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DANILO ARNAUT SARAIVA
A INTELIGÊNCIA DO MUNDO: SOBRE A COGNIÇÃO DE PROCESSOS GLOBAIS EM OCTAVIO IANNI E ULRICH BECK
CAMPINAS 2014
ii
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DANILO ARNAUT SARAIVA
A INTELIGÊNCIA DO MUNDO: SOBRE A COGNIÇÃO DE PROCESSOS GLOBAIS EM OCTAVIO IANNI E ULRICH BECK
Orientador: Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz
Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.
Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno Danilo Arnaut Saraiva sob a orientação do Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz.
CAMPINAS 2014
iv
v
vi
vii
RESUMO
Esta dissertação materializa um conjunto de reflexões a respeito dos trabalhos de
Octavio Ianni e Ulrich Beck sobre os processos de globalização. Trata-se de uma
sociologia dessas sociologias que objetiva investigar a própria cognoscibilidade
desses processos através dos elementos que orientam a criação sociológica
desses autores.
PALAVRAS-CHAVE : Globalização; Sociologia; Ulrich Beck; Octavio Ianni;
Relações Internacionais
viii
ix
ABSTRACT
The Awareness of the World: On the cognizance of gl obal processes within
the thoughts of Octavio Ianni and Ulrich Beck
This dissertation is based on a set of analyses of the works of Octavio Ianni, and
Ulrich Beck on the processes of globalization. It constitutes a sociology of these
sociologies, which aims to investigate the very cognoscibility of these processes
through the elements that have driven the author’s sociological creation.
KEYWORDS: Globalisation; Sociology; Ulrich Beck, Octavio Ianni, International
Relations
x
xi
SUMÁRIO PARTE PRIMEIRA 1. Sobre os Estudos Globais: Observações preliminar es [p. 3]
I. A Gestação: precursores de um debate [p. 5] II. A Emergência [p. 10] III. O Estabelecimento [p. 12]
2. Sociologia da Sociologia: notas sobre um percurs o [p. 19]
I. A cognição de processos globais como objeto [p. 21] II. Sobre a construção da pesquisa [p. 24] III. Textos e contextos: a abordagem do corpus [p. 26] IV. Para a cognição de pensamentos: a leitura como atitude [p. 31] V. Sobre a escrita deste trabalho [p. 32]
3. O Emblema do Globo: Octavio Ianni e a Taquigrafi a do Mundo [p. 35]
I. O Globalismo: novo palco da história [p. 37] II. A tentação metodológica [p. 42] III. A Sociedade Global: sociologia da Humanidade [p. 47]
4. Filhos do Mundo: Individualização, Cosmopolitiz ação e Modernidade em Ulrich Beck [p. 53]
I. Individualização: metodologia da (auto)biografia [p. 56] II. Cosmopolitização, cosmopolitismo:
interlúdio da globalização [p. 64] III. Modernização da Modernidade: raízes da globalidade,
caminhos da globalização [p. 69] PARTE SEGUNDA 5. O lugar do Pensamento na Globalização [p. 75] I. Enigmas do Globalismo, respostas à Globalidade [p. 79]
1. A expressão máxima do Capitalismo [p. 79]
xii
2. Economia política: globalismos do globalismo [p. 81] 3. O Estado-nação como um problema
sociológico renovado [p. 88] II. A inteligência da Política: um recorte possível [p. 89] III. Violência, Terror e Vulnerabilidade [p. 93]
1. Quando a barbárie se institucionaliza: o Estado como agente do terror [p. 94]
2. Inimigos do Estado, Inimigos do Mundo: riscos perceptíveis e individualização da guerra [p. 99] IV. Desigualdades, (in)segurança e seguridade [p. 102]
1. Trabalho e produção da humanidade [p. 104] 2. Desigualdade e estratificação [p. 106]
V. A Política (re)descoberta [p. 109]
1. As ilusões da Política mundial [p. 109] 2. A Política cosmopolita e reflexiva [p. 114] 3. Globalização e processo civilizatório [p. 117] 4. Politização, Despolitização e Repolitização:
Modernidade e Reencantamento do Mundo [p. 120] 6. Heranças e Horizontes: perspectivas de um debate [p. 125]
(In)conclusão [p. 126] I. O problema da abrangência [p. 128]
1. Teoria sociológica ou diagnóstico social?: Um raciocínio de entremeio [p. 131]
II. A cortina das ilusões: globalização e senso (in)comum [p. 134] 1. O real e o efetivo [p. 136] 2. A univocidade do novo [p. 139] 3. A reinvenção da Sociedade [p. 139]
III. Signos, significados e significantes [p. 145] Referências [p. 149]
xiii
A Vânia, por me mostrar que o Amor é filho do Perdão; a Luiza, que me ensinou que o Amor é irmão do Carinho;
a Almerinda, por me contar que o Amor, quando ainda moço, caiu de amores pela Paciência
e nunca mais conseguiu viver sem ela; a Sônia, que me segredou que o Amor tem três sobrenomes:
Força, Confiança e Admiração; a Tânia, por me mostrar que o Amor,
sendo pai da Coragem, é uma decisão.
xiv
xv
Agradecimentos
Além daquelas às quais dedico este trabalho, gostaria de expressar meus
agradecimentos à professora Leila da Costa Ferreira e ao professor Josué Pereira
da Silva, pelos atenciosos comentários às minhas pesquisas, e em especial à
primeira versão deste texto. Também gostaria de mencionar aqui (em ordem
alfabética) os professores Álvaro de Vita, Fernando Lourenço, Frédéric
Vandenberghe, Gilda F. Portugal Gouvêa, Helmuth Berking, Omar Thomaz, Pedro
Peixoto Ferreira, Sérgio Cardoso e Silvio César Camargo, cujas sugestões e
estímulos tanto contribuíram para o avanço dos meus trabalhos.
Quero recordar, com gratidão, também as professoras Britta Friedmann,
Elisabeth Rosenberger, Maria Coracini, Martha Gibson, Norma Wucherpfenig,
Sandra Ballweg, Salete Aquino, Viviane Veras e Yara Frateschi, que me ensinaram
sobre escrita e comunicação. E o professor Milton Almeida (in memorian), pela
lição de coerência e ousadia críticas.
Nessa linha, gostaria de dirigir um agradecimento especial ao meu
professor e orientador Renato Ortiz, pelo constante encorajamento e pela palavra
arguta que me ampararam de modo frutífero durante as minhas pesquisas,
estimulando sempre a independência e a perspicácia intelectuais, imprescindíveis
ao nosso ofício.
Também quero agradecer aos professores Octavio Ianni (in memorian) e
Ulrich Beck. Embora só tenha podido conhecer pessoalmente este último, foram
eles que me conduziram, cotidianamente, pelos caminhos e tropeços, horizontes e
trilhas que compõem a aventura que é pensar o social.
Agradeço aos meus colegas e amigos Anna Mayr, Augusto Costa, Camila
De Mario, Camila Ribeiro, Catarina Casimiro Trindade, Flávia Paniz, Gustavo
Cardoso, João Gomes, Julia Abdalla, Julia Uzun, Juliana Closel Miraldi, Juliana
Pinheiro Prado, Lucas Page Pereira, Meghie Rodrigues, Roberta Caroline, Samira
xvi
Feldman Marzochi, Tatiana Barbarini, Tobias Schmidt e Vítor Queiroz, pelo apoio,
pela torcida, assim como pelas sugestões e auxílios durante a realização deste
trabalho. Gostaria de lembrar também a atenciosa assistência dos funcionários
dos setores administrativos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (e, mais
amplamente, da Universidade Estadual de Campinas), da Biblioteca Octavio Ianni,
da Biblioteca Florestan Fernandes, da Universitäts- und Landesbibliothek der
TUDarmstadt, da Universitätsbibliothek Duisburg-Essen, e da Biblioteca Jurídica
do Largo de São Francisco.
Finalmente, last but not least, gostaria de agradecer ao Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujo apoio foi fundamental
para a realização das pesquisas que deram origem a essa dissertação, bem como
ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), por ter viabilizado minha
estada na Universidade Duisburg-Essen, antes do início do Mestrado, e à
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por
cobrir parte das despesas com participação em eventos acadêmicos fora do
estado de São Paulo.
xvii
Books are not the world: they are about it.
Arjun Appadurai*
*Appadurai (1996: xi).
xviii
1
PARTE PRIMEIRA
2
3
Capítulo I
Sobre os Estudos Globais
Observações preliminares
4
A espécie humana pode não sobreviver por tempo suficiente para que nós a estudemos como uma entidade complexa, mas essa dificilmente seria uma desculpa para abandonar
um dos mais antigos temas da nossa vocação. Wilbert E. Moore1
Uma reflexão a respeito da globalização faz pouco sentido se desvinculada
dos diversos modos pelos quais o tema tem sido problematizado nas ciências
sociais em nível mundial. Cabe notar, porém, que o debate sobre a globalização é
assimétrico e pouco linear. Não dá voz a “todos” no mundo, mas, ao contrário,
envolve disputas por poder e hegemonia. Assume formas e cores diferentes nos
seus diversos epicentros, variando conforme as temporalidades e espacialidades
em que se situam, e assumindo, até mesmo uma aparência isolada em alguns
momentos e contextos. No entanto, assim como ocorre com os processos de
globalização, o debate sobre eles também apresenta certas linhas de força2 que o
atravessam; é como se houvesse um elo que, embora não una ideias e
pensamentos, nem fenômenos e processos, faz com que se apresentem
conectados. Por isso, é possível crer que a inteligência dos processos globais
deva passar pela compreensão das relações hegemônicas entre esses epicentros,
seus contornos e desenvolvimentos, numa situação de globalização.
Neste capítulo, ofereço ao leitor uma concisa apresentação de alguns dos
contornos desse debate sobre a globalização no âmbito das ciências sociais. A
intenção é evidenciar algumas de suas principais direções a fim de alicerçar o
avanço posterior sobre as contribuições de Octavio Ianni e Ulrich Beck, que são o
recorte da reflexão que se desenvolverá mais adiante no corpo da presente
1Moore (1966: 482). Segue o original: “Mankind may not survive long enough for us to study it as a complex entity, but that is scarcely an excuse for abandoning one of the oldest themes of our calling”.
2Retirei a expressão “linhas de força” dos escritos de Renato Ortiz sobre o tema (cf. ORTIZ, 2006, 2009).
5
dissertação. Nesse sentido, elaborei estas notas introdutórias da seguinte
maneira. Primeiro, trato de alguns autores que podem ser considerados como
precursores do debate. Creio que seja relevante levá-los em consideração uma
vez que muitas de suas inquietações têm sido ainda problematizadas nos estudos
mais recentes (I). Depois disso, trato da efetiva emergência, em meados dos anos
1990, do tema da globalização enquanto uma problemática reconhecidamente
central nas ciências sociais. Nesta altura, optei por apresentar, particularmente, a
confluência com o debate sobre a oposição modernidade e pós-modernidade, bem
como a situação de emergência de um debate de proporções mundiais no
contexto regional da América Latina (II). Com base nisso, convido o leitor a
formular uma leitura de caráter abrangente a respeito das estratégias, caminhos e
trilhas que vêm engendrando os diversos pensamentos sobre a globalização, o
que conduzirá a uma análise mais específica sobre dois desses pensamentos que
serão apresentados e discutidos nos capítulos posteriores (III).
I. A gestação: precursores de um debate
A problemática da globalização emerge nas Ciências Sociais há
aproximadamente duas décadas e meia. Surge no final dos anos 1980, mas pode-
se dizer que o debate se adensa somente a partir da década de 1990. Há, no
entanto, precursores. Os textos do americano Immanuel Wallerstein já versavam,
desde a década de 1970, sobre um sistema-mundo (world-system),
conceptualizado no âmbito de uma primazia do econômico, de uma divisão do
trabalho singular e de múltiplos sistemas culturais. Wallerstein afirmava que o
capitalismo deveria ser locado somente na forma de um sistema-mundo que
corresponderia àquilo que se denominava economia-mundo (world-economy).
Chegava mesmo a datar os processos – e, note-se, com base na história
econômica europeia. Estaríamos, para ele, diante de algo que existia, como um
6
sistema europeu, desde aproximadamente 1450, e enquanto sistema global
(global system), desde aproximadamente 1815 (WALLERSTEIN, 1979)3. Para o
autor, “a economia mundial capitalista foi construída sobre uma divisão mundial do
trabalho na qual várias zonas dessa economia […] assumiram diferentes papéis,
desenvolveram diferentes estruturas de classe, usando, consequentemente,
diferentes modos de controle do trabalho e se beneficiando de modo desigual”
(WALLERSTEIN, 1974: 162). Também observava que essa perspectiva analítica
implicaria uma tensão: a de que enquanto se poderia pensar a economia do ponto
de vista de sistemas que se sucederiam em nível mundial, a ação política
ocorreria dentro do quadro dos estados nacionais.
A peculiaridade da economia mundial capitalista está no fato de que as fronteiras das estruturas políticas e econômicas são diferentes. […] Enquanto as atividades sociais de um grupo são, no limite, determinadas pelo seu papel na economia-mundo, o objeto de sua atividade política (para assegurar ou transformar sua posição no sistema social) será primariamente dirigido ao estado do qual eles são um membro (“cidadão”) (WALLERSTEIN, 1979: 196, grifos do autor).
Nessa linha, contudo, o autor observa que “os estados não se desenvolvem e não
podem ser entendidos de outro modo que não dentro do contexto de
desenvolvimento do sistema mundial” (WALLERSTEIN, 1974: 67).
À guisa de Wallerstein, outro precursor da maior relevância foi o francês
Fernand Braudel, que destaca-se por ter procurado compreender as origens das
3É importante notar que Wallerstein, ao logo dos seus estudos sobre o tema nos anos 1970, deixa de usar os termos “economia mundial” e “sistema mundial”, passando a adotar “economia-mundo” e “sistema-mundo”. A mudança, aparentemente simples, parece denotar uma incorporação da ideia de mundo à de sistema: elas tornam-se, assim, noções imbricadas. Em sistema mundial, tem-se o “mundial” como atributo de “sistema”. Na próxima nota, citarei um trecho em que Fernand Braudel desenvolve a questão. Por “sistema-mundo”, denota-se um mundo sistêmico, no sentido de uma unidade organizada desse modo. O conjunto dessas partes (desses pequenos mundos) daria forma ao mundo. Trata-se, no fundo, de enfatizar ora o todo, ora a parte.
7
“economias-mundos”4 capitalistas, combinado um olhar simultaneamente histórico
e geográfico.
Os nossos pontos de vista [o dele e o de Wallerstein (1974)] quanto ao essencial são idênticos, ainda que para Immanuel Wallerstein, não haja outra economia-mundo além da da Europa, fundada a partir do século XVI somente, enquanto que para mim, muito antes de ter sido conhecido pelo homem da Europa na sua totalidade, desde a Idade Média e mesmo desde a Antiguidade, o mundo já estava dividido em zonas econômicas mais ou menos centralizadas, mais ou menos coerentes, ou seja, em várias economias-mundos, que coexistem (BRAUDEL, 1985: 54, grifos do autor).
Ainda nos anos setenta, na Alemanha, Niklas Luhmann também esforçava-
se por desenhar os contornos daquilo que chamou, num artigo que data de 1971,
a sociedade mundial ou global (Weltgesellschaft)5. Trata-se também de uma
tentativa de compreensão sistêmica de fenômenos de maior amplitude. Há aqui, 4O plural é economias-mundos (com “s” no fim do nome e também do atributo). A mesma observação feita a respeito de Wallerstein vale para Braudel, que justifica sua preferência da seguinte maneira: “por economia mundial entende-se a economia do mundo considerada em seu todo, o 'mercado de todo o universo', como já dizia Sismondi. Por economia-mundo, palavra que forjei a partir do vocabulário alemão Weltwirtschaft, entendo a economia de somente uma parte do nosso planeta, na medida em que essa porção forma um todo econômico, […] um mundo em si mesmo” (BRAUDEL, 1985: 53). O livro, embora publicado nos anos oitenta, corresponde à reprodução de conferências proferidas na Universidade John Hopkings, nos Estados Unidos, ainda em 1977. Quanto ao uso do termo, Braudel esclarece que essa foi uma opção sua ao construir sua formulação. Contudo, no conjunto do debate que se desenvolve mais tarde, sobre a globalização propriamente, creio que essa distinção tenda a ser borrada. O mundial (assim como o global) tende a tornar-se atributo inexorável. Por isso traduzo um Kompositum germânico da mesma natureza que é a Weltgesellschaft por “sociedade mundial” (assim como o farei, sobretudo a partir do quarto capítulo, com a “sociedade de risco mundial”, que entendo como um equivalente apropriado, em língua portuguesa, para Weltrisikogesellschaft).
5O termo “global” parece ter sido sempre preferido pelo fato de o debate ter se iniciado majoritariamente entre os anglófonos, que usavam termos como “global studies”, “globalization (USA)/ globalisation (GB)”, “glocalisation” e “globality”. Na França, por exemplo, onde o debate anglo-americano sobre a globalização não causou tão grande impacto num primeiro momento, utiliza-se, ainda atualmente, quase que apenas o termo “mondialisation”, sem diferenciações claras de significado. Quanto à distinção proposta por Braudel (ver nota 4), traduzo por sociedade mundial (e não sociedade-mundo), porque não se trata de sistemas-mundo conectados, mas de uma sociedade sistêmica de âmbito mundial.
8
no entanto, uma dissonância em relação a Wallerstein e Braudel. O interesse de
Luhmann está menos na economia, ou no lugar da sociedade mundial
(Weltgesellchaft) na história, e mais na configuração de novos horizontes de
mundo (Welthorizonte) e de tempo (Zeithorizonte). Pode-se dizer, nesse sentido,
que Luhmann foi o grande pioneiro de uma sociologia da globalização. Sim,
Luhmann esforçava-se por observar aquilo que seria, anos mais tarde,
problematizado por cientistas sociais em diversas partes do globo: a sociologia já
não podia mais precisar as fronteiras das sociedades humanas e, nessa medida,
até mesmo o conceito de sociedade deveria ser questionado. Luhmann percebe
que há um conhecimento cada vez maior sobre os outros seres humanos, bem
como das possibilidades de interação. Isso aliado à observação de que o
conhecimento científico, assim como transações comerciais e um tipo de opinião
pública, teriam logrado alcançar uma dimensão planetária, configurando uma
civilização em trânsito contínuo. Sobre esse aspecto, talvez o leitor se recorde dos
escritos do canadense Herbert Marshall McLuhan (1962, 1964, 1968) que
apresentava a célebre noção do mundo como uma aldeia global (global village),
fundamentada no espraiamento das possibilidades de comunicação, forjadas com
a informatização. Uma comparação talvez fosse possível, de certo modo, já que
essas reflexões datam quase da mesma época. Mas ocorre que, para Luhmann, a
Weltgesellschaft não se constituiria através do fato de que cada vez mais pessoas,
não obstante a distância espacial, mantêm contatos presenciais elementares.
Esse seria apenas um aspecto (até mesmo secundário) dos fatos. Para Luhmann,
toda interação constituiria um “e assim por diante” [“Und so weiter”] de outros
contatos dos interlocutores [Partner], envolvendo possibilidades que escapam às
interdependências mundiais e que incluem também controle ou direção para essa
interatividade [Interaktionssteuerung] (LUHMANN, 1975: 54)6.
6 Tendo em vista o caráter geral desta introdução, não caberia uma abordagem detida de nenhum desses autores. Alguns aspectos da sociologia luhmanniana da globalização serão retomados no sexto capítulo (no item 3 da segunda seção, em particular), mas vale notar que O. Thyssen
9
Pode-se dizer que Luhmann, Wallerstein e Braudel tenham sido, cada qual
a seu modo, os grandes precursores do debate sobre a globalização nas ciências
sociais. A título de nota, no entanto, vale observar que há textos ainda mais
antigos, como o de Trygve Mathisen (1959), que já procurava identificar a
existência de uma sociedade mundial (world society), entendida como capaz de
abarcar o mundo todo em termos de organizações não-estatais, posta em
oposição ao âmbito das organizações internacionais, que configurariam uma
espécie de sociedade internacional (international society), na qual apenas atores
estatais seriam representados. Outro texto pioneiro foi o de Wilbert Moore (1966),
que talvez tenha sido o primeiro a publicar um ensaio sobre uma Sociologia de
dimensão global. E, para concluir esse ponto, vale mencionar que, curiosamente,
antes mesmo de Mathisen e Moore, ainda em 1941, o jovem Marshall Hodgson,
interessado nas possibilidades histórico-metodológicas de um estudo das
civilizações em um “contexto global”, escreveu uma carta na qual utiliza o termo
global num sentido muito próximo ao que lhe atribuímos contemporaneamente7
(HODGSON, 1993: xiii-xiv; REHBEIN & SCHWENGEL, 2008: 11). Como dito, não
havia um ambiente acadêmico propício o suficiente para essa discussão. Não
obstante, esses e outros trabalhos têm o mérito de anunciar os termos de um
debate que ainda estava por vir.
dedicou um paper à temática (cf. THYSSEN, 2006), e também eu tive ocasião de escrever mais detalhadamente a respeito do caráter precursor dos trabalhos de Luhmann sobre a globalização (cf. ARNAUT, 2012b).
7Segundo Edmund Burke III, quem organizou o livro para publicação, essa carta, que não fora publicada na época, teria sido um gérmen para um trabalho de Hodgson intitulado The unity of the World History. Este, por sua vez, também nunca foi publicado. Na obra que cito (HOGDSON, 1993), a terceira parte corresponderia, segundo o organizador, aos três últimos capítulos daquele trabalho. Embora valha a pena mencionar a existência desses escritos, é importante perceber que sua publicação é póstuma, e efetuada muito depois da sua concepção. Desse modo, não podem ser vistos como textos que influenciaram o debate. Pode-se dizer, inclusive, que seu impacto foi, efetivamente, muito pequeno, tendo permanecido quase desconhecidos no período entre a morte do autor (1968) e a emergência dos estudos sobre a globalização no âmbito das ciências sociais.
10
II. A emergência
Após esses primeiros movimentos, já no fim dos anos 1980, o debate
emerge e começa a tomar corpo e ganhar densidade. Curiosamente, esse
percurso não se inicia nas Ciências Sociais, mas entre os administradores de
empresas, assim como entre os homens e mulheres de negócio e de marketing,
que faziam uma espécie de apologia ao mercado “livre”. A intenção, porém, era
muito mais a de compreender o funcionamento de um mercado de âmbito
mundial, do que propriamente a de perceber suas estruturas, processos e
relações, o que corresponde a um interesse fundamentalmente ideológico,
economicista. “Com exceção da perspectiva dos ecólogos, que, desde o início, foi
mais abrangente, o tema [da globalização] era parte das preocupações do
industrialismo contemporâneo, e vicejava entre aqueles que defendiam as
estratégias das corporações transnacionais” (ORTIZ, 2006: 10).
Naquele momento, as ciências sociais também ocupavam-se com as
transformações da sociedade pós-industrial, mas de outro modo. O que estava em
pauta era a oposição modernidade versus pós-modernidade. A padronização,
característica da primeira, diante do pluralismo atribuído à segunda.
A ausência de uma reflexão sobre a globalização é preenchida, no entanto, por uma presença: a discussão sobre a pós-modernidade. […] Uma constatação se impõe: as duas tendências evoluíam em registros diferentes. Elas não se cruzavam. […] A temática da pós-modernidade possui uma dimensão filosófica abrindo-se para o horizonte da crítica da Razão, os impasses da liberdade, os limites do universalismo num mundo no qual o particular se redefine. […] Os textos sobre a globalização têm outro perfil, eles são de natureza mais sociológica do que propriamente filosófica. O que se deseja entender são os mecanismos da nova ordem mundial, como ela se estrutura, qual a melhor maneira de se inserir no seu interior (ORTIZ, 2009: 234-235).
11
Era importante “precisar que a condição pós-moderna não é a sociedade;
que ela afeta, sem dúvida, setores de todas as sociedades; e que, sob este
aspecto, ela não pode constituir o único objeto de uma análise antropológica ou
histórica que leve em consideração a pluralidade e a diversidade do real” (AUGÉ,
1994: 40, grifo do autor). Trata-se, no fundo, não só de perceber que a afirmação
das diferenças não é suficiente para a superação de totalidades, mas também de
distinguir entre a esfera da normatividade, cara à filosofia e às artes, e um ponto
de vista mais descritivo, característico das ciências sociais8.
Nesse contexto, pode-se dizer que as ciências sociais entraram
efetivamente no debate sobre a globalização em meados dos anos 1990, quando
(como coloca Ortiz) o tema ganha identidade – ainda que preferencialmente na
Europa e nas Américas. Aliás, sobre esse ponto, o leitor deve notar que me refiro
tanto aos Estados Unidos, quanto à América Latina. Sim, porque do ponto de vista
das ciências sociais, a despeito das limitações existentes, o debate sobre a
globalização não chega “atrasado” para os latino-americanos. Nessa linha, pode-
se dizer que trabalhos como os de Renato Ortiz (1988, 1994), assim como os de
Octavio Ianni (1992, 1995), Milton Santos (1994, 2000), ou Néstor Garcia Canclini
(1990, 1999), problematizaram, desde muito cedo, os processos de globalização.
Essa é uma observação invulgar, tendo em vista a história e a formação do
pensamento social latino-americano, pautadas na dependência de (e também na
busca por) um imaginário e um corpo histórico-conceitual modernos, que “ainda”
não pertencem aos nossos “tristes trópicos” (para falar como Lévi-Strauss), ou
então que “ainda” não se realizaram. Ora, a ideia da globalização carrega em si o
pressuposto de um fenômeno que envolve a “todos” no mundo. É claro que isso
não se dá de maneira uniforme: evidentemente, uns são mais globalizados ou
globalizáveis que outros. No entanto, é perceptível que a globalização
8 Retornarei a essa questão no capítulo sexto, segunda seção.
12
se enraíza no solo no qual se nutre nossa experiência, independemente de sua localização regional. Ela pode então ser apreendida pelo pensamento, pois a defasagem temporal que existia anteriormente torna-se inexpressiva. A modernidade pressupunha uma temporalidade progressiva na qual a América Latina só encontraria lugar num momento futuro; a globalização implica a ideia de uma compressão do tempo, as diferentes partes do planeta são atravessadas pelo seu fluxo (ORTIZ, 2009: 233-234).
III. O estabelecimento
Nos anos 1990, a globalização entra para a agenda do dia em qualquer
discussão, a partir dos mais diversos enfoques e perspectivas, por todo o mundo.
Isso não deixa de ser um problema, de certo modo, à medida que também se cria
a impressão de que “tudo está globalizado” – o que não se dá, de fato. Tanto de
um ponto de vista empírico como de uma perspectiva teórica, esse tipo de
observação (equivocada a meu entender) dá origem, por exemplo, a polêmicas a
respeito de uma possível “homogeneização” do mundo, em particular nas esferas
da cultura e do consumo. Recordo-me, em especial, da noção de
“McDonaldização” do mundo, cujo maior representante é o americano George
Ritzer. Trata-se de uma reformulação da teoria weberiana de uma racionalização e
burocratização do ocidente que se estenderia para o mundo. A McDonaldização
do mundo seria, assim, um processo pelo qual os princípios do restaurante fast-
food, os quais dominariam cada vez mais setores da sociedade americana,
alcançam o resto do planeta (RITZER, 1996). Colocada de outro modo, a ideia
implica a projeção para o mundo da compreensão ritzeriana de um fenômeno que
é nacional (quando não específico de determinados setores, ainda que
majoritários ou representativos, da sociedade estadunidense).
Nesse conjunto de polêmicas também se insere uma inquietação frequente
a respeito do futuro dos Estados-nação. A questão inicial era se o advento da
13
globalização significaria, mais cedo ou mais tarde, o fim dos Estados nacionais9,
ou sua “expropriação”, para falar como Zigmund Bauman, que chegou a colocar o
problema da seguinte maneira:
Tudo isso cerca o processo em curso de “definhamento” das nações-estados de uma aura de catástrofe natural. Suas causas não são plenamente compreendidas; ele não pode ser previsto com exatidão mesmo que as causas sejam conhecidas; e com certeza não pode ser evitado, mesmo que previsto. […] Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo do controle” é que foi articulada (com pouco benefício para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o de globalização. O significado mais profundo transmitido pela ideia de globalização é o do caráter indeterminado e de autopropulsão dos assuntos mundiais: a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com um outro nome (BAUMAN, 1998: 65-67, grifos do autor).
Nessa mesma linha, podem ser encontradas apostas no “fim da geografia”,
e mesmo no “fim da história”, como formulada por Francis Fukuyama (1992)10.
9A respeito do “fim” do estado nacional, convido o leitor a revisitar, entre outros, Kenichi Ohmae (1995). Com o desenrolar do debate, fica cada vez mais claro que os Estados-nação não estão “desaparecendo”, mas que se modificam com as transformações sociais. Essas transformações é que passam, então, a ser problematizadas. Analiso algumas das dimensões centrais do Estado-nação no atual contexto de globalização no quinto capítulo, a partir dos pensamentos de Octavio Ianni e Ulrich Beck sobre a Política na globalização.
10A ideia de fim da história já tinha sido abordada por Hegel, na sua Fenomenologia, como uma metáfora controversa e alvo de grandes mal entendidos a respeito do que seria a existência da humanidade no seio de um Estado mundial por vir. Vale a pena, aqui, citar a observação de François Châtelet quanto à significação ontológica da fórmula fim da História. “Pode-se interpretá-la como extinção do tempo. […] Semelhante ontologia não tem o menor sentido na concepção hegeliana. O Ser (= Espírito), que é devir, não poderia ser suprimido. A humanidade continuará devindo; porém no seio do Estado mundial, ela não “evoluirá” mais, no sentido de que não criará mais nada de novo, estará em plena positividade e viverá numa sociedade integralmente transparente. O que será essa existência, é igualmente impossível imaginar” (CHÂTELET, 1968: 153).
Do ponto de vista do debate sobre a globalização, refiro-me de modo mais direto a contribuições
14
São pensamentos que alardeiam, mas que contribuem pouco para a inteligência
dos processos globais. Isso se dá, frequentemente, porque projetam uma
realidade local sobre as diversidades planetárias: um Estado-nação forjado numa
Europa ocidental, uma História como concebida por uma tradição também
europeia, a homogeneização que se torna possível como resultado das formas de
consumo vigentes nos Estados Unidos ou em parte dele. É verdade que esses
processos podem ser identificados em outras partes do mundo, mas não com a
mesma força ou intensidade. De um modo geral, a meu ver, teses desse tipo (fim
do estado, fim da história, homogeneização etc.) vêm se desgastando,
tendencialmente, no curso do debate nas Ciências Sociais, embora ainda
permeiem um certo senso comum (mesmo nos meios acadêmicos): esbarram-se
nas diversidades da humanidade; no futuro, que se torna presente; no passado,
que nos permite especular e duvidar dos estardalhaços inerentes à ideia do “fim”.
Como veremos mais adiante, a globalização pode também ser concebida (como
ruptura ou como continuidade) sempre enquanto um prenúncio do futuro.
Tais mal-entendidos envolvem, no entanto, uma dimensão heurística que
não se deve ignorar. Sim, pois com essas tentativas de descrição qualitativa
transparecem as dificuldades para se compreender e explicar o fenômeno da
globalização, assim como, por outro lado, são sinalizados novos caminhos ou
possibilidades para a inteligência dos processos que a globalização envolve e
engendra. As ciências sociais deparam-se com o novo e precisam construir ou
reformular referências. Um sintoma dessas dificuldades é o caráter quase sempre
metafórico (e, muitas vezes, impreciso ou fugidio) dessas tentativas de descrição.
A linguagem metafórica nos permite uma aproximação mais livre do fenômeno à
medida que dá nome ao que até então “não existia” para o intercâmbio do
como a de Fukuyama, que alcançou uma certa popularidade, num momento de crise e incertezas, publicando um curioso ensaio intitulado “The End of History?” (1989) e, mais tarde, um livro, The End of History and the Last Man (1992). Entre as diversas críticas a essa perspectiva, vale a pena indicar a de Jacques Derrida (1993, capítulo 2).
15
pensamento científico. Entretanto, o uso de metáforas exige cautela. Há sempre o
risco de que o pensamento se perca na obscuridade de suas significações.
Chama a atenção nesses textos a profusão de metáforas utilizadas para descrever as transformações deste final de século: “a primeira revolução mundial” (Alexander King), “terceira onda” (Alvin Toffler), “sociedade informática” (Adam Schaff), “sociedade amébica” (Kenichi Ohmae), “aldeia global” (McLuhan). Fala-se da passagem de uma economia de high volume para outra de high value (Robert Reich), e da existência de um universo habitado por “objetos móveis” (Jacques Attali) deslocando-se incessantemente de um lugar a outro do planeta. Por que esta recorrência no uso de metáforas? Elas revelam uma realidade emergente ainda fugidia ao horizonte das ciências sociais (ORTIZ, 1994: 14, grifos do autor).
Toda metáfora implica um conjunto de referências que não são,
necessariamente, as mais adequadas sob outros pontos de vista, em outros
epicentros de um debate de proporções mundiais. Por isso, muitas dessas
metáforas e neologismos não vingaram, ou caíram no esquecimento, enquanto
outros foram sendo ressignificados.
Pode-se discordar do conteúdo das análises do autor, e muitas delas são insuficientes, mas o fascínio da metáfora se deve à sua inteligência em captar um emaranhado de articulações que explicitam uma nova configuração social. Não obstante, toda metáfora é um relato figurado, o que se ganha em evidência perde-se em precisão conceitual. Ela possui a virtude de delimitar um contorno, mas uma vez apreendido, ao torná-lo visível, as sombras se projetam no seu interior. Há um tempo das metáforas e outro do conceito, pois é necessário passar da delimitação de um fenômeno para a análise de seus mecanismos. Nesse sentido, o artifício que esclarece num segundo momento aprisiona o pensamento (ORTIZ, 2006: 48).
