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DANILO ARNAUT SARAIVA A INTELIGÊNCIA DO MUNDO: SOBRE A COGNIÇÃO DE PROCESSOS GLOBAIS EM OCTAVIO IANNI E ULRICH BECK CAMPINAS 2014

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DANILO ARNAUT SARAIVA

A INTELIGÊNCIA DO MUNDO: SOBRE A COGNIÇÃO DE PROCESSOS GLOBAIS EM OCTAVIO IANNI E ULRICH BECK

CAMPINAS 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DANILO ARNAUT SARAIVA

A INTELIGÊNCIA DO MUNDO: SOBRE A COGNIÇÃO DE PROCESSOS GLOBAIS EM OCTAVIO IANNI E ULRICH BECK

Orientador: Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno Danilo Arnaut Saraiva sob a orientação do Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz.

CAMPINAS 2014

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RESUMO

Esta dissertação materializa um conjunto de reflexões a respeito dos trabalhos de

Octavio Ianni e Ulrich Beck sobre os processos de globalização. Trata-se de uma

sociologia dessas sociologias que objetiva investigar a própria cognoscibilidade

desses processos através dos elementos que orientam a criação sociológica

desses autores.

PALAVRAS-CHAVE : Globalização; Sociologia; Ulrich Beck; Octavio Ianni;

Relações Internacionais

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ABSTRACT

The Awareness of the World: On the cognizance of gl obal processes within

the thoughts of Octavio Ianni and Ulrich Beck

This dissertation is based on a set of analyses of the works of Octavio Ianni, and

Ulrich Beck on the processes of globalization. It constitutes a sociology of these

sociologies, which aims to investigate the very cognoscibility of these processes

through the elements that have driven the author’s sociological creation.

KEYWORDS: Globalisation; Sociology; Ulrich Beck, Octavio Ianni, International

Relations

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SUMÁRIO PARTE PRIMEIRA 1. Sobre os Estudos Globais: Observações preliminar es [p. 3]

I. A Gestação: precursores de um debate [p. 5] II. A Emergência [p. 10] III. O Estabelecimento [p. 12]

2. Sociologia da Sociologia: notas sobre um percurs o [p. 19]

I. A cognição de processos globais como objeto [p. 21] II. Sobre a construção da pesquisa [p. 24] III. Textos e contextos: a abordagem do corpus [p. 26] IV. Para a cognição de pensamentos: a leitura como atitude [p. 31] V. Sobre a escrita deste trabalho [p. 32]

3. O Emblema do Globo: Octavio Ianni e a Taquigrafi a do Mundo [p. 35]

I. O Globalismo: novo palco da história [p. 37] II. A tentação metodológica [p. 42] III. A Sociedade Global: sociologia da Humanidade [p. 47]

4. Filhos do Mundo: Individualização, Cosmopolitiz ação e Modernidade em Ulrich Beck [p. 53]

I. Individualização: metodologia da (auto)biografia [p. 56] II. Cosmopolitização, cosmopolitismo:

interlúdio da globalização [p. 64] III. Modernização da Modernidade: raízes da globalidade,

caminhos da globalização [p. 69] PARTE SEGUNDA 5. O lugar do Pensamento na Globalização [p. 75] I. Enigmas do Globalismo, respostas à Globalidade [p. 79]

1. A expressão máxima do Capitalismo [p. 79]

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2. Economia política: globalismos do globalismo [p. 81] 3. O Estado-nação como um problema

sociológico renovado [p. 88] II. A inteligência da Política: um recorte possível [p. 89] III. Violência, Terror e Vulnerabilidade [p. 93]

1. Quando a barbárie se institucionaliza: o Estado como agente do terror [p. 94]

2. Inimigos do Estado, Inimigos do Mundo: riscos perceptíveis e individualização da guerra [p. 99] IV. Desigualdades, (in)segurança e seguridade [p. 102]

1. Trabalho e produção da humanidade [p. 104] 2. Desigualdade e estratificação [p. 106]

V. A Política (re)descoberta [p. 109]

1. As ilusões da Política mundial [p. 109] 2. A Política cosmopolita e reflexiva [p. 114] 3. Globalização e processo civilizatório [p. 117] 4. Politização, Despolitização e Repolitização:

Modernidade e Reencantamento do Mundo [p. 120] 6. Heranças e Horizontes: perspectivas de um debate [p. 125]

(In)conclusão [p. 126] I. O problema da abrangência [p. 128]

1. Teoria sociológica ou diagnóstico social?: Um raciocínio de entremeio [p. 131]

II. A cortina das ilusões: globalização e senso (in)comum [p. 134] 1. O real e o efetivo [p. 136] 2. A univocidade do novo [p. 139] 3. A reinvenção da Sociedade [p. 139]

III. Signos, significados e significantes [p. 145] Referências [p. 149]

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A Vânia, por me mostrar que o Amor é filho do Perdão; a Luiza, que me ensinou que o Amor é irmão do Carinho;

a Almerinda, por me contar que o Amor, quando ainda moço, caiu de amores pela Paciência

e nunca mais conseguiu viver sem ela; a Sônia, que me segredou que o Amor tem três sobrenomes:

Força, Confiança e Admiração; a Tânia, por me mostrar que o Amor,

sendo pai da Coragem, é uma decisão.

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Agradecimentos

Além daquelas às quais dedico este trabalho, gostaria de expressar meus

agradecimentos à professora Leila da Costa Ferreira e ao professor Josué Pereira

da Silva, pelos atenciosos comentários às minhas pesquisas, e em especial à

primeira versão deste texto. Também gostaria de mencionar aqui (em ordem

alfabética) os professores Álvaro de Vita, Fernando Lourenço, Frédéric

Vandenberghe, Gilda F. Portugal Gouvêa, Helmuth Berking, Omar Thomaz, Pedro

Peixoto Ferreira, Sérgio Cardoso e Silvio César Camargo, cujas sugestões e

estímulos tanto contribuíram para o avanço dos meus trabalhos.

Quero recordar, com gratidão, também as professoras Britta Friedmann,

Elisabeth Rosenberger, Maria Coracini, Martha Gibson, Norma Wucherpfenig,

Sandra Ballweg, Salete Aquino, Viviane Veras e Yara Frateschi, que me ensinaram

sobre escrita e comunicação. E o professor Milton Almeida (in memorian), pela

lição de coerência e ousadia críticas.

Nessa linha, gostaria de dirigir um agradecimento especial ao meu

professor e orientador Renato Ortiz, pelo constante encorajamento e pela palavra

arguta que me ampararam de modo frutífero durante as minhas pesquisas,

estimulando sempre a independência e a perspicácia intelectuais, imprescindíveis

ao nosso ofício.

Também quero agradecer aos professores Octavio Ianni (in memorian) e

Ulrich Beck. Embora só tenha podido conhecer pessoalmente este último, foram

eles que me conduziram, cotidianamente, pelos caminhos e tropeços, horizontes e

trilhas que compõem a aventura que é pensar o social.

