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ÁREAS PROTEGIDAS E POPULAÇÕES TRADICIONAIS: CONTRADIÇÕES E DESAFIOS PARA A PROTEÇÃO DA NATUREZA NA AMAZÔNIA JULIEN MARIUS REIS THÉVENIN EDSON LUÍS PIROLI Objetivos: Analisar o modelo de implantação de áreas protegidas no Brasil levando em consideração sua adequabilidade à realidade amazônica e às populações tradicionais que nelas se inserem. Refletir sobre a continuidade da Proteção da Natureza na Amazônia, sua adaptação, expansão e desafios. Introdução A riqueza da região amazônica transpõe a sua biodiversidade, posto que, sem deixar de vincular-se à floresta, ela está presente na abundância de suas águas, na regulação climática, e também está, além de tudo, atrelada à questão cultural, oriunda de seus povos tradicionais. A valoração econômica de sua natureza (incluindo suas terras e seu subsolo) tem sido alvo de múltiplos interesses nacionais e internacionais, mas, sobretudo, tem advindo de forças externas à região, a qual foi considerada até recentemente, como um verdadeiro vazio demográfico. Nota-se que não são tão recentes os interesses pela Amazônia por agentes externos a região, Mattos (1980) aponta, que desde o século XVIII, sob inspiração da política mercantilista portuguesa, tentativas várias foram feitas no sentido de incorporar a Amazônia ao espaço econômico brasileiro. Durante a ditadura militar, meados do século XX, com o Plano de Integração Nacional PIN, que previu projetos de colonização e implantação de rodovias, a Amazônia passa por devassamentos caracterizados por inúmeros focos de tensão e conflitos sociais, pela posse das terras e dos recursos naturais entre grileiros, madeireiros, Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista. Bolsista FAPESP. Doutor em Agronomia pela Universidade Estadual Paulista.

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ÁREAS PROTEGIDAS E POPULAÇÕES TRADICIONAIS: CONTRADIÇÕES E

DESAFIOS PARA A PROTEÇÃO DA NATUREZA NA AMAZÔNIA

JULIEN MARIUS REIS THÉVENIN

EDSON LUÍS PIROLI

Objetivos:

Analisar o modelo de implantação de áreas protegidas no Brasil levando em

consideração sua adequabilidade à realidade amazônica e às populações tradicionais que nelas

se inserem. Refletir sobre a continuidade da Proteção da Natureza na Amazônia, sua

adaptação, expansão e desafios.

Introdução

A riqueza da região amazônica transpõe a sua biodiversidade, posto que, sem deixar

de vincular-se à floresta, ela está presente na abundância de suas águas, na regulação

climática, e também está, além de tudo, atrelada à questão cultural, oriunda de seus povos

tradicionais. A valoração econômica de sua natureza (incluindo suas terras e seu subsolo) tem

sido alvo de múltiplos interesses nacionais e internacionais, mas, sobretudo, tem advindo de

forças externas à região, a qual foi considerada até recentemente, como um verdadeiro vazio

demográfico.

Nota-se que não são tão recentes os interesses pela Amazônia por agentes externos a

região, Mattos (1980) aponta, que desde o século XVIII, sob inspiração da política

mercantilista portuguesa, tentativas várias foram feitas no sentido de incorporar a Amazônia

ao espaço econômico brasileiro. Durante a ditadura militar, meados do século XX, com o

Plano de Integração Nacional – PIN, que previu projetos de colonização e implantação de

rodovias, a Amazônia passa por devassamentos caracterizados por inúmeros focos de tensão e

conflitos sociais, pela posse das terras e dos recursos naturais entre grileiros, madeireiros,

Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista. Bolsista FAPESP.

Doutor em Agronomia pela Universidade Estadual Paulista.

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garimpeiros, indígenas, fazendeiros e colonos, muitas vezes por intermédio de grandes

empresas nacionais e estrangeiras.