Do ponto de vista sociológico, como dito, pode-se ver a globalização como
um tema recente, denso, cujos fenômenos, processos, relações e estruturas
16
escapavam (e ainda escapam) à compreensão a partir do patrimônio teórico das
ciências sociais. Uma vez reconhecida a existência da globalização, a grande
dificuldade passa a ser a de qualificá-la: a globalização envolve, assim, um
problema de explicação. Essa passa a ser, gradualmente a tônica do debate. O
espanto inicial dá lugar a um crescente esforço no sentido de compreender e
explicar fenômenos em perspectiva global. Assim, surgem incontáveis
publicações, seminários e estudos envolvendo o tema, ainda que de modo
preferencialmente indireto. Foram relativamente poucos os que enfrentaram o
desafio de teorizar a globalização, procurando interpretar seus fenômenos,
apontando fatos significativos para a inteligência de suas questões, propondo
definições e conceitos de modo claro, integrativo e abrangente, constituindo
referências para a inteligência da problemática da globalização11. Há, de certo,
razões para isso. O tema da globalização, como quase tudo que diz respeito à
nossa contemporaneidade, apresenta-se demasiado complexo, embriagando a
percepção com uma profusão de imagens, ideias, processos, estruturas e
relações, de modo que se torna cada vez mais difícil apreender, captar a realidade
de uma maneira aguda e abrangente ao mesmo tempo. Além disso, o mundo é
evidentemente grande e estudá-lo exige sempre, não só um recorte coerente e
uma demarcação precisa desse objeto de estudo, como um conjunto de recursos
que nem sempre estão à disposição dos pesquisadores. Por isso, a atitude mais
frequente nas pesquisas que envolvem a problemática é alocar a globalização à
11Neste capítulo introdutório, optei por uma abordagem mais sintética e qualitativa. Há, porém, vários trabalhos concebidos com o objetivo de elencar autores que se dedicaram ao tema da globalização e suas contribuições principais. Entre eles, recomendo um artigo de Berking (2008), que foi escrito para tornar-se um verbete de um manual de sociologia. Engel e Middell (2010) também é uma referência interessante, embora não haja um compromisso com os desdobramentos do debate nas ciências sociais nos moldes em que eu os apresento aqui. Outro trabalho bastante recomendável é o de Rehbein e Schwengel (2008), organizado a partir de alguns dos conceitos (ou metáforas) produzidos ao longo do debate. Por fim, ainda que mais antiga, outra referência importante seria Robertson e White (2003), que organizaram uma coletânea de três volumes com ensaios críticos de diversos estudiosos sobre questões ligadas à problemática da globalização.
17
posição de simples estratégia argumentativa, como uma espécie de abordagem
enriquecedora que pode dar ares cosmopolitas a um objeto determinado12. Assim,
encontramos inúmeras obras, versando sobre os mais diversos temas, nas quais a
globalização aparece (geralmente nos últimos capítulos) como um fator que
possivelmente ampliaria os desafios de uma outra questão, qualquer que seja, de
interesse naquela dada obra. Aqui costuma estar o gancho para fechar o recorte
analítico do estudo, indicando mais ou menos explicitamente que não haveria a
intenção de “açambarcar o mundo”. Ora, uma parte significativa dessas atitudes
poderia ser entendida como advinda da ausência de um arcabouço teórico mais
consolidado, isto é, de um conjunto maior de estudos mais fundamentais,
abrangentes ou propriamente globais, que fomentassem e orientassem o debate.
Osterhammel e Petersson (2007), buscando identificar os momentos
decisivos de uma história da globalização, chegam a afirmar que os autores, de
algum modo, parecem embaralhar referências quando se trata de abordar esse
fenômeno que dá nome à nossa época. Eles têm razão, e é precisamente a essa
lacuna que se dirige esta dissertação. No atual contexto de revisão de referências
e formulação de novas categorias interpretativas, torna-se relevante o trabalho de
revisão crítica dessas contribuições. Escolhi duas delas para compor a minha
análise: a de Octavio Ianni e a de Ulrich Beck. A escolha foi pautada basicamente
em três critérios. O primeiro deles foi, como é de se esperar, a qualidade e o
refinamento teórico das obras. O segundo critério foi o impacto provocado por elas
no debate. Embora de modo assimétrico, ambos os autores tornaram-se
referências importantes para qualquer estudo sobre o tema. Por fim, um terceiro
critério foi o de que fossem autores provenientes de contextos distintos, para que
se pudesse evidenciar sua alteridade de modo analiticamente profícuo. Assim
como a globalização pode ser entendida como uma situação histórico-social, os
autores e seus trabalhos estão, de maneiras diversas, situados nessa globalidade.
12 Voltarei ao tema dos discursos de globalização na primeira parte do sexto capítulo.
18
Essa é a atitude que adotei ao esforçar-me por compreender e interpretar os
elementos basilares de suas teorias. Meu objetivo foi observar o desenho desses
conceitos e concepções, percorrendo trilhas de pensamento e sensibilidade que
parecem situar-se entre a visão de mundo e a visão do mundo, isto é, entre a
representação da própria aldeia e a dos processos efetivamente globais.
Mas como se constrói uma reflexão dessa natureza? Esse é o tema do
próximo capítulo, que visa, após essa concisa apresentação do debate sobre a
problemática da globalização nas ciências sociais, introduzir o leitor à atitude
intelectual que orienta a construção do presente trabalho.
19
Capítulo II
Sociologia da Sociologia
Notas sobre um percurso
20
Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores. [...] Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.
Carlos Drummond de Andrade13
Após esse breve histórico da constituição dos processos de globalização como
uma problemática para as ciências sociais, cabe uma introdução ao caráter
intelectual do presente trabalho. O que se segue não corresponde a um conjunto
de teorias, teses ou diagnósticos a respeito da globalização. De certo modo, aliás,
seria até possível afirmar que a globalização, em si, nem mesmo constitui o objeto
principal desta reflexão – e precisamente aqui mora a sua originalidade. Nessa
linha, este capítulo divide-se em quatro etapas. Primeiro, trato da própria
construção do objeto da pesquisa que deu origem a esta dissertação (I). Em
seguida, cabe abordar também a construção da própria pesquisa (II). Com base
nisso, procuro compartilhar algumas das dificuldades procedimentais no trato dos
escritos trabalhados (III). Por fim, convido o leitor a refletir sobre a prática
interpretativa de explicações sociológicas como as abordadas aqui (IV). Partindo
do que é apresentado neste e no capítulo anterior, a última etapa desta exposição
já pode corresponder a uma introdução à dissertação como um todo (V).
13 Drummond de Andrade (1940), “Sentimento do Mundo”.
21
I. A cognição de processos globais como objeto
Já existem bons trabalhos sobre a história do debate a respeito da
globalização, ou de caráter introdutório ao tema, sob diferentes abordagens14. Mas
é curioso notar que as referências conceituais e bibliográficas, conquanto
numerosas, variam relativamente pouco. É que, como dito15, há poucos trabalhos
que de fato orientam o debate – e isso é evidente a tal ponto que parte dos
comentadores são também autores! Assim, tendo em vista esse quadro, não me
pareceu frutífera a ideia de elaborar um novo “panorama” do debate. Sendo um
pesquisador jovem e ainda inexperiente, não poderia sequer aproximar-me do
alcance intelectual daqueles comentadores, quanto menos pleitear o status de
originalidade para um trabalho desse caráter. Afinal, em quase todos os casos,
eles acompanharam de perto ou participaram ativamente da constituição da
globalização como problemática sociológica. É claro que eu poderia reivindicar o
álibi do afastamento no tempo, mas ainda assim talvez não fosse capaz de
dissipar a nuvem babélica em que se transforma o debate quando, sobretudo a
partir dos anos 1990, os pesquisadores se convencem do caráter efetivo dos
processos globais e começam a esforçar-se para qualificá-los. Como veremos
mais adiante, a confusão é tamanha que uma mesma palavra ou expressão pode
ter significados bastante distintos16.
Diante dessa dificuldade, o que poderia ser feito? Ora, a própria
“babelização” em que se insere o debate já poderia ser um recorte. Mas tratava-se
de um tema muito amplo e que, para que se respeitasse o rigor de uma pesquisa
detida, envolveria intermináveis análises comparativas, cuja propriedade seria 14Entre eles, destacam-se Ortiz (2009), Robertson (2001), Berking (2008), Beck (1997), Ianni (1994), Rehbein e Schwengel (2008), Engel e Middell (2010), Martell (2010), Sassen (2007), Brock (2008), Santos (2002), Steger (2003), Kreff et. al. (2011).
15Ver capítulo 1.
16Confusões desse tipo serão tematizadas especialmente nos capítulos 5 e 6.
22
sempre alvo de questionamentos, já que envolveria complexas e, no limite,
insolúveis dificuldades de tradução. Assim, embora o problema das palavras
esteja sempre presente nos estudos sobre globalização (e seja tratado, no
presente trabalho, em alguns de seus aspectos), ainda penso que ele não seja,
em si, um tema de pesquisa palpável para uma dissertação de mestrado. O que
denomino aqui, e muito livremente, “o problema das palavras” envolve, no entanto,
uma questão basilar. Como ensinam alguns estudiosos da linguagem, nomear
significa categorizar. Ou seja, quem dá nome a algo, materializa, em sons ou
escrita, um pensamento. Assim, por exemplo, um livro qualquer poderá ser
percebido por alguém como um “livro” à medida que essa pessoa tenha em mente
categorias que lhe permitam, após captar a existência de um objeto determinado,
compreendê-lo como um “livro”; nessa mesma linha, este poderá também ser
enunciado como um “livro”, na medida em que o falante (ou escritor) disponha do
termo “livro”, ou equivalente, em seu patrimônio lexical. De modo extremamente
resumido, essa é uma das maneiras de se descrever aspectos relativos à
cognoscibilidade do ente “livro”17.
Seguindo esse raciocínio, já é possível começar a compreender o olhar
sociológico que norteia este trabalho. A globalização, sendo um fenômeno novo,
precisava ser qualificada, nomeada, categorizada e, precisamente por isso, era
necessário que houvesse empreendimentos no sentido de sua cognição. Esse é
um ponto. Nomear a globalização, os processos globais e aspectos envolvidos
significa tentar compreendê-los. Mas há um elemento do qual não se pôde ainda
escapar: o fato de que o objeto dos estudos globais é, no limite, “o mundo”. E,
como ninguém é capaz – ao menos em princípio – de conhecer “o mundo” e tudo
17Essa abordagem da problemática da cognição de um ponto de vista linguístico é demasiado sucinta. Ela destina-se apenas a tornar mais palatável a apresentação do modo pelo qual a cognoscibilidade de processos globais pode ser trabalhada como um objeto da investigação sociológica. Referências clássicas sobre esse ponto são os trabalhos de Barthes (1965), Bourdieu (1982), Derrida (1996), Ducrot (1980), Orlandi (1990, 2007), Saussure (1916), entre outros.
23
que há nele, também a globalização, enquanto objeto de pesquisa, seria, a priori,
uma implausibilidade.
Esse paradoxo que envolve o conhecimento de algo aparentemente
insondável foi o que me motivou a realizar as pesquisas que deram origem à
presente dissertação. Ora, malgrado uma impossibilidade manifesta que
caracteriza a apreensão do fenômeno em sua real dimensão, saltava aos olhos o
fato de que os investigadores que encabeçaram os estudos globais não eram
neófitos entusiastas, mas pesquisadores do mais alto gabarito que,
frequentemente, já tinham renome e mesmo uma obra18. Assim, eles conseguiam
abordar a questão tendo em vista a força e o impacto das transformações e, com
base no que conheciam, isto é, no patrimônio intelectual que haviam acumulado
em décadas de estudo e pesquisa, puderam, cada qual a seu modo, explicar
alguns dos aspectos da globalização, prever desdobramentos, qualificar o caráter
das transformações envolvidas. Não diziam tudo, mas sempre diziam alguma
coisa.
Esse substrato de aparentes paradoxos parecia apontar para uma
dimensão ainda não investigada pelas ciências sociais: a própria cognoscibilidade
de processos globais. Do ponto de vista sociológico, isso significa superar o tom
histórico-narrativo da maioria dos bons trabalhos de balanço do debate (algo
como: o autor X combateu a ideia do autor Y, que haveria supostamente
compreendido mal um dado fenômeno, mas logo após Z propôs uma solução que
se mostrou mais adequada etc.). Uma abordagem como essa exige um
conhecimento bastante detalhado de nuances do próprio debate que dificilmente
seria adquirido no tempo de um mestrado e, dessarte, dificilmente eu poderia
rivalizar com as narrativas dos pesquisadores experientes. Por outro lado, um
recorte baseado na própria cognoscibilidade dos processos globais permitiria
18Ver capítulo 1 e recordar a nota 14, no presente capítulo.
24
escapar à forma enciclopédica de certos trabalhos, interessados mais em elencar
as contribuições, teorias, conceitos, diagnósticos etc., e menos em situá-los no
conjunto de reflexões produzidas. Contribuições dessa natureza têm, é claro,
utilidade introdutória, mas padecem de enorme superficialidade e de alguma falta
de “espírito”. O objetivo deveria ser distinto. Tratava-se de tentar recuar às
condições de possibilidade de elaboração dos trabalhos que, em conjunto,
estavam fundando um novo campo, cuja identidade tem sido cada vez mais
estavelmente afirmada: a Sociologia da Globalização. Sim, a ideia de investigar as
possibilidades de cognição da chamada globalidade permitiria, e permitiu, situar a
reflexão no campo do que se poderia chamar de Sociologia da Sociologia, ou
Sociologia do próprio conhecimento sociológico.
Estudar o que denomino cognoscibilidade de processos globais significa
fundamentalmente perscrutar os elementos que orientam a inteligência dos
fenômenos globais e a criação sociológica ali envolvida.
E como isso poderia ser feito? Essa é uma questão que ainda persiste: a
realização desse trabalho envolveu algumas tentativas de aplicação metodológica
malogradas, mas houve aquelas que surtiram algum efeito. Voltemos os olhos por
alguns momentos a esse modus operandi da investigação.
II. Sobre a construção da pesquisa
Um objeto como a cognoscibilidade de processos globais deve, certamente,
envolver o exame de tentativas de cognição, bem como da criação sociológica que
elas suscitam. Na impossibilidade de estudar todos os trabalhos produzidos com
esse propósito, coube operar um recorte metodológico. Como dito, parecia
imprescindível escolher autores que tivessem, por um lado, ao menos tentado
elaborar teorias da globalização e, por outro, influenciado e marcado o debate
25
sobre a globalização a partir de uma visão integrativa. Nesse sentido, selecionei
dois deles – Octavio Ianni e Ulrich Beck. É claro que o fato de serem dois implica o
dobro do trabalho e dificuldades multiplicadas, mas esse recorte permite
estabelecer, por outro lado, uma certa “alteridade” que representa, de um ponto de
vista metodológico, a possibilidade de acompanhar trilhas distintas de pensamento
e sensibilidade de maneira a estabelecer contrapontos. O termo “contraponto”,
aliás, é fundamental aqui. Primeiro, enquanto um pesquisador situado em um
certo ponto dessa globalidade (em local, campo intelectual e realidade social
específicos), seria ingênuo pensar que eu poderia posicionar-me de maneira
equânime em relação a cada autor. Além do mais, coerente com a própria
construção deste objeto de estudo, deve-se considerar que cada autor se vale de
suas próprias categorias, pontos de vista e recursos de imaginação. (Como
veremos, mesmo quando as referências parecem ser as mesmas, os caminhos
tomados podem ser muito díspares). Em suma, o trabalho com dois autores
permitiu manter à vista o fato de que a cognição de fenômenos sociais, e
particularmente os planetários, envolve escolhas em meio a uma gama de
elementos que possibilitam a inteligência de aspectos desses fenômenos.
Escolhidos os dois autores, pareceu adequado recortar ainda mais o
escopo da pesquisa e delimitar um corpus. Este foi composto inicialmente de onze
textos19. A intenção não era enclausurar a reflexão nessas referências, mas, antes,
delimitar um material de trabalho condizente com o tempo e os recursos
disponíveis. Além do mais, a própria construção do objeto de pesquisa afastava
qualquer tentativa de compreender “a obra” de um autor, bem como todas as
limitações metodológicas que uma iniciativa desse tipo implicaria. Acreditando que
jamais seria possível compreender “um autor” ou “sua obra”, contentei-me, como
dito, em investigar pistas sobre certos elementos que orientavam, em cada um dos
19Ianni (1992, 1994, 1996, 2000, 2004) e Beck (1986, 1997, 2002, 2004, 2008, 2010) eram os escritos que constavam no projeto de pesquisa.
26
casos, a cognição de processos globais, através dos textos produzidos a esse
respeito.
III. Textos e contextos: a abordagem do corpus
Antes mesmo de construir o objeto de pesquisa de modo satisfatório, a
própria análise desses textos a partir de um enfoque como esse representou um
desafio. É que a simples leitura atenta, fichamentos, tomada de notas, entre outras
operações práticas da rotina de pesquisa aprendidas nas cadeiras dos cursos de
ciências sociais não se mostravam suficientes. O problema que se apresentava
era de natureza modal, era preciso encontrar um modo profícuo de proceder na
investigação. Note-se que não se tratava de questionar a maneira pela qual se
deveria ler (à moda dos manuais de pesquisa científica), mas sim de como pensar!
Era preciso compor um horizonte de ideias que orientassem a construção do
corpus e permitissem uma certa atitude de leitura, uma maneira profícua de
enfrentar os escritos e escrever sobre eles.
Pode-se dizer que haja pelo menos duas maneiras predominantes de se
trabalhar textos como os enfrentados aqui. Grosso modo, elas podem ser
identificadas, no decorrer das últimas décadas, pelos seguintes rótulos:
abordagem “textual”, de um lado, e, de outro, abordagem “contextual”.
O que se denomina abordagem textual indicaria, como o próprio nome diz,
um enfoque preferencialmente restrito a textos. Parte-se da ideia de que um
determinado escrito comportaria um pensamento, em sentido amplo, e, dessarte,
busca-se compreender a sua lógica interna20. Martial Gueroult (1979) chega a
20Essa atitude pode ser encontrada nos trabalhos de importantes autores das ciências sociais, especialmente entre aqueles que trabalham com teoria social. Entretanto, esse tipo de atitude parece mais presente em textos filosóficos. No Brasil, há escritos introdutórios a esse olhar rigoroso sobre o texto, em busca de sua lógica interna e, em um sentido particular, sistêmica, são
27
afirmar, por exemplo, que a obra filosófica – isto é, um texto filosófico – seria um
monumento que abarca ideias de um autor (no caso, de um filósofo), instituindo,
assim, uma realidade. Por um lado, é possível questionar se textos expressariam
de fato e necessariamente pensamentos dotados de coerência. Talvez até haja
escritos, especialmente entre os de natureza filosófica, em que seja possível
encontrar um sistema interno inteira e rigorosamente coeso e coerente. Não cabe
aqui a investigação dessa hipótese. Deve-se considerar, porém, que no caso dos
trabalhos de Ianni e Beck, em particular, e também das demais sociologias da
globalização, em geral, tal abordagem me parece infrutífera: dificilmente se
poderia sustentar que haja, aqui, sistemas dedutivos de causalidades e efeitos,
tampouco demonstrações argumentativas suficientemente detalhadas para que se
pudesse proceder uma investigação orientada pela suposição de que em algum
momento “tudo faria sentido”. Não, os pensamentos desses autores sobre a
globalização encontram-se ligados ao curso da história e, como veremos, travam
uma luta discreta, mas contínua, com os limites de sua própria percepção. No
fundo, tudo está em suspenso, e as sociologias da globalização são também
sociologias da mudança.
Contudo, por outro lado, uma certa atitude “textualista” pode revelar-se
profícua à medida que orienta a pesquisa, conferindo-lhe um foco mais restrito: a
materialidade dos textos. Como mencionado, um autor como Gueroult ensina que,
de alguma maneira, uma obra pode ser vista como um monumento que cria, ela
própria, uma realidade e a institui. É claro que uma afirmação desse tipo pode
parecer abstrusa para um sociólogo. Afinal, é próprio do raciocínio sociológico o
certamente. Cabe lembrar, aqui, os de Victor Golschmidt (1963) e Martial Gueroult (1953, 1979), embora haja outros. Não há espaço para tratar dos trabalhos desses autores aqui, pois eles estão situados num debate histórico sobre a legitimação disciplinar história da filosofia; importa, porém, observar seu interesse na compreensão da lógica interna dos pensamentos que estariam materializados nos textos.
28
embasamento na realidade efetiva21. No entanto, a despeito de seus propósitos e
conclusões, cabe observar que ela diz algo sobre a natureza dos escritos
abordados nesta dissertação. Ora, diante de um objeto cujo efetivo alcance não é
dado à percepção humana, qualquer abordagem intelectual a seu respeito incorre,
por princípio, em um certo grau de criação e instituição da realidade22. Nesse
sentido particular, é possível compreender a escrita sociológica como um exercício
de registro de realidades (de “taquigrafar a máquina do mundo”, diria Octavio
Ianni). Mas atenção: isso não significa que o registro se confunda com “a”
realidade. Ele pode ser visto como um espectro da realidade – algo como o
conhecido tipo puro ou ideal (reiner Typus ou Idealtypus) de Max Weber – através
do qual é possível compreender (verstehen) suas conformações e movimentos,
enfatizando algumas de suas características eletivamente23. No caso dos estudos
sobre globalização em particular, é como se o raciocínio sociológico alçasse voo,
desprendendo-se por vezes da solidez dos processos sociais rigorosamente
observados, a fim de alcançar uma visão mais ampla e integrativa.
Com efeito, tendo em vista os processos globais como objeto, uma
amplidão como essa é evidentemente inalcançável no peu à peu da investigação
empírica. No entanto, perguntar-se-á o leitor, seria possível enquadrar os
trabalhos de Ianni e Beck (e, mais genericamente, os trabalhos sociológicos sobre
globalização) num horizonte estritamente teórico-normativo? Para examinar essa
questão, é preciso voltar aos textos com um olhar diferente, baseado na seguinte
questão: qual o papel dos contextos nesses trabalhos?
21 Sobre a diferenciação entre realidade efetiva e especular, ver capítulo 6, seção II, item 1.
22 Retornarei à problemática da realidade no sexto capítulo, seção II, item 1.
23 Refiro-me aos célebres princípios metodológicos (Methodische Grundlagen) da sociologia compreensiva weberiana. Conferir, em especial, Weber (1922, T. 1, I, §1, I, 6).
29
Um olhar sociológico sobre um pensamento sociológico não pode
desconsiderar que tanto um quanto outro partem de determinadas condições.
Pode-se dizer que eles se tornaram o que são por meio de escolhas entre outras
possibilidades. E é razoável afirmar que tais características advenham de
dinâmicas e ocorrências existentes nos lugares ou campos em que tais
pensamentos foram mentados – o mesmo valendo para os olhares, isto é, as
compreensões que se possam projetar sobre eles. Esse conjunto de elementos
corresponde ao que se denomina contexto (ou cotexto): eles marcam a produção
textual e persistem nela. Dito de modo mais enfático, os elementos contextuais
vigem e operam nos próprios pensamentos e, além disso, interferem também na
sua percepção e compreensão por parte de terceiros. E o que isso significa para
os nossos propósitos? Ocorre que uma ideia como essa permite-nos suspeitar, já
num plano conceitual, da existência de uma certa dissintonia entre pensamentos
provenientes de diferentes contextos. De fato, como veremos nos capítulos
seguintes, a observação dos processos de globalização se dá, em Ianni e Beck,
de modos distintos e, malgrado haja referências semelhantes em diversos
momentos (Marx, Weber, debates americanos etc.), a distância situacional
interfere na cognição do fenômeno. Sim, os contextos parecem às vezes os
mesmos, ganham nomes parecidos, exemplos em comum, alusões aos mesmos
epicentros do debate, mas isso não quer dizer que coincidam. Os contextos
interceptam a cognição, nutrindo-a de maneiras específicas.
Esse raciocínio parece razoavelmente compreensível de um ponto de vista
conceitual. Porém, como isso se dá na prática do trabalho com textos?
Contextos podem disfarçar-se por detrás das palavras. Sim, as palavras
que esclarecem, registram, conferem precisão, delimitam, expressam, são as
mesmas palavras que ludibriam a percepção, interferindo na cognoscibilidade dos
fenômenos e das ideias sobre eles. É assim que um mesmo vocábulo pode
denotar processos, estruturas ou relações categoricamente distintos. Um caso
30
exemplar de mal-entendidos dessa natureza é a significação do vocábulo
“globalismo” – como veremos, ele denota, para Beck, uma ideologia e, para Ianni,
um processo24. É claro que investigações a respeito das causas desses mal-
entendidos, bem como sobre a problemática da tradução numa situação de
globalização não podem ser adequadamente discutidas aqui. Importa, não
obstante, chamar a atenção para uma certa babelização em que frequentemente
os estudos globais se encontram imersos, precisamente por apresentarem uma
tendência à sobrevalorização do horizonte (ainda não inteiramente efetivo) do
mundo como “um só mundo”, acompanhada da desatenção às especificidades
histórico-sociais dos contextos que se materializam nas diversas línguas e
linguagens, através das quais realizam-se as tentativas de comunicação25.
Uma vez observadas algumas das questões que envolvem a abordagem de
textos como os investigados aqui, o tipo de realidade mental que podem instaurar,
sua relação com os contextos em que se inserem e os pensamentos que os
originam, e também no que tange àqueles pensamentos empenhados em
compreendê-los, é possível dar um passo adiante e buscar refletir sobre o que
fazer com os frutos do trabalho conduzido paralelamente a essas reflexões.
24Ver capítulos 3 e 5, em especial.
25Creio que não valha a pena recuperar aqui os meandros dos trabalhos sobre a chamada “virada contextualista”. Ao leitor que por ela se interesse, recomendo os trabalhos de Skinner (1978, 2002) e Pocock (2009), ligados à conhecida Escola de Cambridge de filosofia da linguagem. Também relevantes são os aportes de Luhmann sobre a formação sistêmica de campos por comunicação dadas em contextos específicos – ver, entre outros, Luhmann (1997). Por fim, cabe recordar um debate dos estudiosos de tradução, em que se questiona, como formulou Derrida (1999), “o que é uma tradução relevante”. Nessa linha, Derrida (1996, 1999) observou que traduções são um problema de leitura, isto é, da (in)capacidade por parte do tradutor de compreender, o mais próximo possível, e malgrado distâncias contextuais de linguagem, aquilo que está sendo efetivamente enunciado.
31
IV. Para a cognição de pensamentos: a leitura como atitude
A leitura de um corpus como esse pode ser feita com base em uma atitude
semelhante àquela identificada nos próprios sociólogos da globalização, a saber, a
de uma criação seletiva. Ora, a ideia de criação é, por si só, provocativa. Com ela,
quero chamar a atenção para três aspectos relativos ao caráter da pesquisa que
deu origem à presente dissertação.
Primeiro, o fato de que assim como há, por parte dos autores, uma eleição
necessariamente arbitrária dos fenômenos que parecem mais significativos para a
inteligência dos processos globais, também uma sociologia de suas sociologias
pode – e talvez até mesmo deva – proceder de modo semelhante. E é preciso
escolher e apontar, em meio a uma gama de ideias, aquelas que parecem mais
decisivas para a compreensão dos processos globais por parte dos autores.
Porém, nada disso está dado: a condição de cada ideia em meio ao conjunto de
um pensamento não se mostra de maneira transparente. É nesse sentido que se
pode falar, a respeito da atividade do intérprete, em um arbítrio criativo. Sim, as
escolhas são criativas precisamente na medida em que cabe ao pesquisador
dessas ideias sociológicas preparar um terreno sobre o qual os aspectos
cognitivos estudados possam ser trazidos à tona.
Segundo, a própria construção do objeto desta pesquisa é arbitrária. Mais
uma vez, o caráter da busca pela cognição de processos globais, como tratada
aqui, não é um recorte baseado simplesmente num achado metodológico
qualquer, porventura encontrado nas obras dos autores e transposto para a
reflexão que proponho aqui. Não. Como um construto metodológico, a criação de
um objeto com base nos objetos de reflexão de Ianni e Beck, caminha em paralelo
a estes últimos, numa ordem metodológica, e tem o propósito de buscar linhas de
pensamento através das quais se possa compreender passagens, teses, análises,
conceitos etc., posicionados com maior ou menor centralidade nos escritos.
32
Terceiro, a construção de cada explicação pode também ser vista como
uma criação de sua inteligibilidade. Trata-se de, a partir da construção do objeto e
da escolha de ideias, elaborar um raciocínio o mais coerente e coeso possível, a
fim de instituir linhas de compreensão que tornem um pensamento, teoria ou
diagnóstico, mais apreensíveis à própria reflexão. Essa explicação de explicações
abre caminho à crítica – enquanto racionalização de razões – e a novas
possibilidades de percepção, aplicação, apropriação e desdobramento das ideias
presentes nos pensamentos estudados. Ora, tal é, por excelência, um dos
objetivos do trabalho interpretativo em teoria e pensamento sociológicos.
Tendo em vista esses três aspectos, cabe ressaltar que toda criação é
seletiva. Parece necessário adjetivá-la dessa maneira uma vez que cada passo
em direção à construção do objeto, à sua investigação e explicação, implica o
expediente da escolha. Às vezes, enfatizam-se certos elementos; noutros casos,
procuram-se vieses ainda inexplorados na abordagem de palavras, análises,
conceitos; noutros ainda, pede-se licença para, deliberadamente, ignorar26. Tem-
se, portanto, um conjunto de apostas; nesse sentido, trata-se de um trabalho
essencialmente autoral.
V. Sobre a escrita deste trabalho
Após introduzir o leitor, ainda que de modo bastante genérico, ao debate
histórico sobre a constituição da globalização como problemática nas ciências
sociais, coube tratar da construção seletiva do objeto de reflexão da presente
dissertação, recuperando certas questões metodológicas enfrentadas por esta
pesquisa. Com base nisso, é possível iniciar o percurso pelas páginas e capítulos
que seguem, atentando para o fato de que serão encontrados mais hiatos que
26Retirei a ideia de “pedir licença para ignorar” do célebre texto de Umberto Eco (1977).
33
continuidades, mais lacunas que respostas. Já alerta quanto à atitude
metodológica deste trabalho e à construção de seu objeto, caberá ao leitor
proceder, a seu turno, sua própria crítica. Qualquer que seja, ela será bem-vinda,
na medida em que contribuirá para o necessário aprimoramento das análises que
estão por vir.
Em respeito ao leitor que porventura não esteja ainda ambientado com a
sociologia da globalização, procurei formular, no início de cada capítulo, seção ou
item, introduções muito sucintas contendo os elementos principais a respeito dos
temas que neles serão abordados. Na mesma linha, tive o cuidado de elaborar
dois capítulos introdutórios aos trabalhos de Octavio Inni e Ulrich Beck sobre a
globalização.
Destarte, a presente dissertação configura-se como um percurso que vai do
amplo ao restrito, passando pela reflexão amiúde e retornando, no final, a uma
perspectiva mais abrangente. Assim, o primeiro capítulo consistiu numa
apresentação geral do debate, propondo uma periodização com base em
momentos marcantes de seu desenvolvimento. O segundo capítulo, que agora
termina, visou problematizar a própria realização deste trabalho, a partir de
reflexões metodológicas, num tom próximo ao metanarrativo. O terceiro capítulo,
intitulado O Emblema do Globo..., tem o propósito de introduzir o leitor a alguns
dos aspectos que entendo com mais centrais no conjunto da obra de Octavio Ianni
sobre a globalização. Dessa forma, trato do conceito de globalismo, como definido
pelo autor, da associação entre globalização e paradigma social, bem como da
concepção ianniana de sociedade global. Em seguida, em Filhos do Mundo...
(capítulo quarto), há uma apresentação dos elementos fundamentais que
compõem a visão de Ulrich Beck sobre a globalização. O foco analítico está sobre
as concepções beckianas de individualização, cosmopolitização e modernização
da modernidade (ou modernização reflexiva). Note-se que, consoante com os
propósitos deste trabalho, ambos os capítulos apresentam uma abordagem
34
simultaneamente crítica e interessada dos pensamentos de Ianni e Beck. Seu
caráter enviesado faz-se mister a fim de que se possa adentrar o coração desta
dissertação. Este corresponde ao capítulo quinto – O Lugar do Pensamento na
Globalização –, em que são analisados alguns dos elementos pinçados por esses
dois autores na tentativa de fomentar e conduzir suas reflexões, com vistas à
cognição dos processos globais que se lhes apresentam. Para tanto, procedi um
novo recorte metodológico a fim de conferir maior acuidade à abordagem. Ele se
deu a partir de um elemento que é comum aos dois pensamentos: a curiosidade
pela situação da Política numa condição mundial. Por fim, no capítulo sexto,
procuro reajustar o foco analítico, recuperando o debate como um todo e a
reflexão metodológica em Heranças e Horizontes.... Trata-se de um ensaio dirigido
à retomada dos temas abordados, apontando para alguns dos desafios que
enfrenta atualmente a chamada Sociologia da Globalização.
35
Capítulo III
O Emblema do Globo
Octavio Ianni e a Taquigrafia do Mundo
36
A História antiga clássica é História das cidades (…); a Idade Média (germânica) parte do território como sede da História,
cuja evolução se contrapõe então ao território e à cidade; a História moderna é citatização do território,
não como na territorialização da cidade na antiguidade.
História mundial não existe sempre: a História como mundial é resultado.
Karl Marx27
“A globalização é o novo paradigma das ciências sociais”, anuncia Octavio
Ianni em plenos anos 1990, quando o debate sobre a globalização criava raízes
mundo afora. A frase é, no mínimo, provocativa. Sendo um dos mais respeitados
intelectuais da América Latina, Ianni ousa lançar um alerta à intelectualidade
brasileira para o desmoronamento e a reconstrução de estruturas, processos e
relações em nível mundial. É um momento avassalador e fascinante; um marco
que anuncia uma revolução nos pensamentos e na História, nas civilizações e na
Humanidade. Não se trata, certamente, de legar as bases tradicionais do
pensamento social à obsolescência. Não é o fim da história28. Trata-se de
reformulá-las, recriá-las, imaginando novas categorias para a inteligência de
processos, relações e estruturas em níveis local, nacional, regional e mundial. É
preciso formular e reformular o patrimônio cognitivo da humanidade em dimensão
27MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (1858) – até “…na antiguidade” – e “Einleitung” (1857) – a partir de “História mundial…”. O texto, descoberto em 1902, fora escrito como capítulo introdutório à obra Zur Kritik der politischen Ökonomie (1859). Segue o original: “Die klassische alte Geschichte ist Stadtgeschichte (…); das Mittelalter (germanische Zeit) geht vom Land als Sitz der Geschichte aus, deren Fortentwicklung dann im Gegensatz von Stadt und Land vor sich geht; die moderne [Gechichte] ist Verstädtischung des Landes, nicht wie bei den Antiken Verländlichung der Stadt.” (MARX, 1858) “Weltgeschichte existiert nicht immer; die Geschichte als Weltgeschichte [ist] Resultat” (MARX, 1859).
28Ver, capítulo primeiro, seção III. Ianni publica A Sociedade Global, seu primeiro livro sobre a problemática da globalização, ainda em 1992, e a maior parte de sua obra situa-se nos anos 1990, quando era especialmente necessário posicionar-se frente a esse tipo de perspectiva.
