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ARNALDO SARAIVA FÉRIAS Já fiz férias por fadiga, por desporto, por pesquisa, por sabor, por amor, por favor. Já em férias andei no país rural, litoral, etc. e tal, e tenho a minha conta internacional: do Algarve à Hungria, do Canadá a Moçambique e da Argentina a Macau. Ah, e também já estive na Arcádia. Isso me permite dizer que se são muitos e desvairados os pretextos e os lugares das férias, esta invenção da história recente é sempre um vício do consumo ou um artifício do capital, também responsável pelas feiras e pela féria, a que as férias logo elimologicamente se ligam. Com tal artifício, funcionários, proletários e outros otários acabam por ser colocados ao nível inocente — mas não improdutivo — das crianças a quem se dão férias escolares. As outras férias, não qualificadas, têm esta qualidade: fazem esquecer que o dever do trabalho («comerás o pão», etc.) implica direitos ao ócio ou ao lazer mais do que num curto mês (e mais do que ao sábado e domingo): em todos os dias com feira. Assim como fazem esquecer as lutas por alguma flexibilidade de horários, e pela redução de horas de trabalho obrigatório, ou de horas obrigatórias de trabalho. Fiz esta descoberta graças a muita gente graúda (embora minoritária) que tenho entrevisto em férias permanentes: PDGs, banqueiros, vedetas, diplomatas, padres, políticos, e respectivas e venturosas consortes. Não acrescento «hippies» e «vagabundos» por razões óbvias: além de viverem em condições contrastantes com as dos citados, eles assumem claramente a sua ociosidade, não o disfarçando em vagos serviços prestados a altas causas, altamente duvidosas. Mas também fiz a descoberta pensando no meu próprio caso. Na verdade, não consigo excluir-me da categoria dos «falsos veraneantes» de que falava Barthes («um escreve as suas memórias, outro corrige provas, um terceiro prepara o seu próximo livro»). Os profs e os escribas andam sempre carregados de livros, e não só na cabeça. Alguns vão até ao ponto de olhar menos para as paisagens do que para as linhas que lhes vão dedicar no poema ou no diário íntimo (íntimo porque será proposto intimamente a todos). O melhor das férias e das viagens é evidentemente a véspera: a excitação com que se concluem tarefas, se olham os mapas, se prevêem programas, se sonham aventuras, se arrumam as malas, se diz aos conhecidos: vou para as Caraíbas, para Las Vegas, para Cannes, para Alguidares de Baixo, para Marraquexe, para lá de Marraquexe. Ao fim e ao cabo, o balanço do prazer das férias acusa sempre um défice de «stress» e de frustração: os atrasos nos horários (sem ponto!), as filas, os acidentes de percurso ou da estrada, os enjoos dos voos, o peso das malas, as torturas alfandegárias, os sustos da contabilidade, os pés inchados, os roubos, os ruídos, as informações erradas, a poluição, os barretes, as prendas, o regresso ao mesmo. Aliás, para onde quer que hoje se vá, salvo talvez a lua ou os universos paralelos, é difícil não levar as pulgas dos (maus) hábitos («Gide lia Bossuet ao descer o Congo»...), não sofrer as contrariedades do cordão umbilical, não ter a sensação do dejá vu. O cinema, a tv, os livros e as revistas já mostraram tudo de todos os lugares, às vezes com vantagem. E a torre de Pisa vê-se melhor de Portugal que, como se sabe, é um país com estranhas inclinações, se não é mesmo um país em queda. Livre.

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  • ARNALDO SARAIVA

    FRIAS

    J fiz frias por fadiga, por desporto, por pesquisa, por sabor, por amor, por favor. J

    em frias andei no pas rural, litoral, etc. e tal, e tenho a minha conta internacional: do

    Algarve Hungria, do Canad a Moambique e da Argentina a Macau. Ah, e tambm j

    estive na Arcdia.

    Isso me permite dizer que se so muitos e desvairados os pretextos e os lugares das

    frias, esta inveno da histria recente sempre um vcio do consumo ou um artifcio do

    capital, tambm responsvel pelas feiras e pela fria, a que as frias logo elimologicamente se

    ligam.

    Com tal artifcio, funcionrios, proletrios e outros otrios acabam por ser colocados

    ao nvel inocente mas no improdutivo das crianas a quem se do frias escolares. As

    outras frias, no qualificadas, tm esta qualidade: fazem esquecer que o dever do trabalho

    (comers o po, etc.) implica direitos ao cio ou ao lazer mais do que num curto ms (e

    mais do que ao sbado e domingo): em todos os dias com feira. Assim como fazem esquecer

    as lutas por alguma flexibilidade de horrios, e pela reduo de horas de trabalho obrigatrio,

    ou de horas obrigatrias de trabalho.

    Fiz esta descoberta graas a muita gente grada (embora minoritria) que tenho

    entrevisto em frias permanentes: PDGs, banqueiros, vedetas, diplomatas, padres, polticos, e

    respectivas e venturosas consortes. No acrescento hippies e vagabundos por razes

    bvias: alm de viverem em condies contrastantes com as dos citados, eles assumem

    claramente a sua ociosidade, no o disfarando em vagos servios prestados a altas causas,

    altamente duvidosas.

    Mas tambm fiz a descoberta pensando no meu prprio caso. Na verdade, no consigo

    excluir-me da categoria dos falsos veraneantes de que falava Barthes (um escreve as suas

    memrias, outro corrige provas, um terceiro prepara o seu prximo livro). Os profs e os

    escribas andam sempre carregados de livros, e no s na cabea. Alguns vo at ao ponto de

    olhar menos para as paisagens do que para as linhas que lhes vo dedicar no poema ou no

    dirio ntimo (ntimo porque ser proposto intimamente a todos).

    O melhor das frias e das viagens evidentemente a vspera: a excitao com que se

    concluem tarefas, se olham os mapas, se prevem programas, se sonham aventuras, se

    arrumam as malas, se diz aos conhecidos: vou para as Carabas, para Las Vegas, para Cannes,

    para Alguidares de Baixo, para Marraquexe, para l de Marraquexe.

    Ao fim e ao cabo, o balano do prazer das frias acusa sempre um dfice de stress e

    de frustrao: os atrasos nos horrios (sem ponto!), as filas, os acidentes de percurso ou da

    estrada, os enjoos dos voos, o peso das malas, as torturas alfandegrias, os sustos da

    contabilidade, os ps inchados, os roubos, os rudos, as informaes erradas, a poluio, os

    barretes, as prendas, o regresso ao mesmo.

    Alis, para onde quer que hoje se v, salvo talvez a lua ou os universos paralelos,

    difcil no levar as pulgas dos (maus) hbitos (Gide lia Bossuet ao descer o Congo...), no

    sofrer as contrariedades do cordo umbilical, no ter a sensao do dej vu.

    O cinema, a tv, os livros e as revistas j mostraram tudo de todos os lugares, s vezes

    com vantagem.

    E a torre de Pisa v-se melhor de Portugal que, como se sabe, um pas com estranhas

    inclinaes, se no mesmo um pas em queda. Livre.