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Arnaut – O Arquipélago Da Insónia- Litanias Do Silêncio

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António Lobo Antunes

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O Arquipélago da Insónia: litanias do silêncio Ana Paula ArnautFaculdade de Letras /Centro de Literatura PortuguesaUniversidade de Coimbra  Se calhar toda a arte devia tender para o silêncio.Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é.António Lobo Antunes  É sobejamente conhecida a tendência dos críticos da Literatura para proceder à divisão, em ciclos de extensão variável, das obras dos autores que investigam e sobre os quais lhes cumpre escrever. A vasta obra de António Lobo Antunes não só não foge a esta regra como é o próprio autor quem se encarrega de o fazer. Em entrevistas dadas entre 1992 e 19961, por exemplo, já propôs um ciclo de aprendizagem2, um ciclo das epopeias, ou melhor, um ciclo das contra-epopeias3, um ciclo de Benfica4 e um ciclo sobre o exercício do poder em Portugal. Este, segundo diz, em 1996, a Francisco José Viegas, respeitaria a um conjunto de quatro romances, incluindo O Manual dos Inquisidores(1996), sobre o qual se centra a entrevista.  

Capa do livro: O Arquipélago da Insónia Ora, considerando que as três publicações seguintes são O Esplendor de Portugal (1997), Exortação aos Crocodilos (1999) e Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000), e tendo em conta o (sempre relativo) desencontro temático deste último romance em relação aos anteriores, cremos que o projecto da tetralogia só extensional e obliquamente se concretizará se deslocarmos para este grupo o romanceBoa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo (2003). Não sendo exclusivamente sobre o exercício do poder em Portugal, a obra retrata, apesar de tudo, diversas vertentes de poderes que giram em torno do tráfico de diamantes em Angola.Significa isto, de acordo com a leitura que fazemos das ficções antunianas, que Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, pelo seu carácter mais intimista, integra, inaugura, um quinto e novo ciclo que propomos designar por ciclo das contra-epopeias líricas5. Neste integramos, ainda, os romances Que Farei Quando Tudo Arde? (2001), Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004), Ontem Não Te Vi Em Babilónia (2006), O Meu Nome É Legião (2007) e, finalmente, O Arquipélago da Insónia (2008). O facto de aceitarmos a hipótese e a pertinência de compartimentar a produção ficcional antuniana não obriga, necessariamente, a que entendamos cada um desses ciclos de forma estanque. Na verdade, apesar de todas as diferenças temáticas e

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formais evidenciadas pelos romances até agora publicados, ressalta a impossibilidade de lermos a obra do autor fora de um continuum. Esta ideia, que faculta a verificação da permanência, mas também da evolução, de determinados tópicos e estratégias narrativas, foi já verbalizada por António Lobo Antunes quando, em 2004, confessa: “Tinha a ilusão de que estava a fazer livros muito diferentes uns dos outros e, no entanto, é como se formasse um único livro dividido em capítulos, e cada capítulo fosse um livro de per si” (Cotrim, in Arnaut, 2008: 475). Não podemos deixar de registar, a propósito, que o último título publicado parece consubstanciar o culminar de um trajecto ou do livro de que fala. As páginas de O Arquipélago da Insónia não ecoam só personagens, temas e motivos dos romances anteriores; nelas, António Lobo Antunes parece ter conseguido o silêncio, o intimismo, (quase) completo, absoluto, que, em diversas ocasiões, disse querer alcançar. Esta sensação não decorre apenas do facto de as personagens parecerem falar para dentro de si mesmas, ou de os substantivos “silêncio” e “fantasmas” percorrerem todo o romance, ou, ainda, de a determinado momento, pela voz do autista, ficarmos a saber que “isto não é um livro, é um sonho” (Antunes, 2008: 193)... e os sonhos não têm sons. Para o silêncio a que nos referimos concorre, ainda, o uso de uma linguagem substancialmente despojada do que muitos leitores classificam como ruído e que o próprio Lobo Antunes designa por “gordura” ou “banha”, referindo-se à excessiva utilização do palavrão, de metáforas, comparações, adjectivos, advérbios de modo, etc6. Ao contrário dos livros anteriores, principalmente daqueles publicados até A Morte de Carlos Gardel (1994), onde proliferam imagens de variável ousadia linguística e semântica7, este romance mostra um autor que, finalmente, parece ter conseguido alcançar o desejo de reduzir o livro ao osso. Isto significa que o romance poderá representar, duplamente, o encerramento do ciclo das contra-epopeias líricas e/ou do “contínuo” de que fala. Além disso, uma outra hipótese se desenha: a de que esta obra poderá inaugurar um novo ciclo (um novo “contínuo”), talvez o do silêncio, ou uma outra maneira de dizer as coisas, as vidas, as pessoas e as emoções. Seja qual for a situação, que o próximo título ajudará, com certeza, a esclarecer, a verdade é que não conseguimos deixar de ler O Arquipélago da Insónia como uma fronteira, ou como um mar onde desaguam, em admirável confluência, muitas das obsessões temáticas e das técnicas utilizadas nos romances anteriores. Deixando de lado outras questões de que falaremos em breve, registamos, por enquanto, exemplarmente, o caso de algumas personagens que parecem construir-se a partir de outras que já conhecemos. Assim sucede com o avô, cujo despotismo ecoa, diversamente, porém, não só Francisco de O Manual dos Inquisidores mas também o tio Rodrigo, o “boi de cobrição”, que, em Auto dos Danados, “dorme com as mulheres todas da família” (Antunes, 2005 [1985]: 85, 83). Assim acontece, no caso do autista, com a sua vontade de compreender os pássaros (Antunes, 2008: 167), a lembrar a obsessão de Rui S. em Explicação dos Pássaros, ou com o seu anseio de saber quem é (Antunes, 2004 [1981]: 102), a trazer à memória o semelhante desejo de Maria Clara