Agradeço aos meus colegas e amigos Anna Mayr, Augusto Costa, Camila

De Mario, Camila Ribeiro, Catarina Casimiro Trindade, Flávia Paniz, Gustavo

Cardoso, João Gomes, Julia Abdalla, Julia Uzun, Juliana Closel Miraldi, Juliana

Pinheiro Prado, Lucas Page Pereira, Meghie Rodrigues, Roberta Caroline, Samira

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Feldman Marzochi, Tatiana Barbarini, Tobias Schmidt e Vítor Queiroz, pelo apoio,

pela torcida, assim como pelas sugestões e auxílios durante a realização deste

trabalho. Gostaria de lembrar também a atenciosa assistência dos funcionários

dos setores administrativos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (e, mais

amplamente, da Universidade Estadual de Campinas), da Biblioteca Octavio Ianni,

da Biblioteca Florestan Fernandes, da Universitäts- und Landesbibliothek der

TUDarmstadt, da Universitätsbibliothek Duisburg-Essen, e da Biblioteca Jurídica

do Largo de São Francisco.

Finalmente, last but not least, gostaria de agradecer ao Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujo apoio foi fundamental

para a realização das pesquisas que deram origem a essa dissertação, bem como

ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), por ter viabilizado minha

estada na Universidade Duisburg-Essen, antes do início do Mestrado, e à

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por

cobrir parte das despesas com participação em eventos acadêmicos fora do

estado de São Paulo.

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Books are not the world: they are about it.

Arjun Appadurai*

*Appadurai (1996: xi).

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PARTE PRIMEIRA

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Capítulo I

Sobre os Estudos Globais

Observações preliminares

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A espécie humana pode não sobreviver por tempo suficiente para que nós a estudemos como uma entidade complexa, mas essa dificilmente seria uma desculpa para abandonar

um dos mais antigos temas da nossa vocação. Wilbert E. Moore1

Uma reflexão a respeito da globalização faz pouco sentido se desvinculada

dos diversos modos pelos quais o tema tem sido problematizado nas ciências

sociais em nível mundial. Cabe notar, porém, que o debate sobre a globalização é

assimétrico e pouco linear. Não dá voz a “todos” no mundo, mas, ao contrário,

envolve disputas por poder e hegemonia. Assume formas e cores diferentes nos

seus diversos epicentros, variando conforme as temporalidades e espacialidades

em que se situam, e assumindo, até mesmo uma aparência isolada em alguns

momentos e contextos. No entanto, assim como ocorre com os processos de

globalização, o debate sobre eles também apresenta certas linhas de força2 que o

atravessam; é como se houvesse um elo que, embora não una ideias e

pensamentos, nem fenômenos e processos, faz com que se apresentem

conectados. Por isso, é possível crer que a inteligência dos processos globais

deva passar pela compreensão das relações hegemônicas entre esses epicentros,

seus contornos e desenvolvimentos, numa situação de globalização.

Neste capítulo, ofereço ao leitor uma concisa apresentação de alguns dos

contornos desse debate sobre a globalização no âmbito das ciências sociais. A

intenção é evidenciar algumas de suas principais direções a fim de alicerçar o

avanço posterior sobre as contribuições de Octavio Ianni e Ulrich Beck, que são o

recorte da reflexão que se desenvolverá mais adiante no corpo da presente

1Moore (1966: 482). Segue o original: “Mankind may not survive long enough for us to study it as a complex entity, but that is scarcely an excuse for abandoning one of the oldest themes of our calling”.

2Retirei a expressão “linhas de força” dos escritos de Renato Ortiz sobre o tema (cf. ORTIZ, 2006, 2009).

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dissertação. Nesse sentido, elaborei estas notas introdutórias da seguinte

maneira. Primeiro, trato de alguns autores que podem ser considerados como

precursores do debate. Creio que seja relevante levá-los em consideração uma

vez que muitas de suas inquietações têm sido ainda problematizadas nos estudos

mais recentes (I). Depois disso, trato da efetiva emergência, em meados dos anos

1990, do tema da globalização enquanto uma problemática reconhecidamente

central nas ciências sociais. Nesta altura, optei por apresentar, particularmente, a

confluência com o debate sobre a oposição modernidade e pós-modernidade, bem

como a situação de emergência de um debate de proporções mundiais no

contexto regional da América Latina (II). Com base nisso, convido o leitor a

formular uma leitura de caráter abrangente a respeito das estratégias, caminhos e

trilhas que vêm engendrando os diversos pensamentos sobre a globalização, o

que conduzirá a uma análise mais específica sobre dois desses pensamentos que

serão apresentados e discutidos nos capítulos posteriores (III).

I. A gestação: precursores de um debate

A problemática da globalização emerge nas Ciências Sociais há

aproximadamente duas décadas e meia. Surge no final dos anos 1980, mas pode-

se dizer que o debate se adensa somente a partir da década de 1990. Há, no

entanto, precursores. Os textos do americano Immanuel Wallerstein já versavam,

desde a década de 1970, sobre um sistema-mundo (world-system),

conceptualizado no âmbito de uma primazia do econômico, de uma divisão do

trabalho singular e de múltiplos sistemas culturais. Wallerstein afirmava que o

capitalismo deveria ser locado somente na forma de um sistema-mundo que

corresponderia àquilo que se denominava economia-mundo (world-economy).

Chegava mesmo a datar os processos – e, note-se, com base na história

econômica europeia. Estaríamos, para ele, diante de algo que existia, como um

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sistema europeu, desde aproximadamente 1450, e enquanto sistema global

(global system), desde aproximadamente 1815 (WALLERSTEIN, 1979)3. Para o

autor, “a economia mundial capitalista foi construída sobre uma divisão mundial do

trabalho na qual várias zonas dessa economia […] assumiram diferentes papéis,

desenvolveram diferentes estruturas de classe, usando, consequentemente,

diferentes modos de controle do trabalho e se beneficiando de modo desigual”

(WALLERSTEIN, 1974: 162). Também observava que essa perspectiva analítica

implicaria uma tensão: a de que enquanto se poderia pensar a economia do ponto

de vista de sistemas que se sucederiam em nível mundial, a ação política

ocorreria dentro do quadro dos estados nacionais.

A peculiaridade da economia mundial capitalista está no fato de que as fronteiras das estruturas políticas e econômicas são diferentes. […] Enquanto as atividades sociais de um grupo são, no limite, determinadas pelo seu papel na economia-mundo, o objeto de sua atividade política (para assegurar ou transformar sua posição no sistema social) será primariamente dirigido ao estado do qual eles são um membro (“cidadão”) (WALLERSTEIN, 1979: 196, grifos do autor).

Nessa linha, contudo, o autor observa que “os estados não se desenvolvem e não

podem ser entendidos de outro modo que não dentro do contexto de

desenvolvimento do sistema mundial” (WALLERSTEIN, 1974: 67).

À guisa de Wallerstein, outro precursor da maior relevância foi o francês

Fernand Braudel, que destaca-se por ter procurado compreender as origens das

3É importante notar que Wallerstein, ao logo dos seus estudos sobre o tema nos anos 1970, deixa de usar os termos “economia mundial” e “sistema mundial”, passando a adotar “economia-mundo” e “sistema-mundo”. A mudança, aparentemente simples, parece denotar uma incorporação da ideia de mundo à de sistema: elas tornam-se, assim, noções imbricadas. Em sistema mundial, tem-se o “mundial” como atributo de “sistema”. Na próxima nota, citarei um trecho em que Fernand Braudel desenvolve a questão. Por “sistema-mundo”, denota-se um mundo sistêmico, no sentido de uma unidade organizada desse modo. O conjunto dessas partes (desses pequenos mundos) daria forma ao mundo. Trata-se, no fundo, de enfatizar ora o todo, ora a parte.

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“economias-mundos”4 capitalistas, combinado um olhar simultaneamente histórico

e geográfico.

