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Armadilhas da Vida Executiva
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ARMADILHAS
DA VIDA
EXECUTIVA
Armadilhas da vida executiva
Jean Bartoli
Revista Marketing Industrial número 36, ano 13, 2007, p.16-20
Num momento de muitos desafios, dúvidas e questionamentos para quem
exerce uma responsabilidade executiva, existem algumas armadilhas que podem
dificultar a relação do executivo com a organização1. Elas advêm de atitudes, de
pressupostos intelectuais, frutos de chavões repetidos e nunca questionados, e
de algumas circunstâncias sociais. Vamos a algumas delas.
Atitudes
No seu livro, “A cultura do contentamento”, John Kenneth Galbraith
escreveu:
“Há, contudo, algumas lições em um âmbito maior que perduram. Dessas, a
mais completamente invariante é o fato de pessoas e comunidades
favorecidas em suas condições econômicas, sociais e políticas atribuírem
virtude social e a durabilidade política àquilo que elas próprias usufruem.
Essa atitude prevalece mesmo diante de evidências irrefutáveis em contrário.
As crenças dos privilegiados passam a servir então à causa de prolongar o
contentamento, e as idéias econômicas e políticas da época são
similarmente adaptadas. Existe um sôfrego mercado político para tudo aquilo
que agrada e tranqüiliza. Não são poucos os interessados em servir a este a
este mercado e em colher as recompensas resultantes em dinheiro e
aplauso.”
Essa armadilha do contentamento cria um clima de tranqüilidade aparente
que ameaça qualquer possibilidade de pensamento crítico. Nem poucas pessoas
têm interesse em que as más noticias não sejam anunciadas: instala-se uma paz
aparente na organização, semelhante ao calmo absoluto... dos cemitérios! Mais
grave: essa satisfação pode ser muito cruel para todos aqueles que preparam o
banquete e nem têm direito às sobras.
1 Esse artigo retoma idéias desenvolvidas por François Dupuy no seu livro “A fatigue des elites”
editado pelo Seuil.
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A segunda arapuca diz respeito ao impulso incontrolável de se deixar
afetar pelo sofrimento do outro. Passar desse sentimento a atitudes concretas
exige escolhas sempre difíceis. Falar de sofrimento nas organizações é difícil.
Parece que é uma realidade que passa longe das empresas. Por que essa
dificuldade em aceitar usar a palavra sofrimento? Uma explicação pode ser dada
pelo texto de Christophe Dejours no seu livro “A banalização da injustiça social”:
“Perceber o sofrimento alheio provoca uma experiência sensível e uma
emoção a partir das quais se associam pensamentos cujo conteúdo depende
da história particular do sujeito que percebe: culpa, agressividade, prazer etc.
[...] Afetivamente, ele pode então assumir uma postura de indisponibilidade e
de intolerância para com a emoção que nele provoca a percepção do
sofrimento alheio. Assim, a intolerância afetiva para com a própria emoção
relacional acaba levando o sujeito a abstrair-se do sofrimento alheio por uma
atitude de indiferença – logo, de intolerância para com o que provoca seu
sofrimento.”
A percepção da dor alheia desencadeia um processo de reflexão que
provoca escolhas. Se a escolha for não ceder à compaixão, nascem raciocínios e
justificativas da atitude assumida que podem levar à intolerância e à crueldade.
Isso acaba refletindo no ambiente de trabalho. As taxas de agressividade e de
intolerância podem aumentar nas nossas organizações.
Outra atitude que pode prejudicar a vida executiva é o excesso de
sentimento de culpa diante do acréscimo de responsabilidades e de cobranças
cada vez mais individualizadas: você é o responsável para tal tarefa ou
desempenho e o único culpado se os objetivos não forem atingidos. Essa
armadilha se torna mais perigosa quando alimentada pelo individualismo, atitude
de quem não consegue enxergar ou aceitar o fato de viver numa relação
constante de interdependência. Obviamente, o individualismo é um poderoso
aliado para quem quer identificar cada vez mais as responsabilidades com
determinado executivo, achando assim com mais facilidade os culpados pelo
fracassos. Fica mais fácil desviar a discussão de uma questão de decisão
estratégica, onde não se avaliou com cuidado os objetivos fixados e os meios
disponibilizados, contentando-se de condenar o mau desempenho individual.