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de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (Antunes, 2008 [2000]: 50, passim). De igual modo, assinale-se ainda o desejo, diversamente expresso por Maria Clara e pelo autista, de afogar os respectivos irmãos no poço (Antunes, 2008 [2000]: 432 e 2008: 24)8. A história é, ainda e sempre, de desagregação e de falência da família; de ruína e morte de uma Casa (Antunes, 2008: 139), “em que apesar de igual tudo lhe falta” (ibid.: 24-25). Melhor, “uma casa a quem tudo falta” (ibid: 21), como também afirma o autista, pela personificação misturando e confundindo o espaço e os seus habitantes e assim sublinhando a miséria, o abandono e o vazio de tudo e de todos – inclusivamente de Cristo e de Deus. Não por acaso, portanto, o primeiro surge “torto na parede” (ibid.: 17) ou em “agonia” (ibid.: 116), enquanto o segundo, esse, como insistentemente se escreve, sempre aparece como alguém que se esqueceu “da gente” (ibid.: 251), se calhar porque não está “em parte alguma” (ibid.: 38) ou, tão-somente, porque “se lhe turvou a cabeça” (ibid.: 251). A história é também de jogos relacionais necessariamente inconclusos; da infância nem sempre feliz, ou quase nunca feliz; de solidões e de almas rotas e vazias; de amores e da impossibilidade de os ter; de afectos sempre suspensos e de desafectos quase sempre violentos. De vida mancas e de mortes ou de fragmentos estilhaçados de nós mesmos, enfim, tratam os 15 capítulos que compõem as três partes de O Arquipélago da Insónia. A narração nas duas primeiras partes cabe, essencialmente, ao autista – alma principal do arquipélago de almas que em cada canto de página nos espreita. Momentos há, no entanto, mais uma vez numa estreita semelhança com o que ocorre em Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, em que ficamos a saber que a escrita, esta escrita (inventada ou verdadeira, não interessa), é partilhada com o seu irmão (ibid.: 100, passim). Mas não deixa de ser interessante, a propósito, que a voz que disso nos dá conta, isto é, a voz que narra esse outro acto de narrar, ou que narra o acto de escrever, é sempre a do autista (também ele sem nome, porque não se sabe o que fazer com eles, nomes, como se confessa a determinado momento, ibid.: 56): [...]o meu pai a soltar o cavalo da argola, a sumir-se a galope e o meu irmão continuando a escrever, uma tarde perguntei-lhe– És tu quem escreve isto não és?e a caneta parada a fitar-me, o meu próprio irmão que debrucei por caridade no poço a fim de que conhecesse quem era e nada nos limos já que não existes na herdade entendes, existes na mesa da sala de jantar(sala de jantar que pretensão)a emendar páginas inteiras, a desesperar-se com o livro– O que significa isto?e não significa seja o que for, falecemos há que tempos [...] (ibid.: 100-101). Pelo meio, num jogo de polifonia característico da ficção antuniana, subsistem, emergindo quase sempre de forma abrupta, as vozes do pai (ibid.: 85), a quem, de