Os nossos pontos de vista [o dele e o de Wallerstein (1974)] quanto ao essencial são idênticos, ainda que para Immanuel Wallerstein, não haja outra economia-mundo além da da Europa, fundada a partir do século XVI somente, enquanto que para mim, muito antes de ter sido conhecido pelo homem da Europa na sua totalidade, desde a Idade Média e mesmo desde a Antiguidade, o mundo já estava dividido em zonas econômicas mais ou menos centralizadas, mais ou menos coerentes, ou seja, em várias economias-mundos, que coexistem (BRAUDEL, 1985: 54, grifos do autor).

Ainda nos anos setenta, na Alemanha, Niklas Luhmann também esforçava-

se por desenhar os contornos daquilo que chamou, num artigo que data de 1971,

a sociedade mundial ou global (Weltgesellschaft)5. Trata-se também de uma

tentativa de compreensão sistêmica de fenômenos de maior amplitude. Há aqui, 4O plural é economias-mundos (com “s” no fim do nome e também do atributo). A mesma observação feita a respeito de Wallerstein vale para Braudel, que justifica sua preferência da seguinte maneira: “por economia mundial entende-se a economia do mundo considerada em seu todo, o 'mercado de todo o universo', como já dizia Sismondi. Por economia-mundo, palavra que forjei a partir do vocabulário alemão Weltwirtschaft, entendo a economia de somente uma parte do nosso planeta, na medida em que essa porção forma um todo econômico, […] um mundo em si mesmo” (BRAUDEL, 1985: 53). O livro, embora publicado nos anos oitenta, corresponde à reprodução de conferências proferidas na Universidade John Hopkings, nos Estados Unidos, ainda em 1977. Quanto ao uso do termo, Braudel esclarece que essa foi uma opção sua ao construir sua formulação. Contudo, no conjunto do debate que se desenvolve mais tarde, sobre a globalização propriamente, creio que essa distinção tenda a ser borrada. O mundial (assim como o global) tende a tornar-se atributo inexorável. Por isso traduzo um Kompositum germânico da mesma natureza que é a Weltgesellschaft por “sociedade mundial” (assim como o farei, sobretudo a partir do quarto capítulo, com a “sociedade de risco mundial”, que entendo como um equivalente apropriado, em língua portuguesa, para Weltrisikogesellschaft).

5O termo “global” parece ter sido sempre preferido pelo fato de o debate ter se iniciado majoritariamente entre os anglófonos, que usavam termos como “global studies”, “globalization (USA)/ globalisation (GB)”, “glocalisation” e “globality”. Na França, por exemplo, onde o debate anglo-americano sobre a globalização não causou tão grande impacto num primeiro momento, utiliza-se, ainda atualmente, quase que apenas o termo “mondialisation”, sem diferenciações claras de significado. Quanto à distinção proposta por Braudel (ver nota 4), traduzo por sociedade mundial (e não sociedade-mundo), porque não se trata de sistemas-mundo conectados, mas de uma sociedade sistêmica de âmbito mundial.

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no entanto, uma dissonância em relação a Wallerstein e Braudel. O interesse de

Luhmann está menos na economia, ou no lugar da sociedade mundial

(Weltgesellchaft) na história, e mais na configuração de novos horizontes de

mundo (Welthorizonte) e de tempo (Zeithorizonte). Pode-se dizer, nesse sentido,

que Luhmann foi o grande pioneiro de uma sociologia da globalização. Sim,

Luhmann esforçava-se por observar aquilo que seria, anos mais tarde,

problematizado por cientistas sociais em diversas partes do globo: a sociologia já

não podia mais precisar as fronteiras das sociedades humanas e, nessa medida,

até mesmo o conceito de sociedade deveria ser questionado. Luhmann percebe

que há um conhecimento cada vez maior sobre os outros seres humanos, bem

como das possibilidades de interação. Isso aliado à observação de que o

conhecimento científico, assim como transações comerciais e um tipo de opinião

pública, teriam logrado alcançar uma dimensão planetária, configurando uma

civilização em trânsito contínuo. Sobre esse aspecto, talvez o leitor se recorde dos

escritos do canadense Herbert Marshall McLuhan (1962, 1964, 1968) que

apresentava a célebre noção do mundo como uma aldeia global (global village),

fundamentada no espraiamento das possibilidades de comunicação, forjadas com

a informatização. Uma comparação talvez fosse possível, de certo modo, já que

essas reflexões datam quase da mesma época. Mas ocorre que, para Luhmann, a

Weltgesellschaft não se constituiria através do fato de que cada vez mais pessoas,

não obstante a distância espacial, mantêm contatos presenciais elementares.

Esse seria apenas um aspecto (até mesmo secundário) dos fatos. Para Luhmann,

toda interação constituiria um “e assim por diante” [“Und so weiter”] de outros

contatos dos interlocutores [Partner], envolvendo possibilidades que escapam às

interdependências mundiais e que incluem também controle ou direção para essa

interatividade [Interaktionssteuerung] (LUHMANN, 1975: 54)6.

6 Tendo em vista o caráter geral desta introdução, não caberia uma abordagem detida de nenhum desses autores. Alguns aspectos da sociologia luhmanniana da globalização serão retomados no sexto capítulo (no item 3 da segunda seção, em particular), mas vale notar que O. Thyssen

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Pode-se dizer que Luhmann, Wallerstein e Braudel tenham sido, cada qual

a seu modo, os grandes precursores do debate sobre a globalização nas ciências

sociais. A título de nota, no entanto, vale observar que há textos ainda mais

antigos, como o de Trygve Mathisen (1959), que já procurava identificar a

existência de uma sociedade mundial (world society), entendida como capaz de

abarcar o mundo todo em termos de organizações não-estatais, posta em

oposição ao âmbito das organizações internacionais, que configurariam uma

espécie de sociedade internacional (international society), na qual apenas atores

estatais seriam representados. Outro texto pioneiro foi o de Wilbert Moore (1966),

que talvez tenha sido o primeiro a publicar um ensaio sobre uma Sociologia de

dimensão global. E, para concluir esse ponto, vale mencionar que, curiosamente,

antes mesmo de Mathisen e Moore, ainda em 1941, o jovem Marshall Hodgson,

interessado nas possibilidades histórico-metodológicas de um estudo das

civilizações em um “contexto global”, escreveu uma carta na qual utiliza o termo

global num sentido muito próximo ao que lhe atribuímos contemporaneamente7

(HODGSON, 1993: xiii-xiv; REHBEIN & SCHWENGEL, 2008: 11). Como dito, não

havia um ambiente acadêmico propício o suficiente para essa discussão. Não

obstante, esses e outros trabalhos têm o mérito de anunciar os termos de um

debate que ainda estava por vir.

dedicou um paper à temática (cf. THYSSEN, 2006), e também eu tive ocasião de escrever mais detalhadamente a respeito do caráter precursor dos trabalhos de Luhmann sobre a globalização (cf. ARNAUT, 2012b).

7Segundo Edmund Burke III, quem organizou o livro para publicação, essa carta, que não fora publicada na época, teria sido um gérmen para um trabalho de Hodgson intitulado The unity of the World History. Este, por sua vez, também nunca foi publicado. Na obra que cito (HOGDSON, 1993), a terceira parte corresponderia, segundo o organizador, aos três últimos capítulos daquele trabalho. Embora valha a pena mencionar a existência desses escritos, é importante perceber que sua publicação é póstuma, e efetuada muito depois da sua concepção. Desse modo, não podem ser vistos como textos que influenciaram o debate. Pode-se dizer, inclusive, que seu impacto foi, efetivamente, muito pequeno, tendo permanecido quase desconhecidos no período entre a morte do autor (1968) e a emergência dos estudos sobre a globalização no âmbito das ciências sociais.