37
planetária. E Ianni enfrenta o desafio. Formula uma análise sobre a problemática
da globalização, num esforço para taquigrafar a máquina do mundo (para usar
uma expressão do autor), no Brasil.
Neste capítulo, a intenção é apresentar ao leitor uma abordagem concisa,
embora crítico-analítica, dessas formulações teóricas, partindo de alguns temas
que considero centrais para a compreensão do pensamento do autor. A análise foi
organizada em três etapas. Primeiro, procuro refletir sobre a concepção do
globalismo como um novo ciclo do capitalismo e condição para a emergência da
globalização, buscando precisar suas fronteiras conceituais (I). Em seguida,
discuto a ideia da globalização como novo paradigma das ciências sociais.
Procuro situar essa formulação no conjunto do debate, a fim de melhor explorar
algumas de suas qualidades e insuficiências (II). Com base nisso, dedico a
terceira parte do capítulo à categoria da sociedade global, buscando apontar
elementos para a compreensão de seu efetivo alcance analítico e atualidade (III).
I. O Globalismo: novo palco da história
No epicentro da globalização está, para Ianni, a expansão do capitalismo
em nível mundial. Ao longo do século XX, o capitalismo, entendido como um modo
de produção e um processo civilizatório universal29, logra desenvolver suas
relações, processos e estruturas em dimensão planetária. Trata-se de um novo
ciclo da reprodução ampliada do capital, do próprio capitalismo em processo de
globalização, assinalando uma grande transformação com implicações sociais,
políticas, econômicas e culturais, uma nova fase para a história mundial. É essa
configuração histórico-social, esse novo ciclo do capitalismo, que Ianni identifica
29Levando-se em consideração algumas contribuições e desdobramentos do debate mais recente sobre a globalização, é preciso distinguir entre universal e global (tratarei do tema no capítulo 6, primeira seção). Ianni não chegou, contudo, a incorporar essa diferenciação em seus escritos.
38
com o termo globalismo: um capitalismo de alcance efetivamente global.
Primeiro, o modo capitalista de produção […] define-se originariamente em moldes nacionais, em termos de formações sociais nacionais. A revolução burguesa – madura, tardia ou prematura – expressa a forma pela qual o capitalismo transforma, recria ou supera todas as relações sociais locais e regionais que entravam a emergência da sociedade civil.
Segundo, o capitalismo organizado em bases nacionais transborda fronteiras, mares e oceanos. […] Ao mesmo tempo que subsistem e florescem as formações econômicas nacionais, desenvolvem-se e prosperam os sistemas mundiais. Mas sistemas sempre centralizados, metrópoles simbolizando países dominantes e coloniais, dependentes ou associados. [...]
Terceiro e último, o capitalismo atinge uma escala propriamente global. Além das suas expressões nacionais, bem como dos sistemas e blocos articulando regiões e nações, países dominantes e dependentes, começa a ganhar perfil mais nítido o caráter global do capitalismo (IANNI, 1992: 37-38, grifos do autor).
O globalismo aparece, na elaboração de Ianni, como o nascedouro da
globalização. Sim, é a partir do globalismo, da expansão do capitalismo, que se
abririam, historicamente, as condições e possibilidades para processos
efetivamente globais. Por isso, creio que valha a pena refletir sobre o conceito de
globalismo, como proposto por Ianni, antes dos demais elementos que entendo
como fundamentais no seu pensamento sobre a globalização. Para tanto, é
preciso fazer ao menos três observações.
1) A primeira delas, e também a mais fundamental, diz respeito à distinção
entre globalismo e globalização. Pode-se colocar a questão da seguinte maneira:
o globalismo abre caminho para a globalização, desenvolvendo-se ele próprio
dentro dela. O globalismo constituiria o novo palco da história. Um palco que será,
aos poucos ou de repente, substituído, ou renovado, sem que, no entanto, a
história deixe de existir. Dito de outro modo, para Ianni o globalismo é uma
39
expressão desenvolvida ou um ciclo do capitalismo, no sentido marxiano do termo,
um modo de produção e um processo civilizatório universal; a globalização, por
sua vez, é entendida como um processo ou uma realidade social mais ampla, que
nasce a partir do globalismo, mas que sobrevirá a ele.
2) É nesse sentido que, com o globalismo, surgiriam as condições e
possibilidades para o neo-socialismo, o socialismo de dimensão mundial. Com o
neo-socialismo, anunciar-se-ia também a sua superação – e assim o globalismo
tenderia, ao metamorfosear-se no neo-socialismo, a tornar-se algo distinto. O neo-
socialismo, porém, permaneceria como processo civilizatório em uma sociedade
mundial (ao menos até que, a seu turno, também se metamorfoseasse).
Temos, assim, a distinção lógica entre os processos. O globalismo
engendraria as possibilidades para a formação da sociedade global que, no
entanto, permaneceria após os seu desaparecimento. O globalismo não só
distingui-se como torna-se parte dela. Configura, portanto, o cenário no qual
emerge a globalização e, com ela, a sociedade global. É universalizante por
princípio, mas não eterno. Engendra, em verdade, as condições de sua própria
superação.
[As] experiências socialistas nacionais representam uma base importante para a eleição de meios e modos para a redefinição de novas propostas sobre as condições e as possibilidades de socialismo no mundo. Sim, “socialismo no mundo”, e não apenas em âmbito nacional. A globalização das tensões e contradições sociais, bem como das reivindicações e lutas, lança em nível internacional, ou propriamente global, o que se imaginou que seria viável em nível nacional. (…) Essas são as condições e as possibilidades histórico-sociais do neo-socialismo. Juntamente com as ideias, os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e as correntes de opinião pública, cabe reconhecer a importância e a prevalência das condições histórico-sociais constituídas com a globalização do capitalismo, visto como modo de produção e processo civilizatório. É daí que emergem as novas raízes do socialismo, como modo de produção e processo civilizatório (IANNI, 2004: 353 e 357, grifos do autor).
40
3) Tendo em vista o caráter abrangente do globalismo, como formulado por
Ianni, é preciso também distingui-lo do neoliberalismo. Nesse sentido, é preciso
diferenciar e desvincular a contribuição de Ianni das inúmeras teses
contemporâneas de caráter puramente economicista, que usam o mesmo termo,
carregado, porém, de outros significados30. O globalismo concebido por Ianni diz
respeito não só a um modo de produção e reprodução ampliada do capital em
escala global, mas constitui também um processo civilizatório complexo,
abrangente e ainda por ser desvendado. Engloba, não só economia, mas também
sociedade, política e cultura, em nível local, nacional, regional e mundial. Nesse
sentido, com alguma ousadia, pode-se rearrumar o argumento do autor e afirmar
que um processo civilizatório equivalente ao globalismo seria, para Ianni, o neo-
socialismo, o socialismo global31. Isso implica, no conjunto da teoria ianniana,
compreender o neoliberalismo como uma ideologia (limitadora do globalismo, até
mesmo). Sim, uma leitura mais diligente evidencia, com bastante clareza, que
Ianni trata neo-socialismo e globalismo nos mesmos termos: sendo categorias
histórico-sociais nesse sentido “semelhantes”, é no neo-socialismo, no socialismo
mundial, que o globalismo (ou o capitalismo mundial) se metamorfoseará. O
neoliberalismo apresenta-se, assim, como parte desse processo histórico, como
30O neoliberalismo, como descrito por Ianni corresponde, em seus aspectos fundamentais, à noção de globalismo (Globalismus) de que nos fala, muito criticamente, Ulrich Beck. Tratarei dessa diferença com mais atenção na segunda seção do quinto capítulo.
31A procura pelos sinais históricos da transição do capitalismo para o socialismo em nível mundial aparece em escritos mais antigos, de outros autores. Entre eles, um que parece ter influenciado em grande medida a obra de Ianni, e o debate como um todo (ver capítulo I) foi Immanuel Wallerstein. Ainda no fim dos anos 1970, Wallerstein coloca a questão da seguinte maneira: “temos buscado revisar os 50 anos desde a Primeira Guerra Mundial e os vinte e cinco anos que estão por vir como a fase inicial da transição mundial do sistema mundial capitalista para o sistema mundial socialista. Essa transição não será terminada em meros vinte e cinco anos. Mas, se nos desenvolvemos rapidamente, é importante refletir criticamente sobre experiências iniciais e conduzir as dificuldades de modo crítico” (WALLERSTEIN, 1979: 248).
41
uma das ideologias presentes no globalismo que corroboram, no limite, para o seu
esgotamento, que fomentam as condições e possibilidades para um neo-
socialismo ou socialismo mundial.
É no contexto da globalização que o socialismo se transforma em neo-socialismo. O neo-socialismo […] tem raízes no globalismo. É uma expressão do globalismo, quando os grupos sociais e as classes sociais subalternas expressam o seu protesto, as suas reivindicações, as suas formas de luta e os seus ideais, além das fronteiras estabelecidas, consolidadas, estratificadas, opressivas. […] Sim, as determinações constituídas no âmbito do globalismo são fundamentais para a inteligência, o equacionamento e a realização das condições e das possibilidades do neo-socialismo. […] Sim, o socialismo não é apenas um modo de organizar a economia e a vida social, mas um processo civilizatório de amplas proporções. Transforma mais ou menos profundamente as condições de existência e consciência, o modo de ser, pensar, agir e imaginar. Tem raízes em outros processos civilizatórios, principalmente o capitalista, visto criticamente. Tem raízes no balanço crítico das condições de existência e consciência que prevalecem no capitalismo, também visto como modo de produção e processo civilizatório. Mas abre outras possibilidades e outros horizontes de emancipação e realização, na medida em que busca a globalização a partir de baixo, dos grupos e classes sociais subalternos que compõem a grande maioria da humanidade (IANNI, 1996: 293, 300-301, grifos do autor).
À guisa de sua leitura da obra de Marx, é possível afirmar que o conjunto
dos trabalhos de Octavio Ianni a respeito da problemática da globalização
corresponde a uma reflexão sobre o capitalismo. Do mesmo modo, expressa
também a intenção de captar tensões a partir das quais germina sua superação
em nível local, nacional, regional e mundial. Daqui advém, possivelmente, parte do
seu entusiasmo pelos processos e fenômenos globais: o globalismo anuncia, para
ele, algo novo, simultaneamente angustiante e fascinante. Trata-se, por um lado,
do desconhecido, de uma realidade ampla, cuja inteligência escapa ao alcance do
patrimônio teórico das ciências sociais. Por outro lado, no entanto, representa
também novas possibilidades. É nesse sentido que Ianni atribui às assimetrias e
tensões do globalismo, do capitalismo que se globaliza, o caráter de indícios do
42
surgimento ou ressurgimento de tensões histórico-sociais. Assim, o liberalismo,
metamorfoseado em neoliberalismo, configuraria teórica ou ideologicamente uma
globalização pelo alto, de cima para baixo. Da mesma maneira, o socialismo se
transfiguraria no neo-socialismo, nascido do globalismo, como uma expressão de
tensões e contradições do capitalismo mundial. Em suma, a globalização do
capitalismo é vista como o prenúncio de uma revolução de amplas proporções. No
fundo, Ianni imagina a superação de um capitalismo expandido em nível mundial
por um socialismo global. Um novo (ou renovado) processo civilizatório de uma
civilização planetária.
II. A tentação metodológica
Uma maneira de sintetizar as formas-pensamento dos estudos sociológicos
é agrupando-as segundo dois emblemas fundamentais: o indivíduo – isto é, o ator
social – e, na maior parte dos casos, o Estado (nacional). Esses seriam, na
concepção de Ianni, os grandes emblemas nos quais se baseiam os estudos
sociais. Emblema, para ele, denota um tema que é capaz de açambarcar,
abranger outros. Seguindo-se esse raciocínio, pode-se afirmar que estudos sobre
educação, violência, gênero, trabalho, terrorismo, literatura, classes sociais,
desigualdade, partidos políticos e eleições, mercado e empresa estariam, de
algum modo, atrelados a esses emblemas. Ocorre que, no fim do século XX, o
Estado nacional e seus indivíduos já não parecem ser categorias suficientes para
apreender a totalidade dos fatos. Refletem uma realidade ilusória, porque parcial,
obnubilando a percepção dos fatos que se descortinam para muito além dessas
dimensões, envolvendo-as.
Modificou-se substancialmente o objeto das ciências sociais. O indivíduo e a sociedade, que inspiraram a formação e boa parte de seu
43
desenvolvimento, localizavam-se no âmbito da nação. Ao passo que o indivíduo e a sociedade que desafiam as ciências sociais nesta altura da história localizam-se em algum lugar da sociedade global, determinados também pelos movimentos dessa sociedade (IANNI, 1992: 171)
A emergência de processos de globalização, do globalismo e da sociedade
global configura, para Ianni, uma novidade histórica. Essa nova realidade imporia
uma reestruturação do pensamento social a partir de suas bases, que já não
poderiam ser consideradas suficientes para a inteligência de relações, processos
e estruturas operantes em nível mundial. Nesse sentido, Ianni nos fala de uma
subsunção paradigmática, na qual o globo seria o grande emblema que se
sobreporia a todos os demais, abarcando-os. O emblema da sociedade global
lograria, assim, encobrir os demais, não eliminando-os, mas revestindo-os de um
novo significado, complementando-os, dando-lhes identidade na fábrica do
mundo, em nível local, nacional, regional e, agora, reconhecidamente global.
Este é um momento epistemológico fundamental: o paradigma clássico, fundado na reflexão sobre a sociedade nacional, está sendo subsumido formal e realmente pelo novo paradigma, fundado na reflexão sobre a sociedade global. O conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos de uma realidade que já é sempre internacional, multinacional, transnacional, mundial ou propriamente global. É óbvio que a sociedade nacional continua a ter vigência […]. Mas a sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem metodologicamente, nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações. Aos poucos, e às vezes de repente, a sociedade global subsume formal ou realmente a sociedade nacional (IANNI, 1995: 239-240).
Essa ideia de subsunção paradigmática assume uma posição central na
teoria ianniana da globalização. Em alguma medida, carrega a força de impacto
necessária para “despertar” o ambiente sociológico brasileiro para uma
44
factualidade emergente, de dimensão mundial32. A concepção da globalização
como paradigma das ciências sociais, no entanto, envolve certas “armadilhas”
conceituais que merecem ser examinadas. A obra de Ianni, a partir de um ponto
de vista latino-americano, brasileiro (paulista ou quiçá campineiro, “unicampiano”,
“uspiano”), insere-se em um debate maior, como uma voz que procura articular
uma compreensão de mundo própria. Luta contra um senso comum peculiar, fora
e dentro da academia, partindo de, e dirigindo-se a certos epicentros do debate.
Nesse sentido, como ocorre com o conceito de globalismo, a ideia de paradigma 32 É importante recordar que o termo “subsunção” remete, do ponto de vista cognitivo, ao pensamento de Kant (1787). Na Crítica da Razão Pura (KrV), embora a ideia de subsunção (Subsumtion) não esteja entre os conceitos-chave mais repetidamente presentes na obra, essa noção permite captar o modo pelo qual operam os juízos categóricos e o tratamento dado por Kant à problemática do objeto (Objekt, Gegenstand) de juízo. Note-se que o seu primeiro aparecimento no segundo livro da KrV é destacado pelo próprio autor: “Se o entendimento [Verstand] em geral é explicado enquanto o cabedal de regras, então a faculdade de julgar [Urtheilskraft] será a capacidade de subsumir a regras, isto é, de discernir se algo encontra-se subordinado a uma dada regra (casus datae legis), ou não. [...] É preciso que, em todas as subsunções de um objeto em um conceito, as representações do primeiro e do segundo sejam do mesmo tipo [gleichartig], ou seja, o conceito precisa conter [enthalten] aquilo que é representado no objeto a ser subsumido, pois isso é o que significa a expressão: um objeto estar contido num conceito” (KrV/B: 171 e 176, grifos do autor). Essa ideia de subsunção está ligada ao esforço kantiano para explicar a aplicação de categorias abstratas à intuição sensível. Ela ajuda a compor o elo entre experiência, intuição e conceito, no denominado esquema transcendental, que é tanto intelectual quanto sensível. “O conceito de entendimento inclui a unidade sintética pura do diverso [Mannigfaltige] em geral. O tempo, enquanto a condição formal do diverso de sentido inerente e, portanto, a concatenação de toda representação, inclui um diverso a priori na intuição [Anschauung] pura. Ora, uma determinação transcendental do tempo é de mesmo tipo da da categoria (que perfaz sua unidade), enquanto ela for geral (allgemein) e se assente em uma regra a priori. [...] Disso se depreende que uma aplicação da categoria a fenômenos [Erscheinungen] possibilitada pela determinação transcendental do tempo que, como o sistema dos conceitos de entendimento, possibilita a subsunção dos últimos na primeira [dos fenômenos na categoria] (KrV/B: 177-178, grifos do original). Cabe observar, para fechar esse brevíssimo contraponto, que o esquema transcendental kantiano é um produto da imaginação (Einbildungskraft) – a qual, juntamente com o sentido e a percepção, é vista como uma faculdade primitiva da alma. Sim, a imaginação, que é fonte da síntese do diverso, aparece já aqui como uma das fontes desse juízo transcendental complexo. E é definida por Kant como “a faculdade de representar um objeto, mesmo que ele não esteja presente na intuição” (KrV/B: 151, grifos do autor). Como um contraponto elucidativo, creio que não valha a pena delongar-me mais nesta questão. Caso haja interesse por parte do leitor, recomendo, além da própria Crítica, a leitura de Eco (1997: 74 et seq.), Ricoeur (2006 [2000]: 120 et seq.) e Lebrun (1970, em especial o capítulo XV).
45
parece ser, aqui, ressignificada: Ianni a concebe de um modo distinto em relação
ao de inúmeras vozes que intervêm no debate como um todo, falando-nos da crise
ou da ruptura dos paradigmas nas Ciências Sociais. Sim, Ianni trata do mesmo
fenômeno, mas, ao taquigrafá-lo, esforça-se para lhe atribuir um contorno distinto.
É que o problema fundamental no que diz respeito a essas concepções de
uma crise paradigmática ou de uma ruptura epistemológica reside no fato de que
se pressupõe a existência de uma quebra e (frequentemente a partir dela) também
de oposições no espaço e no tempo. Assim, em lugar do velho, surgiria o novo;
em lugar do local, do nacional ou do regional, o global. Ora, a metáfora da ruptura
denota uma mudança absoluta na medida em que se plasma uma realidade
essencialmente nova. Há, nesse sentido, o risco de uma contradição nas bases do
argumento, no que diz respeito à historicidade do conceito. Como observa Renato
Ortiz, ao longo do desenvolvimento do debate sobre a globalização, a busca por
novas categorias de análise tropeça em um emaranhado de impressões e, dentro
disso,
um aspecto equívoco e omnipresente expressava-se na ideia de 'crise dos paradigmas'. Este era o subterfúgio recorrente, presente nas mais diversas áreas disciplinares, em escritos pós-modernos, de marketing, estudos ecológicos (alguns autores chegavam a dizer que o planeta era o novo paradigma). Esse se fundamentava numa visão dicotômica da história, aplicada, porém, a questões de ordem epistemológica. […] Tudo se passa como se estivéssemos na presença de um movimento que funda um quadro teórico radicalmente distinto e superior ao que estaria esgotado. […] O mal entendido repousa na concepção progressiva que preside o argumento. O raciocínio pressupõe algo que foi superado; seria, portanto, necessário refundar um saber em ruínas (ORTIZ, 2009: 243-244, grifos do autor).
O leitor pode ter a impressão de que é exatamente isso que Ianni faz da
sua teorização dos processos globais. De fato, o autor não escapou
completamente à essa influência. No entanto, insisto, é possível identificar, na sua
46
obra, uma certa dissonância em relação ao que se propunha majoritariamente.
São vários os momentos lógicos da reflexão sociológica [...]. Mas as teorias não os mobilizam sempre nos mesmos termos de modo similar, homogêneo. Aliás, as teorias distinguem-se, entre outros aspectos, precisamente porque conferem ênfase diversa aos momentos lógicos da reflexão. Há conceitos sociológicos que são comuns a várias teorias. Às vezes, o objeto é concebido de maneira semelhante. Mas a interpretação pode não ser precisamente a mesma. E quando a interpretação se revela diversa, logo se constata que a importância relativa dos momentos lógicos da reflexão não é exatamente a mesma. Nesse sentido é que as teorias podem ser mais ou menos distintas, distantes ou opostas. [...] As teorias multiplicam-se. Há contínuas criações quanto ao objeto e método, conceitos e interpretações, temas e linguagens. Em certos casos ocorre a reiteração de princípios explicativos, aperfeiçoados ou não; ao passo que em outros verifica-se algo de novo, a invenção paradigmática (IANNI, 2011: 64 e 68).
A dissonância a que me refiro é precisamente essa ressignificação (ainda
que parcial) da metáfora. No cerne da concepção ianniana está a reformulação e a
subsunção. Na ideia do novo, que se situa no presente, está também o antigo,
assim como as tendências do futuro. Nessa linha, a própria reformulação da
concepção de mudança paradigmática é um sinal de que o autor percebe suas
armadilhas e contradições. Por isso, tendo a compreender esse aspecto da teoria
de Ianni como uma espécie de “tentação metodológica”33. Pode-se pensar, com
alguma margem de acerto, que essa ressignificação tenha sido proposta
precisamente contra um certo senso comum (planetário) recorrente, quando da
emergência do debate. Assim, Ianni taquigrafa a globalização nos termos de um
novo horizonte histórico, pressupondo, portanto, causalidades e consequências,
potencialidades e perspectivas no espaço e no tempo. Nesse sentido, o autor não
formula a noção de paradigma apenas nos termos de um rompimento: ela
33A expressão alude a um ensaio de Ianni, intitulado “A tentação metodológica”, sobre aspectos metodológicos e epistemológicos nas ciências sociais ao longo do século XX. Ele corresponde ao capítulo II de uma publicação póstuma que reúne ensaios do autor – cf. Ianni (2011).
47
significa, no conjunto da obra, uma quebra, uma destruição, seguida de um novo
recomeço, engendrado nas condições latentes dessa grande transformação.
Simultaneamente, envolve a subsunção de processos, relações e estruturas em
nível local, nacional e regional por uma totalidade histórico-social maior, de âmbito
mundial.
III. A sociedade global: sociologia da humanidade
Nesse contexto de mudança no pensamento sociológico, assim como nas
ciências humanas como um todo, Ianni aposta na categoria interpretativa da
sociedade global. O termo foi, acredito, recuperado de outros epicentros do
debate, como vimos anteriormente34. Foi, no entanto, também ressignificado. A
intenção de Ianni era apontar para o fato de que a sociedade global poderia ser
vista como o grande emblema da atualidade. Essa sociedade totalizante teria,
portanto, a capacidade de incorporar o conjunto de problemas estudados pelas
diversas ciências sociais, em nível local, nacional, regional e mundial.
No século XXI, muitos estão empenhados em compreender e explicar as situações, os acontecimentos e as rupturas, assim como as relações, os processos e as estruturas, que se formam e transformam com a sociedade global; uma sociedade na qual se subordinam as sociedades nacionais, em seus segmentos locais e em seus arranjos regionais. Ocorre que a sociedade global, vista em suas implicações simultaneamente econômicas, políticas e culturais, demográficas, religiosas e linguísticas, constitui-se como uma nova, abrangente e contraditória totalidade, uma formação geo-histórica na qual se inserem os territórios e as fronteiras, as ecologias e as coletividades, os gêneros e as etnias, as classes sociais e os grupos sociais, as culturas e as civilizações. Uma totalidade simultaneamente histórica e teórica, ou seja, uma formação social e uma categoria que adquirem predominância crescente sobre umas e outras formações sociais: locais, nacionais e regionais (IANNI, 2004: 20-21, grifo do autor).
34O leitor deve recordar-se do primeiro capítulo, no qual observei que a noção de sociedade global provavelmente foi introduzida no debate sociológico por Niklas Luhmann (1971), como uma das categorias dentro do seu pensamento sistêmico.
48
A meu ver, as partes fundamentais dessa sociedade global não seriam
estados, nem instituições, e tampouco comunidades. Cada um desses elementos
está presente em sua composição, certamente, mas não constituem sua essência.
A sociedade global é, antes de tudo, sociedade. O seu equivalente é a
humanidade. A meu ver, essa pode ser uma chave do pensamento ianniano sobre
a globalização. A sociedade global anuncia a humanidade. E isso, note-se, não
significa eliminar categoricamente diversidades e desigualdades: representa,
antes, uma expansão das fronteiras do pensamento sociológico aos seres
humanos todos. Pode-se dizer que a humanidade ganha, nessa perspectiva, o
status de objeto maior de reflexão das ciências sociais, contemplando outros
objetos e abrangendo-os. É assim que “aos poucos, ou de repente, uns e outros
são desafiados a reconhecer que participam da mesma fábrica, ou máquina.
Indivíduos e coletividades, classes ou grupos sociais, povos e nações, culturas e
civilizações, em diversos arranjos, mesclam-se, integram-se, tencionam-se e
batalham, conferindo realidade à história universal; anunciando à humanidade”
(IANNI, 2004: 17).
A metáfora da sociedade global, como concebida por Ianni, implica ao
menos dois aspectos a serem comentados, no que diz respeito à construção do
conceito. (1°) A sociedade global, como sociedade civil mundial, constitui uma
consequência da expansão do capitalismo enquanto processo civilizatório
universal. Configura a realização máxima da reprodução ampliada do capital, em
escala planetária. Na contramão do raciocínio, porém, pode-se afirmar que
sociedade global pressupõe o modo de produção e reprodução capitalista, seus
ciclos, seu desenvolvimento. Dito em outros termos, a emergência da sociedade
global aparenta estar vinculada ao surgimento do globalismo, entendido por Ianni
como esse ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo
civilizatório de escala mundial. Isso significa, de algum modo, reconhecer que a
49
sociedade global ianniana é capitalista, isto é, comporta-se e constitui-se segundo
as dinâmicas, processos e estruturas de uma compreensão universalizante de
capitalismo. O pensamento é fecundo, mas parece arriscado à medida que
expandimos noções e experiências específicas de uma ideia de capitalismo para
uma dimensão planetária que é, factualmente, desconhecida. Do ponto de vista do
pensamento, o capitalismo pode construir-se como universal, abrangendo
singularidades. No entanto, da perspectiva dos fenômenos sociais, adquire uma
miríade de ressignificações e refrações, desencaixes e assimilações que corroem
as bases de uma sociedade totalizante imaginada nesses moldes.
Na base da ruptura que abala a geografia e a história no fim do século XX está a globalização do capitalismo. Em poucas décadas, logo se revela que o capitalismo se tornou um modo de produção global. Está presente em todas as nações e nacionalidades, independentemente de seus regimes políticos e de suas tradições culturais ou civilizatórias. Aos poucos, ou de repente, as forças produtivas e as relações de produção organizadas em moldes capitalistas generalizam-se por todo o mundo. Alcançam não só as tribos e os clãs, ou as nações e as nacionalidades, mas também os países nos quais se havia criado o regime socialista ou a economia centralmente planificada (IANNI, 1996: 239).
No fundo, trata-se também (2°) de repensar a problemática da construção
do Estado nacional. Sim, sociedade global parece “ocupar” o lugar que pertencia
às sociedades nacionais, aos Estados-nação que, historicamente debilitados,
tenderiam a dissolver-se nessa totalidade planetária. Para Ianni, o Estado se
redefiniria, sendo subsumido por esta nova realidade, perdendo parte de suas
prerrogativas que, ao se desterritorializarem, fugiriam ao seu alcance. No entanto,
essa é uma representação mental da realidade que implica uma insuficiência em
duas dimensões: a factualidade histórica e a teoria social35. Do ponto de vista dos
fatos, é ainda questionável imaginar uma sociedade total que, efetiva e 35No capítulo quinto, trabalharei mais elementos da relação entre globalização e Estado nacional. Por ora, o objetivo é analisar a relação entre o Estado e a ideia ianniana de Sociedade Global.
50
factualmente, subsuma-os, isto é, que englobe os Estados-nação. Isso implica
consequências sociais, políticas, culturais e econômicas empiricamente
desconhecidas. Em resposta a isso, pode-se pensar, com boa margem de acerto,
que Ianni trabalha com tendências, sintomas e possibilidades, uma vez que a
sociedade global está em processo de emergência. Todavia, de um ponto de vista
teórico, o dilema é mais complexo. Os Estados nacionais fundamentam, como
dito, quase todo o patrimônio teórico das ciências sociais. E isso se dá de um
modo às vezes mais penetrante do que possa parecer. Assim, embora Ianni afirme
que se trata de algo novo, tendo a pensar que a noção de sociedade global não
escapa por completo aos moldes de pensamento e imaginação fundados na
categoria dos Estados nacionais.
Talvez valha a pena observar, no entanto, que pensar a sociedade global
como capaz de tomar o lugar do Estado-nação, tanto empírica quanto
categoricamente, não significa preconizar o fim do Estado nacional. Essa seria,
aliás, uma leitura grosseira, seja do fenômeno, seja do autor. Para além disso,
deve-se notar o fato de que Ianni termina por projetar elementos da constituição
do Estado-nação sobre as expectativas que envolveriam a emergência de uma
sociedade global. É como se a imaginação da sociedade global em formação ou
em emergência fosse trespassada pela concepção emblemática da sociedade
nacional. Isso, evidentemente, não tira o mérito de sua teoria. Parece, inclusive,
até certo ponto inevitável, uma vez que, como dito, estudar a globalização significa
trabalhar também no campo das hipóteses e da percepção de fenômenos que
ainda não se apresentam manifestos ou evidentes.
Acontece que o pensamento científico ainda se acha surpreendido pelas novas características da realidade social. Ainda não assimilou a metamorfose da sociedade nacional em sociedade global. […] Quando o Estado-nação se debilita, devido ao alcance e à intensidade do processo de globalização das sociedades nacionais, emerge outra realidade, uma
51
sociedade global, com suas relações, processos e estruturas. Trata-se de uma totalidade histórico-social diversa, abrangente, complexa, heterogênea e contraditória, em escala desconhecida. […] Na medida em que as sociedades nacionais tendem a “dissolver-se” na sociedade mundial, quando esta se torna predominante, pelas determinações que engendra, […] tanto se alteram as suas condições e perspectivas em escala nacional como em escala mundial (IANNI, 1992: 41 e 50).
A ideia de uma sociedade global como proposta por Ianni apresenta, a
despeito dessas insuficiências, uma característica importante que a diferencia da
proposta inicial de Luhmann, nos anos 1970. Ianni concebe a sociedade global
como uma totalidade em formação que abarca diversidades. Isso implica uma
compreensão de sociedade que ultrapasse a ideia de interconexões operando de
modo sistêmico, tendo por base privilegiada a comunicação eficiente de sentido36.
A concepção de Ianni, nessa perspectiva, mostra-se frutífera para perceber
fenômenos e processos, estruturas e relações da sociedade cujo alcance abrange
do local ao mundial, percorrendo suas muitas dimensões intermediárias. É,
certamente, mais difícil de ser trabalhada, por um lado, à medida que desfavorece
uma organização tipológica do pensamento, no sentido que lhe atribuía Weber
(1922). Por outro, no entanto, ajuda a salvaguardar a imaginação (sociológica, ao
menos) da ilusão de que o mundo já teria se globalizado, de que já estaríamos em
plena idade do globo ou globalidade. Não, a sociedade global está em
emergência: essa é uma constatação que Ianni assume como pressuposto em
toda a sua obra sobre o tema. Nesse sentido, Ianni trabalha com tendências
históricas, que ocupam cadeira cativa na orientação de sua percepção das
relações, estruturas e processos globais. Trata-se de uma “sociologia do futuro”,
como ele mesmo a denomina. São, no fundo, especulações ou relações
especulares, nos jogos do espelho (Spiegel) hegeliano.
36As ideias de Luhmann a respeito da globalização foram rapidamente tratadas no capítulo primeiro, seção I, e tornarão a ser abordadas no capítulo sexto, seção II, item 3.
52
Essa sociologia, não obstante, parte de um ponto: o presente. Esse
presente é, hoje, em 2014, pretérito. Por isso, estando distantes ou distanciados
na linha do tempo, podemos identificar consequências, insuficiências e propor
questões com relativa desenvoltura. É preciso, todavia, reconhecer a coragem e a
ousadia crítica de Octavio Ianni. Hoje é possível, no Brasil, desenvolver um estudo
sobre globalização em teoria social sem maiores obstáculos. Ianni não desfrutou
desse privilégio; sim, foi um pioneiro. Trabalhou e produziu um obra sobre o tema
em um momento no qual era preciso, frequentemente, escolher entre o prestígio,
ou mesmo a admiração dos pares, e o compromisso com o ofício de pensar o
social: de taquigrafar a máquina do mundo.
53
Capítulo IV
Filhos do Mundo
Individualização, Cosmopolitização e Modernidade
em Ulrich Beck
54
A Burguesia configurou, através de sua exploração do mercado mundial de consumo, a produção e consumo de todos
os países como cosmopolitas. […] Em lugar da antiga auto-suficiência e insularidade caminha um intercurso em todas as direções, uma dependência, por todos os lados, das nações entre si. E tanto na
produção material, quanto na do espírito. As criações intelectuais de nações particulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e a estreiteza
nacionais tornam-se cada vez menos factíveis e, das muitas literaturas locais e nacionais forma-se uma literatura mundial.
Karl Marx & Friedrich Engels37
Um dos pilares fundamentais do pensamento beckiano é o indivíduo
(Individuum)i. Sim, seu interesse pelo indivíduo está presente na construção de
seus objetos de estudo, análises e diagnósticos desde os seus primeiros trabalhos
de maior envergadura38 até os mais recentes, nos anos 201039. Os indivíduos,
37MARX, K.; ENGELS, F. 1848. Manifest der Kommunistischen Partei. Berlin: Dietz Verlag, 1959. Segue o original: “Die Bourgeoisie hat durch ihre Exploitation des Weltmarkts die Produktion und Konsumption aller Länder kosmopolitisch gestaltet. […] An die Stelle der alten lokalen und nationalen Selbstgenügsamkeit und Abgeschlossenheit tritt ein allseitiger Verkehr, eine allseitige Abhängigkeit der Nationen voneinander. Und wie in der materiellen, so auch in der geistigen Produktion. Die geistigen Erzeugnisse der einzelnen Nationen werden Gemeingut. Die nationale Einseitigkeit und Beschränktheit wird mehr und mehr unmöglich, und aus den vielen nationalen und lokalen Literaturen bildet sich eine Weltliteratur”.
iParte deste capítulo retoma e desenvolve reflexões empreendidas nas fases iniciais da investigação que deu origem à presente dissertação e materializadas em comunicações de pesquisa (cf. ARNAUT 2010, 2011a, 2011b).