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modo sistemático se chama “idiota”; da mãe (ibid.: 149); do avô (ibid.: 81, 140); ou da avó (ibid.: 101).O universo familiar que aqui se recupera e se rememora é, pois, necessariamente disperso, fragmentado e, por consequência, desordenado. E se assim acontece é porque as estratégias narrativas utilizadas e as ousadias gráficas tão características da prosa antuniana reduplicam agora, ou tentam reduplicar, a falência comunicativa própria do autismo. O testemunho pessoal e directo do autista relativamente à sua incapacidade de comunicar e de verbalizar parece, justamente, corroborar esta assunção. Citamos, entre outros, dois exemplos: […] quero explicar que a América fica debaixo de pedras numa ponta da herdade que o feitor evitava e não consigo, o arame na garganta sou eu que o tenho afinal a dificultar as palavras, repito as dos outros, por exemplo– Já nem se mexe notaste?por exemplo– Que quer ele?não consigo pronunciar as minhas de forma que acabo por ir-me embora zangado comigo, a esbarrar nas sobras de mobília que nos atravancavam não contando as parvoíces que o meu avô trazia constantemente da rua [...] (ibid.: 166). [...] e estrangulam o som num embaraço culpado semelhante ao do meu pai– Perdoaquando a minha mãe(as cegonhas são aves de grande porte embora curiosamente leves)regressava do celeiro a sacudir a saia com pedaços de palha no cabelo e uma cor alegre na pele, Maria Adelaide, tudo aquilo que se tivesses crescido o meu irmão te daria, não eu, o arame na garganta impede-me as frases e depois não sei quê em mim que alarma as pessoas [...] (ibid.: 175)9. Além disso, a desconexão semântica, ou, se preferirmos, a quebra de uma linearidade narrativa tradicional, é também conseguida quer pela típica repetição de palavras quer pela interrupção do registo por longas definições eventualmente ilustrativas da capacidade de memorização dos autistas. Exemplificamos as duas situações: […] embora a emoção nos camponeses seja difícil de entender [...] abrem os olhos, aparecem, fecham os olhos, ausentam-se e se por acaso conseguem arrastar-se– Onde fica o poço menino?com um desses coletes com um desses coletes com um desses coletes que os ciganos lhes vendem e gravata e chapéu, de garganta atravessada por um arame que dificulta as palavras [...] (ibid.: 173). […] (as cegonhas são aves de grande porte embora curiosamente leves podendo por vezes atingir os cento e cinquenta, cento e oitenta centímetros desde o vértice do bico à extremidade da cauda, normalmente de cor branca ou cinzenta clara e patas escarlates, com especial aptidão para escolherem os ventos e capazes de percorrerem por dia distâncias consideráveis da ordem dos trezentos/quatrocentos quilómetros

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não sei o que isto faz em milhas terrestres e muito menos marítimasalimentando-se de pequenos animais como batráquios e lagartos, surgem no nosso País depois do início da primavera, em geral nos meses de junho e julho) [...] (ibid.: 174). Seja como for, e contrariando o que o autor diz em recente entrevista a Anabela Mota Ribeiro (2008: 18)10, a verdade é que se conta uma história em O Arquipélago da Insónia. Ou melhor, contam-se várias histórias: a do autista, do seu nascimento, da sua infância e das suas relações com a família e com os outros; a do pai e da mãe e do irmão; a do avô e da avó; a do feitor e do ajudante de feitor; a da sua paixão por Maria Adelaide e a da extraordinária prima Hortelinda que, como viremos a saber, é a morte. Mas esta história, estas histórias (nunca completas) não são, felizmente, contadas de acordo com as expectativas com que o romance canónico formou alguns gostos de leitura. Para começar, e em primeiro lugar, derroga-se em absoluto o conceito de narratividade, entendido, numa curta definição, como representação de “totalidades orientadas temporalmente” de acordo com procedimentos que permitem observar uma dinâmica de sucessividade temporal, isto é, que oferecem uma linearidade na apresentação do relato levado a cabo pelo narrador (não obstante o eventual recurso a procedimentos que envolvem o recuo ou o avanço no tempo)11. A estratégia de António Lobo Antunes é, de facto, outra. É a de escrever “por detrás”, “às avessas” (in Blanco, 2002: 55), em “largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam” (Antunes, 2007 [2002]: 115). Talvez por isso este romance, como outros, nos dê a ideia de estarmos num eterno presente em que nada acontece... ou em que tudo acontece em interessantíssima mistura e intersecção de planos. Para a ideia de estagnação temporal contribui, de forma decisiva, o recorrente motivo do relógio. Este dá-nos, nas páginas de O Arquipélago da Insónia como em outras páginas, um tempo quase sempre descontrolado, se não parado e, por isso, tantas vezes em estreita conexão com o silêncio: […] o relógio sobressaltou-se um instante e continuou a mover os ponteiros numa ausência de números de modo que o tempo cessara também, meia noite, setenta e seis da manhã, quarenta e oito da tarde, o que importam as horas [...] (Antunes, 2008: 22). […] sobra o trote do cavalo que mesmo de dia não conseguimos ver e o relógio caminhando parado a anunciar que o tempo coalhou, cinco horas eternas e o sol sem mudar de lugar, amanhã pego no braço do meu irmão e partimos destas sobras de casa porque há-de haver seja o que for além do ribeiro e dos cactos [...] (ibid.: 80)12 Em segundo lugar, a desorientação de um leitor menos acostumado a estas inovações decorre, numa estratégia semelhante à utilizada a partir de Maria Clara, de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (ou a partir de Paulo de Que Farei Quando Tudo Arde?), da assumida falta de fiabilidade de uma narrativa que constantemente se impõe como invenção, ao mesmo tempo que assume a veracidade de certas