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II. A emergência

Após esses primeiros movimentos, já no fim dos anos 1980, o debate

emerge e começa a tomar corpo e ganhar densidade. Curiosamente, esse

percurso não se inicia nas Ciências Sociais, mas entre os administradores de

empresas, assim como entre os homens e mulheres de negócio e de marketing,

que faziam uma espécie de apologia ao mercado “livre”. A intenção, porém, era

muito mais a de compreender o funcionamento de um mercado de âmbito

mundial, do que propriamente a de perceber suas estruturas, processos e

relações, o que corresponde a um interesse fundamentalmente ideológico,

economicista. “Com exceção da perspectiva dos ecólogos, que, desde o início, foi

mais abrangente, o tema [da globalização] era parte das preocupações do

industrialismo contemporâneo, e vicejava entre aqueles que defendiam as

estratégias das corporações transnacionais” (ORTIZ, 2006: 10).

Naquele momento, as ciências sociais também ocupavam-se com as

transformações da sociedade pós-industrial, mas de outro modo. O que estava em

pauta era a oposição modernidade versus pós-modernidade. A padronização,

característica da primeira, diante do pluralismo atribuído à segunda.

A ausência de uma reflexão sobre a globalização é preenchida, no entanto, por uma presença: a discussão sobre a pós-modernidade. […] Uma constatação se impõe: as duas tendências evoluíam em registros diferentes. Elas não se cruzavam. […] A temática da pós-modernidade possui uma dimensão filosófica abrindo-se para o horizonte da crítica da Razão, os impasses da liberdade, os limites do universalismo num mundo no qual o particular se redefine. […] Os textos sobre a globalização têm outro perfil, eles são de natureza mais sociológica do que propriamente filosófica. O que se deseja entender são os mecanismos da nova ordem mundial, como ela se estrutura, qual a melhor maneira de se inserir no seu interior (ORTIZ, 2009: 234-235).

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Era importante “precisar que a condição pós-moderna não é a sociedade;

que ela afeta, sem dúvida, setores de todas as sociedades; e que, sob este

aspecto, ela não pode constituir o único objeto de uma análise antropológica ou

histórica que leve em consideração a pluralidade e a diversidade do real” (AUGÉ,

1994: 40, grifo do autor). Trata-se, no fundo, não só de perceber que a afirmação

das diferenças não é suficiente para a superação de totalidades, mas também de

distinguir entre a esfera da normatividade, cara à filosofia e às artes, e um ponto

de vista mais descritivo, característico das ciências sociais8.

Nesse contexto, pode-se dizer que as ciências sociais entraram

efetivamente no debate sobre a globalização em meados dos anos 1990, quando

(como coloca Ortiz) o tema ganha identidade – ainda que preferencialmente na

Europa e nas Américas. Aliás, sobre esse ponto, o leitor deve notar que me refiro

tanto aos Estados Unidos, quanto à América Latina. Sim, porque do ponto de vista

das ciências sociais, a despeito das limitações existentes, o debate sobre a

globalização não chega “atrasado” para os latino-americanos. Nessa linha, pode-

se dizer que trabalhos como os de Renato Ortiz (1988, 1994), assim como os de

Octavio Ianni (1992, 1995), Milton Santos (1994, 2000), ou Néstor Garcia Canclini

(1990, 1999), problematizaram, desde muito cedo, os processos de globalização.

Essa é uma observação invulgar, tendo em vista a história e a formação do

pensamento social latino-americano, pautadas na dependência de (e também na

busca por) um imaginário e um corpo histórico-conceitual modernos, que “ainda”

não pertencem aos nossos “tristes trópicos” (para falar como Lévi-Strauss), ou

então que “ainda” não se realizaram. Ora, a ideia da globalização carrega em si o

pressuposto de um fenômeno que envolve a “todos” no mundo. É claro que isso

não se dá de maneira uniforme: evidentemente, uns são mais globalizados ou

globalizáveis que outros. No entanto, é perceptível que a globalização

8 Retornarei a essa questão no capítulo sexto, segunda seção.

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se enraíza no solo no qual se nutre nossa experiência, independemente de sua localização regional. Ela pode então ser apreendida pelo pensamento, pois a defasagem temporal que existia anteriormente torna-se inexpressiva. A modernidade pressupunha uma temporalidade progressiva na qual a América Latina só encontraria lugar num momento futuro; a globalização implica a ideia de uma compressão do tempo, as diferentes partes do planeta são atravessadas pelo seu fluxo (ORTIZ, 2009: 233-234).

III. O estabelecimento

Nos anos 1990, a globalização entra para a agenda do dia em qualquer

discussão, a partir dos mais diversos enfoques e perspectivas, por todo o mundo.

Isso não deixa de ser um problema, de certo modo, à medida que também se cria

a impressão de que “tudo está globalizado” – o que não se dá, de fato. Tanto de

um ponto de vista empírico como de uma perspectiva teórica, esse tipo de

observação (equivocada a meu entender) dá origem, por exemplo, a polêmicas a

respeito de uma possível “homogeneização” do mundo, em particular nas esferas

da cultura e do consumo. Recordo-me, em especial, da noção de

“McDonaldização” do mundo, cujo maior representante é o americano George

Ritzer. Trata-se de uma reformulação da teoria weberiana de uma racionalização e

burocratização do ocidente que se estenderia para o mundo. A McDonaldização

do mundo seria, assim, um processo pelo qual os princípios do restaurante fast-

food, os quais dominariam cada vez mais setores da sociedade americana,

alcançam o resto do planeta (RITZER, 1996). Colocada de outro modo, a ideia

implica a projeção para o mundo da compreensão ritzeriana de um fenômeno que

é nacional (quando não específico de determinados setores, ainda que

majoritários ou representativos, da sociedade estadunidense).

Nesse conjunto de polêmicas também se insere uma inquietação frequente

a respeito do futuro dos Estados-nação. A questão inicial era se o advento da

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globalização significaria, mais cedo ou mais tarde, o fim dos Estados nacionais9,

ou sua “expropriação”, para falar como Zigmund Bauman, que chegou a colocar o

problema da seguinte maneira:

Tudo isso cerca o processo em curso de “definhamento” das nações-estados de uma aura de catástrofe natural. Suas causas não são plenamente compreendidas; ele não pode ser previsto com exatidão mesmo que as causas sejam conhecidas; e com certeza não pode ser evitado, mesmo que previsto. […] Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo do controle” é que foi articulada (com pouco benefício para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o de globalização. O significado mais profundo transmitido pela ideia de globalização é o do caráter indeterminado e de autopropulsão dos assuntos mundiais: a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com um outro nome (BAUMAN, 1998: 65-67, grifos do autor).

Nessa mesma linha, podem ser encontradas apostas no “fim da geografia”,

e mesmo no “fim da história”, como formulada por Francis Fukuyama (1992)10.