38Essa presença pode ser notada já nos primeiros trabalhos de maior fôlego da sua carreira como pesquisador, versando sobre sociologia do trabalho, em que a figura central é, curiosamente, quase sempre a do trabalhador (der Arbeiter) e seu núcleo familiar. (BECK; BRATER, 1977, BECK et al. 1979, 1980). Embora esses escritos não estejam entre os mais relevantes para analisar a visão do autor sobre processos globais (mesmo porque foram elaborados em co-autoria), é curioso notar que neles já estão presentes dimensões que mais tarde orientariam sua percepção e cognição com respeito a fenômenos planetários.
39Refiro-me aqui aos seus trabalhos de um modo geral. É claro que há aqueles em que o domínio do indivíduo é o próprio objeto. Esse é o caso do livro Fernliebe: Lebensformen im globalen Zeitalter (cf. BECK & BECK-GERNSHEIM, 2011). Escrito em parceria com Elisabeth Beck-Gernsheim, sua esposa, o livro apresenta uma análise sobre o fenômeno contemporâneo das relações afetivas (de amizade, amor, sexo etc.) estabelecidas à distância. O livro retoma uma reflexão anterior, materializada em Das ganz normale Chaos der Liebe (Idem, 1990), também
55
enquanto categorias, estão de tal modo amalgamados no pensamento de Beck
que, mesmo quando suas análises ganham intenção e roupagem planetária,
parecendo por vezes privilegiar o conjunto ou o grupo, a comunidade
(Gemeinschaft) ou a sociedade (Gesellschaft), acredito ser possível afirmar, com
boa margem de acerto, que o indivíduo encontra-se, aqui e ali, sempre infiltrado.
Ele opera como um locus privilegiado que parece orientar a percepção do autor.
Porém, perguntar-se-á o leitor, que indivíduo é esse? Quais as suas feições
sociológicas, por assim dizer, e de que modo está ele situado no conjunto do
pensamento beckiano?
Ulrich Beck nos fala de um indivíduo que é herdeiro dos valores iluministas
de liberdade. Num contexto de globalização, é preciso investigar qual o lugar (ou
quais os lugares) desses indivíduos diante das novas possibilidades que se abrem
com a globalidade. Nessa perspectiva, no entanto, é impossível não se inquietar,
de pronto, com uma questão basilar: abrem-se possibilidades? Ou, dito de outro
modo, elas se abrem para quem? Como veremos, a contribuição de Beck para o
debate é altamente perspicaz e relevante. No entanto, talvez caiba questionar em
que medida ela abrange uma variedade maior de agrupamentos sociais
contemporâneos, e não alguns grupos específicos de uma Europa rica ou dita
“ocidental”, tanto de uma perspectiva econômica, como também dos pontos de
vista político, jurídico, social e cultural, seja normativa, seja efetivamente.
O objetivo aqui foi compor um conjunto de notas analíticas a respeito do
pensamento de Beck sobre a globalização, apontando alguns dos seus méritos e
insuficiências. Para tanto, organizei a abordagem da seguinte maneira. Primeiro,
procurei esboçar uma análise crítica da sua noção de individualização, tentando
mostrar que as possibilidades de uma (auto)biografia reflexiva só puderam ser
vislumbradas num contexto histórico, cultural, econômico e político como o
inédito no Brasil. Como o propósito deste capítulo é o de compor uma introdução geral às ideias do autor, e não a textos em particular, não farei uma apresentação mais detalhada desses livros.
56
europeu contemporâneo (I). Então me detive no tema do cosmopolitismo, que se
anuncia como uma metanarrativa do mundo, um prelúdio da globalização,
apontando alguns problemas teórico-metodológicos (II). Finalmente, procurei pôr
em relevo certas dificuldades que, do meu ponto de vista, enfrenta a concepção de
uma modernização da modernidade, do modo como é teorizada por Beck (III).
I. Individualização: metodologia da (auto)biografia
O termo “individualização” é geralmente associado a temas como
isolamento, solidão, desconexão, vazio. Isso nas ciências sociais, nas artes ou no
senso comum ocidentais. Para Ulrich Beck, porém, essa noção é investida de um
novo sentido, diverso: trata-se da individualização da biografia. Isso quer dizer,
fundamentalmente, o seguinte: a biografia (a história de vida dos indivíduos) deixa
de ser padronizada para tornar-se uma biografia escolhida. Passa-se da
impossibilidade de escolha, ao livre arbítrio; isto é, cada um deve operar e persistir
como agente individual de sua própria biografia.
Individualização é um conceito que descreve uma transformação sociológica e estrutural de instituições sociais, e a relação do indivíduo para com a sociedade. Esse não é simplesmente um fenômeno da segunda metade do século XX. Fases históricas anteriores ocorreram na Renascença, na cultura cortesã medieval, no ascetismo interior do Protestantismo, na emancipação dos camponeses da servidão feudal e no afrouxamento (loosening) dos laços familiares inter-geracionais no século XIX e início do século XX. A modernidade europeia liberta pessoas de papéis historicamente atribuídos. Ela solapa elementos tradicionalmente assegurados, tais como fé religiosa, e cria, simultaneamente, novas formas de comprometimento social. Eu utilizo o conceito de individualização para explorar, não apenas como pessoas lidam com essas transformações, em termos de sua identidade e consciência, mas também como suas condições de vida e padrões biográficos têm mudado (BECK, 2001: 202).
Os indivíduos recriam-se, na idade do globo (globalidade), como filhos da
liberdade (Kinder der Freiheit). Assim acontece nas famílias ocidentais, por
57
exemplo, que se reestruturam em diversas dimensões: os papéis dos sexos (ou
gêneros), a divisão sexual do trabalho entre mulheres e homens, ou a estrutura do
casamento, são processos que não podem mais ser compreendidos,
satisfatoriamente, apenas com base em critérios empíricos de renda familiar, por
exemplo, mas devem ser vistos como experiências de riscos pessoais. Pode-se
captar o fenômeno também no âmbito do direito: os direitos sociais são, na forma
e na prática, direitos individuais (mais precisamente dos indivíduos trabalhadores,
ativos ou temporariamente fora do mercado de trabalho). Assim também ocorre
nos sistemas educacionais, onde há uma crescente busca, não por
desenvolvimento cognitivo ou erudição, mais abstratos, mas sim por um
“certificado” (do curso de inglês, de informática ou de mestrado), um título ou
colocação objetiva (e, aparentemente, menos arriscada) que ajude a delinear
claramente o caminho para aquilo que se pretende ser ou fazer. No fundo, tudo é
obrigatoriamente uma questão de escolha, e muito mais o que se pensa ou faz, do
que o que se é, de fato.
Usando a expressão de Sartre, as pessoas são condenadas à individualização. A individualização é uma compulsão, mas uma compulsão pela fabricação, o autoprojeto e a auto-representação, não apenas da própria biografia, mas também de seus compromissos e articulações à medida que as fases da vida mudam, porém, evidentemente, sob as condições gerais e os modelos do welfare state, tais como o sistema educacional (adquirindo certificados), o mercado de trabalho e a regra social, o mercado imobiliário e assim por diante. Mesmo as tradições do casamento e da família estão se tornando dependentes de processos decisórios, e todas as suas contradições devem ser experimentadas como riscos pessoais (BECK, 1997: 26).
Estamos diante de uma boa interpretação. De fato, uma bela narrativa.
Implica, porém, algumas dificuldades. O conceito de individualização em Beck
aponta para o desenho de uma sociedade ocidental, pós-revolução industrial, pós-
welfare state. Esse indivíduo que individualiza-se reflexivamente pressupõe uma
58
sociedade de trabalho industrial desenvolvida, algo que surge e ganha corpo a
partir dos anos 1960, em alguns poucos países industriais do ocidente. (Sim,
porque mesmo as “fases históricas anteriores” que porventura possam ser
apontadas caracterizam-se com base em uma visão à posteriori – o que é
compreensível, em se tratando de um conceito “novo”). Assim, identificado esse
limite, tem-se uma questão de natureza lógica: se o aparecimento desse indivíduo
é consequência de uma determinada sociedade, sem esta não há como ele existir.
Aqui mora uma parte do problema. Mais adiante, tratando dos temas do
cosmopolitismo e da modernização reflexiva, teremos ocasião de observar
algumas características dessa sociedade específica, identificando pontos
importantes, fortes e problemáticos, na análise beckiana. Neste momento, porém,
convido o leitor a deter-se no exame do conceito em si, antes de “contextualizá-lo”,
o que, imagino, ajuda a compreender boa parte das suas dificuldades.
Para tanto, vislumbremos um exemplo heurístico, através do qual é possível
captar alguns pontos que merecem atenção. Beck narra a seguinte crônica, que
tem como personagem central uma senhora “alemã”.
Uma senhora de 84 anos. Onde ela vive...? Assim começa a história. De acordo com as estatísticas oficiais, ela mora há mais de trinta anos, sem qualquer interrupção, em Tutzing, à beira do lago Starnberger. Um caso típico de imobilidade (geográfica). Na verdade, nossa senhora idosa viaja pelo menos três vezes por ano por alguns meses ou semanas para o Quênia (geralmente dois meses durante o inverno, três ou quatro semanas na Páscoa, e mais outra vez durante o outono). Onde ela está “em casa”? Em Tutzing? No Quênia? Sim e não. No Quênia ela tem mais amigos do que em Tutzing, convive num amplo círculo de relações com africanos e alemães, entre os quais alguns “moram” nas vizinhanças de Hamburgo, embora todos “sejam” de Berlin. Ela se diverte mais no Quênia do que em Tutzing, cidade da qual também não abre mão. Na África ela é recebida e acolhida pelos nativos, que a convidam para permanecer em suas casas. O bem estar de sua velhice é devido ao fato de que no Quênia ela “é alguém”, tem uma “família”. Em Tuzing, onde está registrada [gemeldet], ela é ninguém. Lá, diz ela, vive “como os pássaros cantores” [Singvögel].
59
E Beck termina a narrativa.
Os conhecidos que ela encontra no Quênia, com os quais vive em uma “comunidade” bastante peculiar [besondere], também vieram da Alemanha, mas se estabilizaram entre os lugares e continentes. Doris, quarenta anos mais nova do que ela, casou-se no Quênia com um índio (muçulmano), mas retorna periodicamente à Alemanha para lá, ou aqui (dependendo do ponto de vista a ser adotado), receber seu dinheiro e arrumar a casa e o jardim que possui em Eifel. Ela se sente bem tanto num lugar quanto no outro, o que não quer dizer que as viagens constantes não a cansem. A “saudade de casa” tem, no caso da senhora idosa, duas faces, dois tons: ela pode evocar tanto Tutzing, quanto o Quênia. O ponto de origem dessa voz talvez dependa, em última análise, do lugar em que ela se encontre (BECK, 2007: 127-128, grifos do autor).
A narrativa é curiosa, e toca em pontos centrais para a compreensão
beckiana sobre a globalização.
Primeiro, há uma separação entre dois planos: o aqui e o lá, que se
(con)fundem num oximoro “glocal”. Deve-se observar, quanto a isso, que o
conceito de “glocalização” foi forjado nos anos 1990 por Roland Robertson, e
influencia de maneira categórica o trabalho de Beck. Robertson, contra uma visão
unívoca (e, portanto, reducionista) do mundo, parte da premissa de que a
globalização envolve não apenas a particularização do universalismo, como
também a universalização do particularismo (ROBERTSON, 1992). A ideia de
“glocalização” visa, para esse autor, afastar a confusão entre globalização e
homogeneização, forjando um conceito que evoque uma dimensão espacial, para
além da noção de processo temporal (temporal process) que a globalização
suscita per se (ROBERTSON e WHITE, 2003). No fundo, Beck está interessado
em demarcar uma fronteira importante entre uma análise cultural da globalização
(à moda da cultural theory) e certos pressupostos das teorias de um sistema
mundial. Ele a formula no seguinte axioma:
60
A “cultura global” não pode ser compreendida de modo estático, mas apenas como um processo contingente e dialético (e que já não permanece restrito, de modo economicista, à sua lógica do capital, aparentemente unívoca) – segundo o modelo da “glocalização”, que compreende e desvela [begriffen und entschlüsselt] elementos contraditórios em sua própria unidade. Nesse sentido nos é permitido falar de paradoxos de culturas “glocais” (Ibidem: 91, grifos do autor).
Segundo, é preciso observar que essa velhinha relaciona-se em um curioso
círculo de africanos e alemães. Por que alemães? E por que “africanos”? As
palavras são eloquentes, às vezes mais que o desejável. A senhora da narrativa
beckiana convive com um grupo específico (alguns alemães cosmopolitas) e com
um conjunto amorfo (“africanos”). Pode-se imaginar, sem maiores problemas, que
os alemães convivam entre si, neste gueto queniano-germânico pitoresco, porque
não poderiam se comunicar com muitas outras pessoas. No Quênia talvez haja
menos dificuldades uma vez que muitos grupos no país falam inglês (vale lembrar
que o Quênia esteve sob domínio britânico durante parte dos séculos XIX e XX).
Note o leitor que Beck não narra o momento em que as personagens procuraram
aprender o suaíli, ou um dialeto local, como certamente aconteceria, imagino, se
fosse um queniano que chegasse à Tutzing. Dito mais explicitamente, há aqui uma
hierarquia cosmopolitista, legitimada por uma visão teórica de pretensões globais.
A África aparece aqui como uma ideia abstrata, distanciada, reduzida a uma
totalidade obscura, um monólito, uma “África que existe em Nottingham”, para usar
uma expressão do autor40. É uma “África” que continua distante, pequena, fora de
foco, mesmo estando debaixo do nariz.
No fundo, é o mesmo que assistir, em 1569, a Gerard Mercator expondo
sua Projeção Cilíndrica do Globo Terrestre (ainda hoje muito usada), na qual a
Europa se apresenta maior que a América do Sul (que é quase duas vezes mais
40Beck refere-se à ideia abstrata que parecem fazer de África os descendentes de imigrantes africanos das comunidades situadas nessa região da Grã-Bretanha.
61
extensa), e a Índia, menor que a Escandinávia (que tem cerca de um terço seu
território). Sim, essa cosmopolitização, como aparece, é europeia, a própria
palavra já nasce grega. A velhota alemã, que vive “transnacionalmente” e nem
sabe mais qual é de fato a sua casa, é cosmopolita. O africano que vai à Europa é
imigrante, ilegal ou representante de um determinado povo com o qual os
europeus se sentem em dívida historicamente. O mesmo valeria, com algumas
adaptações, para latino-americanos, árabes, europeus do leste ou turcos. O fato é
que não há cosmopolitização para todos. O mundo continua sendo apenas para
alguns.
Terceiro, há aqui uma confusão com a ideia do viajante. Para ilustrar essa
parte do meu argumento, caberia estabelecer um breve contraponto. Certa feita o
célebre jornal alemão Spiegel Online (SPON) publicou um relato semelhante
àquele que nos narra Ulrich Beck, intitulado “Warum bist du bloβ so deutsch?
(Abschied vom geliebten Land)” [Por que você é assim, tão somente alemão?
Adeus à terra amada] (FLOHR, 2009). A matéria consistia num relato de Markus,
um rapaz alemão que viaja a Israel. Separa-se de sua terra, da namorada, do que
lhe é familiar; vai a uma outra parte do mundo (note-se, nem tão distante assim,
seja geográfica, seja historicamente). Markus relata sentir-se como se carregasse
uma mochila cheia de pedras preciosas e, em alguma medida, questiona a sua
própria “germanidade”. Insinua mesmo que, mais tarde, quando sua namorada
termina com o relacionamento, ela o tenha feito por considerá-lo “demasiado
alemão”. Israel aparece aqui como uma experiência mais rica que a vivenciada na
Alemanha. É à primeira, e não à segunda, que se refere o subtítulo “Adeus à terra
amada”. Ele regressa à Alemanha. Israel torna-se uma imagem do distante; com
efeito, uma vivência cosmopolita. E aqui cabe um esclarecimento. O problema não
está em viajar. Markus poderia ser um mochileiro brasileiro, ou um missionário
canadense, não importa. O ponto é a confusão entre a possibilidade de uma visão
mais cosmopolita e a multiplicidade de pontos de vista. Trata-se de observar que o
viajante é (ainda) um “outro”, uma alteridade; de distinguir entre Abschied von
62
einem geliebten Land, adeus à uma terra amada, e Abschied von der Heimat,
adeus à minha terra.
Note o leitor que se trata de um ponto difícil, simultaneamente abstrato e
concreto. Entretanto, uma análise como a proposta aqui parece conferir um pouco
mais de realismo (ou realidade) à uma narrativa parece idealizada, focada num
tipo de perspectiva do “eu”, cosmopolita e livre, que esquece de um “nós”, do qual
ele parte, e de que também não pode tão facilmente se libertar. Markus partira no
final de Julho e retornara no início de Setembro do mesmo ano. Aproximadamente
um mês de cosmopolitismo. Menos de dois meses depois, publicou, no jornal
mencionado, trechos do seu diário de viagem, inclusive narrados em vídeo. Esse
material, é claro, foi dirigido a um público leitor bastante específico: europeus,
germanófonos, alemães – sem mencionar o funil intelectual, que também mostra-
se acirrado na “Europa culta”, como se costumava dizer, poucas décadas atrás.
Ora, o relato de Markus poderia ser substituído facilmente por outro, de um
viajante qualquer, e guarda importantes semelhanças com o da velha senhora,
narrado por Beck. É curioso perceber que, em ambos os casos, há um domínio do
indivíduo41, que se percebe como uma espécie de transeunte mundial cujos
movimentos do ponto de vista do espaço são voluntários. (Muito embora esse
deslocamento não seja suficiente, note-se, para provocar uma alteração
substancial em seus pontos de vista.)
Beck apega-se à observação de que as experiências e impressões de
indivíduos podem expandir-se pelo planeta. Como venho procurando sustentar, é
através dessa globalização de particulares que Beck constrói seu cenário
sociológico. É preciso, com efeito, dirigir uma crítica à universalização de certas
ocorrências particulares, porquanto desmedida. Por outro lado, contudo, é preciso
41 A expressão é inspirada no termo “domínio do eu” (domain of the self), usada por Richard Sennett (1977).
63
observar e reconhecer o valor metodológico da opção pelo enfoque no indivíduo,
pela orientação do pensamento a partir dessa categoria. Afinal, perceber-se como
um indivíduo sem fronteiras, positivamente desterrado, é uma possibilidade
bastante nova na história e fascinante do ponto de vista sociológico. Trata-se, em
certo sentido, de uma efetivação, malgrado todos os limites, de um velho sonho
europeu (e alemão, em particular) que vislumbra a formação de uma sociedade
planetária.
Quarto e último, a tal senhora, Doris e seus vizinhos viajam, escrevem suas
biografias no Quênia (no Japão ou no Peru) porque podem. Note-se que Doris
retorna à Alemanha frequentemente, para “receber seu dinheiro”. Certamente não
seriam condenados às mesmas escolhas se tivessem de vencer a violência no
subúrbio de Nova York ou na Cidade do México, ou mesmo se tivessem de se
sustentar numa pequena aldeia russa ou tibetana. Talvez suas amizades não
fossem tão interessantes para os amigos africanos (há também o outro lado da
moeda). Talvez não pudessem comprar a passagem aérea. Talvez nem
soubessem do que isso tudo se trata.
Pensar um processo de individualização reflexiva, no qual o indivíduo
disponha dos meios e possibilidades para escrever sua autobiografia, segundo
suas próprias escolhas, isso tudo implica uma consequência lógica: é preciso que
esse indivíduo tenha a oportunidade de escolher. A essa altura o leitor talvez já
não se pergunte mais quem disporia desse tipo de oportunidade. A questão seria,
de certo, outra: como, de que maneira essas possibilidades de escolha se
apresentam ou, ainda, de onde provêm. Aqui se inserem outros dois temas,
centrais à narrativa beckiana. São eles o cosmopolitismo e a modernização da
modernidade, ou modernização reflexiva. Vamos por partes. Vejamos o primeiro
deles.
64
II. Cosmopolitização, cosmopolitismo: interlúdio da globalização
Se o indivíduo pode escolher, é porque há (ou devem existir) opções,
alternativas. A cosmopolitização diz respeito, para Beck, a um conjunto de
processos de caráter transnacional, envolvendo a aceleração, intensificação,
circulação, difusão, de bens tecnológicos, riscos ecológicos, processos
migratórios, cidadanias múltiplas, viagens, mídia, ciência, criminalidade, estética,
bens culturais. Isso empiricamente verificável, factual. O indivíduo beckiano tem
(ou deve ter) acesso a esses processos. O cosmopolitismo seria uma espécie de
interlúdio normativo da globalização. Constitui o eixo sobre o qual se
intensificariam as relações, estruturas e vínculos entre os indivíduos e grupos, em
nível local e mundial, em dimensão cultural, econômica, política e normativa.
Beck chega mesmo a advertir de que não se deve confundir
cosmopolitização (uma vez que o sufixo denota um processo dinâmico) com
algum tipo de processo linear ou normativo, como o cosmopolitismo kantiano, cuja
consequência “direta” seria a sociedade mundial (Weltgesellschaft) cosmopolita.
Ele adverte, mas nem por isso deixa de fazê-lo. O discurso contradiz a
advertência. Se é evidente que a cosmopolitização é um processo repleto de
contradições que, do ponto de vista sociológico, trazem consigo inúmeras
incertezas e insuficiências, trata-se também de uma narrativa muito próxima do
idealismo (e até mesmo do teleológico). Isso não representa necessariamente um
demérito. Em certo sentido, Hegel, Marx e, especialmente, Kant elaboraram trilhas
de pensamento e imaginação nas mesmas diretrizes. “Idealismo alemão”, talvez
pudéssemos chamar assim. Para além dos fatos, possibilidades e
improbabilidades, paira o desenho de uma ideia, de um ideal, algo em cuja direção
65
caminham todos os acontecimentos, processos, mudanças, fenômenos. Há uma
espera por um vir-a-ser, um constante “estar a caminho de algo” (auf dem Weg)42.
Dentro dessa perspectiva, estaríamos a caminho de uma nova sociedade,
uma sociedade mundial cosmopolita, que é produto, consequência, de uma
modernização da modernidade, uma modernização reflexiva, que desemboca
numa segunda modernidade (esse é o tema da terceira parte deste capítulo).
Aqui, o importante é ter em mente que o cosmopolitismo é uma trilha aberta pelo
desenvolvimento dessa segunda modernidade, e (como veremos mais adiante)
pelas consequências, não do fracasso, mas do sucesso da primeira modernidade,
da vitória da sociedade industrial.
“Cosmopolitismo” significa – como mostrou Immanuel Kant, 200 anos atrás – ser um cidadão de dois mundos – “cosmos” e “polis”. Isso implica cinco diferentes dimensões, distintas entre afastamentos [otherness] externos e internos. Externamente, significa: (a) incluir o afastamento da natureza; (b) incluir o afastamento de outras civilizações e modernidades; e (c) incluir o afastamento do futuro; internamente, significa: (d) incluir o afastamento do objeto; e (e) superar o (estado de) controle da racionalização (científica, linear) (BECK, 2002: 18, grifos do autor).
O cosmopolitismo pressupõe o “cosmos” e a “polis”. Pressupõe uma
natureza afastada, o futuro afastado, civilização, cidadania e modernidade. Implica
uma racionalização a ser superada. Os pilares do cosmopolitismo são tão
europeus quanto os termos nos quais são descritos, desenhados. Assumindo
42 O leitor pode se perguntar: será que os trabalhos de Octavio Ianni não incorreriam nas mesmas idealizações? De fato, é possível pensar que o conceito de neo-socialismo, como formulado por Ianni, constitua uma idealização, uma utopia. O próprio autor reconhece isso. No entanto, não me parece que o neo-socialismo esteja conceitualmente vinculado aos processos, relações e estruturas que envolvem a emergência da globalização – caracteriza muito mais uma aposta em seus desdobramentos futuros. Não é um eixo sobre o qual a globalização se desenvolve, mas apenas uma tendência ou uma possibilidade.
66
outro ponto de vista, latino-americano, brasileiro, pertencente a uma semiperiferia
mundial, à modernidade periférica, a minha proposta é simples: tudo isso só pôde
ser percebido no interior de uma sociedade onde se vivenciavam esses
processos.
Beck propõe uma conexão entre uma dimensão interna, de feição subjetiva,
e outra externa, objetiva. Esse tipo de análise, que me parece um equívoco
teórico-metodológico, também se manifesta, de modo embrionário, na teoria da
sociedade de risco (Risikogesellschaft), a partir da qual o autor tornou-se
conhecido. Há uma confusão entre o normativo e o empírico, entre o que deveria
(ou poderia) ser, e o que é, de fato. A expansão dos riscos em nível mundial é o
que constituiria uma sociedade mundial de risco. Risco, aqui, significa que as
instituições da própria sociedade industrial perderam o controle sobre (ou a
capacidade de compensação das incertezas geradas pelas) consequências do
desenvolvimento da produção industrial. É, assim, também uma consequência de
um certo tipo de modernização, pressupondo-o, portanto.
A categoria do risco defende um tipo de pensamento e ação social que não foi de forma alguma percebido por Max Weber. É pós-tradicional e, em certo sentido, pós-racional, pelo menos no sentido de não ser mais instrumentalmente racional [post-zweckrational]. Entretanto, os riscos têm sua origem precisamente no triunfo da ordem instrumentalmente racional. Somente depois da normalização, seja de um desenvolvimento industrial além dos limites do seguro, seja do questionamento e da forma perceptível de risco, torna-se reconhecível que – e em que extensão – as questões de risco anulam e fragmentam, por seus próprios meios e de dentro para fora, as questões de ordem. Os riscos tornam-se mais evidentes na matemática. Estes são sempre probabilidades, e nada mais, que não excluem nada. Hoje em dia é possível afugentar as críticas com um risco de quase zero, somente para lamentar a estupidez do futuro público – após a ocorrência da catástrofe – por má interpretação das declarações de probabilidade. Os riscos são infinitamente reprodutíveis, pois se reproduzem juntamente com as decisões na sociedade pluralista. Por exemplo, como os riscos das empresas, dos empregos, da saúde e do ambiente (que por sua vez se transformam em riscos globais e locais, ou importantes e sem importância) devem se relacionar um com o outro, se comparados e colocados em uma ordem hierárquica? (BECK, 1997: 20).
67
Se o futuro é construído intencionalmente, há que se enfrentar sempre a
escolha entre duas ou mais possibilidades. Sim, somos livres para escolher e,
note-se, escolher racionalmente. O risco tem uma dupla face: a ameaça e a
oportunidade. É uma categoria da probabilidade, e só podemos entendê-la por
meio do cálculo. Trata-se de uma dimensão impalpável, do ponto de vista
empírico, e que não pode ser estimada com qualquer precisão, seja sociológica,
jurídica, ou matematicamente, no Brasil, na Alemanha, ou no Butão.
Em comparação aos brancos, os nativos possuem uma percepção bem menor dos riscos da vida. (...) Conformados com o imprevisto e acostumados com o inesperado, os quicuios [um dos grupos étnicos do Quênia] nisto se distinguiam dos europeus, a maioria dos quais procura se precaver contra o desconhecido e a fatalidade. Já o negro mantém relações amistosas com o destino, ao qual sempre esteve submetido. De certo modo, o destino é como o seu lar, a obscuridade familiar da choça, a natureza profunda de suas raízes. Por isso, enfrenta todas as mudanças da vida com grande tranquilidade (BLIXEN, 1937: 32-38).
Beck não sugere que o mundo não já fosse arriscado anteriormente. Trata-
se de notar que a natureza dos riscos seria, hoje, outra. Eles são produto da
própria ação humana, de escolhas da humanidade, que se vê obrigada a enfrentá-
los (BECK, 1986, 2000, 2008)43. Precisamente aqui mora o elo entre risco,
43 Dado o caráter metateórico e imanente da análise que pretendo desenvolver, preferi evitar referências a comentadores tanto quanto possível. Além do mais, o recorte da cognoscibilidade de processos globais dificulta a recuperação de quase todos os bons estudos sobre o autor, uma vez que o foco quase sempre recai sobre o conceito de risco, de sociedade de risco (nacional ou mundial), reflexividade etc., e menos sobre a sua sociologia da globalização. Aliás, como o leitor notará, esforcei-me para desagregar analiticamente a noção de risco das categorias mobilizadas por Beck na tentativa de compreender o fenômeno da globalização. Conquanto seja de importância irrefutável, a noção de risco tende a preencher em demasia a leitura dos trabalhos de Beck e, assim, tende a ofuscar os demais alicerces do seu pensamento. Ironicamente, a supressão analítica do risco, permite tornar mais vulneráveis e, portanto, mais apreensíveis outras categorias que norteiam a percepção do autor. Ademais, já existem abordagens bastante avançadas das variadas formas que a ideia de risco assume e com que se desenvolve no pensamento de Beck. Entre elas, vale a pena citar Bosco (2011, 2012), Costa (2000, 2004, 2006), Ferreira (2006, 2011),
68
cosmopolitismo e globalização. Os riscos tornam-se cada vez mais globais, e isso
envolvendo indivíduo, sociedade, economia e política. Apontam para uma
sociedade mundial unida pela possibilidade da fortuna ou da desgraça. O tema da
energia nuclear é, nesse sentido, um fenômeno heurístico. A existência de uma
força capaz de destruir o mundo um sem número de vezes implica, de imediato,
duas possibilidades: extraordinárias oportunidades de mercado, de
desenvolvimento em C&T, entre outras, por um lado e, por outro, a visão do fim do
planeta. É realmente interessante a observação de que isso tende a engendrar
uma espécie de solidariedade mundial, unindo a humanidade pela incerteza. E
guarda relação com temas como desenvolvimento sustentável, responsabilidade
cidadã, crise ecológica, e assim por diante. Põe em relevo uma nova posição
ocupada pela (ou atribuída à) Natureza (com N maiúsculo): quebra-se a dicotomia
iluminista “natureza versus sociedade”, a Natureza entra para a sociedade, para o
nosso cotidiano, toma parte nas vidas dos indivíduos e, inclusive, nos riscos por
eles enfrentados. As catástrofes naturais, por exemplo, são imprevisíveis, por um
lado, mas, por outro – embora em medida desconhecida –, provocadas pela ação
dos indivíduos e pela produção industrial em escala global. Por baixo de tudo isso,
há a ideia de um mundo que é de todos e de cada um ao mesmo tempo.
Indivíduos que devem ser livres para tomar decisões arriscadas e sem contar com
a proteção de um aparelho institucional estatal, com uma visão cosmopolita,
apontando para a globalidade.
Guivant (2001), Áurea Ianni (2010, 2012), Vandenberghe (2001). Em outra oportunidade, esbocei uma análise a respeito do papel das sociologias do risco na emergência da sociologia da globalização, focalizando os aportes de Beck e de Niklas Luhmann (cf. ARNAUT, 2013b).
69
III. Modernização da Modernidade: raízes da globali dade, caminhos da
globalização
O leitor mais diligente vai perceber que, na minha exposição, tomei uma
decisão ousada: inverti a ordem dos argumentos na teoria beckiana. O meu
propósito, com isso, foi evidenciar alguns dos seus problemas e insuficiências.
Note-se, entretanto, que se trata de enfrentar uma teoria sofisticada, refinada do
ponto de vista sociológico, de modo que desmembrá-la e apontar suas
dificuldades é sempre uma tarefa difícil. Minha intenção foi, neste espaço
reduzido, tratar de três pontos centrais: a individualização, a cosmopolitização e a
modernização reflexiva. Apresento-os dessa maneira, porém sua ordem lógica
seria exatamente a oposta. São fenômenos que engendram a si mesmos, e que
produzem, como consequência, outros processos. Assim, a partir da
modernização da (primeira) modernidade industrial, pode surgir uma segunda
modernidade, reflexiva, com a qual irrompe a possibilidade de visões e vivências
cosmopolitas, acompanhadas de um processo de individualização das biografias
em escala mundial. Isso implica uma outra vivência da Política, como veremos
mais adiante44, e também das relações afetivas – o “amor”, em especial (BECK,
2011). Como dito anteriormente, a modernização reflexiva, que desemboca na
segunda modernidade (zweite Moderne) é o pilar da cosmopolitização e da
individualização da biografia. Apresentar estes temas desacompanhados de sua
base, suas raízes, proporcionou a oportunidade de visualizá-los de maneira mais
contundente, por estarem despossuídos de parte de sua beleza, de seu contexto,
de sua força. Trata-se de uma estratégia discursiva e argumentativa, que torna
mais fácil captar e pôr em relevo os problemas implícitos numa narrativa, no caso
a beckiana.
44 Ver capítulo quinto.
70
Mas em que consiste, afinal, a modernização reflexiva? A ideia é
relativamente simples. Beck a concebe como o processo de passagem da
sociedade industrial à sociedade de risco. O raciocínio segue o modelo (histórico)
da transição da chamada modernização simples, à modernização industrial, na
Europa do século XIX (ou parte dela). Há, porém, um ponto que distingue
decisivamente os dois momentos: o sujeito da análise não é um processo
revolucionário, tampouco uma crise da sociedade industrial, mas sim o sucesso da
modernização ocidental. Trata-se de uma nova fase da história do mundo, na qual
um tipo de modernidade sucede a outro, estabelecendo uma relação de
causalidade. A segunda modernidade advém da vitória da primeira, a modernidade
simples caminha para a modernização reflexiva.
O indivíduo logra “libertar-se” das amarras da sociedade industrial, e vê-se
mergulhado numa sociedade de risco mundial [Weltrisikogesellschaft]. Aqui, as
raízes dessa visão ou consciência cosmopolita. Pode-se, então, dizer que agora
encaixam-se todos os pontos que levantei. Numa situação de globalidade,
estaríamos condenados a experimentar essa liberdade de escolha, dirigida a uma
individualização reflexiva, essa compulsão por escolher diante do imperativo de
escrevermos, numa espécie de “faça você mesmo”, nossas próprias biografias.
Essas escolhas são consequência de uma visão de mundo ampla, a ponto de,
passado o deslumbramento da (primeira) modernidade, da Revolução Industrial e
da Belle Époque, desvelar-se um fato de todo simples: o mundo apresenta riscos,
incertezas, e a ciência e a racionalidade ocidentais não são capazes de dominá-
los. Este é (mais) um dos paradoxos do mundo contemporâneo: frente a uma
situação de progresso técnico-científico jamais imaginada na história, vemo-nos
acuados, ainda que “livres”, diante do não conhecimento, das infinitas
possibilidades que a nossa razão não é capaz de alcançar.
