    [74] f) Mais il nest mme dire que lme saisit les objets extrieurs par les dispositions des sens parce que les dispositions des sens sont semblables aux objets extrieurs. [Tambm no se pode dizer que a alma apreende os objetos exteriores pelas disposies dos sentidos, pelo fato de as disposies dos sentidos serem semelhantes aos objetos exteriores.]

    f) Et de dire que les passions des sens rapportent lme la qualit des sujects trangers par ressemblance, [E de dizer que as afeces dos sentidos trazem alma a qualidade dos objetos exteriores por semelhana,]

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    g) Comment lentendement saura-t-il si les dispositions des sens sont semblables aux choses sensibles, si lui-mme nest pas en relation avec les objets extrieus et si les sens ne lui rvelent leur nature mais leurs propres dispositions? [Como o entendimento saberia se as disposies dos sentidos so semelhantes s coisas sensveis, se ele mesmo no tem relao com os objetos exteriores e se os sentidos no lhe revelam a natureza destes, mas apenas as prprias disposies?.]

    g) comment se peut lme et lentendement assurer de cette ressemblance, nayant de soy nul commerce avec les subjects trangers? [Como a alma e o juzo podem assegurar-se desta semelhana, no tendo por si qualquer relao com os objetos exteriores?]

    h) De mme queen effet quelqueun, qui ne connat pas Socratem, ne sait pas, en voyant un portrait de Socrate, si ce portrait ressemble Socrate (de mme justement le jugement qui se borne recevoir des impressions fournies par les sensations sans pour autant disposer d une vue immdiate des objets extrieurs, ne sa