Arendt. Aborto e Contracepção (RESENHA DO LIVRO)

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  • 7/24/2019 Arendt. Aborto e Contracepo (RESENHA DO LIVRO)

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    SadeColetiva,20(3):957

    -960,2015

    Arend SMF, Assis GO, Motta FM, organizadores.Aborto e Contracepo, histrias que ningumconta. Florianpolis: Insular; 2012.

    Maria das Dores Nunes 1

    1 Universidade de Braslia.

    Este livro foi organizado por Silvia Maria FveroArend, Glucia de Oliveira Assis e Flvia de MattosMotta, que compilaram os estudos realizados em reaurbanas de Florianpolis com mais dez pesquisadores.As comunidades do bairro Me de Deus enfrentamas maiores vicissitudes sociais da regio, fato que des-pertou o interesse dos pesquisadores, j que registrosnacionais demonstram grande nmero de vtimas doaborto clandestino e inseguro entre mulheres pobres1.Conhecer o que o aborto para as pessoas dessas co-

    munidades reforar o saber sobre mulheres.O objetivo do livro divulgar a anlise socioa-

    ntropolgica de histrias contadas por pessoas decomunidades perifricas urbanas sobre suas prticasreprodutivas no contexto das relaes de gnero, daspolticas sociais e dos movimentos sociais e popula-cionais contemporneos.

    A obra divide-se em trs partes com interlocuobem definida entre elas, o que permite uma visoprofunda da questo do aborto na regio brasileirapesquisada. Apresenta amplo referencial bibliogrficoque fortalece as discusses ao longo do livro e dialoga

    com os mais recentes estudos sobre a temtica.A parte I do livro, Delicadas escolhas: as razes,o universo e os mtodos de uma pesquisa, expe as

    justificativas dos autores para o estudo da natureza doaborto. As questes de sade pblica e justia socialso argumentos fortes que do sentido luta peladescriminalizao do aborto no Brasil. E, tambm,o que levou conduo desse importante trabalho.O tema mostrado por meio da complexa e delicadapercepo de quem o vivencia e das controversasopinies da populao estudada. Os autores lanammo de distintos mtodos e tcnicas de pesquisa paracontextualizar as concepes e as convices de cada

    momento da pesquisa. Explicam que a pluralidadede estratgias metodolgicas revela-se importante nainvestigao [...]. Torna-se reveladora de aspectos maisprofundos da vida simblica de uma determinadapopulao. Alm disso, o carter socioantropolgicodo estudo, com enfoque terico na anlise das repre-sentaes e dos discursos sociais sobre contracepoe aborto, oportuniza uma perspectiva feminista emmomentos importantes.

    A explorao do campo identificou comuni-dades em contexto social de muita valorizao damaternidade, sendo a problematizao do aborto

    nessa populao um dos desafios da pesquisa. Asautoras comentam que a deciso das mulheres pelainterrupo da gravidez no fcil nem leviana, masresultado do esforo de transpor obstculos, comoa ilegalidade e a condenao moral da sociedade.

    No captulo Trajetrias reprodutivas e percepessobre aborto numa comunidade da periferia urbanaem Florianpolis, as autoras descrevem o perfilsociodemogrfico da populao: 1) predomniode baixa escolaridade, com grande disparidadeentre homens e mulheres; 2) incio precoce da vidasexual e reprodutiva; 3) ausncia de orientaocontraceptiva; 4) primeira gravidez, em geral, naadolescncia; 5) responsabilidade do controle re-produtivo sobre as mulheres, o que faz recair sobreelas o peso de questes polmicas das prticas abor-tivas; e 6) gravidez planejada referida por somente16,5% dos entrevistados, abaixo do identificado

    por estudo com populao de perfil sociodemogr-fico semelhante em outras localidades brasileiras2.O captulo No conta pra ningum: o abortosegundo mulheres de uma comunidade popularurbana demonstra forte influncia religiosa sobremuitas mulheres, que, aliada a uma readequao dainformao mdico-cientfica, dificulta a autonomiafeminina. Essa influncia religiosa e moral justificao fato de as mulheres pesquisadas no conseguiremadmitir a prtica abortiva, mas a descreverem comovivida por outras mulheres. s vezes, o aborto confundido com o infanticdio, o que o torna