Mais uma vez, como dito para os demais pontos (a individualização e o
cosmopolitismo), a modernização reflexiva implica uma inadequação categórica,
71
histórica e empírico-metodológica, quando pensada fora de seu contexto
específico, de uma situação particular experimentada por parte da Europa
ocidental contemporânea, parte da América do Norte e Japão. Perdoe-me o leitor,
caso eu seja demasiado categórico neste apontamento histórico-geográfico. Meu
esforço é para mostrar, ou propor, o seguinte: trata-se de um fenômeno que
pressupõe acontecimentos, estruturas, processos e relações que não podem ser
observados fora de algumas situações bastante específicas. Aplicada à realidade
brasileira ou queniana, do Haiti ou da Índia, a noção de modernidade toma formas
inteiramente distintas e mesmo, em certos casos, não toma forma alguma. Sim, a
modernidade (ainda) não alcançou o mundo todo. Mesmo na Inglaterra, França,
Japão ou Estados Unidos, nem todos são filhos da liberdade. Há os filhos guerra,
da miséria, da fome, da exclusão, da violência, do medo, da doença, e também da
nobreza, da abastança, da força. Todos nascem, crescem e morrem neste mesmo
planeta. As mães são muitas, por assim dizer, embora todos sejam filhos do
mesmo mundo. Certamente, o problema não está em teorizar os movimentos da
modernidade europeia, mas sim em pensar que ela pode (vir a) ser experimentada
globalmente.
O leitor talvez já tenha percebido que, nesse debate, também está presente
outra questão, menos interessante, porque grosseira, mas muito conhecida nas
ciências sociais surgidas no velho mundo, ao menos do nosso ponto de vista.
Refiro-me à presença de um certo eurocentrismo. No fundo, um problema da
modernidade (primeira, segunda, décima, não importa) é que ela se apresenta
como um fenômeno de centro, propagado globalmente através de processos
hierárquicos que se manifestam em nível local, nacional, regional e mundial. E,
diga-se de passagem, isso foi percebido, exemplarmente, por Max Weber. Já no
começo da segunda edição de sua Ética, o autor esclarece que teoriza um
“espírito” específico, aquele do “capitalismo moderno, naturalmente. Escusado
dizer, dada a própria colocação do problema, que aqui se trata apenas do
capitalismo da Europa ocidental e da América do Norte. ‘Capitalismo’ existiu na
72
China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade e na Idade Média. Mas, como
veremos, faltava-lhes precisamente esse ethos peculiar” (WEBER, [1920] 2004:
45, grifos do autor)45.
Estamos diante de uma hierarquia mundial reeditada. Quem está no topo
pode apreciar, no conforto da polis, seu cosmos ampliando-se em dimensão
mundial, numa visão cosmopolita do mundo. Quem não está, talvez não consiga
ver. Por isso, sou prudente, advirto mais uma vez que a probabilidade de eu estar
completamente errado é enorme. Resta a visão do seguinte quadro. Na
perspectiva de Darwin, meus descendentes (e, se for o caso, os do leitor) talvez
possam, aos poucos, evoluir e compreender as maravilhas de uma modernidade
cosmopolita e global (quem sabe, ainda numa terceira ou quarta fases, tardias).
Tenho notícias de que engenharia genética e a bioquímica têm se desenvolvido de
maneira impressionante, sobretudo nos Estados Unidos, de modo que talvez se
possa, em alguns anos, mensurar mais precisamente em que geração meus
“genes sociais” se tornarão cosmopolitas. Para Lamarck, haveria alguma
esperança. Se eu for esforçado, quem sabe, talvez possa alcançar um patamar
minimamente adequado. Pronto, está dado o objetivo (possível). Despeço-me
tomando minha caneta, a fim de começar ensaiando a redação da minha
autobiografia. Talvez eu possa ser adotado pela velha mãe liberdade, e ela me
condene a ser livre.
45 O trecho foi inserido na segunda edição, cerca de quinze anos depois da publicação da primeira. Certamente havia uma demanda do público leitor por esse esclarecimento, embora esse ponto seja contemplado em outros escritos weberianos. Vale a pena citar um trecho da nota número 38, referente a esse mesmo capítulo: “Por isso, a implantação também de indústrias capitalistas muitas vezes não tem sido possível sem amplos movimentos migratórios provenientes de regiões com cultura mais antiga. Por corretos que sejam os comentários de Sombart sobre o contraste entre, de um lado, as ‘aptidões’ e segredos de ofício do artesão, que são inseparáveis da pessoa, e, do outro, a técnica moderna, cientificamente objetivada, essa diferença mal se fazia presente à época do surgimento do capitalismo – aliás, as qualidades (por assim dizer) éticas do operário no capitalismo (e em certa medida também do empresário) adquiriram um ‘valor de raridade’ cada vez mais alto em relação às aptidões do artesão, solidificadas por séculos de tradicionalismo” (Ibidem: 180, grifos do autor).
73
PARTE SEGUNDA
74
75
Capítulo V
O Lugar do Pensamento na Globalização
76
O olho por olho deixará todo o mundo cego. Mohandas Karamchand Gandhi46
A Política, como fenômeno mundial, modifica e deixa-se modificar por todas
as demais esferas da sociedade. Dificilmente se poderia pensar sistemas e
relações, assim como estruturas e processos econômicos, jurídicos, culturais ou
ecológicos sem que a levemos em conta. É assim que guerras, conflitos armados,
manifestações populares, censuras, crises de cada vez maior alcance e impacto, e
também movimentos ecológicos ou humanitários, fenômenos midiáticos e de uma
rede de alcance global, todos eles trespassam, ainda que em diferentes medidas,
aldeias e continentes, indivíduos e grupos, corações e mentes. Sim, a Política
mundial não se limita às instituições, às leis, à ordem. Diz respeito também ao
poder, ao conviver, à (sobre)vivência. De um ponto de vista sociológico, o advento
da globalização parece abrir um caminho de ida e volta. Numa direção, torna
possível uma redescoberta da Política, sob os diversos prismas da sociabilidade;
noutra, permite (re)conhecer a sociedade através da Política. Para as ciências
sociais, esse momento representa o desafio de explodir a “jaula de ferro” da
métrica de uma política estatal. Assim, pode-se vislumbrar que a Política, como
atributo da Humanidade, supera fronteiras e limites, fazendo-se presente nas mais
particulares relações sociais e também nas grandes translações humanas pelo
mundo.
Os dois capítulos anteriores compuseram uma introdução concisa, crítica e,
de certo, interessada aos principais elementos que parecem orientar a cognição
de processos de globalização nos trabalhos de Octavio Ianni e Ulrich Beck. Nesta
etapa que se segue, convido o leitor a avançar e contrapor os esforços desses
autores para a cognição desses processos. E esse contraponto deve, é claro,
46A frase é atribuída ao Mahatma, ainda que não haja provas de que ele a tenha usado de fato. Segue o original: “An eye for an eye leaves the whole world blind” (SHAPIRO, 2006: 269).
77
partir de uma questão adequada, que norteie os pensamentos de ambos os
autores, possibilitando o estudo confrontado dos dois. Assim, começo por uma
pergunta aparentemente simples, mas que se revelará frutífera: qual a situação da
Política em meio à globalização? Com efeito, o recorte dessa esfera da
sociabilidade em particular deve-se à própria escolha dos autores. Tanto Ianni
quanto Beck fazem o que se poderia denominar Sociologia Política da
Globalização. Note-se que isso não significa afirmar que eles desconsiderem
quaisquer das outras dimensões da vida em sociedade. Trata-se, antes, de
observar que todas as demais esferas da sociabilidade (econômica, cultural,
jurídica, social etc.) apresentam-se, nos pensamentos de ambos os autores,
trespassadas pela Política, fazendo-se nela presentes47.
Se a globalização, como visto, abala os fundamentos da principal instituição
política da era moderna – o Estado nacional – é de se esperar que se procure
captar os diversos mecanismos através dos quais a Política se transforma. A
Política trespassa os limites do Estado-nação, fugindo cada vez mais claramente
ao seu controle, revelando-se transnacional ou propriamente mundial. Assim
também, por outro lado, manifesta-se nas mais particulares situações, assumindo
formas espaço-temporais restritas e até mesmo aparentemente isoladas do todo.
Nesse sentido, a Política pode ser observada como uma categoria que abarca
fenômenos através dos quais é possível captar transformações em nível planetário
47O leitor de Beck e Ianni poderá perceber que a dimensão cultural, embora importante, não apresenta o mesmo caráter multifário da Política. A primeira não é explorada pelos autores com a mesma acuidade presente nas referências à segunda, não recebe tanta atenção em suas dimensões. Algo semelhante ocorre com a esfera econômica. Há observações, insights referentes à economia global, mas tais contribuições não chegam a caracterizar um tratado de economia mundial, e mesmo tradicionais sistemas econômicos são abordados em termos sociopolíticos. Em geral, tanto em Beck quanto em Ianni, as análises econômicas ganham mais densidade quando assumem o caráter de economia política. Outra dimensão importante seria a social. No entanto, uma análise sobre “o social” representaria um recorte demasiado abrangente que, conquanto possível, poderia espraiar o foco da investigação e até mesmo conferir a este texto um caráter prolixo.
78
à medida que são investigadas as próprias transmutações por que passa a
Política no mundo contemporâneo. Do ponto de vista do conhecimento
sociológico, pensar a situação da Política na globalização significa perscrutar
fenômenos que façam parte dos que se pode chamar de Política-mundo, ou que a
ela estejam ligados. Em outras palavras, a inteligência de estruturas, relações e
processos políticos em nível planetário envolve a busca por elementos que
permitam perceber a gama de forças neles presentes, sejam elas agentes,
subjacentes ou intermediárias.
Com o objetivo de refletir sobre as contribuições de Ianni e Beck para essas
inquietações tão pertinentes, organizei este capítulo da seguinte maneira. Procurei
iniciar a minha análise apresentando uma reflexão sobre a problematização
sociológica de categorias políticas e de economia política, abordando elementos
como o papel do capitalismo, as configurações dos globalismos, em suas
diferentes formas de compreensão e o problema teórico dos Estados-nação no
mundo contemporâneo (I). Busquei então esclarecer as razões para um recorte
majoritariamente político, tendo em vista os objetivos deste trabalho (II). Com
base nisso, foi possível avançar e acessar uma dimensão mais factual dos
pensamentos dos autores, trabalhando os diagnósticos sociais de fenômenos
ligados à violência planetária (III). Nessa linha, tratei do modo como Ianni e Beck
concebem e lidam com o as desigualdades em nível mundial, suas relações com a
segurança e a violência, bem como no que diz respeito à produtividade do
trabalho e a seguridade social (IV). Por fim, expus uma visão convergente dos
pensamentos de Beck e de Ianni, com vistas a apresentar os novos horizontes
que se abrem a partir dessas reconfigurações da Política em escala global. Aqui,
procurei apresentar o modo como a Política pode ser, simultaneamente, fonte de
ilusões e de novos insights, de desencantamento e de reencantamento do mundo
(V).
79
I. Enigmas do globalismo, respostas à globalidade
Como vimos nos quatro capítulos anteriores, as tentativas de teorizar os
processos de globalização são marcadas pelo uso de metáforas. Isso nos permite,
por um lado, uma certa maleabilidade na expressão das linhas de compreensão
do fenômeno, na medida em que abre caminho para a abstração. Por outro lado,
no entanto, essa maleabilidade semântica implica o risco de que uma mesma
palavra denote ideias distintas. É precisamente isso que ocorre com o termo
“globalismo”, se confrontarmos os seus usos nos trabalhos de Ianni e de Beck.
Com efeito, a metáfora do “globalismo” aparece investida de sentidos
essencialmente distintos nos conjuntos das duas obras. Mas, note o leitor, essa
diferença não é simples, nem evidente: os sentidos não são diametralmente
opostos – na verdade, um “globalismo” é consequência e também parte integrante
do outro. Nesta etapa da minha análise, creio que seja imprescindível estabelecer
as linhas que separam essas duas formulações.
1. A expressão máxima do Capitalismo
O globalismo configura, para Octavio Ianni, o novo ciclo do capitalismo,
como modo de produção e processo civilizatório que logra, aos poucos ou
repentinamente, alcançar proporções mundiais. Compreender essa tese, requisita
que sejam revisitados alguns aspectos da obra marxiana. Para Marx, assim como
para Ianni, o capitalismo pode ser entendido como um modo de produção que
tende à expansão. É desse modo que se torna possível conceber o que Ianni
denomina “globalismo” como uma fase do desenvolvimento histórico do
capitalismo, de sua expansão. O leitor provavelmente recorda-se de que esse
conceito já foi apresentado, quando procurei analisar as bases do pensamento
80
ianniano sobre a globalização48. Quero, agora, dar um passo adiante, mais
polêmico.
Pode-se dizer que, no fundo, Ianni propõe uma compreensão do globalismo
como a expressão máxima do capitalismo. Sim, o globalismo aparece aqui na
essência do capitalismo, mas de maneira latente – do mesmo modo como, no
pensamento de Marx, o capital encontra-se na essência do dinheiro, embora este
tenha se realizado efetivamente antes daquele, na história. Assim também
acontece, para Ianni, com as formas locais e nacionais do capitalismo, que são
anteriores à sua globalização. Nesse raciocínio, o globalismo está presente em
cada uma delas, está no mais alto ponto conhecido da disposição que vige no
interior dessas fases historicamente precedentes do capitalismo, mas evidencia-se
somente na atualidade, quando encontra as condições históricas para sua
emergência. Assim, com a emergência do globalismo é possível identificá-lo nos
movimentos anteriores do capitalismo (o que, note-se, não quer dizer que se
confundam: são, aliás, essencialmente distintos49). Do mesmo modo, se
compreendemos que, no globalismo, o capital atingiria o seu ciclo máximo de
expansão, é possível conceber as condições e possibilidades de uma revolução
mundial como imaginada por Ianni, a partir do sufocamento dos processos,
relações e estruturas do capitalismo expandido em seu limite geográfico.
Para evidenciar essa ideia, vale a pena citar, do próprio Marx, uma das
passagens destinadas a apresentar o método da sua contribuição à economia
48 Capítulo terceiro, seção I.
49 Como sustentava Marx, “nos animais, os indícios de uma espécie superior em uma espécie inferior somente podem ser compreendidos, em contrapartida, quando o superior [Hörere], ele próprio, já é conhecido. A economia burguesa fornece, assim, a chave para a Economia na Antiguidade, e assim por diante. Mas de modo algum à maneira dos economistas que apagam [verwischen] todas as diferenças históricas e veem, em todas as formas de sociedade, a sociedade burguesa. Pode-se compreender o tributo, o dízimo etc., se se conhece a renda fundamental [Grundrente]. É preciso, porém, não identificá-los” (MARX, 1859).
81
política.
Seria, pois, errôneo e impraticável [untuber] sobrepor as categorias econômicas na ordem segundo a qual se sucedem umas às ouras, na qual foram historicamente determinantes. Sua ordem de sucessão é muito mais determinada através da relação que elas têm entre si na sociedade burguesa moderna, e que é precisamente o contrário do que parece ser conforme sua natureza ou que corresponde à sequência do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão das diferentes formas sociais. Trata-se menos ainda de sua sequência de sucessão “na ideia” (Proudhon) (de uma representação desfocada [verschwimmenlt] do movimento histórico). Em lugar disso, trata-se de sua disposição [Gliederung] no interior da sociedade burguesa moderna (MARX, 1859, grifos do autor).
2. Economia política: globalismos do globalismo
No quarto capítulo, dedicado ao pensamento de Beck sobre a globalização,
optei por não abordar mais detidamente a questão do globalismo. É que essa não
parece ser uma categoria propriamente fundamental para compreender sua
percepção dos processos globais. Com efeito, o globalismo configura, para Beck,
muito mais uma consequência negativa da influência de certos atores globais. São
claramente distinguíveis, aqui, a globalidade (Globalität) – complexa, policêntrica e
cheia de contingências políticas – e o globalismo (Globalismus) que, para ele, é
simplório. Como dito, a metáfora é a mesma usada por Ianni, mas o significado é
diverso. Nos trabalhos de Beck, “globalismo” é o nome dado à ideologia que
preconiza os domínios do mercado mundial em moldes lineares obsoletos, quando
não ilusórios. Esse globalismo é visto como uma fonte de enganos (Irrtümer) que
turvariam a percepção da complexidade característica dos processos globais.
Nesse sentido, o leitor atento talvez já suspeite da conclusão analítica a que se
pode chegar com essa distinção contrapositiva: o “Globalismo” de Ianni contém o
“Globalismus” de Beck (ver esquema conceitual 1). Afinal, o que Beck chama de
“globalismo” consiste em uma faceta (economicista) da globalização, sendo esta
82
entendida como um processo maior.
Aqui é possível observar uma curiosa diferença no percurso de cada um
dos autores em direção à cognição de certos processos globais significativos. E
essa diferença é exemplar, para os propósitos deste estudo, uma vez que revela o
caráter arbitrário da teorização de fenômenos sociais de amplas proporções. É
que, além de uma mesma palavra poder designar, de um ponto de vista
categórico, dois fenômenos distintos, ocorre também de duas categorias, distantes
por princípio, serem empregadas para descrever um mesmo fenômeno. Com
efeito, o “globalismo” beckiano aproxima-se do que Ianni denomina
“neoliberalismo” (ver esquema conceitual 2). Cada um desses termos destina-se a
captar o que os autores identificam como uma faceta ideológica e
preferencialmente economicista da globalização. No fundo, ambas as categorias
expressam tentativas de cognição e explicação de um mesmo fenômeno mundial.
83
Esquema conceitual 1
Como visto neste e no terceiro capítulo, o que Ianni denomina “globalismo” é o palco da história mundial no qual se formaria a sociedade global em suas diversas dimensões. Beck, por sua vez, utiliza-se desta metáfora (Globalismus) para designar apenas um dos aspectos desse fenômeno planetário. Por isso, de um ponto de vista conceitual, é possível afirmar, com boa margem de acerto, que o globalismo de um contém o globalismo do outro.
Num debate que ainda não dispõe de um léxico comum, é curioso observar
como palavras podem desvincular-se do plano denotativo dos conceitos50. É assim
que um termo x pode designar um fenômeno y, o qual também é descrito por uma
ideia z. E também, por outro lado, duas metáforas que contam com distintas
origens e percursos históricos podem expressar percepções de um mesmo
fenômeno. Há neologismos polissêmicos e terminologias ressignificadas. Nesse
50Retornarei à questão do significado das palavras no capítulo VI, em especial no item IV.
Globalismo ianniano
Globalismus beckiano
84
quadro, pelo termo “globalismo” pode-se entender, simultânea e paradoxalmente,
um processo e uma ideologia; “globalidade” pode denotar um estágio ou uma
condição – dimensões que não se confundem, embora não sejam propriamente
opostas – e “neoliberalismo” pode configurar e dar nome a um fenômeno de
transformação (do liberalismo em neoliberalismo, para Ianni) e, sob outra
perspectiva (a beckiana), expressar-se como atributo desse mesmo fenômeno,
adjetivando-o e tornando possível pensar em “globalismo neoliberal”.
85
Esquema conceitual 2
Globalismo/ Globalismus
O esquema conceitual 2 mostra como esse uso de palavras e designações
pode ser diverso, tendo em vista a cognição dos processos globais. Uma mesma
expressão (Globalismo, ou Globalismus, em alemão) pode, como visto,
representar diferentes conceitos. Para Beck, designa um efeito colateral de certos
Ulrich Beck
Octavio Ianni
Efeito colateral
Ideologia economicista
Ilusão, engano
Palco da História
Estágio máximo do Capitalismo
Processo civilizatório e modo de produção
Globalidade/
Globalität
Neoliberalismo
86
atores globais, uma ilusão planetária de caráter ideológico e economicista. Para
Ianni, o termo é utilizado em sentido mais amplo (chegando mesmo a conter o
primeiro, como mostra o esquema conceitual 1). Para este último, trata-se do
estágio máximo do capitalismo, entendido como um modo de produção e um
processo civilizatório, que constitui-se no palco da história em que se dá a
globalização. A proposta aqui é a de que, em contrapartida, podem ser
encontradas duas equivalências. Por um lado, o “globalismo” ianniano denota algo
próximo ao que Beck denomina “globalidade” (Globalität) e, por outro, o que Beck
denomina “globalismo” aproxima-se muito do que Ianni descreve em termos de
“neoliberalismo”.
Nesse sentido, para Beck,
dessa complexidade da globalidade distingue-se claramente a nova simplicidade [Einfachheit] do globalismo, entendida como o império do mercado mundial, que a tudo penetra e modifica. Não se deve entender, por isso, demonizar a ação econômica (mundial). Muito mais que isso, deve ser revelado o ditado e o primado do mercado mundial para tudo – para todas as dimensões da sociedade – prenunciados na ideologia neoliberal do Globalismo, como ela é: um economicismo antiquado projetado como gigantesco, uma renovação da metafísica da história, uma revolução social apolítica feita de cima. É o brilho no olhar dos “reformadores do mundo (do mercado)” neoliberais, que pode provocar medo (BECK, 1997: 195, grifos do autor).
Já para Ianni,
é no contexto do globalismo que o liberalismo se transfigura em neoliberalismo. […] A rigor, o neoliberalismo articula prática e ideologicamente os interesses dos grupos, classes e blocos de poder organizados em âmbito mundial; com ramificações em âmbito regional, nacional e até mesmo local, quando necessário. As estruturas mundiais de poder, tais como as corporações transnacionais e as organizações multilaterais, com frequência agem de modo concertado e consensual. E contam habitualmente com a colaboração ativa dos governos dos países dominantes no sistema capitalista mundial (IANNI, 1996: 280 e 283).
87
É preciso notar que, nos trabalhos de Beck, o termo “neoliberalismo” é
usado em suas variedades nominal, adjetiva e adverbial (Neoliberalismus,
neoliberal). Mas, se é assim, por que motivo ele não entrou para os esquemas
anteriores? É que seu significado parece mais restrito. Com efeito, a ideia de
Neoliberalismo, como utilizada por Beck, categoriza preferencialmente enganos
ideológicos e valores ligados a certos grupos, ou qualifica negativamente outros
fenômenos. Em seus escritos, ela aparece predominantemente de duas maneiras.
Uma delas é como um atributo, isto é, como característica da globalidade ou de
alguns de seus aspectos. É nesse sentido que Beck trabalha em termos de
“globalismo neoliberal”, “ideologia neoliberal”, “os [empresários e grupos]
neoliberais” etc. Outra, é através do vocábulo “neoliberalismo” em sua forma
nominal. Nesse caso, denota uma atitude política de certos partidos e grupos de
poder, dizendo mais respeito a valores que aos interesses da economia em
sentido amplo. Aqui que mora o risco de mal-entendidos. O neoliberalismo, como
categorizado por Beck, não parece guardar relações diretas ou nexos causais com
indivíduos e grupos, vistos de modo abrangente, numa sociedade civil mundial,
mas preferencialmente com grupos políticos de poder. Tampouco faz-se presente
como categoria compreensiva (verstehend) central em seu trabalho. É, como
veremos adiante51, mais marcantemente uma ilusão, uma mentira presente em
certas arenas políticas, e menos uma ideologia que penetre corações e mentes,
modos de pensar e fabular no cotidiano de todos e cada um. Por isso, além de
representar um risco de babelizar a minha tentativa de explicação, a inclusão da
ideia de “neoliberalismo” em Beck num esquema dessa natureza representaria um
desequilíbrio categórico. Afinal, como o interesse aqui é perscrutar os elementos
que permitem a Beck e a Ianni captar e compreender aspectos dos processos
globais contemporâneos, é preciso afastar analiticamente conceitos que não
51 Seção V, item 1.
88
ocupem, ao menos até onde pude compreender, uma posição basilar em seus
pensamentos.
3. O Estado-nação como um problema sociológico ren ovado
Tanto Ianni quanto Beck buscam interpretar, descrever, explicar os
processos que emergem, ressignificam-se ou se intensificam numa situação de
globalização. Mas não do mesmo modo. Eles não os percebem a partir da mesma
perspectiva, embora por vezes o façam através dos mesmos fenômenos. Ora, a
globalização é diversa, assim como também são diversas as maneiras de
percebê-la, descrevê-la, analisar seus aspectos52. Isso produz pensamentos
distintos a respeito de um objeto comum: os processos de globalização. É assim
que podemos dizer que o globalismo beckiano ou o neoliberalismo ianniano,
embora vistos como equívocos em escala mundial, representam uma chave para a
compreensão de uma questão maior. Ocorre que a atuação de indivíduos, grupos
e também de empresas (multinacionais, supra-estatais ou transnacionais) ao longo
do século XX e início do século XXI intensifica, ainda que de maneiras diferentes
ao redor do mundo, o enfraquecimento da mais poderosa instituição social
existente na história mundial há cerca de dois séculos: o Estado-nação. Sim, os
Estados-nação apresentam-se, em maior ou menor medida, vulneráveis diante de
atores outrora aparentemente subordinados. Ao longo da segunda metade do
século XX, não apenas empresas que atuam globalmente, mas também
52É nesse sentido que se torna possível pensar em “globalizações” (no plural). Creio, no entanto, que tal distinção não seja tão frutífera de um ponto de vista sociológico quanto talvez pareça, à primeira vista. Ela pode provocar a impressão de que haveria “uma” globalização (no singular) que ocorreria numa parte do globo, “outra”, que se daria alhures e assim por diante. Dito de outro modo, a ideia de globalização pluralizada implica também a imagem de “unidades” de globalização, o que não se dá, de fato – e essa também não me parece ser a perspectiva dos autores sobre os quais escrevo. Essa unidade enxergada por Braudel e Wallerstein (apresentada, aqui, no capítulo primeiro), dificilmente seria verificada nas demais dimensões da sociabilidade.
89
movimentos sociais, movimentos ambientais, organizações terroristas ou
vinculadas ao tráfico de drogas, de armas, de biodiversidade e mesmo de
pessoas, entre muitos outros elementos, evidenciam as rachaduras nos pilares
dos Estados nacionais.
Isso tudo abre espaço, é claro, para outras questões. De onde vem o poder
desses grupos, organizações ou corporações? Que tipo de influência possuem e
em que medida podem determinar o desenvolvimento de processos, relações e
estruturas sociais? Quais são as contingências que implicam e envolvem? Note o
leitor: aqui temos poder, influências, o caráter de organização, determinações,
contingências; a lista está longe de ser exaustiva, mas, exposto dessa maneira,
não é difícil chegar à conclusão que se trata de questionamentos eminentemente
políticos. É que a globalização traz consigo uma questão fundamental: qual o lugar
(ou os lugares), teórica e factualmente, da Política no mundo contemporâneo?
Não tenho a intenção de responder essa pergunta por completo. Nem ao menos
poderia sintetizar todas as contribuições relevantes que têm sido formuladas a
esse respeito de modo suficiente. O que segue é uma observação crítica das
tentativas de Ulrich Beck e de Octavio Ianni de compreender e explicar o que
denominaram redescoberta (no caso de Ianni) e (re)invenção (Erfindung, no de
Beck) da Política53, buscando apreender os elementos que fundamentaram essas
interpretações.
II. A inteligência da Política: um recorte possível
O valor de se observar as maneiras pelas quais Beck e Ianni buscaram
53 As transformações da política foram designadas de outras maneiras pelos autores, de sorte que as designações “redescoberta” – cf. Ianni (2004, 2011) em particular – e “(re)invenção” – ver especialmente Beck (1993, 1997, 2002) – foram eleitas por mim como palavras-chave. Tal escolha é, dessarte, passível de questionamentos.
90
compreender as transformações da Política para a além das bases teóricas
forjadas a partir dos Estados nacionais é considerável, e desdobra-se em ao
menos duas vertentes. Primeiro, deve-se notar que esses pesquisadores
estiveram entre os poucos que apostaram numa análise efetivamente sociopolítica
da globalização. Com efeito, embora haja alguns trabalhos sobre a Política na era
global, tais estudos não costumam enfrentar as transformações institucionais
operantes no mundo contemporâneo: em geral, compõem análises ligadas às
tradicionais relações políticas “internacionais” que, como o próprio nome indica,
pressupõem as soberanias estatais e suas interações como entidades jurídicas
constituídas e reconhecidas em nível planetário. Não se trata aqui, é claro, de
desqualificar qualquer um desses trabalhos, mas, antes, de perceber que uma
análise sociopolítica permite captar certos aspectos através dos quais se pode
tentar compreender as transformações mundiais, que têm maior amplitude e
caráter multi ou transdimensional.
Em segundo lugar, o enfoque na cognição de fenômenos políticos tem um
valor metodológico para a presente dissertação. Como é de se esperar,
dificilmente seria possível perscrutar todas as nuances dos pensamentos de
qualquer autor (quanto mais de dois!). Uma atitude desse tipo, lançaria este
trabalho à superficialidade, ou terminaria por reproduzir argumentos, teses e
percursos de modo repetitivo e delongado. Este trabalho de teoria sociológica
pode ser visto como uma tentativa de explicação de explicações, ou como uma
sociologia de sociologias. Trata-se de próximo daquilo que Ritzer (1988)
denominava metassociologia (metasociology) ou, mais precisamente, a metateoria
(metatheorizing), entendida como “uma forma de metassociologia que examina
especificamente a prática da teorização sociológica. (...) Enquanto a teorização
sociológica busca dar sentido ao mundo social, a metateoria procura dar sentido à
teorização sociológica” (RITZER et al., 2001: 144). Nessa linha, compete ao
pesquisador o esforço para encontrar as chaves cognitivas desses pensamentos,
a fim de reconstruí-los com vistas à sua melhor compreensão. Assim, em lugar de
91
uma análise exaustiva, optei pelo trabalho eletivo de elementos que parecem
fundamentar, orientar ou estimular a inteligência dos processos globais por parte
dos autores estudados.
Para melhor desenvolver esse ponto, voltemos à problemática do Estado-
nação, abordada na seção anterior. É preciso recordar, antes de mais nada, que o
Estado-nação pode ser visto como uma criação do século XIX. É neste momento
que as formas nacionais anteriores – que remontam à antiguidade – fundem-se de
modo particular à instituição política do Estado moderno, que se conformava e
consolidava desde o século XIII, na Europa ocidental54. É claro que tais
desenvolvimentos ocorreram historicamente também em outras paragens – em
particular na China55. Não obstante, o debate sobre a globalização parece olvidar
essa informação histórica ou, ao menos, tem-na legado a um segundo plano,
fazendo-lhe menções muito discretas. Curiosamente, também passa-se ao largo
das formações dos contemporâneos Estados nacionais do continente africano.
Nessa altura, o leitor talvez se questione o porquê desta digressão. Ora, esses
54Sobre a constituição do Estado-nação, ver Bourdieu (2012), Schulze (1994), Balakrishnan (1996), Anderson (1991), Hobsbawm (1990).
55 Aqui cabe apontar, por exemplo, que Pierre Étienne-Will, um especialista em China moderna, teve ocasião de redigir, juntamente com Olivier Christin e Pierre Bourdieu, uma reflexão a respeito dos saberes de Estado e do que denominam Ciência do Estado – não no sentido de uma teoria do Estado, mas denotando a produção de uma ciência prática da força pública, cujas origens remontam à era moderna. Aqui, segundo os autores, “a comparação com a experiência chinesa parece particularmente sugestiva e convida, também a novas reflexões. Em seus esforços para adotar uma melhor medida de sua produção, dos parâmetros da atividade econômica e dos recursos de diferentes regiões, os Estados europeus da época moderna acompanham, se é possível dizer assim, uma venerável tradição chinesa associada, corriqueiramente, com o que se convencionou chamar de 'legista'.” (BOURDIEU, CHRISTIN, WILL, 2000: 266, grifos dos autores). Nesse escrito, os autores propõem uma sorte de história social comparada, cujos interesses fogem ao escopo da presente dissertação. Cabe, não obstante, chamar a atenção para o hiato presente em estudos sobre globalização quando se trata da inteligência de processos globais em contextos asiáticos ou africanos. Esse hiato também não será enfrentado adequadamente aqui porque, como é de se esperar, falta material para abordá-lo dentro do recorte que propus, muito embora a sua ausência faça-se, de certo modo, presente e ensine muito sobre o atual estágio de a cognição dos processos globais.
92
aparentes limites são, todavia, significativos e permitem-nos captar ao menos dois
aspectos do caráter das análises sobre a situação dos Estados nacionais na
globalização, tanto de um modo geral, no debate, como nos escritos de Ianni e
Beck, em particular.
Primeiro, a observação de processos globais não significa necessariamente
a análise do “mundo” como um todo epistêmico, ou como um objeto constituível.
Como dito, há uma diversidade característica da globalização, de seus processos,
relações e estruturas, que configuram fenômenos de natureza, por assim dizer,
estratificada, e mesmo hierárquica. Como é de se esperar, essas diferenças se
manifestam não apenas nos fatos ligados à sociabilidade, tanto temporal quanto
espacialmente, mas fazem-se presentes também na sua cognição. Isso não
significa que a globalização se dê em blocos geográfica ou socialmente
localizados – uma perspectiva desse tipo poderia, aliás, turvar a percepção do
caráter dinâmico e móvel de seus processos. Trata-se, antes, de observar que as
abordagens dos processos globais encontram-se situadas em certos lugares
físicos e mentais de explicação e cognoscibilidade.
Segundo, a inteligência da globalização envolve um raciocínio de entremeio
que transita por uma dimensão teórica e outra conjuntural. Creio que os trabalhos
de Beck e de Ianni sejam bons exemplos dessa característica. Por um lado, é
imperativo aperceber-se das transformações em escala global, das novas
configurações sociais, culturais, econômicas e políticas que se manifestam mundo
afora, tanto efetiva quanto normativamente. Por outro, a problemática da
globalização, enquanto uma realidade nova, parece clamar por um quadro teórico
que viabilize a compreensão da própria globalização e das mudanças que ela
opera nas diferentes esferas da sociabilidade e, consequentemente, nas
categorias sociológicas construídas e empregadas tradicionalmente para a sua
compreensão.
93
Até agora, foram abordadas questões preferencialmente conceituais – a
conformação de uma nova economia política globalista (nos diferentes sentidos
abordados) e a situação do Estado nacional na contemporaneidade (o que pode
ser visto como uma discreta investida em teoria do Estado). Com base nisso,
proponho uma reflexão a respeito de certos elementos heurísticos, de natureza
marcadamente sociopolítica, que são pinçados por Ianni e Beck visando
compreender algumas das reconfigurações do mundo contemporâneo.
Procedamos por partes. Primeiro, componho algumas notas a respeito de como o
problema global da violência é tratado pelos dois autores56. Numa segunda
etapa57, vale a pena observar o modo como Beck e Ianni abordam a questão não
menos planetária das desigualdades.