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referências, num interessante jogo de verbalizações contraditórias. Citamos um exemplo de cada uma das situações: […] as gralhas da Trafaria poisarão na genteconforme poisam nos cardos se continuarmos aqui, não há nenhuma Maria Adelaide no bairro, inventei-a, inventei-vos a vocês e inventei isto tudo porque tenho medo deporque tenho medo [...] (ibid.: 155)13. [...] na Trafaria casas também, quer dizer vivendas de pobre submersas nos chorões e uma mulher a descascar batatas diante da margem, por muito que procurasse não achava o feitor nem o mulo, achava o meu avô a puxar as calças para cima porque a tiróide o emagrecera e com uma camisa do meu pai a sobrar-lhe nas costas, veio da consulta, espreitou a embalagem dos comprimidos e guardou-a na despensa sem a abrir, ainda lá está de certeza com a data do prazo caducada enquanto um motor invisível trabalhava a seguir a uma duna, recordo-me de um par de indianos com um cabaz(não estou a inventar)apanhando o que calhava da lama [...] (ibid.: 117). As histórias contadas implicam e exigem, afinal, uma busca, uma procura de sentidos e de fios condutores a que o leitor pode não estar habituado. Não nos referimos apenas à tentativa de dilucidação do que, no universo de O Arquipélago da Insónia, é verdade ou invenção (como sucede, ainda, com a morte/não morte do irmão no poço; com o responsável pela morte do avô; com a filiação da filha do feitor – é filha deste ou do avô – ou com a sua própria filiação: é filho do pai, do ajudante do feitor, do avô?). Não aludimos só às potencialidades que a narrativa tanto oferece quanto esconde de ligarmos certas personagens a certos nomes (Eulália, a avó?; Filomena, a mãe?, uma amiga de infância do avô?). Reportamo-nos, principalmente, à possibilidade de unirmos os fios destas e de outras histórias; pontas apenas aparentemente soltas que vão sendo lançadas como isco. Atentemos, num outro exemplo ilustrativo, no caso do assassinato do padre. Brevemente descrito na página 35, só posteriormente ficaremos a saber, e, ainda assim, de modo fragmentário, dos motivos que levaram o feitor a matá-lo (ibid.: 37, 50, 53, 55, 57, 78, 8014). Lembremos, também, que a explicação de um pormenor que surge desde o início – a do mulo que manca (ibid.: 20,passim) – só é esclarecida no penúltimo capítulo da parte III (230, 234). Nesta última parte, em que a voz principal deixa de ser a do autista, de cujo internamento sabemos desde o primeiro capítulo da parte II, são chamados à boca de cena os relatos de Maria Adelaide, do ajudante do feitor, da prima Hortelinda, do pai do autista e, finalmente, do irmão deste. As vozes, sempre dispersas e fragmentárias, e sempre sujeitas às mais variadas intersecções e contaminações polifónicas, dão continuidade ao registo extremamente intimista e íntimo do autista e cumprem algumas importantes funções: corroborar (na medida do possível) informações já veiculadas e