9A respeito do “fim” do estado nacional, convido o leitor a revisitar, entre outros, Kenichi Ohmae (1995). Com o desenrolar do debate, fica cada vez mais claro que os Estados-nação não estão “desaparecendo”, mas que se modificam com as transformações sociais. Essas transformações é que passam, então, a ser problematizadas. Analiso algumas das dimensões centrais do Estado-nação no atual contexto de globalização no quinto capítulo, a partir dos pensamentos de Octavio Ianni e Ulrich Beck sobre a Política na globalização.

10A ideia de fim da história já tinha sido abordada por Hegel, na sua Fenomenologia, como uma metáfora controversa e alvo de grandes mal entendidos a respeito do que seria a existência da humanidade no seio de um Estado mundial por vir. Vale a pena, aqui, citar a observação de François Châtelet quanto à significação ontológica da fórmula fim da História. “Pode-se interpretá-la como extinção do tempo. […] Semelhante ontologia não tem o menor sentido na concepção hegeliana. O Ser (= Espírito), que é devir, não poderia ser suprimido. A humanidade continuará devindo; porém no seio do Estado mundial, ela não “evoluirá” mais, no sentido de que não criará mais nada de novo, estará em plena positividade e viverá numa sociedade integralmente transparente. O que será essa existência, é igualmente impossível imaginar” (CHÂTELET, 1968: 153).

Do ponto de vista do debate sobre a globalização, refiro-me de modo mais direto a contribuições

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São pensamentos que alardeiam, mas que contribuem pouco para a inteligência

dos processos globais. Isso se dá, frequentemente, porque projetam uma

realidade local sobre as diversidades planetárias: um Estado-nação forjado numa

Europa ocidental, uma História como concebida por uma tradição também

europeia, a homogeneização que se torna possível como resultado das formas de

consumo vigentes nos Estados Unidos ou em parte dele. É verdade que esses

processos podem ser identificados em outras partes do mundo, mas não com a

mesma força ou intensidade. De um modo geral, a meu ver, teses desse tipo (fim

do estado, fim da história, homogeneização etc.) vêm se desgastando,

tendencialmente, no curso do debate nas Ciências Sociais, embora ainda

permeiem um certo senso comum (mesmo nos meios acadêmicos): esbarram-se

nas diversidades da humanidade; no futuro, que se torna presente; no passado,

que nos permite especular e duvidar dos estardalhaços inerentes à ideia do “fim”.

Como veremos mais adiante, a globalização pode também ser concebida (como

ruptura ou como continuidade) sempre enquanto um prenúncio do futuro.

Tais mal-entendidos envolvem, no entanto, uma dimensão heurística que

não se deve ignorar. Sim, pois com essas tentativas de descrição qualitativa

transparecem as dificuldades para se compreender e explicar o fenômeno da

globalização, assim como, por outro lado, são sinalizados novos caminhos ou

possibilidades para a inteligência dos processos que a globalização envolve e

engendra. As ciências sociais deparam-se com o novo e precisam construir ou

reformular referências. Um sintoma dessas dificuldades é o caráter quase sempre

metafórico (e, muitas vezes, impreciso ou fugidio) dessas tentativas de descrição.

A linguagem metafórica nos permite uma aproximação mais livre do fenômeno à

medida que dá nome ao que até então “não existia” para o intercâmbio do

como a de Fukuyama, que alcançou uma certa popularidade, num momento de crise e incertezas, publicando um curioso ensaio intitulado “The End of History?” (1989) e, mais tarde, um livro, The End of History and the Last Man (1992). Entre as diversas críticas a essa perspectiva, vale a pena indicar a de Jacques Derrida (1993, capítulo 2).

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pensamento científico. Entretanto, o uso de metáforas exige cautela. Há sempre o

risco de que o pensamento se perca na obscuridade de suas significações.

Chama a atenção nesses textos a profusão de metáforas utilizadas para descrever as transformações deste final de século: “a primeira revolução mundial” (Alexander King), “terceira onda” (Alvin Toffler), “sociedade informática” (Adam Schaff), “sociedade amébica” (Kenichi Ohmae), “aldeia global” (McLuhan). Fala-se da passagem de uma economia de high volume para outra de high value (Robert Reich), e da existência de um universo habitado por “objetos móveis” (Jacques Attali) deslocando-se incessantemente de um lugar a outro do planeta. Por que esta recorrência no uso de metáforas? Elas revelam uma realidade emergente ainda fugidia ao horizonte das ciências sociais (ORTIZ, 1994: 14, grifos do autor).

Toda metáfora implica um conjunto de referências que não são,

necessariamente, as mais adequadas sob outros pontos de vista, em outros

epicentros de um debate de proporções mundiais. Por isso, muitas dessas

metáforas e neologismos não vingaram, ou caíram no esquecimento, enquanto

outros foram sendo ressignificados.

Pode-se discordar do conteúdo das análises do autor, e muitas delas são insuficientes, mas o fascínio da metáfora se deve à sua inteligência em captar um emaranhado de articulações que explicitam uma nova configuração social. Não obstante, toda metáfora é um relato figurado, o que se ganha em evidência perde-se em precisão conceitual. Ela possui a virtude de delimitar um contorno, mas uma vez apreendido, ao torná-lo visível, as sombras se projetam no seu interior. Há um tempo das metáforas e outro do conceito, pois é necessário passar da delimitação de um fenômeno para a análise de seus mecanismos. Nesse sentido, o artifício que esclarece num segundo momento aprisiona o pensamento (ORTIZ, 2006: 48).

Do ponto de vista sociológico, como dito, pode-se ver a globalização como

um tema recente, denso, cujos fenômenos, processos, relações e estruturas

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escapavam (e ainda escapam) à compreensão a partir do patrimônio teórico das

ciências sociais. Uma vez reconhecida a existência da globalização, a grande

dificuldade passa a ser a de qualificá-la: a globalização envolve, assim, um

problema de explicação. Essa passa a ser, gradualmente a tônica do debate. O

espanto inicial dá lugar a um crescente esforço no sentido de compreender e

explicar fenômenos em perspectiva global. Assim, surgem incontáveis

publicações, seminários e estudos envolvendo o tema, ainda que de modo

preferencialmente indireto. Foram relativamente poucos os que enfrentaram o

desafio de teorizar a globalização, procurando interpretar seus fenômenos,

apontando fatos significativos para a inteligência de suas questões, propondo

definições e conceitos de modo claro, integrativo e abrangente, constituindo

referências para a inteligência da problemática da globalização11. Há, de certo,

razões para isso. O tema da globalização, como quase tudo que diz respeito à

nossa contemporaneidade, apresenta-se demasiado complexo, embriagando a

percepção com uma profusão de imagens, ideias, processos, estruturas e

relações, de modo que se torna cada vez mais difícil apreender, captar a realidade

de uma maneira aguda e abrangente ao mesmo tempo. Além disso, o mundo é

evidentemente grande e estudá-lo exige sempre, não só um recorte coerente e

uma demarcação precisa desse objeto de estudo, como um conjunto de recursos

que nem sempre estão à disposição dos pesquisadores. Por isso, a atitude mais

frequente nas pesquisas que envolvem a problemática é alocar a globalização à

11Neste capítulo introdutório, optei por uma abordagem mais sintética e qualitativa. Há, porém, vários trabalhos concebidos com o objetivo de elencar autores que se dedicaram ao tema da globalização e suas contribuições principais. Entre eles, recomendo um artigo de Berking (2008), que foi escrito para tornar-se um verbete de um manual de sociologia. Engel e Middell (2010) também é uma referência interessante, embora não haja um compromisso com os desdobramentos do debate nas ciências sociais nos moldes em que eu os apresento aqui. Outro trabalho bastante recomendável é o de Rehbein e Schwengel (2008), organizado a partir de alguns dos conceitos (ou metáforas) produzidos ao longo do debate. Por fim, ainda que mais antiga, outra referência importante seria Robertson e White (2003), que organizaram uma coletânea de três volumes com ensaios críticos de diversos estudiosos sobre questões ligadas à problemática da globalização.