Assim nasce a procura e a caça ao bode expiatório! O individualismo tira dos
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executivos até a percepção da possibilidade de um enfrentamento solidário de
problemas que, na realidade, são comuns.
Todas essas atitudes influenciam e são, por sua vez influenciadas por
alguma armadilhas intelectuais. O que pode dificultar o exercício de pensar na
vida executiva?
Pensar?
“Precisa adaptar-se às mudanças!” Em nome deste chavão, a reflexão
saiu do “por quê?” ou “para que?” para o “como” mudar? Perdeu-se o espírito
crítico, ferramenta indispensável para um discernimento criterioso em relação ao
que deve realmente ser mudado e aos modismos que devem ser eliminados.
Segundo Paul Ricoeur
“A educação, no sentido forte da palavra, talvez seja somente o justo e difícil
equilíbrio entre o exercício de (...) adaptação e a exigência de reflexão e de
desadaptação; é este equilíbrio tenso que mantém o homem de pé.”
Essa afirmação me parece importante, principalmente porque ela reabilita
uma das capacidades mais importantes para o ser humano: resistir quando
percebe que algo de ruim pode estar a caminho! Um bom discernimento salvou
não poucas sociedades e talvez possa salvar algumas empresas. É claro que
algumas circunstancias podem encorajar a superficialidade na análise: pressão
dos prazos e impossibilidade de saber exatamente o que se espera do executivo.
Isso leva a um processo cada vez mais agudo do que se pode bem chamar de
alienação.
A alienação acontece por perda de sentido, fechamento numa pura rotina
repetitiva e num clima de pressões que não se consegue agüentar. O pior é que
isso permanece quase sempre escondido porque muitos têm medo de expor a
própria fragilidade num ambiente que, hipocritamente, teima transmitir uma
imagem de onisciência e de onipotência.
Tudo isso ocorre no momento em que existe um grande desafio a ser
enfrentado!
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Os outros estão de volta!
Pois é! Foi se o tempo em que a empresa estava prioritariamente voltada
para seus projetos, processos e problemas internos! Hoje, o cliente, mais
escasso e disputado do que nunca, impõe uma pressão permanente sobre as
organizações e seus membros. Passamos da escassez de produtos para a
escassez de clientes.
Paralelamente, os acionistas voltaram a impor sua agenda às
organizações: foi se o tempo em que a administração decidia e comunicava aos
acionistas. Os executivos estão sendo muito mais cobrados e passaram a sentir
na pele o efeito “descartabilidade”, antes reservado aos escalões operacionais
da empresa.
E, finalmente, os colegas, com os quais precisa trabalhar constantemente
em equipe e cooperar, são, também, uma fonte de estresse e de pressão. Essa
afirmação, nem tanto politicamente correta, exige mais explicação.
É sabido e comentado: vivemos numa sociedade cada vez mais
individualista. Não é uma afirmação moralista: uma das razões para isto é o
gigantismo das nossas cidades, nossa mobilidade, a perda de referenciais e de
raízes. Isso levou um sociólogo contemporâneo, Zygmunt Bauman, a cunhar a
expressão “padrão do acampamento” para descrever a atual convivência urbana.
Na empresa, por conta da personalização cada vez maior das responsabilidades,
o executivo acha-se cada vez mais solitário. Isso facilita a absorção de um
discurso bastante propagado pela mídia empresarial: o que faz existir um líder é
seu talento individual, sua capacidade de gerar “valor agregado” e seu carisma
para motivar as pessoas. O individualismo tradicional dos executivos sai
reforçado, o que justifica uma aposta quase total na ação individual e atrapalha a
elaboração de respostas coletivas.
Afinal, por que a cooperação é tão constrangedora e pouco natural?
Porque ela estabelece uma situação de dependência. Ela cria uma nova forma
de relação com os outros, caracterizada pela impossibilidade de agir sozinhos e
pela necessidade de compor, de negociar e de enfrentar; obriga a integrar, na
ação, várias lógicas, normalmente antagonistas. O paradoxo é que o taylorismo,
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tão criticado, fornecia uma proteção contra a dureza das relações com os outros:
ele protegia das interferências horizontais porque tudo acontecia numa relação
vertical chefe/subordinado.