Esse incentivo e mediação direta do Estado brasileiro ao suposto “desenvolvimento” e

integração econômica da região Amazônica tem sido realizado até o presente sem, contudo,

haver uma análise criteriosa sobre qual o modelo de desenvolvimento adequado às

peculiaridades culturais e ambientais da região. É sob esse contexto que, segundo o INPE

(2015), até o ano de 2015, 766.136 km² (19,06%) de floresta Amazônica já foi desmatada,

somente no Brasil, com uma área equivalente à de países como Turquia (783.562 km²) e Chile

(756.945 km²). Desses, 413.506 km² da área, que correspondem a aproximadamente 54%, foi

desmatada apenas entre os anos de 1988 e 2015 (INPE, 2015).

Frente ao desmatamento da floresta Amazônica e de outros biomas brasileiros surgem

os primeiros instrumentos legais de proteção ambiental no país. Tais instrumentos, desde o

principio, tiveram fortes influências da corrente preservacionista dos Estados Unidos,

baseados na criação de áreas protegidas, absentes da presença humana. Porém, essa ideia de

intocabilidade da natureza encontrou diferentes problemas, principalmente na Amazônia, já

que muitos dos vestígios do mundo natural têm sido habitados por milênios.

Toledo (2001), ao realizar uma análise global, verifica que os locais de alta

diversidade sociocultural aparecem associados com as concentrações remanescentes de

biodiversidade. Esta diversidade sociocultural aparece vinculada às comunidades e

populações que, de acordo com McNeely (1993), costumam ser chamadas de tribais, nativos,

tradicionais ou de culturas minoritárias diferenciadas, as quais normalmente vivem em regiões

de ecossistemas frágeis e isoladas, e até recentemente ocupavam cerca de dezenove por cento

(19%) da superfície terrestre.

Dentre os critérios de definição, para as populações tradicionais, adotados por Toledo

(2001), destaca-se a descendência dos primeiros habitantes do território. Estes adotam

estratégia multiuso na apropriação da natureza; praticam produção rural de pequena escala e

intensiva em trabalho; organizam suas vidas de modo comunitário; compartilham língua,

religião, crenças e vestimentas.

A manutenção desses ecossistemas esteve ligada não só à baixa densidade

demográfica dessas populações, mas, sobretudo, às suas práticas de uso e manejo dos recursos

naturais, de baixo impacto ambiental, desvinculadas da lógica do consumismo e do lucro.

Nesse sentido, segundo Moran (2009), o crescimento populacional não está necessariamente

relacionado ao avanço do desmatamento local, pois em diversos casos a densidade

populacional aparece associada a melhorias do manejo e restauração florestal.

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Diante do conflito instalado entre forças desenvolvimentistas e preservacionistas, as

populações tradicionais vêm travando lutas para terem seus direitos territoriais reconhecidos

pelos instrumentos legais de proteção da natureza, tendo em vista sua importância para a

conservação da cultura e dos ecossistemas. A cada conquista destas populações, apoiada pela

corrente conservacionista, tem sido reformado o modelo brasileiro de Áreas Protegidas, o qual

ainda necessita superar contradições e desafios para exercer com eficiência a conservação da

biodiversidade e a sustentabilidade socioambiental.

Por um modelo brasileiro de Áreas Protegidas

Após a criação do primeiro parque nacional no mundo, o de Yellowstone, o modelo

norte-americano de criação de Áreas Protegidas (APs) se tornou uma das principais

estratégias para à proteção da natureza, principalmente em países periféricos como o Brasil,

como afirma Diegues (2004), crítico desse modelo, que também considera que:

Para o naturalismo da proteção da natureza do século passado, a única forma de

proteger a natureza era afastá-la do homem, por meio de ilhas onde este pudesse

admirá-la e reverenciá-la. Esses lugares paradisíacos serviriam também como

locais selvagens, onde o homem pudesse refazer as energias gastas na vida

estressante das cidades e do trabalho monótono. Parece realizar-se a reprodução

do mito do paraíso perdido, lugar desejado e procurado pelo homem depois de ser

expulso do Éden (p. 13).

Medeiros, Irving e Garay (2004) contestam as críticas de Diegues (2004), pois

consideram que o modelo brasileiro de APs tem características próprias e não se resumiu a

uma cópia do modelo preservacionista norte-americano.