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preencher alguns dos vazios, alguns dos pontos de indeterminação que as duas primeiras partes deixam em aberto. Relembrando que as vozes de que agora falamos continuam a revisitar e a denunciar os bastidores do processo da escrita15, é assim que ficamos, por exemplo, a conhecer melhor a teia das relações entre Maria Adelaide, o autista e o irmão deste; readaptamos a leitura que o final da parte II havia sugerido (a morte do protagonista, indiciada não apenas pelo que diz mas pelo silenciamento abrupto da sua voz); e, essencialmente, repensamos e redimensionamos, ainda que no domínio de uma ambiência sempre sombria, a fundura das almas vazias e dos afectos das personagens.É verdade que nas duas primeiras partes ressalta uma nítida impressão de abandono existencial, de solidão e de incapacidade de expor e de desenvolver laços afectivos. Em termos abrangentes, esta impressão está patente na constante insistência da ideia de uma casa morta, habitada por restos de almas não menos vazias e partidas16. Mas ela encontra-se também presente no medo que se sente de um beijo (Antunes, 2008: 16); na relutância em utilizar o diminutivo “mãezinha” (ibid.: 130)17, talvez por sentir a ausência de afecto por ele (ibid.: 149); na reiterada vontade de matar tudo e todos18; na violência de certas cenas, como essa em que o autista joga “pedras aos pássaros para que morressem também conforme [ele] ia morrer” (ibid.: 139); ou, entre tantos exemplos possíveis, no não menos violento episódio em que descreve o corte das asas de um corvo: cheguei a ter um corvo a quem cortei as asas passeando-se no chão da cozinha a morder as empregadas numa raiva tenaz, acabei por o soltar no alpendre ou alguém que não eu(não fui eu)soltou-o no alpendre e um dos cachorros veio de manso e levou-o a torcer-se primeiro e inerte depois, exactamente o que me acontecerá uma destas manhãs quando o mundo à minha volta ainda não nítido, turvo (...) (ibid.: 102). Digno de registo, ainda, pelo efeito de violência e de alheamento, que tanto pressupõe quanto provoca, é a rememoração – pela voz do ajudante do feitor – dos encontros com a mãe do autista: […] eu junto do depósito da água sem me ralar com o trigo ou a horta ou os cachorros que me pediam comida enrolando-se-me nas calças a aguardarem que o patrão voltasse num mulo novo apontando com a vergasta o que era necessário fazer e eu a espiar a janela do andar de cima desejando que a esposa do filho baixasse ao meu encontro, nunca disse nada, nunca perguntou nada, nunca deu mostras de conhecer-me ou de gostar de mim, limitava-se a atravessar o pátio, entrar no celeiro e estender-se na palha como se fosse meu dever de criado do sogro ir ao seu encontro e servi-la de forma que largava a navalha e o pedaço de cana, ia ao seu encontro e servia-a não como servia as outras servindo-me delas, sem me servir de mim mesmo, consciente de não ser comigo que ela estava, permanecia sozinha, de olhos escancarados, impacientando-se que eu acabasse, porque ela não acabava o que nunca teve, para se

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afastar de mim como se não me tivesse encontrado, ignorava o meu nome, a minha idade e o que eu podia sentir dado que na sua ideia não sentia nada, uma única ocasião, a sacudir restos de palha ou seja a sacudir-me a mim porque eu restos de palha, não gente [...] (ibid.: 205). Apesar de tudo, numa impressão que das duas primeiras partes migra para a parte final de O Arquipélago da Insónia, não é menos verdade que estas almas não estão completamente ocas e desprovidas de alguma capacidade relacional. Ou, pelo menos, que delas não está totalmente ausente o desejo de afectos, mesmo que, estranhamente (se calhar, não tão estranhamente quanto isso), o maior exemplo de afectividade latente, mas ansiada, no caso concreto do autista, tenha por destinatário a prima Hortelinda, isto é, a morte. Assim o ouvimos dizer “também gosto de você prima Hortelinda” (ibid.: 147) e assim lemos uma carinhosa descrição-rememoração da chegada desta personagem à herdade: […] não morava na vila o ano todo, chegava na Páscoa com o chapelinho de véu, o condutor da camioneta da carreira ajudava-a a descer os dois degraus de ferro, o chapelinho torto e a prima Hortelinda com meia cara de fora a penar com a bengala, a vila nessa época, ao que me contam, acácias choupos salgueiros e alguns vivos ainda que se percebia pelos postigos fechados [...] (ibid.: 145). De modo diverso, pois, do que sucede em outros romances, a morte não é sempre vista de modo disfórico. Não falamos só da morte tornada pessoa-prima Hortelinda. Numa nota de ressonâncias anterianas (cuja influência o autor não nega19), a própria ideia de morte, mesmo a que presentifica violências várias, parece ser aqui aceite de forma mais natural e pacífica. Assim acontece com a morte do avô ou pai do avô (ibid.: 42 e 49, respectivamente, passim); assim sucede com uma das descrições da morte dos coelhos feita pela voz do pai do autista: […] os coelhos que a minha mãe matava com uma pancada na nuca e depois de matá-los acariciava-os no colo, era isso que o fazia dormir sem ela, de caçadeira ao lado, e o enervava senhor, tantas dúvidas eu, tantas indecisões, obrigando o cavalo a correr mais depressa [...] (ibid.: 231, sublinhado nosso). Voltemos, porém, aos afectos e a outros momentos em que sobressai a vontade de os ter, como acontece no breve relato em que o ajudante do feitor nos deixa saber da visita que fez ao autista, ao filho (?), quando este se encontrava internado (ibid.: 209-210). Relato, aliás, que, à semelhança de outros, permite completar alguns vazios narrativos20: […] visitei-o no hospital onde o irmão o guardou como quem guarda o que não serve ou jamais serviu na cave, o filho do filho do patrão não filho do filho do patrão que visitei no hospital muitos anos depois, um edifício rodeado de grades e plátanos no pátio em torno de uma fonte que ninguém usava, eu com um saquito de ameixas porque se calhar o não alimentavam e o deixavam sozinho sem tomar conta dele conforme nem a