Os executivos estão na vanguarda da coordenação desse processo
criador de uma nova convivência e de uma nova dinâmica que contribui também
a tornar o trabalho cada vez mais precário, inclusive para eles!
Enfim, cuidado com a última armadilha!
O VOLUNTARISMO
No monte Sinai, aconteceu um diálogo entre dois protagonistas: Moisés e
Deus. O resto do povo estava embaixo, esperando. Nem sempre os executivos
escapam da tentação de se identificar com um dos protagonistas do encontro no
Monte Sagrado: é o complexo do Sinai! É a tentação máxima no exercício da
responsabilidade e do poder que lhe é ligado. Existe um grau um pouco mais
leve dessa patologia que se chama Voluntarismo. Voluntarismo significa impor
aos atores do processo empresarial o que eles devem fazer sem nem mesmo se
perguntar, quanto mais perguntar a eles, se eles têm os meios organizacionais
de fazer o que é pedido. É a prática do famoso chavão : “querer é poder”! Infeliz
de quem contesta essa pérola da vigente sabedoria empresarial! Isso acaba
gerando uma dicotomia entre a decisão tomada e sua aplicação. Quando não é
dada a possibilidade a quem aplica de influir na ponderação de uma decisão, os
problemas virão no momento de sua implementação. Na vida cotidiana da
empresa é a aplicação da decisão que é complexa e arriscada porque ela exige
que se aja sobre e com os outros e que se obtenha algo que na maioria das
vezes não vai trazer nenhum benefício para quem vai realizar o serviço.
A LENDA DE NOÉ
Nesse artigo, me propus de alertar sobre algumas armadilhas da vida
executiva. Duas atitudes podem fornecer um valioso auxílio para lidar com elas:
o discernimento e a coragem. Não pretendo discursar sobre elas: prefiro deixar a
palavra a um filósofo do século passado, Gunther Anders, que, consciente dos
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perigos que se avolumavam antes e depois da segunda guerra mundial,
justamente por falta de discernimento e de coragem de muitos daqueles que
exerciam responsabilidades, escreveu a seguinte parábola.
“Noé estava cansado do papel de profeta da infelicidade e de sempre
anunciar uma catástrofe que nunca vinha e que ninguém levava a sério. Um
dia
“vestiu um velho saco e espalhou pó sobre a cabeça. Este gesto só era
permitido a quem pranteava um filho querido ou a esposa. Vestindo a roupa
da verdade, ator da dor, voltou para a cidade, decidido a reverter em seu
benefício a curiosidade, a malignidade e a superstição dos moradores. Em
pouco tempo, juntou a seu redor uma pequena multidão curiosa e as
perguntas começaram a surgir. Perguntaram se alguém tinha morrido e
quem era. Noé respondeu que muitos tinham morrido e que esses mortos
eram eles, o que provocou gargalhadas. Quando lhe perguntaram quando
tinha acontecido esta catástrofe, ele respondeu: amanhã.
Aproveitando então a atenção e a aflição dos ouvintes, Noé ergueu-se e, do
alto de sua grandeza, começou a falar: depois de amanhã, o dilúvio será algo
que já aconteceu. E quando o dilúvio tiver acontecido, tudo que é nunca terá
existido. Quando o dilúvio tiver arrastado tudo o que existe, tudo que tiver
existido, será muito tarde para lembrar, porque não haverá mais ninguém.
Não haverá mais então nenhuma diferença entre os mortos e os que os
choram. Se eu vim aqui diante de vocês, é para inverter o tempo, é para
chorar hoje os mortos de amanhã. Depois de amanhã, será tarde demais.
Dito isso, voltou para casa, trocou de roupa, tirou o pó que lhe cobria o rosto
e foi para sua oficina. No decorrer da tarde, um carpinteiro bateu a sua porta
e lhe disse: deixa-me te ajudar a construir a arca para que tudo aquilo se
torne falso. Mais tarde, um telhador juntou-se aos dois, dizendo: chove nas
montanhas, deixem me ajudá-los para que tudo aquilo se torne falso.”
Deixo para cada leitor o prazer de interpretar esse texto!