III. Violência, Terror e Vulnerabilidade
Viver é arriscado, para todos e para cada ser humano. Os perigos que são
experimentados individual e coletivamente traspassam fronteiras. Essas fronteiras
podem ser político-normativas – cujo grande exemplo são os marcos dos
continentes e dos territórios nacionais – ou estabelecidas pela ameaça e a
coerção por parte de indivíduos, grupos e instituições, ou ainda por fenômenos
tradicionalmente classificados como “naturais”, que expõem a vulnerabilidade
humana. Com efeito, a catástrofe, a violência e o terror escapam cada vez mais ao
controle por parte dos Estados nacionais. Espraiam-se e mancham a história do
mundo. A instituição do Estado nacional dá sinais de que não é mais capaz de
garantir a segurança. Às vezes, pode até mesmo protagonizar o terror, mas isso
não significa que possa controlá-lo. As forças de guerra e de paz movem-se e
56 Item III.
57 Item IV.
94
operam além do seu alcance, através dos seus domínios, debaixo do seu nariz.
Além disso, as fronteiras também podem ser (aparentemente) particulares ou
específicas de determinados contextos – a exemplo dos toques de recolher que
vigem como um acordo tácito, oficioso, em regiões metropolitanas de todo o
mundo, seja em tempos de guerra declarada ou de pretensa paz. Sim, a atual
situação de globalização encontra-se permeada, em diversas instâncias da
sociabilidade, pela violência e pelo terror permanentes e cotidianos.
1. Quando a barbárie se institucionaliza: o Estado como agente do
terror
“Faz tempo que o mundo está em guerra. O século XX foi, todo ele, um
século de uma guerra que não termina, entrando pelo século XXI; como se fosse
um terremoto sem fim, uma vasta operação de destruição de coisas, gentes e
ideias, cidades, povos e nações, modos de ser e estilos de vida” (IANNI, 2004:
288). Octavio Ianni atribui à sociedade contemporânea o caráter de uma imensa
fábrica de violências. Para ele o poder e a violência caminham juntos,
mundialmente, revelando o fato de que “o mundo está amplamente organizado em
moldes totalitários. Trata-se de um totalitarismo que se lança, simultaneamente,
em diferentes níveis da vida social, de forma difusa e generalizada, imperceptível
e truculenta, inefável e perversa” (Ibidem: 297).
Para Ianni, o Estado nacional transforma-se em uma organização do
terrorismo global, entendido como um fato político, social e histórico. O terrorismo
é uma forma de violência e, ainda que possa assumir uma aparência isolada –
como muitos outros fenômenos políticos na globalização – nunca esgota-se em si
mesmo. Muito ao contrário, Ianni sustenta que ele tem origem nos jogos de força
sociais, enraíza-se neles, de modo que as ações, alegações e justificativas dos
seus agentes raramente servem como explicações para o acontecimento. No
entanto, Ianni tem o cuidado de sublinhar que a compreensão e o discernimento
95
dos atores (isto é, verdugos e vítimas) apresentam-se, com frequência, alheios em
relação aos nexos sociais de um evento terrorista.
Nesse sentido é que o ato terrorista pode revelar-se reacionário, fundamentalista, fascista, nazista, anarquista, niilista ou revolucionário. Explica-se pelos jogos de forças sociais nos quais se insere. […] Esta é uma revelação fundamental: para defender, consolidar e expandir o seu poder, elites governantes e classes dominantes, em diferentes países, desenvolvem operações de terrorismo de Estado que, aos poucos, transformam o próprio Estado em uma instituição terrorista. Outra vez, realiza-se a metamorfose meios e fins, de tal forma que a multiplicação de operações terroristas, compreendendo a criação de técnicas, organizações e alegações, termina por contaminar mais ou menos amplamente a tecno-estrutura estatal, bem como a mentalidade de seus técnicos, funcionários, agentes e beneficiários, compreendendo setores das elites governantes e classes dominantes, o que resulta no Estado terrorista, simultaneamente totalitário e nazi-fascista (Ibidem: 287 e 289).
(Temos aqui um ponto que o diferencia categoricamente da percepção
beckiana. Processos, relações e estruturas subsumem a perspectiva dos
indivíduos – ainda que não as eliminem. Esse enfoque teórico e eletivo é o que
parece nortear a percepção ianniana das mudanças diametrais vislumbradas no
caráter da instituição do Estado nacional: de provedor da segurança e detentor do
uso legítimo das forças de coerção, passa a agente ilegítimo do terror planetário.)
O fenômeno mais exemplar dessa perspectiva certamente foi o atentado de
11 de Setembro de 2001. A esse respeito, alerta Ianni não se deveria permitir que
as supostas intenções dos seus autores turvassem a percepção sociológica dos
acontecimentos – inclusive porque nem ao menos se sabe quem foram esses
indivíduos. Para ele, os atentados às chamadas Torres Gêmeas do World Trade
Center, em Nova Iorque, constituíram um fenômeno político exemplar. Afinal, eles
foram atribuídos à organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda e iniciou-se,
96
então, uma guerra espetacular contra um país paupérrimo58.
Essa visão está exposta de modo particularmente claro numa entrevista
concedida por Ianni em 26 de Novembro de 2001. A citação é longa, mas vale a
pena.
Pode ser só uma hipótese, pode até ser uma ideia equivocada, mas eu prefiro trabalhar com a ideia, mesmo que equivocada, de que nós entramos num outro ciclo da história, do que continuar acreditando que nós vivemos no ciclo do nacionalismo, do imperialismo e do colonialismo. Eu acho que é pouco. Não tem graça, não tem beleza. Está tudo evidente. Já é sabido. Estou brincando com a ideia, mas na verdade eu vejo assim. Então, eu acho extremamente fascinante nos colocarmos diante disso: afinal, somos humanidade, somos parte da humanidade. Não é a humanidade dos nossos sonhos, ela está sofrendo muito, mas já somos irmãos daqueles que vivem no Afeganistão. Já somos irmãos daqueles que são hindus. Já somos contemporâneos e estamos num intercâmbio muito intenso com eles. Eu acho isso uma glória! Acho fascinante. E isso significa que a nação, o indivíduo, se redefine neste cenário. É claro que este cenário, por enquanto, está dominado por interesses que predominam, tais como os [dos] Estados Unidos, a União Europeia, Japão [que] têm uma importância grande etc. E isso continua a ser problema, porque eles, em lugar de encaminharem soluções, eles buscam preservar as suas posições de mando, de controle. Então, cabe a nós questionarmos. Por isso que eu tenho uma interpretação totalmente heterodoxa do atentado do dia 11 de Setembro. […] É, aparentemente, um ataque terrorista. De fato, é um ato político. A reação, não só dos governantes dos Estados Unidos, mas dos governantes da Europa, e a formação da coalizão, e a declaração de uma guerra enlouquecida mundial contra uma nação paupérrima transformou aquele acontecimento num ato político excepcional.
58 É importante recordar que a Guerra do Afeganistão contou com o apoio militar de países como França, Inglaterra e Canadá, além de grupos político-militares como a Aliança do Norte (ou Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão), interessada na queda do regime talibã. Deve-se recordar também que, na ocasião, houve quatro aviões lançados: dois chocaram-se contra as torres (em Nova Iorque), outro, contra o Pentágono, que é a sede do departamento de defesa dos Estados Unidos (no estado de Virgínia) e um quarto avião, menos lembrado, caiu num campo em Schanksville (no Condado de Somerset, na Pensilvânia). Mais que isso, vale lembrar que o suposto mentor de toda a operação que culminou no atentado terrorista, o líder terrorista Osama bin Laden, foi encontrado e assassinado pelo governo americano somente dez anos mais tarde – num momento de crise política e econômica. Não pretendo entrar nos méritos especulativos das “verdades e mentiras” a respeito do caso, mesmo porque Ianni não conheceu parte desses desdobramentos. Quero apenas evidenciar, à guisa do autor, seu caráter simultaneamente político e global.
97
Nessa altura, Paulo Markun, um dos debatedores, questiona-lhe se matar
cinco mil pessoas não caracterizaria um atentado terrorista. E Ianni responde:
Mas isso acabou. Isso já é um dado. Vamos ser objetivos. Trata-se de um fato que deflagrou uma série de providências. Então, as providências que foram adotadas, transformaram aquele acontecimento num fato político excepcional.
Então, Markun toma novamente a palavra e indaga: “Mas, professor, o
senhor não acha, não tem na sua concepção que a ação de quem praticou aquele
ato tinha claro o que iria acontecer, o que isso ia provocar?” E Ianni exorta:
Não se iluda com as intenções dos autores, mesmo porque não sabemos quais são os autores. Não se iluda com as intenções, porque as intenções não definem a historicidade do acontecimento. O que define a historicidade do acontecimento é a dinâmica das atividades que se desenvolvem59.
Do ponto de vista iannino, fenômenos como esse revelariam que a
sociedade é uma fábrica de violências. É assim que, no mundo contemporâneo, a
violência e a barbárie terrorista comporiam um elemento central da sociedade
global em formação, que permitiriam captar parte do seu caráter. Há um clima de
barbárie mundializada, que percorre das cercas elétricas das casas, onde se vigia,
protege-se e aprisiona-se, até as ruínas dos holocaustos. Essas ruínas
exemplificam, para Ianni, o momento no qual a barbárie perde a aparência de
barbárie: a saber, o instante em que ela rui. A barbárie, ruída, torna-se, nesse
sentido, presente e pretérito, memória compartilhada de uma sociedade global em
59Os trechos das quatro últimas citações correspondem à entrevista concedida por Ianni ao programa Roda Viva, da Rede Cultura, a 26/11/2001, e disponibilizado no domínio de rede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Cf. Ianni (2001).
98
formação.
Note-se, pois, que, com a formação do Estado terrorista, disfarçado de democrático, na realidade totalitário e nazi-fascista, institucionaliza-se a barbárie. Algo que se havia desenvolvido de forma difusa e indefinida na sociedade, em seus poros, frestas e recantos, logo se configura como ideologia e prática, técnica e missão do Estado como um todo ou de alguns dos seus aparelhos e agências de controle e repressão, em escala nacional e mundial. É como se a essência do poder estatal, o monopólio da violência, aos poucos permeasse ativa e generalizadamente o conjunto das organizações e instituições estatais, realizando, de forma paroxística, a fusão entre o complexo industrial-militar, a tecno-estrutura estatal e o monopólio da violência. Esse é o Estado-máquina-de-guerra, altamente racional, moderno e eficaz. Trata-se de uma sofisticada construção sistêmica, fundada no pragmatismo, na razão instrumental. Nele, as partes e o todo articulam-se eficaz e funcionalmente, aperfeiçoando-se e desenvolvendo-se de conformidade com a organização e dinâmica do poder, enquanto dominação e apropriação, complexo industrial-militar, tecno-estrutura estatal e monopólio da violência. Aí medram as mais diversas técnicas de violência, desde o terrorismo à tortura, do sequestro ao narcotráfico, do fundamentalismo islâmico ao fundamentalismo calvinista, da barbárie do eixo do mal à barbárie do eixo do bem (IANNI, 2004: 292-291).
Mas a barbárie de que trata Ianni não é feita por “bárbaros”. Não. Ela pode
ser vista inclusive, e preferencialmente, como um dos produtos da ação de grupos
que desfrutam das benesses da civilização moderna. Por isso Ianni também
observa que a barbárie faz parte da modernidade, sendo uma de suas faces. A
inteligência da situação dá-se através desta dialética: se o conhecimento e a
técnica alcançam altíssimo grau de desenvolvimento e, com isso, engendram-se
riquezas materiais e imateriais, tem-se, por outro lado, níveis de brutalidade e
insanidade inacreditáveis que intensificam seus efeitos através das potências e
recursos do progresso. A argamassa da compreensão é, neste ponto, sistêmica
(articulação funcional e eficaz) e dialética, relacionando-se pragmatismo (no
sentido mundano do termo) e razão instrumental – algo aparentemente paradoxal,
muito embora coerente com o caráter multifário da história política
99
contemporânea.
2. Inimigos do Estado, Inimigos do Mundo: riscos pe rceptíveis e
individualização da guerra
A modernidade e o sucesso da modernidade podem ser vistos como o
motor da globalização, dos seus bons frutos, e também dos percalços que se
apresentam na emergência da globalidade. O tema da violência está presente em
Ulrich Beck de um modo semelhante ao como aparece na abordagem de Octavio
Ianni, isto é, como uma questão política por excelência. Mas há algumas
dessemelhanças, e certos aspectos podem nos indicar em que medida essas
perspectivas diferem. O primeiro deles é o problema do terrorismo. É claro que
ambos se esforçam para compreender o mesmo fenômeno; mas os parâmetros da
explicação são distintos. Enquanto Ianni está interessando nos efeitos de
devastação, em escala mundial, de uma barbárie planetária, focalizando
preferencialmente a amplitude de suas ações e consequências, Beck preocupa-se
mais com o modo pelo qual essas transformações são percebidas pelos indivíduos
e grupos de individualidades. O objetivo é interpretar os impactos sofridos por
eles, bem como suas reações. Nesse sentido, os grupos terroristas são descritos
por Beck como novos atores mundiais, sendo esse um status ao qual ascenderam
(subitamente), em especial a partir dos atentados do 11 de Setembro de 2001.
Mas há um porém: não é que os grupos terroristas ganham importância ou
destaque com o atentado em si. Claro que o “11 de Setembro” é (quanto a isso
não há dúvidas) um marco histórico, condenável sob qualquer aspecto e
assustador. Todavia, o que Beck procura sublinhar é o fato de que o terrorismo
ascende à posição de ator mundial a partir da veiculação em escala planetária,
pelas mídias, das imagens do horror. O interessante aqui, do ponto de vista
sociológico, é que
100
o mundo tem, assim, em um domínio militar, a experiência da morte da distância, do fim do monopólio estatal da violência em um mundo onde tudo, no fim das contas, pode se transformar em míssil nas mãos de fanáticos determinados. Os símbolos pacíficos da sociedade civil podem ser transformados em instrumentos de horror. Isso não é – em princípio – novidade, mas, doravante, onipresente como experiência-chave própria à nossa época (BECK, 2002a: 41, grifos do autor).
Aquilo que Ianni busca captar em um plano macro, Beck traduz em termos
mais particulares. Em ambos os casos, o terrorismo aparece como a forma de
violência que tem sido capaz de evidenciar as frestas nas paredes da antiga
fortaleza estatal. Mas Beck enfatiza também outro aspecto. O terrorista é um
criminoso com o qual o aparelho estatal não pode lidar, com eficácia, a partir dos
métodos de coação. Assim, se o limite de toda violência física é a morte, o
terrorista é, por excelência, um ator singular precisamente porque conta,
frequentemente, com a prerrogativa do suicídio. Os fundamentalistas da Al-Qaeda
(assim como os kamikases) são, nessa direção, exemplares. O diagnóstico, para
esse caso, é o da vivência de uma individualização da guerra. Se a guerra contra
Estados era feita, tradicionalmente, por Estados, de agora em diante guerras
contra Estados podem ser declaradas por indivíduos60.
O terrorismo evidencia para a sociedade civil, em nível mundial, a
vulnerabilidade do Estado-nação. Pode-se dizer, inclusive, que os atentados de
Nova Iorque e Washington marcaram o início da queda dos Estados Unidos como
potência mundial, sem que houvesse, no entanto, um ou mais substitutos, num
mundo multipolar. É assim que os grupos terroristas se tornam mais que inimigos
dos Estados: são percebidos como inimigos da sociedade civil mundial,
representam um perigo para a humanidade como um todo. Sim, grupos terroristas
60 Nada mais condizente, note-se, com a tese, apresentada no capítulo quarto, de que a individualização pode ser vista como um pilar fundamental do pensamento de Beck, orientado-lhe a cognição de fenômenos globais.
101
são, para Beck, atores “desestatizados” em princípio, ainda que ajam com o apoio
de Estados (tratados como) “maléficos”. Note-se que essa é uma diferença
importante em relação à concepção de Ianni de um terrorismo que pode ser visto
como fundamentado na própria instituição nacional, como produto do Estado que
se torna, ao longo do tempo, agente do terror. Para Beck, ao contrário, é
justamente a
flexibilização do conceito de inimigo desestatizado e desterritorializado [que] autoriza, portanto, várias coisas: primeiramente, o recurso universal às armas com fins de “defesa interior” (dos Estados Unidos, mas também da Rússia, da Alemanha, de Israel, da Palestina, da Índia, da China etc.); segundo, uma declaração universal de guerra a Estados sem que esses tenham agredido quem quer que seja; terceiro, a normalização e institucionalização do “estado de urgência” interior e exterior; quarto, um recuo do direito nas relações internacionais e para os inimigos terroristas, e também para o Estado de direito no interior de cada país e para as democracias estrangeiras (Ibidem: 45, grifos do autor).
O terror e o terrorismo, a insegurança e o caráter explosivo dos riscos
mundialmente experimentados têm como consequência a deslegitimação de
sistemas e instituições políticas. Eles teriam, para Beck, o poder de penetrá-las e
questioná-las a partir do seu interior, abalando suas estruturas. A despeito das
tentativas de superação ou de eliminação dos riscos, estes tendem a diversificar-
se, ampliando seus campos de ação e interferência. É assim que o Estado
nacional assiste à ruína de parte de suas prerrogativas fundamentais, como a
unilateralidade da soberania nacional em matéria de defesa territorial e segurança
policial. Nesse sentido, torna-se cada vez mais inelutável a cooperação
transnacional contra um terrorismo que é militar, militarizado, e também militante.
São riscos civilizacionais, no sentido de que constituem produtos da civilização
moderna e provocam uma reflexividade política que permite uma visão
cosmopolita (o termo polis não compõe a palavra por acaso), abrindo espaço à
ação política (BECK, 2000, 2002a, 2008, 2010).
102
IV. Desigualdades, (in)segurança e seguridade
A globalização não é para todos. Embora se possa verificar que todos a
experimentam cotidianamente em alguma medida, é possível afirmar que boa
parte dos processos que engendram e envolvem a globalização são determinados
por poucos. Há linhas de força e de interesse que conferem os rumos históricos de
indivíduos e comunidades em suas diversas dimensões. Desse modo, a
globalização não elimina o problema da desigualdade; às vezes, o que ocorre é
precisamente o oposto: os abismos existentes entre os diversos setores, classes
ou estratos sociais se aprofundam – e, assim, surgem e ressurgem
(frequentemente mais acirrados) os conflitos existentes entre eles. Embora se
trate de um problema também socioeconômico, a relação entre globalização e
desigualdade é sociopolítica, ao menos nos moldes tratados por Ianni e Beck.
Vimos que parte significativa da literatura a respeito do tema aponta para o
enfraquecimento do Estado nacional como uma questão central para a inteligência
dessas relações61. Como ensinavam os contratualistas, o Estado constitui-se
como responsável por garantir as necessidades básicas dos homens,
estabelecendo os parâmetros para o convívio social e obtendo, “em troca”, a
subordinação política. Em certo sentido, essa concepção se desenvolve,
modernamente, em duas noções básicas: segurança e seguridade social. A
primeira, entendida duplamente, (a) como segurança da pessoa, manifestada, em
termos legais, no direito fundamental à vida e também na proteção à propriedade,
material ou intelectual, e (b) como segurança (militar) do território, compreendido
61O leitor deve recordar-se das minhas observações no primeiro capítulo. Além disse, recomendo também, por exemplo, além de Ianni e Beck, Arnaut (2010), Bauman (1998), Berking (2008), Brock (2008), Fischer (1999), Habermas (1998), Ortiz (2006, 2007), Santos (2002), Sundfeld e Vieira (1999), Forst (2008), Sassen (2007), Höffe (2001, 2004), Vandenberghe (2001, 2011), Luhmann (1998).
103
dentro dos limites da instituição política estatal. A segunda, a seguridade social,
compreendida como o esforço do Estado com vistas a garantir a contemplação
das necessidades básicas dos cidadãos. Ocorre que, como visto, na atual
situação de globalização, o Estado perde uma parcela significativa das
prerrogativas que lhe permitiam – factual ou normativamente – assegurar aos seus
membros essas garantias fundamentais. É que essas garantias requerem, por
parte do Estado, a prerrogativa do controle. Afinal, essa ação estatal de garantia
também pode ser vista como controladora na medida em que o equilíbrio é
mantido a partir de uma ação de controle de parte dos excessos produzidos pela
ganância humana, corroborada pelo sistema capitalista. Trata-se, no fundo, de um
controle travestido de proteção. Com o processo de transnacionalização do capital
e da ação empresarial, a “livre” concorrência capitalista dá-se também em termos
mais acirrados, mais agressivos. É nesse sentido que é possível enxergar a
globalização como determinada, política, econômica, social e culturalmente, pela
ação de poucos sobre muitos.
Para Ulrich Beck, assim como para Octavio Ianni, a globalização dá-se pelo
alto, isto é, configura-se de cima para baixo. Esse é o movimento do globalismo,
tanto no sentido que lhe atribui Beck – de ideologia neoliberal –, quanto naquele
que lhe é imputado por Ianni, mais abrangente – de novo ciclo do capitalismo,
entendido como modo de produção e processo civilizatório. (A esse respeito, cabe
prevenir um possível mal-entendido e esclarecer que o fato de afirmar ser a
globalização configurada de cima para baixo não se confunde com as diferenças
de enfoque eletivo abordadas anteriormente, quando procurei sustentar que Beck
privilegiaria a perspectiva de uma individualização de biografias, enquanto Ianni
tenderia a buscar os processos, relações e estruturas que movem a história,
subsumindo os atores individuais e suas intenções. O que há aqui são apostas, de
ambos os autores, que convergem numa mesma direção: a de que a globalização
dar-se-ia, efetiva ou normativamente, de cima para baixo, consoante hierarquias
de poder e predomínio.) Isso significa dizer que nos processos globais encontram-
104
se imbricadas hegemonias e disputas por poder e predomínio, seja do ponto de
vista social ou do econômico, seja do ponto de vista ecológico, jurídico, cultural ou
propriamente político.
1. Trabalho e produção da humanidade
Ianni exorta-nos de que um dos maiores legados de Marx foi a inserção, no
pensamento social moderno, da ideia de que o ser humano é trabalho, seja
material, seja espiritual. “O que constitui o ser humano é trabalho. [...] A ideia de
trabalho não significa só trabalho econômico, o trabalho que se realiza na fábrica,
no escritório ou no campo. Trabalho é atividade material e espiritual” (IANNI, 2011:
147). Beck, por sua vez, chama a atenção para o fato de que a globalização
também é trabalho – na medida em que se dá a partir do trabalho dos
“globalizadores”, dos agentes da globalização da produção que, por sua vez,
pressupõem o trabalho (mais particular) de indivíduos e grupos que não se
encontram em situações de hegemonia econômica, cultural ou política. Nesse
sentido, os mundos do trabalho e da produção apresentam-se como elementos
não só fundamentais na constituição de uma situação de globalização ou de uma
globalidade emergente, como também oferecem uma perspectiva exemplar das
iniquidades existentes e persistentes em nível local e mundial. É assim que
a globalização é trabalho, é o trabalho dos globalizadores. Trabalho que ocorre em um lugar determinado, nas metrópoles por exemplo, que vão adquirindo um ritmo cronológico especial, e essa situação laboral dura 24 horas por dia, sete dias por semana, como mostra o exemplo dos fluxos financeiros. O sol não se põe na terra da globalização. Por outro lado, esse trabalho globalizador pressupõe outros trabalhos locais, a prestação local de serviços – desde o cabeleireiro e os serviços de limpeza e segurança até a consultoria jurídica e financeira. Isso tem de se organizar de forma sedentária, de modo que emerge toda uma rede de atividades locais. E assim vai a coisa. [...] A localidade não adquire significado unicamente na situação laboral, mas também como centro cultural e político, como lugar de participação em um mundo que caiu totalmente no abstrato. Pode-se
105
dizer até: a globalização – que afinal nunca deixa os globalizadores globalizados se globalizarem globalmente, mas sempre libera coerções para que em algum momento se volte a pôr os pés no chão, do contrário o processo não prosseguiria – impõe uma nova sociologia do local (BECK, 2000: 184).
Sobre a relação entre trabalho e globalização, é cabível dizer que os
pensamentos de Beck e de Ianni parecem convergir, e talvez possam ser
conjugados da seguinte maneira: se o homem é trabalho, não é difícil perceber
que numa situação de globalização verifica-se também a globalização do trabalho.
O chamado mundo do trabalho apresenta-se às percepções desses autores como
efetivamente global. Isso implica mais que a expansão das dinâmicas da produção
em nível planetário. Significa, para além disso, a emergência de novos quadros
mentais e sociais de referência. É assim que se pode pensar, como Ianni e Beck,
em termos de uma fábrica global, que é simultaneamente produtora e produto de
uma “nova divisão transnacional do trabalho e produção, a transição do fordismo
ao toyotismo e a dinamização do mercado mundial, tudo isso amplamente
favorecido pelas tecnologias eletrônicas, nesse âmbito colocam-se novas formas e
novos significados do trabalho” (IANNI, 1996: 155).
Há, contudo, ao menos uma nuance que diferencia esses pensamentos.
Conquanto observe os cada vez mais planetários movimentos do mundo do
trabalho, Beck não deixa de perceber que esse trabalho “global” e “globalizador”
também pressupõem trabalhos produzidos localmente. Como é de se esperar,
consoante a chave interpretativa que venho propondo, esse trabalho localmente
produzido tão logo revela-se, e especialmente num contexto de globalização, um
trabalho individualmente produzido. É que o advento da globalização provocaria,
na percepção beckiana, uma dissolução das configurações espaciais e temporais
que caracterizavam o trabalho, ao menos desde a Revolução Industrial. O trabalho
que ligava-se preferencialmente à atividade em conjunto, coletivamente articulada,
106
torna-se cada vez mais individualizada e menos dependente de sua posição
espacial – isso em função e em razão do próprio sucesso da modernidade
industrial, tecnológica, cibernética, digital, veloz e em processo de intraconexão. É
claro que tais configurações dizem respeito, em grande medida, aos interesses
planetários do capital – que, note-se, também é gerido por um somatório de
relativamente poucos indivíduos62. Mas estes não se realizariam sem aqueles, e
aqui retorna, mais uma vez, a estrutura cognitiva da glocalização, da produção
(dialética) do global nas instâncias da localidade.
Processos econômicos perdem sua fixação local concreta. Com isso, cai por terra uma premissa aparentemente indissolúvel do sistema da sociedade industrial, a saber, a necessidade de se trabalhar em conjunto e em um local [Ort] determinado. Deslocamentos geográficos entre locais de produção enquanto fronteiras de concorrência “naturais” perdem significado. (...)
Com isso, porém, retardam-se e acentuam-se as relações de poder do trabalho e do capital na estrutura espaço-tempo. Pode-se reduzir tais processos à seguinte fórmula: trabalho é algo local, enquanto o capital é global. Essa inclinação sócio-espacial do poder expressa uma diferença de época no predicado organizacional: o capital é coordenado mundialmente, o trabalho é individualizado. O conflito entre interesses de capital diversificados e classes de trabalho virtuais permanece imbricado na antítese entre a lógica sem fronteiras dos fluxos de capital e os horizontes fragmentados de experiência (BECK, 2007 [1999]: 56-57, grifos do autor).
2. Desigualdade e Estratificação
62 “É possível compreender, mais precisamente do que outrora, que há uma desigualdade radical entre as situações dos decision-makers e as daqueles que são afetados por riscos e/ou perigos. Com a virada cosmopolita, torna-se evidente que a distinção entre risco auto-induzido e externo é um ponto crítico cosmopolita, na medida em que a relação entre o conjunto das regiões do mundo entre si pode ser analisado nos termos da externalização de riscos auto-produzidos, isto é, modificando-os em direção a outros. O poderoso produz e lucra a partir dos riscos, ao passo que aquele que não detém poder é afetado no âmago do seu ser pelos ‘efeitos colaterais’ das decisões tomadas por outros” (BECK e GRANDE, 2010: 423, grifos dos autores).
107
A globalização do mundo do trabalho produz também efeitos nas estruturas
e estratificações sociais. Tais estratificações são econômicas, sociais, culturais,
mas também políticas. A desigualdade se dá no âmbito das oportunidades, nas
possibilidades de conhecimento, informação e formação, no mercado de consumo,
nas formas de ter e de ser. Se a produção se reorganiza, modificam-se também as
condições para a mobilidade social, horizontal ou vertical. Ora, a posição social do
indivíduo, sua situação na comunidade em que vive, interfere de modo basilar na
sua posição diante da alteridade, frente ao outro ou aos outros que o cercam
(ainda que não estejam fisicamente ao seu lado). Se abordarmos a questão do
ponto de vista dos indivíduos, podemos chegar, pelo caminho inverso, à mesma
observação: na medida em que vivemos e percebemos o mundo a partir de uma
determinada posição, isto é, de uma perspectiva específica, tendemos a julgá-lo a
partir dos ângulos de que dispomos para observá-lo. Seja do ponto de vista do
indivíduo, seja do da comunidade, isso significa dizer que a nossa posição na
sociedade determina, em grande medida, a nossa posição (em sentido amplo)
perante a sociedade. É assim que as novas assimetrias de poder, diversidades de
interesses, demandas e lutas, intenções, sucessos e frustrações configuram um
cenário político diferenciado numa situação de globalização. Nesse sentido,
organizações e movimentos sociais (sejam eles legitimados, temidos, rejeitados,
ignorados, pacíficos, armados, classistas, liberais, conservadores ou
revolucionários), assim como indivíduos e individualidades são reposicionados nas
estruturas de estratificação de mulheres e homens formadas ou reformadas em
escala mundial.
O mesmo processo de amplas proporções que expressa a globalização do capitalismo expressa inclusive a globalização da questão social. É claro que os problemas sociais continuam e continuarão a manifestar-se em formas locais, provincianas, nacionais e regionais. Mas também já é evidente que se manifestam em escala mundial. A dinâmica da nova divisão transnacional do trabalho, compreendendo a dinâmica das forças produtivas e a universalização das instituições que sintetizam as relações capitalistas de produção, tem recriado diferentes aspectos da questão social e, simultaneamente, engendrado novos (IANNI, 1996: 170).
108
Desemprego estrutural, discriminação, segregação, assim como a
insurgência e ressurgência de movimentos sociais, isto é, da ação política coletiva
com respeito a demandas determinadas e determinantes, compõem o quadro
político da globalização. Guardam relações de causalidade e efeito, estão
imbricadas e inseridas no quotidiano de indivíduos e grupos, cujos pensamentos e
atos dizem respeito ao local, ao nacional, ao regional e ao mundial. Sim, porque,
como insistem tanto Beck, quanto Ianni, a globalização dá-se não apenas numa
esfera propriamente mundial. A palavra “globalização” esconde, por vezes, as
facetas locais dos processos planetários. Em ambos os autores, essa é uma
dimensão central. As desigualdades sociais agudizam-se com o advento da
globalização, redefinindo suas dimensões, efeitos e origens locais63. É assim que,
observa Beck, chega aos olhos dos habitantes pobres do sul a reviravolta da
política nacional para o que denomina política-mundo interna, ou política interna
mundial (Weltinnenpolitik). Por isso “o fato de que ‘o outro global está no meio de
nós’ – [é] uma assimetria dupla para expressar: eles sofrem ao máximo, mas são
aqueles que menos têm contribuído para o aquecimento global e que menos
podem empreender contra a catástrofe climática” (BECK, 2010: 136, grifos do
autor).
63No fundo, isso diz respeito ao conceito de glocalização, forjado por Roland Robertson (1992). Ele foi mencionado no capítulo 1, e apresentado no capítulo 4, seção I. Mais adiante, no capítulo sexto, apresentarei uma crítica ao uso de tal concepção. Embora ela me pareça importante para pensar a diversidade do alcance dos processos de globalização, dissipando a ilusão de uma globalização unilateral, entendida como expansão do local para o global (ou vice-versa), parece-me insuficiente o tratamento que se dá, frequentemente (e isso inclui até mesmo passagens de Beck e Ianni), à globalização apenas pela métrica espacial.
109
V. A Política (re)descoberta e reinventada
A emergência da globalização envolve uma nova configuração da Política
em nível mundial – englobando localidades, o nacional e o regional. Assim, a
Política transforma-se num grande enigma e, ao mesmo tempo, em primorosa
fonte de respostas à globalização. A economia, a cultura, assim como as relações,
processos e estruturas sociais, as normas jurídicas e a novas ligações do homem
com a Natureza (incorporada à sociedade) e com a técnica, todas essas esferas
da sociabilidade implicam consequências ou guardam relações de causalidade
com a Política.
1. As ilusões da Política mundial
Num momento de transformações em escala global (junto, como visto,
àquelas de dimensões individuais, particulares ou locais) impõe-se a necessidade
de redefinir as formas pelas quais percebemos a sociedade: faz-se mister fornecer
respostas à globalização. Em contrapartida, é preciso também reconhecer uma
espécie de efeito colateral nisso tudo – há um conjunto de falsas questões, ilusões
e equívocos que permeiam os estudos globais. Em parte, pode-se dizer que o
grande responsável por essas interferências na inteligência dos fenômenos
globais seja a ideologia empresarial, financeirista e economicista do
neoliberalismo. Mas não só. Há também, nesse processo, o apoio de uma parte
importante da mídia (impressa ou digital), assim como de uma certa literatura que
se pretende científica – em especial no campo dos negócios (ORTIZ, 2006).
Dissipar essa cortina de ilusões é parte, certamente, do trabalho com vistas à
cognição de processos globais. Ambos os autores fizeram isso. No caso de Ianni,
basta recorda-se, por exemplo, das suas observações quando da ocorrência do
110
“11 de Setembro”64. Beck, por sua vez, chegou a tipificar weberianamente ao
menos cinco ilusões vitais (Lebenslügen) que confeririam ao nosso tempo a
aparência de uma era apolítica.
A primeira dessas ilusões, segundo Beck, seria precisamente a de uma
globalização apolítica (unpolitisch), isto é, a ideia de que não haveria (e mesmo de
que não pudessem haver) respostas políticas globais às consequências da
globalização. Trata-se, no fundo, de uma espécie de determinismo neoliberal, da
ideia de que não seria possível agir politicamente contra o mercado. Mesmo os
próprios políticos se enxergariam como dirigidos pelos jogos de poder do capital. É
nesse sentido que se tornaria exequível e dominante a postura de uma inocência
apolítica, isto é, da reivindicação de uma isenção de responsabilidade no mundo
da política, na arena dos conflitos, demandas e contingências da sociedade,
acompanhada pela “justificativa” de que o mercado é determinante. É nesse
sentido que se daria uma espécie de mais valia política (politische Mehrwert).