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posição de simples estratégia argumentativa, como uma espécie de abordagem

enriquecedora que pode dar ares cosmopolitas a um objeto determinado12. Assim,

encontramos inúmeras obras, versando sobre os mais diversos temas, nas quais a

globalização aparece (geralmente nos últimos capítulos) como um fator que

possivelmente ampliaria os desafios de uma outra questão, qualquer que seja, de

interesse naquela dada obra. Aqui costuma estar o gancho para fechar o recorte

analítico do estudo, indicando mais ou menos explicitamente que não haveria a

intenção de “açambarcar o mundo”. Ora, uma parte significativa dessas atitudes

poderia ser entendida como advinda da ausência de um arcabouço teórico mais

consolidado, isto é, de um conjunto maior de estudos mais fundamentais,

abrangentes ou propriamente globais, que fomentassem e orientassem o debate.

Osterhammel e Petersson (2007), buscando identificar os momentos

decisivos de uma história da globalização, chegam a afirmar que os autores, de

algum modo, parecem embaralhar referências quando se trata de abordar esse

fenômeno que dá nome à nossa época. Eles têm razão, e é precisamente a essa

lacuna que se dirige esta dissertação. No atual contexto de revisão de referências

e formulação de novas categorias interpretativas, torna-se relevante o trabalho de

revisão crítica dessas contribuições. Escolhi duas delas para compor a minha

análise: a de Octavio Ianni e a de Ulrich Beck. A escolha foi pautada basicamente

em três critérios. O primeiro deles foi, como é de se esperar, a qualidade e o

refinamento teórico das obras. O segundo critério foi o impacto provocado por elas

no debate. Embora de modo assimétrico, ambos os autores tornaram-se

referências importantes para qualquer estudo sobre o tema. Por fim, um terceiro

critério foi o de que fossem autores provenientes de contextos distintos, para que

se pudesse evidenciar sua alteridade de modo analiticamente profícuo. Assim

como a globalização pode ser entendida como uma situação histórico-social, os

autores e seus trabalhos estão, de maneiras diversas, situados nessa globalidade.

12 Voltarei ao tema dos discursos de globalização na primeira parte do sexto capítulo.

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Essa é a atitude que adotei ao esforçar-me por compreender e interpretar os

elementos basilares de suas teorias. Meu objetivo foi observar o desenho desses

conceitos e concepções, percorrendo trilhas de pensamento e sensibilidade que

parecem situar-se entre a visão de mundo e a visão do mundo, isto é, entre a

representação da própria aldeia e a dos processos efetivamente globais.

Mas como se constrói uma reflexão dessa natureza? Esse é o tema do

próximo capítulo, que visa, após essa concisa apresentação do debate sobre a

problemática da globalização nas ciências sociais, introduzir o leitor à atitude

intelectual que orienta a construção do presente trabalho.

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Capítulo II

Sociologia da Sociologia

Notas sobre um percurso

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Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores. [...] Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.

Carlos Drummond de Andrade13

Após esse breve histórico da constituição dos processos de globalização como

uma problemática para as ciências sociais, cabe uma introdução ao caráter

intelectual do presente trabalho. O que se segue não corresponde a um conjunto

de teorias, teses ou diagnósticos a respeito da globalização. De certo modo, aliás,

seria até possível afirmar que a globalização, em si, nem mesmo constitui o objeto

principal desta reflexão – e precisamente aqui mora a sua originalidade. Nessa

linha, este capítulo divide-se em quatro etapas. Primeiro, trato da própria

construção do objeto da pesquisa que deu origem a esta dissertação (I). Em

seguida, cabe abordar também a construção da própria pesquisa (II). Com base

nisso, procuro compartilhar algumas das dificuldades procedimentais no trato dos

escritos trabalhados (III). Por fim, convido o leitor a refletir sobre a prática

interpretativa de explicações sociológicas como as abordadas aqui (IV). Partindo

do que é apresentado neste e no capítulo anterior, a última etapa desta exposição

já pode corresponder a uma introdução à dissertação como um todo (V).

13 Drummond de Andrade (1940), “Sentimento do Mundo”.

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I. A cognição de processos globais como objeto

Já existem bons trabalhos sobre a história do debate a respeito da

globalização, ou de caráter introdutório ao tema, sob diferentes abordagens14. Mas

é curioso notar que as referências conceituais e bibliográficas, conquanto

numerosas, variam relativamente pouco. É que, como dito15, há poucos trabalhos

que de fato orientam o debate – e isso é evidente a tal ponto que parte dos

comentadores são também autores! Assim, tendo em vista esse quadro, não me

pareceu frutífera a ideia de elaborar um novo “panorama” do debate. Sendo um

pesquisador jovem e ainda inexperiente, não poderia sequer aproximar-me do

alcance intelectual daqueles comentadores, quanto menos pleitear o status de

originalidade para um trabalho desse caráter. Afinal, em quase todos os casos,

eles acompanharam de perto ou participaram ativamente da constituição da

globalização como problemática sociológica. É claro que eu poderia reivindicar o

álibi do afastamento no tempo, mas ainda assim talvez não fosse capaz de

dissipar a nuvem babélica em que se transforma o debate quando, sobretudo a

partir dos anos 1990, os pesquisadores se convencem do caráter efetivo dos

processos globais e começam a esforçar-se para qualificá-los. Como veremos

mais adiante, a confusão é tamanha que uma mesma palavra ou expressão pode

ter significados bastante distintos16.

Diante dessa dificuldade, o que poderia ser feito? Ora, a própria

“babelização” em que se insere o debate já poderia ser um recorte. Mas tratava-se

de um tema muito amplo e que, para que se respeitasse o rigor de uma pesquisa

detida, envolveria intermináveis análises comparativas, cuja propriedade seria 14Entre eles, destacam-se Ortiz (2009), Robertson (2001), Berking (2008), Beck (1997), Ianni (1994), Rehbein e Schwengel (2008), Engel e Middell (2010), Martell (2010), Sassen (2007), Brock (2008), Santos (2002), Steger (2003), Kreff et. al. (2011).

15Ver capítulo 1.

16Confusões desse tipo serão tematizadas especialmente nos capítulos 5 e 6.

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sempre alvo de questionamentos, já que envolveria complexas e, no limite,

insolúveis dificuldades de tradução. Assim, embora o problema das palavras

esteja sempre presente nos estudos sobre globalização (e seja tratado, no

presente trabalho, em alguns de seus aspectos), ainda penso que ele não seja,

em si, um tema de pesquisa palpável para uma dissertação de mestrado. O que

denomino aqui, e muito livremente, “o problema das palavras” envolve, no entanto,

uma questão basilar. Como ensinam alguns estudiosos da linguagem, nomear

significa categorizar. Ou seja, quem dá nome a algo, materializa, em sons ou

escrita, um pensamento. Assim, por exemplo, um livro qualquer poderá ser

percebido por alguém como um “livro” à medida que essa pessoa tenha em mente

categorias que lhe permitam, após captar a existência de um objeto determinado,

compreendê-lo como um “livro”; nessa mesma linha, este poderá também ser

enunciado como um “livro”, na medida em que o falante (ou escritor) disponha do

termo “livro”, ou equivalente, em seu patrimônio lexical. De modo extremamente

resumido, essa é uma das maneiras de se descrever aspectos relativos à

cognoscibilidade do ente “livro”17.