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mãe nem o filho do patrão tomavam, a mãe trancada no sótão a dobrar lençóis nas arcas e o filho a chamá-la das escadas– Não me deixas subir?eu a escutá-lo cá fora aparando a cana com mais força ou a completar carritos a que ninguém ligava excepto para os desfazer a golpes de martelo, eu vigiando-o de longe preocupado com a guarita das ferramentas onde podia aleijar-se e os desníveis das leiras onde podia cair, eu à entrada do hospital com o meu fato novo comprado há seis anos e o meu saquito na mão, o porteiro do hospital– Ainda há roupa dessa?quando um fato normal, um pouco largo talvez mas elegante, verde, de lapelas doiradas e uma faixa nas calças e no entanto não era a largura do fato que espantava o porteiro mas qualquer coisa que eu não adivinhava o que fosse quando ele– Você trabalha num circo? (ibib.: 209). É também a partir de alguns fragmentos veiculados pela voz desta personagem, ou de Maria Adelaide, ou do próprio irmão do autista, que conhecemos pormenores reveladores de estreitas e afectuosas relações fraternas. Atentemos no seguinte excerto, em que também se ilustra a dilaceração interior das personagens: […] eu de súbito sozinha de tal modo que tudo, naperonsbibelotscabidesloiças gritava o meu nome– Maria Adelaideapetecia-me uma touca branca, uma gola, uma medalhinha e deixar de ser, quantas vezes pedi ao meu marido que levasse o irmão de volta ao hospital e eu pudesse esquecer que faleci e achar que estou viva, não me habituo a Lisboa, estas avenidas que me assustam e esta gente que me ignora, quantas vezes perguntei ao meu marido– porque tenho de morar com o teu irmão?e o meu marido um gesto que se dissolvia no garfo, uma única altura não gesto, uma vozinha infantil– porque não tenho mais ninguémmais ninguém que me recorde o que fui e me mostre quem sou e não sei quê nos olhos que me fez apetecer, que difícil dizer isto, embalá-lo e então dei conta que vivia à minha beira, não comigo, ou com o irmão em vez de mim embora não se ocupasse dele salvo aos domingos ao levá-lo no barco da carreira à Trafaria que representava para ambos o limite do mundo [...] (ibid.: 191). Em todo o caso, portanto, como se depreende, as impressões emocionais e afectivas que colhemos não são suficientes, por enquanto, para impedir o efeito, se não a certeza, de estarmos ainda perante um texto de “índole nocturna”, como o classificou já Maria Alzira Seixo (2008: 18). A sensação com que ficamos é a de podermos continuar a perguntar e a responder com Luís Almeida Martins (1988: 7): Queriam-no alegre brejeiro, cheio de certezas luminosas e de glórias apolíneas? Queriam-no escandido, alexandrino, rigoroso como um Virgílio austero e vagamente ulcerado? Queriam-no a cantar um passado repleto de glórias, um presente