A segunda ilusão seria o engano do nacional. Esta refere-se à crítica
contundente de Beck (note-se, também presente em Ianni) ao denominado
nacionalismo metodológico. Trata-se, como visto anteriormente, de uma tentativa
de chamar a atenção para o fato de que o Estado nacional perde, em enorme
medida, parte de suas prerrogativas. Beck pode, assim, afirmar que haveria um
engano mundial quanto ao nacional, isto é, uma ilusão de que seria possível, na
política interna mundial efetivamente existente, retornar às referências do Estado-
nação. Assim como Ianni, Beck não sustenta, com isso, que o Estado-nação
possa ou vá “desaparecer”. (Como já dito, essa seria uma leitura grosseira dos
autores e do fenômeno. Muito do que se afirma sobre o Estado-nação, na Europa
ou no restante do planeta, pode ser e frequentemente deve ser visto como
apropriado. O mal-entendido se origina quando isso é levado às bases dos
64 Cf. seção III, item 1, no presente capítulo.
111
processos – à ideia, por exemplo, de que sem o Estado nacional não há
democracia.) Nessa direção, a análise de Beck sobre a problemática do Estado-
nação no contexto da União Europeia é exemplar.
De acordo com essa lógica nacional-estatal, tem-se que uma Europa pós-nacional precisa ser uma Europa pós-democrática. Isso significa, em contrapartida: quanto mais União Europeia, menos democracia. Essa argumentação é, em uma série de aspectos, falsa [...]. Primeiro, aqueles que fazem sua apologia se esquecem de que o caminho para uma Europa democrática não pode ser idêntico àquele das democracias nacionais. O próprio conceito de democracia precisa, como parâmetro para a União Europeia, ser outro. A União Europeia é constituída por Estados democráticos; não é, porém, um Estado no sentido tradicional. Segundo, com isso, torna-se questionável se os modelos de democracia desenvolvidos para os modernos Estados podem ser transpostos para a União Europeia ou se, para a legitimação democrática da política europeia, outros princípios não podem ser pensados, que não os pós-nacionais. Ambos (o conceito de democracia nacional-estatal não absolutizado e o fato de que a alternativa histórica à democratização da Europa é desconhecida) têm seu fundamento no nostálgico, na mentira do nacional que é absolutizada (BECK, 2010: 141-142).
A terceira mentira ou ilusão da política mundial já foi tratada neste capítulo:
a mentira neoliberal65. Para Beck, o neoliberalismo tornou-se quase um partido
mundial, devido à sua influência dentro dos partidos nacionais e da arena política.
O neoliberalismo não demanda os interesses da economia (em sentido amplo),
mas os substitui e torna-os efetivos valores mundiais.
O quarta engano seria o neo-marxista (die neomarxistische Lebenslüge). O
leitor pode, aqui, perguntar-se se esta não seria uma diferença cabal entre os
pensamentos de Ianni e de Beck. Parece-me que não. Foi com o objetivo de evitar
esse tipo de mal-entendido que procurei destacar o fato de que Ianni sofreu, ao
longo dos anos 1990 em especial, forte oposição por parte importante dos seus
65Recordar seção I, item 1.
112
colegas e admiradores marxistas, dentre outras razões, justamente porque
propunha uma análise abrangente das transformações globais em curso,
suspendendo pressupostos “clássicos” das ciências sociais (a começar pelo
próprio Estado nacional)66. É assim que o leitor mais atento vai observar que o
discurso de Ianni dirige-se a um conjunto de intelectuais que, para ele, não se dão
conta dessas transformações.
Para reconhecer essa nova realidade, precisamente no que ela tem de novo, ou desconhecido, torna-se necessário reconhecer que a trama da história não se desenvolve apenas em continuidades, sequências, recorrências. A mesma história adquire movimentos insuspeitados, surpreendentes. [...] De maneira lenta e imperceptível, ou de repente, desaparecem as fronteiras entre os três mundos, modificam-se os significados das noções de países centrais e periféricos, do norte e sul, industrializados e agrários, modernos e arcaicos, ocidentais e orientais. Literalmente, embaralha-se o mapa do mundo, umas vezes parecendo reestruturar-se sob o signo do neoliberalismo, outras parecendo desfazer-se no caos, mas também prenunciando outros horizontes. Tudo se move. A história entra em movimento, em escala monumental, pondo em causa cartografias geopolíticas, blocos e alianças, polarizações ideológicas e interpretações científicas (IANNI, 1996: 11-12).
Retornando à crítica de Beck a um certo neo-marxismo, ou a uma certa
mentira neo-marxista, parece-me que a ideia central seria a de que
não são compreendidas tensões e dissidências [Spannungen und Spaltungen] que arrebentam com a crise financeira no contexto da política mundial no capitalismo global. Refiro-me especialmente à emergência de um novo capitalismo com variedades e variantes da América latina e da Ásia-Pacífico. Isso tem se tornado, cada vez mais, uma alternativa sistêmica à autocracia ocidental decadente, que se iguala, com o triunfo global do neoliberalismo, ao triunfo global do capitalismo.
Por que são [...] uma mentira? Porque fecham os olhos diante de como as crises financeiras e as mudanças climáticas quebraram o feitiço e deslegitimaram o script ocidental da modernidade. A mentira neo-marxista
66 Ver capítulo 3.
113
desloca o olhar sobre os fatos centrais da política mundial: o script da modernidade tornou-se contingente – no que diz respeito à ideologia, política, instituições, expectativas de continuidade e, por último, mas não menos importante, também em respeito às perguntas gigantescas e primitivas [Mammutfragen]: “o que é o ‘humano’?” e “o que é ‘Humanidade’?” (BECK, 2010: 145, grifos do autor).
Acredito – e as citações anteriores fundamentam esta interpretação – que
não seja profícua uma tentativa de opor esses autores a partir de uma crítica de
Beck a um tipo de marxismo. Sim, a mentira, no sentido que Beck a atribui, pode
ser vista como neo-marxista, mas isso não quer dizer, evidentemente, que Beck
afirme ser o neo-marxismo, como um todo, uma mentira. No limite, Beck e Ianni,
se não concordam por completo, também estão longe de divergir inteiramente a
esse respeito67.
A quinta e última seria a ilusão tecnocrática. Ela pode ser lida, em certo
sentido, como a mais explicitamente ligada ao senso comum. Este procura
descrever o exagero da atual superelevação da expressão de opiniões,
percepções e experiências políticas. O agente típico-ideal dessa ilusão
corresponde, para Beck, a certos pesquisadores do clima. Eles seriam, para o
autor, “frequentemente idealistas do ponto de vista social e político, porque tomam
todos os seres humanos como pesquisadorezinhos do clima e, em consequência
67 Note-se que, se Beck prefere não tentar compreender a globalização a partir dos movimentos globais do capitalismo, também não deixa de reconhecer o seu “triunfo global” (globaler Sieg). O que tenho procurado mostrar é o caminho usualmente percorrido pela percepção do autor na busca pela inteligência da globalização. Com efeito, tanto nessa quanto nas demais ilusões vitais, o foco está nos equívocos ligados à percepção de indivíduos a respeito dos processos globais. Assim, a crença numa globalização apolítica, a compreensão limitada do papel dos Estados nacionais no mundo contemporâneo, a atribuição de valores políticos aos interesses neoliberais, tal como os desequilíbrios nas formas de lidar com os desenvolvimentos da modernidade (certos “neo-marxistas” que subestimariam o papel das crises financeiras e das mudanças climáticas e, em contrapartida, alguns pesquisadores do clima que, para Beck, os superestimariam), tudo isso envolve preocupações com o modo pelo qual a globalização interfere, opera e é percebida no cotidiano de indivíduos e grupos de indivíduos.
114
disso, não podem entender por que seus cálculos apocalípticos não podem
resolver de imediato todos os contra-processos” (BECK, 2010: 147).
2. A Política cosmopolita e reflexiva
A globalização implica (e esse, como visto, é um ponto central para Beck)
uma virada cosmopolita, especialmente em termos políticos. Há uma nova gama
de perspectivas políticas envolvendo os indivíduos, que experimentariam e
experienciariam a dissolução das fronteiras do mundo. Essas novas formas
políticas causam conflitos, e também integração. São novas as formas de relação
entre o capital e o Estado, uma vez que há atores econômicos mais poderosos
que Estados no regime global. “No entanto, se temos que a economia global não
pode operar politicamente, ela permanece dependente dos Estados. Isso pode
empurrar estes últimos para submeter uma ‘auto-transformação’ através da
subpolítica global do fluxo do capital, sem um mandato democrático e em violação
aberta da solidariedade nacional” (BECK, 2004: 83-84, grifos do autor). São novas
as relações entre trabalho e capital, como visto, assim como há novas relações
entre Estados, entre Estado e organizações não-governamentais e organizações
internacionais, entre grupos transnacionais e Estados, e também relações entre
maiorias e minorias. Com isso, Beck procura mostrar que, naquilo que entende
como uma factualidade emergente de cosmopolitização, o Estado-nação não
desaparece. O papel de uma perspectiva (metodológica) cosmopolita seria, nesse
sentido, também o de investigar que elementos se encontrariam ainda amarrados
às categorias do Estado nacional.
O leitor já conhece a minha posição crítica quanto a essa perspectiva
cosmopolita, como proposta por Beck68. Tenho a impressão de que ela se trata,
68 Cf. capítulo 4, seção II.
115
ainda que Beck se esforce para mostrar o contrário, de um modelo demasiado
normativo, que trata os reais atores (entendidos como instituições e indivíduos),
bem como relações e processos globais, como fatores que compõem
possibilidades de cosmopolitização aparentemente mais europeias que mundiais.
Sim, o cosmopolitismo metodológico é apenas uma dentre muitas possibilidades
imagináveis para se captar os desenvolvimentos dos processos de globalização.
Além dos aspectos mostrados no capítulo quarto, vale a pena observar, no
entanto, que um modelo de análise cosmopolita como o proposto por Beck permite
a ele vislumbrar de modo heurístico a questão da ordem política mundial. É desse
modo que se pode dizer que a expansão dos direitos humanos, por exemplo, e
das lutas sangrentas e constantes que a ele se encontram ligadas, permite-nos
perceber não somente a submissão do Estado nacional a outras dimensões
políticas numa situação de globalização e a elevação (ainda que não de maneira
unívoca) da posição dos indivíduos, mas também o caráter meta-político, reflexivo,
da globalização. É que, em certo sentido, globalização envolve, para além de
questões referentes ao avanço da técnica e o progresso, do reconhecimento do
sucesso da (primeira) modernidade, também o retorno à noção de Humanidade.
Se, para Ianni, a formação de uma sociedade global pode ser vista, creio, como
correspondente à constituição de uma sociedade humana, para Beck a
conscientização de cada ser humano daquilo que pode entender por sua
“humanidade” (atributo) é o que engendra uma Humanidade (substantivo)
contemporânea, que preenche uma Cosmópolis global, reivindicando
prerrogativas e direitos, numa sociedade mundialmente reflexiva.
Nesse sentido, é possível pensar em uma lei civil global que não dependa e
não se submeta aos códigos legais produzidos nos espaços público-jurídicos
nacionais, ainda que se relacione com eles. Os direitos humanos podem, assim,
ser vistos, não somente como uma evidência da divisão e das diversidades no
mundo: representariam também uma fonte de possibilidades de ação e mudança
em escalas global e local.
116
O modelo alternativo de ordem global, a Cosmópolis global, assenta-se sobre o princípio contrastante da igualdade entre Estados e, de acordo com isso, enfatiza a importância da lei (civil) global, ainda que contra a hegemonia global. A Cosmópolis global deveria ser realizada degrau por degrau através de uma reforma correspondente da lei internacional e da organização internacional, em particular, as Nações Unidas, de acordo com os princípios de um regime cosmopolita que se assenta no reconhecimento da diferença dos outros e, em particular, no reconhecimento das modernidades múltiplas. Uma lei global teria de ser formulada considerando possibilidades contratualmente reguladas para consulta de alianças continentais e sua obrigação para com o ato que concerne. Incluiria, por exemplo, algo semelhante ao veto livre das Nações Unidas, o qual poderia funcionar como um parlamento global equipado com um exército permanente para propósitos de manutenção da paz e capaz de impor o desarmamento mundialmente (BECK, 2004: 134).
A ideia de um direito cosmopolita, assim como a concepção de uma
democracia cosmopolita não podem ser pensadas, na obra de Beck, sem que se
observe a noção de reflexividade. O raciocínio pode ser colocado da seguinte
maneira. Juntamente com a experiência (simultaneamente mundial e local) da
sociedade civil e, em especial, dos indivíduos que a compõem, a democracia
cosmopolita pode ser vista, para Beck, como fundada igualmente na afirmação e
luta por direitos elementares de validade transnacional – em certo sentido, esse
pode ser o caso dos direitos humanos que, ao menos em princípio, não se dirigem
a instituições estatais específicas. Essa ideia (também kantiana) fundamenta-se
na suposição (ou na esperança) de que esses direitos elementares logrem possuir
validade mundial. Esse é o objetivo maior dessa concepção e, simultaneamente, o
seu maior problema. É que a garantia de direitos pressupõe, historicamente, a
ação de uma instituição que detenha as condições dessa prerrogativa –
frequentemente, como ensinava Weber, a partir do monopólio do uso da força
física, da violência. É nesse sentido que afirmo ser a reflexividade e a
individualização fenômenos ou forças fundamentais no pensamento beckiano para
compreender esses processos. Beck aposta não numa solução internacionalista,
117
vista logicamente como pouco provável num contexto de globalização, tampouco
num retorno à primazia do Estado como instituição soberana nas sociedades
nacionais à moda antiga. A aposta de Beck é no modelo cosmopolita. Para ele, as
soluções e as respostas não são e não serão encontradas em consensos, sejam
eles inter ou transestatais (ou mesmo transculturais). A solução deveria então
residir muito mais em acordos e procedimentos de cooperação, assegurados pela
dependência dessa cooperação.
3. Globalização e processo civilizatório
Dimensões jurídicas e políticas, assim como sociais, econômicas e
culturais, envolvem e presumem, para Ianni, o reconhecimento de que na
sociedade global abrem-se novas condições de possibilidade para a civilização. É
que, como dito, o globalismo ianniano é entendido como uma configuração do
capitalismo e, assim, como um modo de produção e um processo civilizatório de
proporções mundiais. Nesse contexto, para Ianni, a Política não apenas se
redefine, mas também realoca-se como uma esfera basilar na sociedade global
em formação. Como Beck, Ianni reconhece que a Política situa-se acima das
prerrogativas do Estado nacional, que perde muito de sua soberania, de sua
influência e ação hegemônicas. No seu entendimento, enquanto a sociedade civil
estaria submetida a um jogo de forças sociais mais restritas, locais, internas, o
Estado nacional estaria determinado pelo jogo de forças que opera em maior
escala, transnacionalmente, no âmbito das estruturas mundiais de poder. Ainda
que pareça consistir numa tipificação (ideal), tal distinção permite evidenciar um
fenômeno político que é parte fundamental das transformações políticas que
surgem com a globalização: a sociedade civil divorcia-se do Estado, há um hiato
crescente e cada vez mais evidente que os separa. As categorias políticas
fundadas no Estado nacional (e isso inclui a própria sociedade civil burguesa)
118
transformam-se e se redefinem, desafiadas pelos dilemas globais do novo palco
da história, o globalismo ianniano. Este é, para Ianni, o quadro de uma crise
generalizada do Estado nacional como instituição que é fundada pela sociedade,
mas que também atua como fundadora desta.
Se a capacidade decisória do Estado está em causa, enfraquecida ou, ao
menos, reorientada pela transnacionalização da economia, temos um problema
não só de soberania nacional, mas também de hegemonia.
Sim, a constituição de hegemonias conflitantes, alternativas ou sucessivas pode ser um requisito essencial da dialética sociedade civil e Estado. E sem hegemonia fica difícil pensar não só em soberania nacional, mas também em democracia, mesmo que apenas política.
Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modalidades de expressão e realização, tem estado cada vez mais sob o controle das organizações multilaterais e das corporações transnacionais. Essas instituições habitualmente detêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes de se sobrepor e impor aos mais diferentes Estados nacionais. Por meio de sua influência sobre governos ou por dentro dos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias estabelecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem às sociedades civis, no que se refere a políticas econômico-financeiras, de transporte, de habitação, saúde, educação, meio ambiente e outros setores da vida social nacional. Nesse sentido é que as condições e possibilidades de construção e exercício da hegemonia podem ser decisivamente influenciadas pelas exigências da globalização, expressa na atuação das organizações multilaterais e das corporações transnacionais. [...] Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da política. Ainda que se continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tanto quanto de nacionalismo e Estado-nação, modificaram-se radicalmente as condições “clássicas” dessas categorias, no que se refere às suas significações práticas e teóricas (IANNI, 2011: 227-228, grifos do autor).
Essa mudança no locus da hegemonia política é percebida por Ianni
através do olhar sobre o papel da mídia no mundo contemporâneo, que se
apresenta cada vez mais intensificado, sobretudo por meio do desenvolvimento da
internet e ampliação do acesso a ela. Ainda que não seja, a meu ver, um ponto
119
basilar na composição de sua análise sobre o advento da globalização, é curioso
observar como Ianni constrói a noção de “príncipe eletrônico”. Trata-se da
ressignificação de uma ressignificação. Note-se que o príncipe eletrônico é o
príncipe de Maquiavel (1513), revestido dos contornos que lhe atribui Gramsci
(1949). Na concepção de Ianni, a mídia poderia ser vista como o grande
intelectual orgânico das diversas formas de poder vigentes no mundo
contemporâneo, na tentativa de expressar a realidade virtual com a qual nos
deparamos, e na qual se transformam imagens e visões de mundo, assim como
informações, interpretações, opiniões e induções, sem esquecer da publicidade,
do consumo e do consumismo e suas ilusões.
Muito do que é a política revela-se espetáculo, entretenimento, consumismo, publicidade. Grande parte das linguagens das instituições políticas “clássicas” da modernidade dissolve-se, transforma-se ou simplesmente anula-se no âmbito das linguagens televisivas. Modificam-se ou apagam-se territórios e fronteiras, atropelando problemas fundamentais e curiosidades, política e novela, democracia e tirania, de par em par com realidade e virtualidade.
Nesse mundo virtual criado por meio da manipulação de tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, forma-se a mais vasta multidão solitária. [...] O príncipe eletrônico é o arquiteto do ágora eletrônico, no qual todos estão representados, refletidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivência nem da experiência. Aí, as identidades, alteridades e diversidades não precisam desdobrar-se em desigualdades, tensões, contradições, transformações. Aí, tudo se espetaculiza e estetiza, de modo a recriar, dissolver, acentuar e transfigurar tudo o que pode ser inquietante, problemático, aflitivo.
Se queremos compreender a crescente importância das eletrônicas, informáticas e cibernéticas, no mundo da mídia, o que é fundamental para compreendermos a crescente importância da mídia em todas as esferas da sociedade nacional e mundial, é importante começarmos pelo reconhecimento de que o século XX está profundamente impregnado, organizado e dinamizado por técnicas sociais. São inúmeras as inovações tecnológicas que adquirem o significado de poderosas e influentes técnicas sociais (IANNI, 1999: 19-20, grifos do autor).
120
4. Politização, Despolitização e Repolitização: Mod ernidade e
Reencantamento do Mundo
As tentativas de cognição de processos planetários por vezes envolvem
reflexões aparentemente paradoxais. Mas isso não significa que elas sejam
negativas ou desestimulantes necessariamente. Ocorre que os fatores
responsáveis por asfixiar a sociabilidade em nível global também podem ser
aqueles que têm o poder de engendrar as condições e possibilidades para a
superação dessas tensões. Como vimos, a violência e a barbárie, assim como o
risco e o terrorismo também podem ser vistos, de um ponto de vista sociológico,
como fenômenos através dos quais podemos perceber uma realocação das
experiências políticas em nível mundial. Na mesma linha de raciocínio, o
totalitarismo de que nos fala Ianni é uma prática, uma cultura, mas também uma
ideologia, gerada pela organização sistêmica capitalista, que aprofunda abismos
sociais em nível mundial. A Política, nesses termos, é compreendida como fonte
de agruras em escala planetária. No entanto, ao mergulharem no mar de horrores
que aparenta ser a contemporaneidade, tanto Ianni quanto Beck parecem
esforçar-se para encontrar, nesse mesmo ambiente, centelhas de esperança.
Note-se que o modo pelo qual observam-se as questões é necessariamente
arbitrário. Com efeito, vislumbrar caminhos ou imaginar possibilidades de
reinvenção ou redescoberta da Política no mundo contemporâneo não é
obrigatoriamente uma característica do trabalho intelectual envolvido: é uma
questão de vontade.
Este é o desafio mais fundamental, posto pelo novo ciclo de globalização do capitalismo: reafirma-se a historicidade do capitalismo e cria-se o desafio de interpretar e realizar tanto as suas potencialidades como as suas negatividades, tendo-se em conta os seus dinamismos e as suas
121
contradições. O mesmo êxito do neoliberalismo, como teoria, prática e ideologia da globalização do capitalismo, engendra novos surtos de fascismo, nazismo ou nazi-fascismo e inclusive surtos de social democracia; mas engendrando principalmente as condições e as possibilidades do neo-socialismo com suas implicações teóricas, práticas, ideológicas e utópicas. São ideias e práticas que se fermentam e fertilizam no âmbito do globalismo, recriando ou inovando muito do que se havia criado sob o signo do nacionalismo (IANNI, 2004: 29-30).
Do mesmo modo, em Beck, o perigo gera, em contrapartida, contra-poderes
(Gegenmächte) que se relacionam com as chances ou oportunidades de novos
comportamentos e redes sociais, que se apoderam das iniciativas. Trata-se de
uma atividade política subversiva, de uma espécie de sub-política (como
denomina Beck) que se fundamenta na crescente subjetividade advinda dos
processos de individualização. É como se as novas redes e comportamentos
sociais atuassem em lugar dos antigos partidos políticos estabelecidos outrora,
posicionando-se contra a oposição cerrada desta ignorância institucionalizada dos
grupos que se formaram no cenário contemporâneo das disputas políticas. Desse
modo, “os temas que estão agora em todas as bocas não são a presbiopia dos
governantes, nem derivam dos debates parlamentares – já não derivam,
certamente, das catedrais do poder em economia, ciência e Estado. A subversão
democrática ganhou uma vitória temática improvável” (BECK, 2006: 90).
Numa situação de globalização a Política apresenta-se para ambos os
autores de modo paradoxal. Por um lado, ela é fruto da modernidade, da
reflexividade, consciência, ciência e progresso técnico, desencantamento do
mundo. Advém do sucesso das conquistas dessa modernidade e da expansão do
capitalismo em nível planetário. Por outro lado, é também um minadouro de
emoções, ilusões e descobertas, imaginação e revolução. De certo modo, a
Política também pode ser vista como parte de um processo de reencantamento do
mundo. O que quero propor com isso é ideia de que precisamente aqui as teorias
122
de Ianni e Beck convergem. Creio que, se é possível afirmar que tanto Ianni
quanto Beck se posicionam, corajosamente, na mira da crítica à “utopia” ou à
“normatividade”, é, contudo, fascinante pensar que exatamente neste ponto
também parece estar uma das grandes contribuições dos autores para o debate
sobre o tema: a esperança. Ora, o leitor possivelmente notou que estudar o
fenômeno da globalização significa também lançar um olhar para o futuro. É nesse
sentido que Ianni (2004) falava de uma “sociologia do futuro” e também Beck
(1997), à maneira da ironia germânica, chega a propor um exercício (necessário)
de “adivinhação” (comparável, humoristicamente, aos da cigana Cassandra: eine
kassandrierische Fingerübung)69, na tentativa de imaginar o que poderá ocorrer,
caso nada aconteça politicamente, caso vençam o fatalismo pós-moderno ou o
globalismo neoliberal logre converter-se em profecia auto-realizadora. Eis o
quadro imaginado, narrado do futuro, no presente.
Os neoliberais triunfaram. Inclusive sobre si próprios. O Estado nacional foi reorganizado. O Estado social são Estados em ruínas. No entanto, não impera a não-ordem. No lugar das construções do poder e do direito dos atores do Estado nacional estão diversas, ambíguas associações de poder, que se isolam e se combatem. Em meio a isso tudo existem zonas de terras de ninguém, jurídica e normativamente. […] Ao lado disso, há parques e áreas de preservação da natureza que são mantidas e protegidas sob violência armada por militantes ecológicos [Grünen] (conhecidos como os “vírus terroristas”). […] Quem põe os pés nos metrôs que ainda circulam, sinaliza que ele próprio expõe-se, por livre vontade, a ser assaltado. Pois que aqui o fato de ser assaltado corresponde a uma auto-acusação [Selbstklage]. A regra estabelece: os assaltados são, na condição de assaltados, eles próprios culpados.
Entre esses territórios, delimitados confusamente, de empresas reunidas, associações, cartéis de drogas, exércitos de salvação, militantes naturalistas, sociedades de ciclistas e oportunidades de se permitir roubar
69 O método expositivo de Ulrich Beck envolve, de um modo geral, a construção de cenários esquemáticos e pluridimensionais. A exploração dessas figurações hipotéticas permite-lhe expor as incongruências ainda latentes ou discretamente manifestas nos fenômenos, apontando tendências e estratégias de ação para o futuro. A especificidade da passagem exposta acima está, creio, destacada por meio da expressão Fingerübung – uma “adivinhação” feiticeira –, que revela uma parcial dificuldade de percepção dos caminhos possíveis à humanidade.
123
livremente – talvez porque o terapeuta avalie essa experiência pessoal como indispensável à formação da personalidade – há somente ainda uma lembrança distante daquele altivo Estados nacional, pelo qual pessoas, aos milhões, de todos os lados, destacaram-se ou foram atingidos e explodiram pelos ares. Estados representam interesses particulares de interessados particulares (BECK, 1997: 266-268, grifos do autor).
O tom é evidentemente irônico, quando não humorístico, de uma catástrofe
possível, mas certamente não desejável – porquanto ninguém escreve sobre a
catástrofe quando realmente espera por ela. Dito de outro modo, a intenção é
sempre exortar a todos de que ela é plausível, mas com o fim de evitá-la. No
fundo, é possível que Ianni e Beck descrevam uma esperança ou uma aposta em
comum, ainda que de maneiras claramente distintas. Se examinamos a obra de
Ianni com atenção, torna-se perceptível o fato de que seus escritos também
constituem exercícios de observação esperançosa do devir.
Para muitos, a humanidade pode existir, ou já existe, como o reino da liberdade, igualdade, fraternidade, reino esse no qual prevalece o governo do povo, para o povo e pelo povo. Aí não há humilhados e ofendidos, famélicos da terra, los de bajo, multidões perigosas, servos, escravos, fugitivos, banidos, vítimas da violência do terrorismo de Estado – compreendendo crianças, mulheres, negros, nativos, colonizados, árabes, asiáticos, latino-americanos, europeus e norte-americanos.
São muitos, a grande maioria, os que querem algum tipo de comunidade, na qual se realiza a humanidade. É como se fosse a realização do futuro. Depois de muitas andanças, já não se almeja a não ser a vida sem carências, a plena transparência. Um mundo sem alienados nem alienações, plural, múltiplo, colorido, sonoro, vivo, em movimento, como se estivesse nascendo novamente (IANNI, 2011: 398, grifos do autor).
Com efeito, ambos os autores percebem, cada qual a seu modo, um novo
conjunto de oportunidades e visões, imaginações e ações, que emerge no mundo
contemporâneo em processo de globalização. E uma sociologia de suas
124
sociologias permite notar que esses elementos se ressignificam em seus
pensamentos como uma promessa de futuro, uma aposta política na humanidade,
experienciada por todos e por cada um.
125
Capítulo VI
Heranças e Horizontes
Perspectivas de um debate
126
Da minha aldeia vejo quando da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura...
Fernando Pessoa70
(In)conclusão
Ao longo dessa dissertação, analisei alguns dos aspectos basilares das
teorias de Ianni e de Beck, individual e em contraponto, procurando pôr em relevo
os elementos que me pareceram mais significativas para investigar o modo pelo
qual ambos procuram compreender a atual situação de globalização. Mas talvez o
leitor se recorde daquilo que afirmei, ainda no princípio do primeiro capítulo: uma
reflexão a respeito da globalização faz pouco sentido se desmembrada dos
diversos modos pelos quais o tema tem sido problematizado nas ciências sociais
mundialmente, isto é, do debate “global” sobre a globalização. É claro que não
podemos alimentar a ilusão de que esse debate ocorra de maneira homogênea,
simétrica, independente de configurações de poder e hegemonia no jogo das
linhas de força que envolvem a globalização (por isso as aspas, propositais). Sim,
parece-me importante considerar que a cognição de processos de globalização
pressupõe o diálogo com uma gama de visões sobre o tema, visões estas que são
diversas e são produzidas nos muitos cantos do mundo. Precisamente aqui esse
estudo pode ter alguma relevância como análise crítica original de duas
importantes contribuições, tendo em vista a própria cognoscibilidade da
globalização enquanto um objeto sociológico. É que, com o amadurecimento do
debate sobre a globalização, surge a necessidade de retomar questões propostas
anteriormente, no decorrer de um debate de dimensões planetárias.
Procurei sustentar que as interpretações da atual situação de globalização
dificilmente poderiam ser vistas como completamente integrativas ou totais, como
70Fernando Pessoa (1925), Poemas Completos de Alberto Caeiro.
127
propunha Ianni; tampouco podem contar com uma colaboração jurídico-normativa,
que engendraria, se exequível fosse, uma ordem global compreensível, nos
moldes pensados por Beck. O leitor talvez se pergunte, então, por que razão
dediquei tantas páginas ao estudo de dois autores, cujas propostas não me
parecem inteiramente suficientes. Ora, ciências não são feitas de contribuições
definitivas, não existe o “100%”. Nesse sentido, à medida que procuramos apontar
(pretensos) equívocos ou insuficiências, contribuímos precisamente através do
esforço no sentido de reunir as contribuições mais representativas desses autores,
o que de certo modo as corrobora, fortalece, divulga e consolida. Na verdade,
seria uma estupidez estudar trabalhos que não fossem relevantes. Dito de outro
modo, parece pouco frutífero estudar um autor para “acreditar” no que ele propõe
ou para simplesmente assimilar suas orientações. Ao contrário, estuda-se um
autor para, com ele, aprender a pensar, percorrendo trilhas de memória,
pensamento e sensibilidade que proporcionam a chance para desenvolver as
habilidades (ou, ao menos, parte das habilidades) necessárias para a cognição
dos processos e fenômenos que se nos apresentam como desafios no mundo
contemporâneo.
Neste capítulo final, a intenção é reajustar o foco analítico ao debate como
um todo e a alguns de seus aspectos teórico-metodológicos. Parto, naturalmente,
das contribuições com as quais o leitor já está familiarizado, mas o tom é (ainda
mais) autoral, na medida em que procuro também propor reflexões que dizem
respeito à inteligência da globalização de um modo geral, que retomam, mas
também transcendem as contribuições de Ianni e de Beck. Primeiro, faço algumas
observações de cunho metodológico, detendo-me, em especial, na questão das
estratégias de captação de fenômenos e processos de alcance mundial (I). Em
seguida, retomo algumas das “ilusões” epistemológicas que se produzem e
reproduzem em escala mundial, elaborando rápidas reflexões sobre temas que se
apresentam como promissores para pensar tanto os trabalhos de Ianni e Beck
quanto (e sobretudo) os desdobramentos mais recentes do debate. Aqui reflito
128
sobre a diferenciação entre duas dimensões da realidade, isto é, entre uma
realidade universal, ideal, e uma realidade descritiva, efetiva ou propriamente
global; a concepção da globalização como ruptura; bem como a reconstrução
categórica da ideia de sociedade (II). Nesse sentido, volto à reflexão – talvez
aparentemente insignificante, mas fundamental – a respeito do papel da palavra
na inteligência da globalização. Mais especificamente, procuro apresentar uma
posição reflexiva sobre a importância metodológica das metáforas nos estudos
globais (III).
I. O problema da abrangência
Há uma tônica geral que permeia todo o debate sobre a globalização: a
ideia de que os estudos globais devam ser abrangentes e integrativos. Essa é,
creio, uma intenção necessária. Afinal, sem ela talvez não houvesse estudos
globais, nem fosse possível constituir “o mundo” como objeto científico. Essa
perspectiva implica, porém, ao menos duas dificuldades teórico-metodológicas.
Primeiramente, criou-se uma falsa impressão de que os fenômenos globais
se dariam “globalmente”. Contra isso, há o célebre conceito de “glocalização”,
apresentado anteriormente. Ele foi forjado por Roland Robertson (1992) com
intuito de sublinhar o fato de que o local e o global não deveriam ser vistos como
dimensões excludentes, mas sim como partes um do outro; desde Robertson,
tenta-se, com isso, evidenciar que muito do que é global dá-se localmente, e que o
local é também um aspecto do global. Embora esse seja um insight precioso, os
desdobramentos dessa perspectiva “glocal” – muito presentes, note-se, nas obras
de Ianni e principalmente de Beck – parecem implicar uma insuficiência analítica
na medida em que induzem uma submissão dos complexos fenômenos e
processos globais à métrica do espaço. Nesse sentido, um autor como Helmuth
Berking observa que situar o global em oposição ao local, ao nacional ou ao
129
regional é analiticamente pouco profícuo. Não faz sentido que estes sejam, em
última análise, pensados a partir da categoria do territorial, enquanto aquele é
pensado quase exclusivamente em termos de desterritorialização. A formulação,
embora aparentemente simples quando reconstruída desse modo, expressa o
caminho trilhado por parte significativa das teorias da globalização: “tipicamente
'sociedade' e o nacional, assim como 'mundo' e a métrica global, são, de alguma
forma, soldados nas teorias da globalização” (BERKING, 2008: 133, grifos do
autor).
Uma segunda implicação dessa tendência à busca pela abrangência
analítica é a impressão – não menos questionável – de que a globalização não
passaria de um discurso ou de uma perspectiva discursiva. Essa ideia assenta-se
no pensamento de que a globalização, estando além da capacidade humana de
investigação e entendimento, deva ser entendida de forma meramente modal, isto
é, como uma maneira de enfocar a realidade, uma perspectiva discursiva ou
analítica, como proposto por Therborn (2001) e, até mesmo, pelo próprio Berking
(2002), quando trata a globalização nos termos da emergência de um “discurso de
globalização” (Globalisierungsdiskurs). Do ponto de vista sociológico, pode-se
dizer que haja, de fato, diversos discursos de globalização, e também sobre a
globalização (sim, porque são diferentes). No entanto, parece-me ilusório acreditar
que a globalização seja produzida fundamentalmente por “discursos
globalizantes”.
