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Argentina
VOLUME 1_ 1808/1830
ALHC FUNDACIÓN MAPFRE
Crise imperial e independência
1
Introdução
Duzentos anos de história da Argentina
Jorge Gelman
Inaugura-se com este livro a série de cinco volumes dedicados ao
estudo da história argentina contemporânea. Promovida pela FUN-
DACIÓN MAPFRE, com a colaboração editorial do Grupo Santil-
lana, faz parte de um grande projeto que busca pensar, de forma
articulada, a história do conjunto de países ibero-americanos.
Se há algo a destacar desta obra, no contexto das boas iniciati-
vas de síntese histórica realizadas nas últimas décadas, é a sua clara
inclinação ibero-americana. Cada uma das regiões que acabaram se
tornando países, praticamente desde o início da etapa aqui abordada,
fez grandes esforços para construir uma identidade própria que
permitisse consolidar as bases do seu Estado-nação de maneira
original e separada das outras nações ibero-americanas, esquecendo
pelo caminho a longa experiência colonial que havia gerado, em
muitos sentidos, um espaço comum de intercâmbios econômicos,
culturais, políticos e, em alguns casos, até familiares.
O leitor poderá observar, nos volumes que compõem esta cole-
ção, que além de excelentes capítulos dedicados a revelar os princi-
pais fenômenos ocorridos nos âmbitos político, econômico, social e
cultural, também foram incluídos textos dedicados ao estudo da
inserção do país no sistema mundial e, particularmente, no contexto
ibero-americano.
Qual é a utilidade de percorrer os últimos duzentos anos da his-
tória argentina? O esforço dos pesquisadores que se dedicam a esse
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passado, já irremediavelmente transcorrido e imodificável, passado
que eles buscam explicar aqui de maneira sintética, mas respeitando
sua complexidade, vale realmente a pena?
Primeiro tentaremos expor, de maneira simplificada e esquemá-
tica, algumas características que consideramos centrais no percurso
analisado nesta obra.
Em 1808, quando as tropas napoleônicas invadiram a Península
Ibérica, desencadeou-se um fenômeno no mundo ibero-americano
que culminou na formação de múltiplos Estados, entre os quais a
Argentina. Nesse momento, aquilo que havia sido uma parte do
Vice-Reino do Rio da Prata, criado apenas 35 anos antes, dá início a
um caminho cheio de incertezas, mas ao mesmo tempo, repleto de
propostas diversas que buscavam alternativas viáveis para a conso-
lidação de um sistema político e econômico que substituísse, com
sucesso, àquele que havia unido por mais de duzentos anos este
território à Coroa espanhola.
Naqueles tempos o Rio da Prata era apenas um reduto marginal
da “economia mundo” e seus habitantes representavam uma parcela
minúscula do que haviam sido os núcleos da colonização ibérica no
continente americano. Ao redor de 1800, a população corresponden-
te ao território da atual Argentina sob o domínio espanhol, alcança-
va dificilmente a cifra de 300.000 habitantes, enquanto a do Peru era
de 1,1 milhão e a do México de 5,4 milhões de indivíduos, quase
um terço do território latino-americano. A economia rio-platense
raramente aparecia no contexto internacional, apesar de seus exí-
guos habitantes contarem com uma boa condição de vida, especial-
mente no litoral, graças às suas terras férteis e à atividade comercial
dinâmica que a comunidade mercantil havia desenvolvido desde a
segunda fundação do porto de Buenos Aires, em 1580.
Ao mesmo tempo, a organização política do espaço declarado
independente em 1816 estava longe de ser definida. Apesar das
propostas monárquicas terem sido descartadas após árduas discus-
sões e a solução republicana ter-se imposto, abre-se ali um conflito
que marcaria a história rio-platense na primeira parte do século
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XIX, com episódios de guerra e violência, algumas vezes extrema,
entre propostas do tipo centralista ou unitária e outras federais ou
confederais. Contudo, além da discussão com relação ao tipo de
organização política a ser adotada pelo novo território independente,
também era preciso definir os próprios limites desse território. Neste
panorama, mostra-se revelador que o Congresso reunido em Tucu-
mán para proclamar a independência o fizesse em nome das Provín-
cias Unidas da América do Sul. Essa indefinição territorial não
tinha nada de casual, considerando-se que as identidades prevale-
centes não poderiam ser aquelas de países que ainda não existiam,
fato evidenciado em um Congresso com ausência de representação
das várias províncias do litoral, que naquela época faziam parte dos
Povos Livres liderados por Artigas, enquanto estavam presentes, por
exemplo, os representantes de algumas províncias do Alto Peru que
passariam a fazer parte, mais tarde, da República da Bolívia. Aquilo
que hoje pode parecer surpreendente, na realidade não o é se consi-
derarmos a distribuição do território do Vice-reinado do Rio da
Prata, que incluía também o território das atuais Repúblicas da
Bolívia, do Paraguai e do Uruguai. Além disso, uma considerável
parte do território da atual Argentina se encontrava nas mãos de
grupos indígenas que haviam resistido eficazmente à dominação
espanhola, e logo à republicana, e não seria incorporada ao território
nacional até fins do século XIX.