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linearmente cubista e um futuro cheio de amanhãs que cantam? Queriam? Pois não o têm [...].  Referências bibliográficas: ALVES, Clara Ferreira, “Lobo Antunes e os sete pecados mortais”. In Expresso/Revista, 23 de Novembro, 1985, p. 58.ANTUNES, António Lobo, O Arquipélago da Insónia. Lisboa: Dom Quixote, 2008.ANTUNES, António Lobo, Segundo Livro de Crónicas. 2ª ed./1ª ed. ne varietur. Lisboa: Dom Quixote, 2007 [2002].BLANCO, María Luisa, Conversas com António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002.COELHO, Tereza, “Memória de um escritor romântico”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 203-208.COTRIM, João Paulo, “«Ainda não é isto que eu quero»”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 473-484.GASTÃO, Ana Marques, “Caçador de infâncias”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 485-495.GOMES, Adelino, “Um quarto de século depois de Os Cus de Judas. ‘Acho que já podia morrer’”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 433-450.MARTINS, Luís Almeida, “António Lobo Antunes: «Quis escrever um romance policial»”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 157-176.MARTINS, Luís Almeida, “Uma bela e alegre declaração de amor a um país”. In Jornal de Letras, Artes & Ideias, 12 de Abril, 1988, p. 7.REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina, M., Dicionário de Narratologia. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1996.RIBEIRO, Anabela Mota, “Lobo Antunes: ‘Como posso eu, cristal morrer?’”. In Público/Pública, 12 de Outubro, 2008, p. 12-24.SEIXO, Maria Alzira, “António Lobo Antunes: ‘Isto não é um livro, é um sonho’”. In Jornal de Letras, Artes & Ideias, 8 de Outubro, 2008, p. 18-19.SILVA, Rodrigues da “A confissão exuberante”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 209-226.TELES, António Tavares, “«Acabou todo o romantismo que havia à volta do futebol»”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 259-273.VIEGAS, Francisco, José, “«Nunca li um livro meu»”. In ARNAUT, Ana Paula, Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 281-304. 

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1 Entre outras: “António Lobo Antunes: «Quis escrever um romance policial»”, (entrevista de Luís Almeida Martins), “A confissão exuberante” (entrevista de Rodrigues da Silva) e “«Nunca li um livro meu»” (entrevista de Francisco José Viegas), in Arnaut, 2008: 157-176; 209-226 e 281-304, respectivamente.2 Memória de Elefante (1979), Os Cus de Judas (1979), Conhecimento do Inferno (1980).3 Explicação dos Pássaros (1981), Fado Alexandrino (1983), Auto dos Danados (1985), As Naus (1988).4 Tratado das Paixões da Alma (1990), A Ordem Natural das Coisas (1992), A Morte de Carlos Gardel (1994).5 A expressão é de António Lobo Antunes (in Blanco, 2002: 118): “Não sei se estou certo ou não, mas creio que o que escrevo são «epopeias líricas»”. Neste sentido, o intimismo a que fazemos referência permite-nos a classificação abrangente deste conjunto de romances, na medida em que se torna preponderante, sobrepondo-se a outras características.6 Ver, a propósito, “Memória de um escritor romântico”; “A confissão exuberante”; “Um quarto de século depois de Os Cus de Judas. ‘Acho que já podia morrer’” e “Caçador de infâncias” (entrevistas de Tereza Coelho, Rodrigues da Silva, Adelino Gomes e Ana Marques Gastão, in Arnaut, op. cit.: 207, 215, 436 e 491, respectivamente). Em artigo de 1985, Clara Ferreira Alves aponta “os sete pecados mortais” de Auto dos Danados, distribuindo-os pela “acumulação de comparações a torto e a direito”, pela “imperfeita interligação da acção e digressão”, pelas “imagens”, consideradas de “mau-gosto”, ou pela banalidade da “referência cinematográfica”. Pelo meio ficam severas menções à “técnica de narração” e ao “Excesso a todos os níveis”.7 Vejam-se os seguintes exemplos de Os Cus de Judas: “As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de Padre Nossos Nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pêlos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas”; “A cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro, empurrado para aquele espanto de pólvora numa imensa surpresa: são os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia (…), quem me decifra o absurdo disto (..). (Antunes, 2004 [1979]: 21; 43-44, respectivamente).8 Numa alusão a Ontem Não Te Vi Em Babilónia, em cujas páginas sabemos que a filha de Ana Emília se enforca na macieira com a corda do estendal, O Arquipélago da Insónia (225-226) relata o seguinte: “suma-se da frente senhor, deixe-me em paz com a roupa da minha mãe pendurada no armário que principia a cheirar de forma que não dei por si a tirar a corda do estendal, uma tecla na garganta / – Filha / sem que o / –