Parece preferível compreender a globalização, antes, e para além dessas
formulações, como um fenômeno da realidade empírica, envolvendo processos,
estruturas e relações sociais dessemelhantes, assimétricos e diversos. Nesse
sentido, é importante ter clareza de que as categorias sociais de tempo e espaço
dificilmente constituem-se como realidades a priori71, mas expressam marcos
71 Com efeito, Kant (1787) concebia tempo (Zeit) e espaço (Raum) como formas a priori – o primeiro concebido enquanto forma a priori da sensibilidade e o segundo, enquanto condição de
130
estabelecidos historicamente pelo patrimônio cognitivo da humanidade e
assumidos pelo pensamento sociológico. Numa situação de globalização, parece-
me mais profícuo buscar investigar as relações, processos e estruturas que
envolvem, engendram ou coexistem com esses marcos categóricos que estão em
constante modificação, (re)configuração, e mesmo desaparecimento.
Mas há, aqui, um porém. Reconhecer que a perspectiva do discurso não é
determinante, não significa rejeitar o fato de que ela seja, em certa medida,
bastante frutífera. Muito ao contrário. O discurso pode ser uma excelente fonte
para a percepção de processos globais, um fenômeno heurístico exemplar. Trata-
se apenas de separar o joio do trigo, ou seja, de distinguir entre uma estratégia de
investigação, e um motor que desencadeie ou determine por princípio a produção
da globalização. Aqui é possível aludir a uma célebre aula inaugural de história
dos sistemas de pensamento, na qual Michel Foucault afirma que o discurso
produz a verdade (FOUCAULT: 1970)72. Isso significa que, malgrado não esteja
comprometido com a verdade (lembremo-nos de que se trata de um texto
filosófico), o discurso privilegiaria certos enunciados, marginalizando outros, em
contrapartida. Nessa concepção, o fundamental não seria nem a verdade, nem
aquilo que compõe esse discurso, isto é, sua substância, mas sim as suas
posições em meio às tensões sociais. Do ponto de vista sociológico, ainda que a
globalização não pareça ser cognoscível enquanto um mero produto do discurso,
a investigação das dimensões discursivas dos fenômenos e processos globais
possibilidade da experiência. Para um interesse propriamente sociológico, no entanto, dificilmente se poderia tratar o tempo e o espaço enquanto formas anteriores à experiência (Erfahrung). Em lugar disso, parece preferível observá-los como categorias cognoscíveis a partir da história, entendida como uma experiência possível.
72 Essa noção aproxima-se da proposta de que gueroultiana de que ideias (expressas em palavras e vivas no pensamento suscitado por elas) instituiriam uma realidade. (Recordar o capítulo segundo, item III.) Ao recuperar o discurso foucaultiano, o foco é redirecionado às formas discursivas em sentido amplo. Afinal, o objetivo aqui é observar também pensamentos provocados espontaneamente pelos fenômenos globais, e não apenas sistemas de cognição edificados com rigor.
131
pode ser um importante minadouro de aspectos heurísticos, através dos quais é
possível perceber, atravessando-se a estrutura e o corpo do discurso, as diversas
tensões sociais dentro das quais se situam os enunciados, sejam eles
privilegiados ou marginalizados, desvendando, assim, o que está na origem das
aparências.
1. Teoria sociológica ou diagnóstico social? Um rac iocínio de
entremeio
Se a globalização não deveria ser vista apenas como uma realidade
discursiva, nem produzida diretamente por algo dessa natureza, ela suscita, com
efeito, discursos sobre si própria, elaborados e enunciados em meio às suas
dinâmicas. Ora, a presença de discursos provocados pela globalização abarca,
ainda que não unicamente, as tentativas de cognição do próprio fenômeno. E a
observação desse fato pode conduzir, por sua vez, a um questionamento –
discreto e que costuma permanecer intocado nos trabalhos sobre processos
globais – a respeito do status da escrita sociológica sobre globalização.
O leitor atento talvez tenha se dado conta de que tive o cuidado de evitar,
no mais das vezes, o uso da expressão “teoria(s) da globalização”. Ela é frequente
nos panoramas do debate, os próprios autores de que tratei aqui mais
detidamente utilizam-na em seus textos sem maiores justificativas, e eu mesmo a
empreguei diversas vezes nas fases mais iniciais das pesquisas que originaram
esta dissertação. Mas, aos poucos, pareceu-me inapropriado tratar a maior parte
dos trabalhos sobre a globalização em termos de “teorias”, tomando a palavra
num sentido rigoroso.
Tendo em vista que o mundo é um objeto cujas dimensões superam
quaisquer pretensões de compreensão total, a inteligência da globalização implica
132
hipóteses sobre o imperscrutável, apostas no alcance da imaginação. Afinal, é
pouco provável que se possa captar, de fato, “o funcionamento” do mundo,
tampouco sua estrutura (no singular). Diante dessas dificuldades, uma saída é a
busca, ainda que nem sempre bem-sucedida, de elementos através dos quais se
consiga perceber algumas de suas dinâmicas. Esse é, com efeito, um exercício
teórico – malgrado sequer seja possível saber, de fato, se tais elementos contam
efetivamente entre os mais decisivos em um dado recorte da questão. Porém, se o
que está em jogo é o status dessa prática, será que exercícios teóricos como
esses são suficientes para caracterizar teorias? Dito de outra maneira: tendo em
vista o tipo de trabalho intelectual predominante no campo da sociologia da
globalização, pode-se falar, de fato, em teorias da globalização? Ou será que tais
trabalhos deveriam ser preferencialmente entendidos como cenários construídos
de forma sociologicamente significativa?
Ora, a ambas as questões é possível responder, e com boa margem de
acerto, sim e não.
Para refletir sobre esse aspecto, cabe propor um contraponto. Vale recordar
que, ao menos desde Robert K. Merton (1949, 1968) é possível trabalhar com a
ideia de que teorias sociais não sejam necessariamente universais, nem destinem-
se impreterivelmente à explicação de fenômenos de longo alcance. Para ele,
haveria dois planos interconectados, por sobre os quais se poderia avançar: de
um lado, um plano de teorias especiais (special theories), isto é, mais particulares,
das quais se poderiam retirar hipóteses empiricamente verificáveis; de outro, um
plano que envolveria um progressivo avanço na direção de um sistema conceitual
mais geral e adequado à consolidação de grupos formados por aquelas teorias
mais específicas. De modo muito sucinto, essa é a noção mertoniana de teorias
de médio alcance (middle range theory)73. Note-se que um raciocínio como esse,
73 Para uma visão geral sobre as teorias de médio alcance, ver também Boudon (1991).
133
se aplicado às tentativas de inteligência de globalização, ajuda-nos a perceber
parte do seu caráter. Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, os principais
trabalhos no âmbito da sociologia da globalização, embora abordem “o mundo”,
dirigem-se, não obstante, a certos interlocutores ao enunciarem suas proposições,
partindo de contextos histórico-sociais e campos intelectuais também específicos.
De algum modo, se talvez não se deva falar de modo completamente adequado
em uma teoria ianniana (ou beckiana, robertsoniana, luhmanniana, wallersteiniana
etc.) da globalização, seria possível, em contrapartida, afirmar que cada uma
dessas tentativas de cognição do fenômeno, com seus limites, e também achados
intelectuais, ajuda a compor um quadro maior, dinâmico e ricamente diversificado
de contribuições que pode, este sim, ser identificado, ainda que num sentido
estrito, como um campo teórico abrangente. Dessa perspectiva, mesmo que seja
insuficiente conceber uma contribuição determinada em termos de “uma teoria” da
condição planetária, parece razoável referir-se a um conjunto de contribuições
como teorias (no plural) da globalização.
Ainda outra maneira de observar essa mesma questão é alocando as
tentativas de inteligência da globalização à posição de raciocínios de entremeio74.
Através dessa ideia é possível concebê-los como construções situadas entre a
aposta teórica e o diagnóstico de conjuntura social. (Note-se que, ao tratar a
questão em outros termos, não contradigo o observado no parágrafo anterior.) Se
nem Beck, nem Ianni – e talvez nenhum outro estudioso da problemática da
globalização – lograram elaborar uma teoria coesa e abrangente que de fato
explique satisfatoriamente o fenômeno da globalização em sua (ao menos quase)
totalidade, em contrapartida dificilmente se poderia afirmar que seus escritos não
possuam valor teórico, que não contribuam para a inteligência das novas
configurações da sociabilidade. Não obstante, a despeito das preocupações por
74Retiro a ideia de raciocínio de entremeio de Passeron (2005), tal como o fez Ortiz (2008). Ela será novamente utilizada na seção II, item 1 deste capítulo.
134
vezes demasiado abrangentes (teóricas, em certo sentido), tais escritos podem
também ser vistos como verdadeiros relatos de história contemporânea, que
buscam identificar seus momentos marcantes, suas dimensões centrais,
chegando até mesmo ao arriscado exercício da previsão. “Prever para prover”,
diria Ianni, ou arriscar-se a “adivinhar o futuro”, talvez dissesse Beck, com base
nas tendências identificadas no hoje conjugam-se com investidas teóricas em
ambos os trabalhos.
Esse caráter intermediário dificulta, por um lado, o trabalho de uma
sociologia dessas sociologias, na medida em que torna pouco específico o caráter
dos escritos. No entanto, essa mesma característica lhes permite privilegiar certos
temas e questões, desprendendo-se, ainda que parcialmente, dos modos pelos
quais elas podem ser observadas. Precisamente aqui encontra-se um campo de
trabalho para sociologia dessas sociologias, e foi esta peculiaridade dos estudos
globais que fundamentou a construção da cognoscibilidade de processos de
globalização como objeto para o presente trabalho. Ora, uma vez que o foco
recaía sobre as questões, e que tais questões possuam caráter planetário, a
diversidade de suas abordagens revela-se um objeto da maior centralidade. É
nessa direção que está a minha aposta. Trata-se menos de observar um
fenômeno em si, mas de percorrer trilhas de pensamento e sensibilidade através
das quais esse dado fenômeno pôde ser apreendido pelos que tentaram conhecer,
explicar ou apenas apontar elementos na busca pela cognição da globalidade.
II. A cortina das ilusões: globalização e senso (in )comun
Globalização rima com transformação, revolução, cosmopolitização,
transnacionalização, individualização, assim como glocalização,
desterritorialização, mundialização da cultura, aproximação e distanciamento. Mas
rima também com ilusão. Parece que a dimensão planetária, magnífica e
135
magnânima, e quase inimaginável da globalização termina por confundir a
percepção dos seus fenômenos e processos. Com efeito, o pensamento sobre a
globalização também reúne um conjunto de quimeras, que enganam os sentidos e
o raciocínio. Essas ilusões não dizem respeito somente a uma certa produção
midiática, que por vezes assume uma roupagem científica, e alcança maior
penetração nas visões de mundo de indivíduos e grupos que as reflexões de
pesquisadores ou mesmo de veículos midiáticos mais sérios. Ao menos no debate
científico, esse “príncipe eletrônico”, para falar como Octavio Ianni, (ainda) não
logrou subsumir por completo a reflexão e a reflexividade – ainda que ele se faça
presente e nem sempre seja tão logo identificado enquanto próprio a um senso
comum (nos diversos sentidos que ela toma, desde Aristóteles). Não quero, aqui,
me referir a uma literatura sobre globalização produzida e difundida por
instrumentos como a Harvard Business Review, entre outros, interessados, não na
globalização propriamente dita (embora usem o termo), mas na expansão mundial
do mercado e, potencialmente, dos negócios dos seus leitores. Cabe notar porém
que, com frequência, tanto esse tipo de literatura economicista quanto a mídia
eletrônica e cibernética difundem e reproduzem a ilusão de que “tudo se
globalizou”, estimulando a ignorância da diversidade e do caráter processual da
globalização75.
Há, contudo, os mal-entendidos que estão presentes em um “bom senso”,
ou naquilo que se poderia denominar senso incomum. Eles são menos óbvios,
mas nem por isso menos problemáticos. Sim, mesmo grandes estudiosos do tema
parecem ser, vez que outra, ludibriados pela cortina de ilusões que permeia a
atual situação de globalização. Certamente não seria possível esgotar as
(aparentes) ilusões do pensamento social da globalização: não ousaria sequer
tentar fazê-lo, como se pudesse pretender-me imune às possibilidades de engano.
75Para uma análise detida dessa literatura economicista, nos moldes em que a apresentei, recomendo Ortiz (2006).
136
Nesta etapa, quero apenas apontar três desses “mal-entendidos”, pois estou
convencido de que a reflexão sobre esses aspectos pode ser frutífera para o
debate.
1. O real e o efetivo
O primeiro deles talvez seja o mais importante. Trata-se da falta de clareza
a respeito de duas dimensões essencialmente distintas: uma dimensão
preferencialmente conceitual, e outra propriamente efetiva da globalização. Uma
distinção próxima a essa tem sido proposta por Ortiz (2007, 2008), quando
procura diferenciar entre as categorias do “global” e do “universal”, e está presente
também em alguns dos mais recentes trabalhos de Beck, ainda que de outro
modo (BECK 2006, 2008, 2011; BECK e GRANDE, 2010).
Um parênteses. No caso de Beck, a reflexão se dá na tentativa de
fundamentar uma diferenciação entre um processo de cosmopolitização, com
caráter descritivo, e o projeto (filosófico) do cosmopolitismo. Cabe ressaltar, aliás,
que esta última distinção não me parece ter sido suficiente para circunscrever os
limites factuais entre essas duas dimensões, nos termos tratados por Beck. Com
efeito, configuram metáforas usadas para expressar concepções ainda muito
similares: no fundo, a cosmopolitização representa pouco mais que uma versão
“dinâmica” do cosmopolitismo. Como procurei mostrar, o maior problema do
cosmopolitismo, e também da cosmopolitização, para os interesses analíticos
dessa dissertação, parece ser a pressuposição das dinâmicas e das
consequências próprias do sucesso da modernidade (seja ela classificada como
“primeira” ou “segunda”)76. Quanto a isso, não obstante, quero chamar a atenção
para um ponto: ainda que a conclusão não me pareça convincente, vale a pena
76Recordar capítulo IV, seção II.
137
observar como Beck compõe o raciocínio. “Minha tese é: a realidade [Realität]
torna-se ‘cosmopolita’. Precisamos compreender que não há um cosmopolitismo
puro [rein]: há somente a cosmopolitização, que é deformada. Daí precisarmos de
uma ciência social cosmopolita” (BECK, 2006: 252, grifos do autor). A despeito da
conclusão (de que vivenciamos uma cosmopolitização do mundo nos moldes já
apresentados), o raciocínio me parece valioso. Beck tem buscado, mais
recentemente, aproximar o cosmopolitismo das diversidades próprias dos
processos sociais, esforçando-se para distinguir uma dimensão descritiva (própria
às ciências sociais) de outra normativa (que ele identifica, nessa perspectiva, com
os modelos cosmopolitistas da filosofia e da religião).
Em certo sentido, a mesma distinção pode ser formulada também a partir
de uma reflexão presente no próprio campo da filosofia do conhecimento. Aqui,
pelo menos desde o sensualismo de Locke, há uma busca por distinguir entre o
ideal e o possível, em termos próximos aos que mobilizamos
contemporaneamente.
Os sens [“sentidos”, “sensações”] constituem atributos humanos, ligados ao corpo e à mente [...] de maneira necessária, embora não se confundam. A “realidade” percebida pelos sens e, a partir deles, pela mente, não pode ser tomada por “a Realidade”. O que é percebido consiste em uma “efetividade”, forjada numa relação especular (que é a metáfora hegeliana do espelho, Spiegel), isto é, mediada pelos limites do corpo e da razão humanos. O cotidiano, os atos, os sentimentos são efetivos (wirklich, em alemão), estão sujeitos à intervenção do homem, em maior ou menor medida. “A Realidade” (o termo germânico, deriva do latino: Realität) denota aquilo que é, o Ser (das Sein), a Natureza, o Universo, o Tempo. O sens enquanto sentido, razão de ser, sendo parte do Ser, é real; o sens como sentido físico ou fisiológico, experiência, sensação, sentimento, sensibilidade, compreensão, julgamento, acepção, e assim por diante, é wirklich, isto é, está na esfera da efetividade (ARNAUT: 2011b, grifos no original).
138
Em seus escritos, Renato Ortiz expressa essa distinção, como dito, em
termos de uma delimitação, na história do pensamento, entre os atributos do
global e do universal. A proposta de Ortiz ajuda a elucidar o fato de que o global e
o universal são categorias situadas em campos distintos do pensamento e da
realidade, embora caminhem de mãos dadas. Ele procura mostrar que as Ciências
Sociais, estando amarradas aos seus contextos, têm dificuldades para
universalizar a sua explicação, mas que, no entanto, também não podem perder
essa “intenção” de universalidade. Dessa maneira é possível repensar o lugar da
interpretação dos fenômenos e processos globais, situando o pensamento e a
reflexão sociológicos numa posição intermediária.
Os conceitos encontram-se vinculados ao contexto particular da pesquisa, eles são polimórficos e pouco aptos a se universalizarem (a categoria trabalho não se aplica à compreensão das sociedades indígenas nas quais as relações de parentesco predominam). [...] O pensamento sociológico é sempre um raciocínio de entremeio, algo entre o ideal da universalidade (que é necessário) e o enraizamento dos fenômenos sociais. [...]
Não resta dúvida de que as ciências sociais se transformam com o processo de globalização. As mudanças em seu objeto, as relações sociais, requerem um novo olhar, a definição de novas categorias de pensamento. Certamente, ao tomar o mundo como tema de reflexão, seu raio de alcance se expande, liberando-se da territorialidade das regiões ou do Estado-nação. Mas seria incorreto imaginar que as análises sociológicas teriam se tornado, por isso, “mais universais” do que no passado. [...] Convenientemente esquece-se que o cosmopolitismo não é um atributo necessário da globalidade, e que o particularismo do pensamento enuncia-se tanto em dialeto, quanto em linguagem mundial, pois, na condição da modernidade-mundo, é perfeitamente plausível, e corriqueiro, ser globalmente provinciano (ORTIZ, 2008: 104-105, 191-194, grifos do autor).
139
2. A univocidade do novo
Um segundo aspecto que merece ser melhor analisado na literatura
científica sobre a globalização seria a noção de ruptura histórica e epistemológica,
assim como a ideia de que é possível uma “virada” radical nas bases do
pensamento social. Já no terceiro capítulo indiquei que o uso da ideia de ruptura
para pensar as transformações que causam e advêm da globalização é arriscado:
ainda que seja útil para nos darmos conta de que estamos diante de “algo” novo,
não se deve entender, por isso, que “tudo mudou”. A globalização situa-se no fluxo
da história, em meio às suas tensões e complexidades (URRY, 2006). Esse pode
ser visto como um ponto crítico nas teorias de Ianni e de Beck (e no debate, como
um todo). Num esforço para mostrar a globalização como novidade, um sinal
presente e premente do futuro, esquece-se de que, se a globalização não surge
“do nada” (o que seria uma suposição grosseira), também não pode ser concebida
nos termos de uma negação do passado. A perspectiva de uma ruptura pressupõe
a superação de algo, fato e interpretações, de modo que “seria, portanto,
necessário refundar um saber em ruínas. Dificilmente as Ciências Sociais se
encaixariam dentro desta perspectiva. Não existe ruptura, a criatividade, a
abertura para o novo enraíza-se no solo da tradição que permanece e a antecede”
(ORTIZ, 2009: 244).
3. A reinvenção da sociedade
Um terceiro aspecto a ser posto em questão é a própria categoria de
sociedade num contexto de globalização. Refiro-me, em particular, à ideia de uma
sociedade global ou mundial, ou sociedade-mundo, sociedade do mundo etc.
Tratam-se, no limite, de metáforas da transformação, da mudança e do
desconhecido, que levam em conta uma gama de categorias originadas, no mais
das vezes, em formulações com respeito ao Estado nacional. É assim que
140
algumas apostas nestas configurações planetárias de sociedade vêm sendo
formuladas e reformuladas ao menos desde os trabalhos de Luhmann (1971,
1975)77 sobre a Weltgesellschaft.
A fim de estabelecer um parâmetro de compreensão para tais
denominações da sociedade como mundial, vale a pena recordar o modo pelo
qual Luhmann constrói a sua Weltgesellschaft como um objeto sociológico com
vista à cognição e previsão de fenômenos (note-se) por vezes ainda pouco
evidentes. Ele formula a questão a partir de uma pergunta de partida, a saber: “se,
e de que maneira, a interação em nível mundial já se consolidou” (LUHMANN,
1975: 53). Note o leitor que a pergunta parte de uma incerteza (pois questiona a
própria existência do fenômeno), mas demonstra, ao mesmo tempo, uma tentativa
de identificar os elementos de um processo que já poderia estar parcialmente
consolidado. Luhmann segue adiante e busca delinear um conjunto de questões
teóricas, na tentativa de apreender o fenômeno. Esse esforço é longo e
pormenorizado, mas talvez possa ser resumido da seguinte maneira. Luhmann
parte da hipótese de que é possível haver interação (e não o simples contato) em
nível mundial, sem que as fronteiras das sociedades (nacionais, naquela altura) a
impeçam de existir. Essas interações implicariam consequências no âmbito da
ciência (o saber do saber) e, com elas, conquistas no campo da tecnologia,
através de redes de comunicação em nível mundial que neutralizariam referências
socialmente específicas das fontes de conhecimento. Em paralelo, haveria 77 Vale notar que o texto fundador “Die Weltgesellschaft” foi publicado, em sua primeira versão, em 1971, no Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 57, pp. 1-35. Para fins de citação, utilizo aqui a versão de 1975, que está revisada.
Os trechos que seguem sobre a Weltgesellschaft enquanto categoria de cognoscibilidade de processos globais nos trabalhos de Niklas Luhmann foram discutidos com pesquisadores das teorias de sistemas sociais e parte deles pode ser encontrada em versão preliminar numa comunicação de pesquisa em andamento constante nos Anais do III Encontro Internacional de Ciências Sociais, realizado em Outubro de 2012 – cf. Arnaut 2012b. Agradeço aos professores Fabricio Neves (UnB) e Leo Peixoto Rodrigues (UFPel), e ao colega Guilherme Nogueira (UChile-UFRGS) pela oportunidade de discutir esse aspecto da minha pesquisa.
141
ressonâncias de uma opinião pública formada em escala mundial. Esse horizonte
mundial de possibilidades determinaria vivências e trocas concretas. A
Weltgesellschaft se tornaria uma unidade através das trocas comunicativas mundo
afora, e se constituiria em meio à expansão de estruturas de expectativa
(Erwartungsstrukturen), fossem elas cognitivas ou normativas.
Ainda, de um ponto de vista mais propriamente político, Luhmann observou
muito precocemente que ao nível da política nacional (“domesticada” e capitalista)
e do direito tradicional não seria possível articular o problema da Weltgesellschaft.
Para ele, como sistemas parciais da sociedade, a economia, a técnica e a ciência
absorveriam, cada qual a seu modo, as mudanças em curso através do
aprendizado operado de modo sistêmico. Note-se, contudo, que só seria possível
compor um quadro de expectativas à medida que se fosse formando, com o
conhecimento do fenômeno, um conjunto de situações frustradas para que, de
modo seletivo, pudessem ser construídas expectativas novas (isto é, baseadas em
novos horizontes de possibilidade), havendo, assim, substituições. É que normas
e valores integrativos não seriam, para Luhmann, facilmente encontrados no
sistema da Weltgesellschaft. Isso exigiria um enorme grau de abstração, uma vez
que ele se diferencia de modo desconhecido e implica novos estados de
compatibilidade do mundo na medida em que, por diferenciação, o gradiente de
complexidade entre sistema e ambiente (Umwelt) aumenta no sentido de se obter
um sistema total mais complexo e repleto de contingências (voraussetzungsvoll).
Ora, isso implicaria novas consequências para as funções na Weltgesellschaft,
assim como para os processos de diferenciação funcional. Já não era mais
possível simplesmente subentender que as fronteiras sociais entre seres
humanos, no que se refere ao pertencimento a um determinado grupo
permanecessem idênticas nas diversas dimensões sociais. “Com isso, a unidade
de uma sociedade que abranja todas as funções ainda é possível somente na
forma da sociedade mundial [Weltgesellschaft]” (Ibidem: 60).
142
Ocorre que as ideias de sociedade-mundo, sociedade global ou mundial
tomam, no mais das vezes, a aparência de um Estado nacional expandido. Talvez
o leitor concorde que esse parece ser o caso em certas passagens tanto de Ianni,
quando de Beck, ainda que a presença categórica do nacional possa ser
encontrada, em cada um deles, de formas distintas. De certo modo, é preciso
notar que essa projeção categórica não deixa de ser coerente. Vale lembrar, por
exemplo, que Ernest Renan (1882) observava que a constituição de uma nação
envolve não somente uma memória compartilhada, mas uma soma de memórias
coletivamente esquecidas. Nesse sentido, os intérpretes da sociedade parecem
caminhar pelas trilhas de um pensamento muito próximo a esse, mas com alcance
planetário. Afinal, pode-se dizer que há uma história que é cada vez mais
efetivamente mundial, ainda que diga respeito a indivíduos, fenômenos ou
ocorrências aparentemente isolados. Dito de outro modo, há uma representação
coletiva de memórias e esquecimentos no curso da história global. Muito, é claro,
diz respeito à veiculação das notícias através das mídias que, como previa
Luhmann, já há tempos trespassam as fronteiras nacionais. Mas talvez se possa
sustentar, com boa margem de acerto, que tal veiculação não se confunde com o
processo em si, sendo apenas uma dimensão dele. É que não parece razoável
pensar a “globalização do noticiário” como correspondente à globalidade das
ocorrências, ainda que as influencie. Pode-se dizer que a mídia veicula
informações que se desterritorializam e nos permitem criar uma “representação
global”, um sentimento historicamente diferenciado de estar no mundo e, assim,
de ser parte dele. Sim, a globalização compõe também um imaginário específico –
como o fizeram os processos de nacionalização e colonização, feudalização,
citatização, e assim por diante. As ideias de uma sociedade global, em suas
variações, embora confira alcance imaginativo às sociologias da globalização,
precisam ser protegidas do risco de desconsiderar a reconfiguração histórica
desses sentimentos de pertencimento.
143
Por outro lado, ocorre que uma (re)invenção da sociedade em moldes
(ainda) nacionais, expandidos em âmbito mundial, não deve olvidar outro aspecto
eminentemente político: a questão de se esfera pública existente hoje nos Estados
nacionais lograria se realizar, efetivamente, em nível planetário. Contra isso há,
certamente, a proposta beckianna de um conjunto de normas baseadas nos
direitos dos seres humanos, pois que eles, no fundo, precederiam normas e
legislações existentes entre nações, internacionais. Como vimos, isso implicaria
um conjunto de acordos e expectativas – que legitimariam essas normas. Ora, no
caso de uma proposta como essa se realizar, dar-se-ia a perda quase definitiva da
conhecida prerrogativa dos Estados-nação há tanto enunciada por Weber (1919):
a existência de uma instituição que controla e arbitra, acima de todas as outras,
detendo o monopólio legítimo da força física. A proposta de Beck é, certamente,
cativante, mas talvez oculte uma ingenuidade. O Estado nacional é uma arena de
poder político, um poder que tende a expandir-se, mas também a concentrar-se. A
questão parece ser: será que a sociedade mundial pode, efetivamente, realizar-se
como sociedade humana? Mais precisamente: estamos preparados para uma
situação política de poderes cuja distribuição é assegurada fundamentalmente por
acordos, ou a globalização nos reserva a materialização de uma concentração
magnânima de poder e violência, sob um cetro que ainda desconhecemos?
Com efeito, a Weltgesellschaft de que falava Luhmann não se referia a um
sociedade que, em nível mundial, poderia subsumir as sociedades estatais e as
demais coletividades, ocupando suas posições – como propõe Ianni (1992, 1994,
1996) – correndo o risco de se transmutar, na babelização característica do
debate, em versões globais do que já existia. Falar em sociedade do mundo, nos
termos da teoria de sistemas luhmaniana, significa a extensão (não uniforme e
nem automática) da comunicação seletiva e compreensível à dimensão
(potencialmente) planetária. Trata-se da expansão de um sistema social total por
diferenciação e criação de novos sistemas distintos, isto é, da sociedade que se
diferencia e, assim, transforma suas estruturas, alcançando proporções novas e
144
mais amplas. Desse modo, as fronteiras dos Estados nacionais que terminam por
ser confundidas, no patrimônio cognitivo das ciências sociais, com as fronteiras da
própria sociedade, tornar-se-iam agora sistemas parciais de uma sociedade maior.
Esta sociedade, para Luhmann, não poderia se confundir com qualquer fronteira
geopolítica, porquanto a política (Politik) seria compreendida como um sistema
parcial da sociedade.
Para fechar esse ponto, cabe uma observação fundamental, conquanto
provocativa. “Mundo” (Welt), para Luhmann, não significa, necessariamente, o
Planeta! Aproximando-se do que Spencer-Brown (1969) entendia como um espaço
indeterminado (unmarked space), Luhmann compreende “mundo” como uma
unidade de distinção. Assim, o mundo é a abstrata unidade de diferença que se
forma no processo de constituição do sistema e de seu ambiente (Umwelt). Por
isso, creio, no fundo trata-se de um sistema total cuja unidade de diferença pode
ser o próprio planeta. Planeta e mundo são ideias que se aproximam em nível de
abstração, mas, note o leitor, não são a mesma coisa. Ocorre, no entanto, que a
imensa maioria das publicações sobre temas ligados à globalização empregam
termos como “sociedade global”, “sociedade mundial”, “sociedade planetária”, e
assim por diante, de uma maneira prêt-a-porter. (Essa é, aliás, uma boa metáfora:
é como se os sociólogos vestissem seus trabalhos com uma terminologia que não
foi feita para eles, mas que foi “comprada” pronta, e frequentemente sem os
ajustes necessários, na estante de uma biblioteca ou na plateia de uma
conferência.) Grande número desses autores parece desconhecer as origens
terminologias, quem as criou, como e para quê foram imaginadas, desenhadas,
fabricadas ou preparadas artesanalmente. Em linguagem marxiana, é como se as
palavras fossem fetichizadas, o que aliena parte do trabalho intelectual. Numa
apropriação da terminologia de Luhmann, é como se a própria sociologia não
lograsse se constituir em um sistema social, uma vez que nem sempre ocorre
comunicação eficiente de sentido.
145
III. Signos, significantes e significados
Dar nome é atribuir significado. A emergência da globalização como
problemática nas Ciências Sociais provocou o surgimento de neologismos e
ressignificações que compõem um conjunto de metáforas da globalização. Vale a
pena voltar a essa questão e observar que metáforas implicam também
classificações (fico tentado, aqui, a recordar Saussure e Lévi-Strauss). Nesse
sentido, se as chamo de metáforas, isso já significa algo, indica a eleição de um
modo pelo qual pretendo compreendê-las. Aliás, é possível dizer, em certo
sentido, que metáforas em muito se assemelham a fronteiras políticas,
especialmente numa situação de globalização como a atual. Ora, toda metáfora é
também uma fronteira, na medida em que suspende os limites do pensamento,
criando novas diferenciações. Do ponto de vista sociológico, metáforas podem ser
mais que simples figuras de linguagem e estilo. Elas expressam,
simultaneamente, a separação e a conexão entre dois ou mais pensamentos.
Nesse sentido (se o leitor me permite o jogo de ideias), toda fronteira pode ser
entendida como uma metafórica na medida em que estabelece critérios de
comparação, de medição, definição, inclusão e exclusão. Essa visão, que orientou
o contraponto desenvolvido nos capítulos anteriores, parece profícua para situar
as diversas formas pelas quais a globalização tem sido significada e ressignificada
ao longo dos últimos anos.
Aqui a interpretação ganha uma nova função: em vez de decifrar o sentido, ela evidencia o potencial de sentido produzido pelo texto. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo comunicativo que deve ser descrito. É certo que no processo da leitura o potencial de sentido nunca pode ser plenamente elucidado. Mas é justamente por isso que a análise do sentido enquanto evento se torna ainda mais necessária; pois só desse modo se evidenciam os pressupostos que condicionam a constituição do sentido (ISER, 1996: 54).
146
Fronteiras podem ser vistas como metáforas de escolhas, uma vez que
toda fronteira é arbitrária. Sendo assim, implica a negação de outras
possibilidades, isto é, constitui-se como expressão (ou como metáfora) das
materializações históricas dos seus limites, da sua estreiteza e, em muitos casos,
de sua aparente universalidade. Se as fronteiras, em geral, se pretendem eternas,
as metáforas também podem tomar uma aparência universal, sendo, de fato,
singulares, particulares, próprias dos contextos dentro dos quais se inserem.
Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito).
As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. [...] É, pois, todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. [...] O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. [...] Os sentidos não estão nas palavras mesmas. Estão aquém e além delas (ORLANDI, 1999: 40-42)
Sim, metáforas dizem respeito a contextos específicos de possibilidades de
imaginação. No debate sociológico sobre a globalização, isso não se dá de
maneira diferente. Cada uma dessas metáforas que compõem as tentativas de
cognição da globalidade em emergência está arraigada em historicidades e
temporalidades específicas. Aqui voltamos ao problema da (não) abrangência.
Estando arraigadas (ou enraizadas, para falar como Ortiz), certas metáforas
podem não fazer sentido quando mudamos o registro, o ponto de partida das
linhas de perspectiva. E uma mesma metáfora pode se desdobrar em muitas
outras. Esse é o caso, para dar um exemplo, da metáfora do globalismo,
neologismo criado a partir da necessidade de expressar certos movimentos da
147
globalização do capitalismo. Como vimos, a mesma metáfora assume contornos
profundamente diversos em autores deferentes, mesmo quando são
contemporâneos. É assim que, para Ianni, o globalismo está na origem da
globalização, sendo um dos nomes do próprio capitalismo (expandido em nível
planetário); ao mesmo tempo, para Beck, o globalismo expressa um efeito
colateral, uma ideologia que desenvolve-se em meio às dinâmicas do sistema
capitalista. Fenômenos como esse ilustram de modo exemplar o caráter
frequentemente polissêmico, e também o sempre latente (ou potencial) mal-
entendido das metáforas como ferramentas do trabalho intelectual de construção e
reconstrução de um debate que ainda não dispõe de um léxico comum.
148
149
REFERÊNCIAS
NOTA: Todas as citações de textos cujas referências não estão em língua portuguesa foram
traduzidos por mim. Os problemas referentes às traduções são, nesses casos, de minha inteira
responsabilidade. Os grifos, no entanto, são sempre dos autores, estando presentes nos originais.
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