    abominvel entre elas, embora aceitvel ou at ine-xistente quando ocorre nas primeiras semanas degravidez e quando se trata de gestao resultantede estupro. As mulheres que decidem contar suasexperincias falam de uma trajetria tortuosa,muitas vezes com graves riscos sua sade, em se-melhana com o que a literatura tem demonstrado3,4.Em Receitas, filhos e injees: sexualidade e contra-cepo em uma unidade de sade, h a participaode moradores de ambos os sexos, profissionais eagentes comunitrios de sade. O estudo retratadosob o aspecto da sade pblica brasileira e a contri-buio biomdica nas construes sociais do cuidado

    de si e do outro, levando em conta as assimetrias degnero no campo da concepo e contracepo. Asautoras recorrem noo de itinerrio teraputico edefinem a rota abortiva como o processo de vivnciadas mulheres a partir do momento em que percebemo atraso menstrual. Os entrevistados descrevemchs, medicamentos e artefatos para fins abortivose falam dos efeitos do Cytotec como resultado dasinformaes adquiridas no meio em que vivem comas informaes dirigidas pelas instituies religiosas.

    No captulo Usos e sentido do Cytotec, as au-toras descobrem as profundas razes deixadas pela

    DOI: 10.1590/1413-81232015203.00652014

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    cultura nas impresses e expresses negativasem relao ao aborto provocado. Citam que osmoradores creem como castigo o nascimentode portadores de patologias, cujas mes fizeramtentativas malogradas de aborto com Cytotec e

    no pelo uso inadequado do medicamento. Emrecente publicao cientfica, no entanto, a relaodas ms formaes com o uso do misoprostolfoi contestada pela fragilidade metodolgica dosestudos5. A obra relembra a mudana ocorridana sade pblica brasileira desde a entrada domisoprostol na vida das mulheres com finali-dade abortiva, o que proporcionou reduo dasmortes por aborto inseguro6. Atualmente, o me-dicamento tem uso restringido por lei, mas defcil acesso clandestino, o que enseja informaesimprecisas sobre dose e uso adequado levando insegurana do seu emprego como mtodo

    abortivo, com provveis danos para quem usa.Na parte III, Justia, imprensa e aborto: analisan-do um caso exemplar, as autoras discutem umcaso emblemtico da questo criminal do abortopara as mulheres da regio, atravs do processopolicial disparado por denncia de um moradorlocal. Registram que as entidades de poder socialintencionam condenar os envolvidos em casos deaes judiciais por prtica de aborto, embora taisaes sejam infrequentes. As autoras levantam,tambm, a histria da lei penal brasileira sobre oaborto, citando diversos projetos de lei enviados

    ao Congresso Nacional que propunham a manu-teno da ordem ilegal do aborto no pas, compermisso somente em situaes especiais, ou asua legalizao, em outros poucos projetos. Aoanalisarem as propostas contrrias prtica doaborto, as autoras afirmam o desrespeito aos direi-tos humanos das mulheres, especialmente porqueas consequncias negativas do aborto insegurorecaem sobre aquelas pobres, que dependem daspolticas pblicas.

    A obra, por fim, analisa o discurso da imprensasobre o aborto no perodo de 1995 a 2009, sob atica de duas grandes reportagens envolvendo o

    tema em uma revista de circulao nacional. Aprimeira, no ano de 1997, publicou revelaes dedestacadas mulheres sobre suas prticas abortivas,e mostrou tambm a viso parcial dos leitoresdessa revista sobre esse assunto, que ignoravamradicalmente a autonomia das mulheres de exer-

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    cerem seus direitos reprodutivos. Ainda assim,as autoras consideram a publicao um marcono tratamento do tema pelas revistas de cunhoinformativo do Brasil. A segunda cobertura, aps12 anos, trouxe a questo sob o ngulo da sade

    pblica, com o relato de mulheres que vivenciaramobstculos no acesso aos direitos firmados em leipara a realizao do aborto. As autoras analisamcomo contraditria a posio da revista, que de-fende os direitos das mulheres, mas no se isentade concepo moralista.

    O livro demonstra que o aborto uma prticafrequente entre as mulheres das comunidades pe-rifricas de Florianpolis, como em todo o Brasil1.Demarca disparidades sociais, desigualdades degnero e violao dos direitos sexuais e reprodu-tivos das mulheres. As representaes sobre abortoe contracepo nas comunidades estudadas tm

    forte influncia religiosa, com negao dos direitosdas mulheres. De modo geral, essa censura estpresente em setores importantes da sociedade,como o caso dos servios de atendimento mulher, o que incorre em no ateno aos gravesriscos sade. O debate pblico sobre a autonomiadas mulheres nas questes sexuais e reprodutivasdeve continuar, com a finalidade de estabelecerpolticas que ampliem o direito ao aborto eestimulem o fortalecimento pessoal feminino.

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