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Filha / lhe valesse (...)”; “o outro homem a dez passos com um saco / (deu-me ideia que um saco) / no cabo da enxada e uma foice à cintura, porque não te enforcas igualmente com a corda do estendal e me obrigas a isto, porque me tiraste o cheiro dos castanheiros e mataste os meus pais (...)”. Sublinhamos que este(s) episódio(s) se reveste(m) de contornos indecidíveis no que se refere aos motivos que levaram à morte do pai e ao seu desejo [de Hortelinda] desse “outro homem” se matar. Ainda que em notação menos clara, talvez possamos ler ecos da chuva-“toalha de pólen cor de prata sob o céu azul” do final de Tratado das Paixões da Alma, ou do “pólen da acácia” que, no início de A Morte de Carlos Gardel chove nas pálpebras do avô de Álvaro, e a “chuvinha de outubro, gotas que não caíam, trocavam de posição sob um céu de barrela” de O Arquipélago da Insónia (14). Registe-se, ainda, a recorrência dos motivos do relógio e dos retratos/fotografias.9 Veja-se, ainda, o exemplo da página 113: “e eu redondo sobre mim mesmo incapaz de falar, não posso nada contra eles”. Em outros momentos, numa espécie de transferência dessa incapacidade de comunicar, o arame que estrangula as palavras é visto a atravessar a garganta de outras personagens: “e no dia seguinte o maquinista de jaqueta nova com um desses coletes que os ciganos vendem abotoado ao acaso / – Onde fica o poço menino? / de garganta atravessada por uma espécie de arame que dificultava as palavras (...)” (ibid.: 164; cf., ainda, ibid.: 173). Em todo o caso, a própria desorganização narrativa permite apontar a hipótese de que a referência visa ele próprio e não os outros.10 “o livro não tem personagens, não conta histórias”.11 Cf. Reis e Lopes, 1996 (“narratividade”).12 Segundo o autor (in Blanco, op. cit.: 96), é no espaço de África que radica a aprendizagem da noção de tempo que utiliza nos seus romances, um tempo dilatado, indefinido, sem fronteiras nítidas, exactas: “ – Para mim, para os meus romances, foi importantíssima a noção do tempo que aprendi ali. Em África não existe passado nem futuro, só o imenso presente que engloba tudo. Morria alguém e esperavam que toda a família chegasse ao funeral, alguns viviam a 200 quilómetros, que, naturalmente, percorriam a pé, e deixavam o morto sentado, à espera… Às vezes, era preciso esperar uma semana e tudo isso com uma enorme paciência”.13 Num outro exemplo: “proíbo-os de me tirarem o que me pertence, o que fabriquei palmo a palmo para me defender de vocês, esta extensão de milho, esta cevada, estas cabras, o que poderia dizer-vos acerca do vento que dobrava o celeiro e o depósito da água e baralhava as árvores / – Qual herdade? / uma pergunta tão injusta a mim que a construí sozinho às escondidas de todos quando tinha a certeza que dormiam e se calhar a espiarem-me, um trabalhão com a serra, a lagoa, o pomar, galinhas feitas a lápis uma a uma, cada pena, cada bico, cada cor eu que apenas concebia o cinzento e o branco e as inventei a custo, as enxotei para a capoeira batendo as palmas e prendi o ganchinho da cancela no prego (...) (ibid.: 99) (vejam-se, ainda, as páginas 15, 23, 167, entre outras).14 Na página 37 é dada uma justificação da morte do padre. Ela passa praticamente despercebida, contudo, dados os vagos contornos com que é enunciada: “na maleta do padre os instrumentos da missa e uma carta de mulher com flores dentro / (que mulher?) / os sapatos principiaram a gastar-se na terra, não tardaria nada uma moldura entre as restantes molduras a denunciar o feitor (...) o meu irmão e eu sozinhos na

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casa que se alterou permanecendo igual, um pedido às sombras da vila / – Não me matem / se calhar um camponês que se perdeu no caminho, na carta da bagagem do padre um perfume parecido com o dos baús e no entanto nunca dei pela minha mãe na igreja deserta / (o meu avô para o feitor / – O padre fala contra nós não pode ser) (...)”. Na página 53, ficaremos a saber que a mãe do avô “se mudou para a residência do padre (...)”.15 Cf. ibid.: 182 (Maria Adelaide), 230, 235, 237 (pai), 250, 251, 252, 254, 260, 262 (irmão).16 Maria Alzira Seixo (2008: 18) chamou já a atenção para o facto de o título do romance apontar para essa ideia de isolamento: “O título indicia (...) a solidão das personagens, vistas como arquipélago de ilhas desligadas cuja hipótese de elos vagos se perde nessa rememoração repetitiva e desgastante que lhes dá a sensação do tempo imutável (...)”.17 Na mesma linha de abandono e desprendimento encontramos o irmão do autista a interrogar-se “para que serve uma mãe” (ibid.: 253).18 Veja-se, exemplarmente, o recorrente motivo da morte dos coelhos ou a referência à morte do “porquinho da Índia” (ibid.: 153), entre outras mortes.19 Cf. Teles, in Arnaut, op. cit.: 270.20 Ver a página 125 (parte II, capítulo 2.) para o mesmo episódio facultado pela voz do autista.