Se avançarmos um século, comprovaremos que as coisas muda-
ram radicalmente em muitos aspectos. Aquilo que havia sido uma
localização marginal ganhou um lugar de bastante destaque no
cenário internacional. Com altas taxas de crescimento vegetativo e
alimentada por fluxos migratórios internacionais massivos, sua
população cresceu até ultrapassar com folga a do Peru e aproximar-
se das maiores populações da Ibero-América. Apesar deste magnífi-
co crescimento demográfico, a renda per capita do seu produto
interno bruto mantinha-se entre as maiores do planeta, superando,
nas primeiras décadas do século, a dos espanhóis e italianos, que
não por acaso migravam em massa para estas terras. Naquele mo-
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mento a elite argentina tornava-se um símbolo de riqueza internaci-
onal. Por volta de 1930 o país produzia cerca de 30% do PIB da
América Latina, possuía mais de um terço do total das ferrovias,
50% dos automóveis que circulavam pelas estradas e sua população
representava aproximadamente 13% do total regional.
Obviamente esta faceta otimista do desenvolvimento argentino
encontrava sua contrapartida na existência de importantes bolsões
de pobreza e marginalidade, especialmente em muitas zonas do
interior do país que não haviam se integrado ao exitoso modelo
agroexportador, situação tratada de forma brilhante por Juan Bialet
Massé, catalão estabelecido na Argentina, em sua obra-prima In-
forme sobre el estado de la clase obrera en el interior de la Repú-
blica, escrita nos primeiros anos do século XX. Também se obser-
vam tensões no coração desse modelo, na região dos pampas e nas
principais cidades, onde aumentava a chamada “questão social” e os
conflitos populares, evidenciando a fragilidade de um processo que
se proclamava exitoso ao calor do primeiro centenário da revolução
de maio. Claro que, em algumas interpretações, estes conflitos
demonstravam o importante grau de maturidade do desenvolvimen-
to capitalista argentino e das consequentes disputas pela distribuição
dos benefícios do crescimento, assim como o fortalecimento da sua
classe operária e da expansão das ideologias e organizações típicas
dos países mais avançados do planeta.
Se observarmos o aspecto político deste processo, as coisas
também mudaram radicalmente com relação ao período evocado
anteriormente. Em primeiro lugar, constituiu-se e consolidou-se um
Estado nacional em um território no qual, durante boa parte do
século XIX, existiram diversos Estados provinciais que funciona-
vam de maneira autônoma e em conflito permanente entre si. No
começo do século XX, o território controlado por este Estado nacio-
nal já abarcava praticamente aquilo que viria a ser o território defi-
nitivo da Argentina, depois da derrota, em uma série de campanhas
militares, da resistência dos grupos indígenas das regiões dos Pam-
pas, da Patagônia e do Chaco incorporando assim definitivamente
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muitos milhões de hectares à soberania nacional e ao processo de
expansão agroexportador. Também no terreno diplomático conse-
guia-se proteger as fronteiras argentinas mediante uma série de
acordos, especialmente com o Chile, com quem compartilha uma
extensa fronteira.
Por outro lado, ao redor de 1880 consolidava-se uma forma de
organização política que estabelecia a supremacia de Buenos Aires
sobre o conjunto nacional (supremacia que nos terrenos da demo-
grafia e da economia havia-se incrementado consideravelmente
desde a ruptura da ordem colonial), e ao mesmo tempo limitava seus
privilégios mediante pactos políticos que permitiam uma forte parti-
cipação de diversas elites do interior, selando assim uma paz políti-
ca que, de certo modo, permite entender a dinâmica cada vez mais
forte do crescimento econômico.
Nos inícios do século XX, por sua vez, o sistema político volta a
variar mediante uma reforma do sistema eleitoral que impunha o
voto obrigatório e secreto dos homens adultos. Começava assim
uma democracia moderna, na qual as práticas políticas se transfor-
mariam, reduzindo fortemente o controle que as oligarquias tradici-
onais exerciam sobre a política.
O cenário modifica-se novamente, e de maneira drástica, se nos
deslocamos até o presente. Em diversos aspectos a Argentina parece
ter regressado aos umbrais do século XXI, ao lugar marginal do
início deste ciclo de duzentos anos: uma população menor, que se
afastou consideravelmente das nações ibero-americanas mais popu-
losas, um peso minúsculo na economia internacional, uma fragilida-
de política considerável e um futuro que se complica e parece não
encontrar saída. Se o país é mencionado atualmente nos debates
internacionais, é por suas frustrações, por sua perene instabilidade
política e econômica, por haver sofrido uma das ditaduras mais
atrozes da atualidade; ou talvez por seus jogadores de futebol, que
continuam abastecendo os times europeus com suas excelentes
qualidades...