Seguindo esse raciocínio, já é possível começar a compreender o olhar

sociológico que norteia este trabalho. A globalização, sendo um fenômeno novo,

precisava ser qualificada, nomeada, categorizada e, precisamente por isso, era

necessário que houvesse empreendimentos no sentido de sua cognição. Esse é

um ponto. Nomear a globalização, os processos globais e aspectos envolvidos

significa tentar compreendê-los. Mas há um elemento do qual não se pôde ainda

escapar: o fato de que o objeto dos estudos globais é, no limite, “o mundo”. E,

como ninguém é capaz – ao menos em princípio – de conhecer “o mundo” e tudo

17Essa abordagem da problemática da cognição de um ponto de vista linguístico é demasiado sucinta. Ela destina-se apenas a tornar mais palatável a apresentação do modo pelo qual a cognoscibilidade de processos globais pode ser trabalhada como um objeto da investigação sociológica. Referências clássicas sobre esse ponto são os trabalhos de Barthes (1965), Bourdieu (1982), Derrida (1996), Ducrot (1980), Orlandi (1990, 2007), Saussure (1916), entre outros.

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que há nele, também a globalização, enquanto objeto de pesquisa, seria, a priori,

uma implausibilidade.

Esse paradoxo que envolve o conhecimento de algo aparentemente

insondável foi o que me motivou a realizar as pesquisas que deram origem à

presente dissertação. Ora, malgrado uma impossibilidade manifesta que

caracteriza a apreensão do fenômeno em sua real dimensão, saltava aos olhos o

fato de que os investigadores que encabeçaram os estudos globais não eram

neófitos entusiastas, mas pesquisadores do mais alto gabarito que,

frequentemente, já tinham renome e mesmo uma obra18. Assim, eles conseguiam

abordar a questão tendo em vista a força e o impacto das transformações e, com

base no que conheciam, isto é, no patrimônio intelectual que haviam acumulado

em décadas de estudo e pesquisa, puderam, cada qual a seu modo, explicar

alguns dos aspectos da globalização, prever desdobramentos, qualificar o caráter

das transformações envolvidas. Não diziam tudo, mas sempre diziam alguma

coisa.

Esse substrato de aparentes paradoxos parecia apontar para uma

dimensão ainda não investigada pelas ciências sociais: a própria cognoscibilidade

de processos globais. Do ponto de vista sociológico, isso significa superar o tom

histórico-narrativo da maioria dos bons trabalhos de balanço do debate (algo

como: o autor X combateu a ideia do autor Y, que haveria supostamente

compreendido mal um dado fenômeno, mas logo após Z propôs uma solução que

se mostrou mais adequada etc.). Uma abordagem como essa exige um

conhecimento bastante detalhado de nuances do próprio debate que dificilmente

seria adquirido no tempo de um mestrado e, dessarte, dificilmente eu poderia

rivalizar com as narrativas dos pesquisadores experientes. Por outro lado, um

recorte baseado na própria cognoscibilidade dos processos globais permitiria

18Ver capítulo 1 e recordar a nota 14, no presente capítulo.

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escapar à forma enciclopédica de certos trabalhos, interessados mais em elencar

as contribuições, teorias, conceitos, diagnósticos etc., e menos em situá-los no

conjunto de reflexões produzidas. Contribuições dessa natureza têm, é claro,

utilidade introdutória, mas padecem de enorme superficialidade e de alguma falta

de “espírito”. O objetivo deveria ser distinto. Tratava-se de tentar recuar às

condições de possibilidade de elaboração dos trabalhos que, em conjunto,

estavam fundando um novo campo, cuja identidade tem sido cada vez mais

estavelmente afirmada: a Sociologia da Globalização. Sim, a ideia de investigar as

possibilidades de cognição da chamada globalidade permitiria, e permitiu, situar a

reflexão no campo do que se poderia chamar de Sociologia da Sociologia, ou

Sociologia do próprio conhecimento sociológico.

Estudar o que denomino cognoscibilidade de processos globais significa

fundamentalmente perscrutar os elementos que orientam a inteligência dos

fenômenos globais e a criação sociológica ali envolvida.

E como isso poderia ser feito? Essa é uma questão que ainda persiste: a

realização desse trabalho envolveu algumas tentativas de aplicação metodológica

malogradas, mas houve aquelas que surtiram algum efeito. Voltemos os olhos por

alguns momentos a esse modus operandi da investigação.

II. Sobre a construção da pesquisa

Um objeto como a cognoscibilidade de processos globais deve, certamente,

envolver o exame de tentativas de cognição, bem como da criação sociológica que

elas suscitam. Na impossibilidade de estudar todos os trabalhos produzidos com

esse propósito, coube operar um recorte metodológico. Como dito, parecia

imprescindível escolher autores que tivessem, por um lado, ao menos tentado

elaborar teorias da globalização e, por outro, influenciado e marcado o debate

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sobre a globalização a partir de uma visão integrativa. Nesse sentido, selecionei

dois deles – Octavio Ianni e Ulrich Beck. É claro que o fato de serem dois implica o

dobro do trabalho e dificuldades multiplicadas, mas esse recorte permite

estabelecer, por outro lado, uma certa “alteridade” que representa, de um ponto de

vista metodológico, a possibilidade de acompanhar trilhas distintas de pensamento

e sensibilidade de maneira a estabelecer contrapontos. O termo “contraponto”,

aliás, é fundamental aqui. Primeiro, enquanto um pesquisador situado em um

certo ponto dessa globalidade (em local, campo intelectual e realidade social

específicos), seria ingênuo pensar que eu poderia posicionar-me de maneira

equânime em relação a cada autor. Além do mais, coerente com a própria

construção deste objeto de estudo, deve-se considerar que cada autor se vale de

suas próprias categorias, pontos de vista e recursos de imaginação. (Como

veremos, mesmo quando as referências parecem ser as mesmas, os caminhos

tomados podem ser muito díspares). Em suma, o trabalho com dois autores

permitiu manter à vista o fato de que a cognição de fenômenos sociais, e

particularmente os planetários, envolve escolhas em meio a uma gama de

elementos que possibilitam a inteligência de aspectos desses fenômenos.

Escolhidos os dois autores, pareceu adequado recortar ainda mais o

escopo da pesquisa e delimitar um corpus. Este foi composto inicialmente de onze

textos19. A intenção não era enclausurar a reflexão nessas referências, mas, antes,

delimitar um material de trabalho condizente com o tempo e os recursos

disponíveis. Além do mais, a própria construção do objeto de pesquisa afastava

qualquer tentativa de compreender “a obra” de um autor, bem como todas as

limitações metodológicas que uma iniciativa desse tipo implicaria. Acreditando que

jamais seria possível compreender “um autor” ou “sua obra”, contentei-me, como

dito, em investigar pistas sobre certos elementos que orientavam, em cada um dos

19Ianni (1992, 1994, 1996, 2000, 2004) e Beck (1986, 1997, 2002, 2004, 2008, 2010) eram os escritos que constavam no projeto de pesquisa.