Para Medeiros, Irving e Garay (2004), desde sua gênese e no seu primeiro instrumento

legal, o Código Florestal de 1934, o modelo brasileiro já expressava a ideia de criação de

Áreas Protegidas (AP´s) que atendessem aos objetivos não só de preservação dos recursos

naturais, mas também à sua conservação na perspectiva do uso sustentável. Para esse autor, tal

dualidade se expressou inicialmente no país pela criação de duas categorias distintas de

unidades de conservação (UC´s): as Florestas Nacionais, que poderiam ser exploradas sob a

concessão e controle do Estado; e os Parques Nacionais, unidades de proteção integral,

baseadas no ideal de natureza “intocada” e que deveriam ser mantidas sob a proteção do

Estado.

Só depois de instituído o Código Florestal de 1934 é que foram criados os dois

primeiros Parques Nacionais brasileiros: Itatiaia (1937); Iguaçu e Serra dos Órgãos (1939).

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Mas, embora tal Código já legislasse sobre as Florestas Modelo e de Rendimento (precedentes

às Florestas Nacionais), as quais poderiam ser submetidas ao manejo de recursos naturais,

especialmente ao extrativismo de madeira, a primeira Floresta Nacional, do Araripe-Apodi, só

fora criada no ano de 1946 pelo Decreto Federal 9.226, no estado do Ceará. Somente quinze

anos depois, em 1961, é que foi criada uma segunda Floresta Nacional, a de Caxiuanã, no

Pará.

Essas Florestas Nacionais até então tinham suas atividades administradas pelo Serviço

Florestal, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura. Nelas, os proprietários particulares de

terra estavam sujeitos à desapropriação e, segundo Medeiros (2006, p. 51), nesse modelo “a

floresta era encarada como recurso econômico cuja exploração deveria ser controlada ou

supervisionada pelo Estado”. Até o ano de 1965, foram criadas nove Florestas Nacionais com

dimensões consideravelmente inferiores aos quinze Parques Nacionais que haviam sido

criados até então.

Uma real distinção entre as UC´s de uso indireto (Parques Nacionais, Estaduais,

Municipais e Reserva Biológica), que não permitem a exploração direta dos recursos naturais,

e as de uso direto (Florestas Nacionais, Estaduais, Municipais e Parques de Caça), que

permitem a exploração direta dos recursos naturais, só ocorreu com a instituição do Código

Florestal, de 1965, e o Código de Fauna, de 1967.

O surgimento das Áreas de Preservação Permanente (APP´s) e da Reserva Legal (RL),

que até então só apareciam no Código de 1934 de forma genérica como Florestas Protetoras,

pode ser considerado um dos acréscimos de dispositivo legal, presentes no Código Florestal

de 1965, mais importantes para a preservação ambiental. Ao regulamentar de modo

sistemático a proteção ambiental nas propriedades rurais em todo Brasil, o Código de 1965

tem importância ímpar não só para a conservação da biodiversidade, como também dos

sistemas fluviais, lacustres, geomorfológicos, climáticos, além de biomas frágeis como os

manguezais e as restingas, sem, contudo, inviabilizar, na maioria dos casos, a produtividade

dessas propriedades. Embora que, o histórico descumprimento desses instrumentos legais no

país, tanto por pequenos quanto por médios e grandes proprietários de terra, têm culminado

em um grave problema ambiental.

Voltando ao caso das Florestas Nacionais (FLONA´s), embora a legislação permitisse

a exploração direta de seus recursos naturais, não havia no referido Código nenhum artigo ou

inciso que legislasse sobre a permanência de populações tradicionais nas mesmas. Tal fato

contribuiu para que a presença de assentados, populações tradicionais e demais moradores

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fosse ignorada na implantação de algumas Florestas Nacionais, a exemplo da Flona Tapajós,

na década de 1970.

Segundo Guerra (2008), na Flona Tapajós, no Pará, comunidades que secularmente

faziam uso da floresta para seu próprio sustento não aceitaram a desapropriação imposta, o

que gerou sérios conflitos. Progressivamente, com o aumento da fiscalização e de ações de

desapropriação por parte do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF)

nessa UC, as comunidades começaram a perder seu próprio sustento.