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Chega-se a este resultado percorrendo-se um longo e tortuoso
caminho que tem seu divisor de águas possivelmente em 1930. Em
meio ao pior momento da crise internacional, que também afeta o
país, um golpe de Estado derruba o segundo Governo do presidente
radical Hipólito Irigoyen, que havia alcançado esta posição com
uma porcentagem de votos muito alta, superior a do seu primeiro
mandato, iniciado em 1916. Deste modo, inicia-se uma longa etapa
de questionamento da democracia recentemente consolidada, que
duraria quase todo o período intermediário do século XX, até 1983.
Durante esta fase, embora tenham existido diversas alternativas
políticas, inclusive governos que chegaram ao poder através do voto
massivo em sistemas livres e competitivos ― como foi sem dúvida
o caso do Governo de Juan Domingo Perón ― começou a prevale-
cer a ideia de que existiam interesses superiores ou “essenciais” da
nação, que estavam acima das regras, agora consideradas “formais”,
da democracia ou da legalidade constitucional.
Ao mesmo tempo, o contexto internacional favorecia a crescen-
te desconfiança com relação ao modelo econômico agroexportador,
que havia sido muito exitoso até então para a Argentina, mas que
agora parecia garantir sua decadência. De fato, diversos setores da
vida nacional começaram a promover políticas protecionistas, orien-
tadas ao fomento da indústria e com forte ênfase no abastecimento
do cada vez mais complexo e amplo mercado interno. Estas propos-
tas, que tiveram talvez seu momento de máxima expressão sob os
governos peronistas, continuaram na verdade o que já acontecia
antes, mesmo que em diferentes medidas e nuances e estiveram
fortemente condicionadas pela possibilidade de inserção internacio-
nal da economia argentina.
Esta etapa favorece também um processo de crescentes conflitos
sociais e políticos, que nos anos setenta chegam ao paroxismo e
culminam na pior ditadura da Argentina moderna, que infelizmente
tornaria o país famoso por lançar figuras repressivas tão macabras
quanto os “desaparecidos”.
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Também se observa a partir deste momento um processo eco-
nômico com fortes flutuações, com alguns momentos de importante
crescimento e outros de crises profundas que, em resumo, condenam
o país a um relativo estancamento a longo prazo, do qual ainda não
parece ter saído.
Finalmente, este amplo percurso também foi marcado por im-
portantes mudanças nos terrenos social e cultural, que sequer foram
citados nesta breve apresentação, mas que são abordados nos distin-
tos volumes desta coleção. Não poderia ser de outra maneira em um
país que inicia a etapa aqui estudada com uns 300.000 habitantes e
chega a acolher, em princípios do século XXI mais de 40 milhões de
habitantes; um país que nesses princípios quase não contava com
uma elite que soubesse ler e escrever, e que atualmente possui as
taxas de alfabetização, ou de leitura de jornais per capita, compará-
veis às das nações mais avançadas. De qualquer modo, o rumo das
mudanças nestes terrenos parece ter ciclos bastante diferentes da-
queles que afetaram à política e, sobretudo, à economia do país
durante estes duzentos anos.
Portanto, esta obra pretende evidenciar os principais caminhos
que em princípios do século XX transformaram a Argentina de um
ponto marginal no mundo em um país de destaque internacional, e
que em seguida a devolveram novamente às margens; ao mesmo
tempo em que pretende mostrar as profundas mudanças políticas,
sociais e culturais que ocorreram. No entanto, enquanto mostra
esses caminhos, com a certeza da pesquisa histórica, procura ofere-
cer explicações a esses acontecimentos. Conhecer esses caminhos e
entender por que foram percorridos pode nos ajudar a pensar o
presente e o futuro, tanto minimizando o dramatismo de uma situa-
ção que conjunturalmente pode parecer revesti-lo (e mantê-lo na
experiência cotidiana de grande parte dos seus habitantes), como
mostrando que nessa história existiram alternativas disponíveis, em
cada momento, e cuja adoção foi opção de cada geração, para bem,
ou para mal.
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Crise imperial e independência
8 Introdução. Duzentos anos de história da Argentina
Participaram desta história argentina contemporânea um conjun-
to de excelentes — e em geral jovens — historiadores argentinos,
que expressam claramente o processo de profissionalização da
disciplina e da excelência conquistada pela pesquisa histórica, desde
o regresso da democracia ao país. Esperamos, com esta obra, contri-
buir para o processo de divulgação do conhecimento histórico e,
sobretudo, de reflexão, de debate de ideias sobre o passado e o
futuro dos argentinos, integrados solidariamente ao conjunto ibero-
americano e mundial do qual fazem parte.