Apesar da realidade brasileira suscitar o uso sustentável dos recursos naturais, o

mesmo caminhou a passos lentos, o que reforçou a crítica de Diegues (2004) quanto ao longo

domínio da ideologia preservacionista nas áreas protegidas no país. Para Diegues (2004), a

transposição dessas áreas naturais protegidas, nas quais não se permite a presença de

moradores, entrou em conflito com a realidade dos países tropicais, cujas florestas são

habitadas por populações indígenas e outros grupos tradicionais (ribeirinhos, seringueiros,

caiçaras, etc.) que desenvolveram formas de apropriação comunal dos espaços e recursos

naturais.

Povos da floresta e o direito de uso sustentável das Unidades de Conservação

O direito de permanência e usufruto das populações tradicionais no interior das UC´s

tem ocorrido gradativamente e não de forma espontânea, mas com enfrentamento a diversos

entraves, seja no campo científico, jurídico, econômico, político e sociocultural. Um claro

exemplo disso foi a luta travada pelos seringueiros na Amazônia, inicialmente no Acre, ao

longo da década de 1980, que culminou com a criação das Reservas Extrativistas (RESEX).

Iniciado pela reivindicação de lotes florestados para produção agroextrativista diante

do avanço da frente capitalista tanto na expansão agropecuária quanto madeireira, assim como

pela busca de melhores preços para a borracha, esse movimento seringalista deu lugar a uma

demanda por grandes florestas para uso coletivo e à luta pela defesa da floresta (ALMEIDA,

2004).

A originalidade da proposta política levada por esse movimento ao IV Encontro

Nacional dos Trabalhadores da Contag, sediado em Brasília, em 1984, combinou a luta pela

terra com a luta pelo modo de vida seringueiro, considerando que a Reforma Agrária não

poderia ser homogênea para todo o território nacional, já que a condição seringueira requeria

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uma extensão média de 300 (trezentos) hectares de terra com floresta (PORTO-

GONÇALVES, 2005).

Segundo Almeida (2004), a articulação entre três principais representantes dos

seringueiros, Chico de Ginu, Chico Mendes e Antônio Macedo foi fundamental nas

conquistas para a construção de alternativas históricas diante da conjuntura global e nacional

em que se inseriam. Ao lutarem pela terra e pela manutenção de seu modo de vida, esses

grupos de seringueiros trouxeram em suas revindicações não só uma dimensão sociocultural,

mas também uma dimensão ambiental, tendo em vista a defesa da floresta.

Para Porto-Gonçalves (2005), a proposta de Aliança dos Povos da Floresta, formulada

pelos seringueiros, é um dos mais importantes legados políticos de seu líder maior, Chico

Mendes. Aliança essa que foi representada pelo Conselho Nacional de Seringueiros, pelo

Movimento dos Atingidos pelas Barragens, pelo Movimento dos Pescadores Artesanais, pelos

Movimentos Indígenas etc., e teve como marco importante a realização do I Encontro dos

Povos Indígenas do Xingu, na cidade de Altamira, em fevereiro de 1989. Na declaração final

desse encontro foi aconselhado : “[...] não destruir as florestas, os rios, que são nossos irmãos,

pois esses territórios são sítios sagrados do nosso povo, morada do Criador, que não podem

ser violados” (WALDMAN, p. 90, 1992).

Posteriormente, a criação da categoria Reserva de Desenvolvimento Sustentável

(RDS) também foi um importante avanço na concepção de AP´s no Brasil. Segundo,

Medeiros (2006), esse modelo conseguiu incorporar efetivamente as populações inseridas no

interior dessas UC´s, o que reduziu significativamente os conflitos fundiários, um dos

principais obstáculos ao pleno funcionamento das áreas protegidas.

A primeira RDS surgiu em 1996, pela recategorização da Estação Ecológica

Mamirauá (EEM), no Estado do Amazonas, a partir de uma proposta criada por um grupo de

pesquisadores da Sociedade Civil Mamirauá, após verificarem que as restrições imposta pela

categoria Estação Ecológica a tornava inviável, diante da sua ocupação tradicional

(QUEIROZ, 2005), já que, segundo Espírito Santo e Faleiros (1992), era quase que

impossível a remoção dessas populações, visto as implicações práticas e financeiras. Por outro

lado, para Ayres et al. (1996), o efetivo funcionamento da Unidade, na conservação da

biodiversidade, ficaria comprometido caso não houvesse uma participação intensiva da

população local.

Um marco importante para uma real mudança de paradigmas com relação ao papel das

comunidades tradicionais em UC´s foi a aprovação do Sistema Nacional de Unidades de

Conservação – SNUC, no ano de 2000, e a incorporação das novas categorias de UC´s,

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principalmente as de uso sustentável, como as RESEX e as RDS. No entanto, mesmo com

essa aprovação do SNUC, a primeira RDS em esfera federal só foi criada em 2005 e até os

dias atuais só existem duas RDS federais.

A expansão precária de Unidades de Conservação no Brasil

Ainda hoje, nas UC´s diversos entraves têm sido enfrentados para efetividade de seus

instrumentos legais: a presença de populações humanas no interior de unidades de proteção

integral; a inviabilidade financeira dessa remoção (sem falar nos problemas socioculturais

associados à remoção); a existência de terras não regularizadas; a falta de recursos financeiros

e humanos para fiscalização e administração; a inexistência de planos de manejo e de

gerenciamento em muitas Unidades; além do não cumprimento dos mesmos nas Unidades que

os detêm.

Diante disso, boa parte das UC´s criadas não foram efetivamente implantadas,

existindo apenas no “papel”. Cumpre destacar que tais contradições ocorrem não só em

unidades de proteção integral, mas também em unidades de uso sustentável como nas Áreas

de Proteção Ambiental (APA´s), para além da região Amazônica, como em áreas litorâneas. É

o caso, por exemplo, da APA das ilhas de Tinharé e Boipeba (Cairu-BA) que, embora esteja

criada, pelo Decreto Estadual 1.240 de 05 de junho de 1992, não há o devido respeito dos

moradores (que em sua maioria desconhecem que estão inseridos numa APA) e nem do Poder

Público Municipal às leis e ao planejamento ambiental proposto em seu plano de manejo,

conforme salientam Thévenin e Locatel (2014). Segundo os autores, não há também uma

fiscalização regular e efetiva nessa APA, e o poder Municipal justifica o não cumprimento do

plano de manejo alegando sua inadequação à realidade do crescimento local voltada para o

turismo.

Segundo Furlan (1997), tem sido comum a precária implantação das APA´s em

ilhas, posto que frequentemente os planos atropelam a realidade e terminam consagrando a

ocupação predatória como, por exemplo, no turismo. Mas não é só em ilhas e não só na

perspectiva da ocupação predatória que tem ocorrido problemas na implantação das APA´s.

Thévenin e Meliani (2007), em estudo de caso na APA da Costa de Itacaré/Serra Grande

(BA), observaram que embora a UC tenha contribuído para a redução do desmatamento, a

implantação da mesma, sobreposta a dois assentamentos de reforma agrária, inviabilizou a

subsistência dos assentados a partir da produção agrícola nessas terras. Isto porque a

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fiscalização impediu o uso das técnicas de corte e queima, e os mesmos não possuíam

recursos nem insumos suficientes para sua permanência na terra a partir de técnicas mais

avançadas.

Ainda assim, mesmo com problemas como esses apresentados tem se ampliado a

quantidade de UC´s no mundo, principalmente em países como o Brasil, aliados há um grande

aumento de fundos internacionais para conservação. Imperioso ressaltar a importante

contribuição para a conservação dos ecossistemas e da biodiversidade, das Unidades que são

geridas de uma forma eficiente. No entanto, para a conservação não adianta crescer em

quantidade de UC´s criadas, se não houver um ganho qualitativo no planejamento e na gestão

das mesmas, de modo a garantir sua proteção integral ou seu uso sustentável.

Apenas no século XX, 30.000 UCs foram criadas em todo mundo, inicialmente nas

categorias Parque e Reserva, abrangendo um total de aproximadamente 12,8 milhões de Km²,

que equivalem acerca de 9,5% das terras emersas do planeta (IUCN, 2000). No Brasil,

principalmente a partir da década de 1980, quando foram criadas 92 UCs federais (os dados

não incluem a categoria Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN) a somar-se

com as 42 UCs federais até então existentes (DRUMMOND; FRANCO; OLIVEIRA, 2011).

Dados mais recentes do CNUC/MMA (2015), que abrangem os três níveis de governo

(Federal, Estadual e Municipal), registraram 1.940 UCs no país abrangendo uma área total de

1.513.828 km², o que equivale aproximadamente a 17% do território nacional (Tabela 1).

Tabela 1: Quantidade e área das Unidades de Conservação no Brasil por categoria e esfera

pública.

Tipo / Categoria

Esfera

TOTAL

Federal Estadual Municipal

Proteção Integral N° Área (Km²) N°

Área

(Km²) N°

Área

(Km²) N°

Área

(Km²)

Estação Ecológica 32 74.691 58 47.513 1 9 91 122.213

Monumento Natural 3 443 28 892 11 73 42 1.407

Parque Nacional /

Estadual / Municipal 71 252.978 195 94.889 95 221 361 348.088

Refúgio de Vida Silvestre 7 2.017 24 1.729 1 22 32 3.768

Reserva Biológica 30 39.034 24 13.449 6 48 60 52.531

Total Proteção Integral 143 369.164 329 158.472 114 372 586 528.007

Uso Sustentável N° Área (Km²) N° Área N° Área N° Área

9

(Km²) (Km²) (Km²)

Floresta Nacional /

Estadual / Municipal 65 163.913 39 136.053 0 0 104 299.966

Reserva Extrativista 62 124.362 28 20.208 0 0 90 144.570

Reserva de

Desenvolvimento

Sustentável 2 1.026 29 110.090 5 176 36 111.293

Reserva de Fauna 0 0 0 0 0 0 0 0

Área de Proteção

Ambiental 32 100.101 185 334.898 77 25.922 294 460.922

Área de Relevante

Interesse

Ecológico 16 447 24 443 8 32 48 921

RPPN 634 4.832 147 686 1 0 782 5.517

Total Uso Sustentável 811 394.681 452 602.377 91 26.131 1.354 1.023.189

Total Geral 954 763.845 781 760.848 205 26.503 1.940 1.551.196

Área Considerando

Sobreposição Mapeada 954 758.733 781 755.661 205 26.479 1.940 1.513.828

OBS: A UC que não tem informação georreferenciada disponível é utilizada a área do ato legal para o cálculo de área.

Fonte: CNUC/MMA, 2015

Como foi discutido anteriormente, os números das áreas cobertas por UC´s não

representam uma garantia efetiva de conservação da biodiversidade, nem tampouco da

manutenção de populações tradicionais com práticas socioeconômicas sustentáveis. Segundo

Martins et al. (2014, p. 2):

[...] entre os anos de 1995 e 2013,

Assim, nesse cenário o Estado passa a manifestar uma situação paradoxal, pois

segundo Moraes (2005), possui de um lado os principais canais institucionais de defesa da

qualidade do meio ambiente e de outro os principais agentes de degradação. Nesse paradoxo

se concentra um dos maiores desafios da proteção da natureza, a resistência às forças

desenvolvimentistas que imperam sobre o Estado sob o desígnio do mercado global.

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Conclusões

Portanto, infere-se que, somado à notória ineficiência de muitos instrumentos legais

criados a favor da preservação ambiental supracitada, o avanço capitalista na região

Amazônica, com instalação de hidrelétricas e ocupação de grandes áreas para os plantations

do agronegócio tem ocasionado grandes perdas para a biodiversidade, bem como para as

populações residentes, configurando grave problema para a existência e resistência das

florestas culturais.

Neste viés, nota-se que tais povos sofrem também uma homogeneização cultural sob

os desígnios do capitalismo globalizado. Assim, quanto mais essas populações se inserem na

lógica da produtividade e do consumismo, maior a aculturação e a tendência ao esfacelamento

das venerações da natureza e dos elementos simbólicos que determinaram as regras que

limitavam a exploração.

Diante disto, a fim de ao menos minimizar tal problemática, é cogente a criação e o

aprimoramento na gestão das UC´s de uso sustentável, de modo a privilegiar esses habitantes,

a partir de uma cogestão entre Estado, entidades da sociedade civil organizada e

representantes das comunidades beneficiadas. Com vista a garantir a manutenção do uso

sustentável desses recursos naturais, bem como da diversidade cultural dos povos tradicionais.

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