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casos, a cognição de processos globais, através dos textos produzidos a esse

respeito.

III. Textos e contextos: a abordagem do corpus

Antes mesmo de construir o objeto de pesquisa de modo satisfatório, a

própria análise desses textos a partir de um enfoque como esse representou um

desafio. É que a simples leitura atenta, fichamentos, tomada de notas, entre outras

operações práticas da rotina de pesquisa aprendidas nas cadeiras dos cursos de

ciências sociais não se mostravam suficientes. O problema que se apresentava

era de natureza modal, era preciso encontrar um modo profícuo de proceder na

investigação. Note-se que não se tratava de questionar a maneira pela qual se

deveria ler (à moda dos manuais de pesquisa científica), mas sim de como pensar!

Era preciso compor um horizonte de ideias que orientassem a construção do

corpus e permitissem uma certa atitude de leitura, uma maneira profícua de

enfrentar os escritos e escrever sobre eles.

Pode-se dizer que haja pelo menos duas maneiras predominantes de se

trabalhar textos como os enfrentados aqui. Grosso modo, elas podem ser

identificadas, no decorrer das últimas décadas, pelos seguintes rótulos:

abordagem “textual”, de um lado, e, de outro, abordagem “contextual”.

O que se denomina abordagem textual indicaria, como o próprio nome diz,

um enfoque preferencialmente restrito a textos. Parte-se da ideia de que um

determinado escrito comportaria um pensamento, em sentido amplo, e, dessarte,

busca-se compreender a sua lógica interna20. Martial Gueroult (1979) chega a

20Essa atitude pode ser encontrada nos trabalhos de importantes autores das ciências sociais, especialmente entre aqueles que trabalham com teoria social. Entretanto, esse tipo de atitude parece mais presente em textos filosóficos. No Brasil, há escritos introdutórios a esse olhar rigoroso sobre o texto, em busca de sua lógica interna e, em um sentido particular, sistêmica, são

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afirmar, por exemplo, que a obra filosófica – isto é, um texto filosófico – seria um

monumento que abarca ideias de um autor (no caso, de um filósofo), instituindo,

assim, uma realidade. Por um lado, é possível questionar se textos expressariam

de fato e necessariamente pensamentos dotados de coerência. Talvez até haja

escritos, especialmente entre os de natureza filosófica, em que seja possível

encontrar um sistema interno inteira e rigorosamente coeso e coerente. Não cabe

aqui a investigação dessa hipótese. Deve-se considerar, porém, que no caso dos

trabalhos de Ianni e Beck, em particular, e também das demais sociologias da

globalização, em geral, tal abordagem me parece infrutífera: dificilmente se

poderia sustentar que haja, aqui, sistemas dedutivos de causalidades e efeitos,

tampouco demonstrações argumentativas suficientemente detalhadas para que se

pudesse proceder uma investigação orientada pela suposição de que em algum

momento “tudo faria sentido”. Não, os pensamentos desses autores sobre a

globalização encontram-se ligados ao curso da história e, como veremos, travam

uma luta discreta, mas contínua, com os limites de sua própria percepção. No

fundo, tudo está em suspenso, e as sociologias da globalização são também

sociologias da mudança.

Contudo, por outro lado, uma certa atitude “textualista” pode revelar-se

profícua à medida que orienta a pesquisa, conferindo-lhe um foco mais restrito: a

materialidade dos textos. Como mencionado, um autor como Gueroult ensina que,

de alguma maneira, uma obra pode ser vista como um monumento que cria, ela

própria, uma realidade e a institui. É claro que uma afirmação desse tipo pode

parecer abstrusa para um sociólogo. Afinal, é próprio do raciocínio sociológico o

certamente. Cabe lembrar, aqui, os de Victor Golschmidt (1963) e Martial Gueroult (1953, 1979), embora haja outros. Não há espaço para tratar dos trabalhos desses autores aqui, pois eles estão situados num debate histórico sobre a legitimação disciplinar história da filosofia; importa, porém, observar seu interesse na compreensão da lógica interna dos pensamentos que estariam materializados nos textos.

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embasamento na realidade efetiva21. No entanto, a despeito de seus propósitos e

conclusões, cabe observar que ela diz algo sobre a natureza dos escritos

abordados nesta dissertação. Ora, diante de um objeto cujo efetivo alcance não é

dado à percepção humana, qualquer abordagem intelectual a seu respeito incorre,

por princípio, em um certo grau de criação e instituição da realidade22. Nesse

sentido particular, é possível compreender a escrita sociológica como um exercício

de registro de realidades (de “taquigrafar a máquina do mundo”, diria Octavio

Ianni). Mas atenção: isso não significa que o registro se confunda com “a”

realidade. Ele pode ser visto como um espectro da realidade – algo como o

conhecido tipo puro ou ideal (reiner Typus ou Idealtypus) de Max Weber – através

do qual é possível compreender (verstehen) suas conformações e movimentos,

enfatizando algumas de suas características eletivamente23. No caso dos estudos

sobre globalização em particular, é como se o raciocínio sociológico alçasse voo,

desprendendo-se por vezes da solidez dos processos sociais rigorosamente

observados, a fim de alcançar uma visão mais ampla e integrativa.

Com efeito, tendo em vista os processos globais como objeto, uma

amplidão como essa é evidentemente inalcançável no peu à peu da investigação

empírica. No entanto, perguntar-se-á o leitor, seria possível enquadrar os

trabalhos de Ianni e Beck (e, mais genericamente, os trabalhos sociológicos sobre

globalização) num horizonte estritamente teórico-normativo? Para examinar essa

questão, é preciso voltar aos textos com um olhar diferente, baseado na seguinte

questão: qual o papel dos contextos nesses trabalhos?

21 Sobre a diferenciação entre realidade efetiva e especular, ver capítulo 6, seção II, item 1.

22 Retornarei à problemática da realidade no sexto capítulo, seção II, item 1.

23 Refiro-me aos célebres princípios metodológicos (Methodische Grundlagen) da sociologia compreensiva weberiana. Conferir, em especial, Weber (1922, T. 1, I, §1, I, 6).

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Um olhar sociológico sobre um pensamento sociológico não pode

desconsiderar que tanto um quanto outro partem de determinadas condições.

Pode-se dizer que eles se tornaram o que são por meio de escolhas entre outras

possibilidades. E é razoável afirmar que tais características advenham de

dinâmicas e ocorrências existentes nos lugares ou campos em que tais

pensamentos foram mentados – o mesmo valendo para os olhares, isto é, as

compreensões que se possam projetar sobre eles. Esse conjunto de elementos

corresponde ao que se denomina contexto (ou cotexto): eles marcam a produção

textual e persistem nela. Dito de modo mais enfático, os elementos contextuais

vigem e operam nos próprios pensamentos e, além disso, interferem também na

sua percepção e compreensão por parte de terceiros. E o que isso significa para

os nossos propósitos? Ocorre que uma ideia como essa permite-nos suspeitar, já

num plano conceitual, da existência de uma certa dissintonia entre pensamentos

provenientes de diferentes contextos. De fato, como veremos nos capítulos

seguintes, a observação dos processos de globalização se dá, em Ianni e Beck,

de modos distintos e, malgrado haja referências semelhantes em diversos

momentos (Marx, Weber, debates americanos etc.), a distância situacional

interfere na cognição do fenômeno. Sim, os contextos parecem às vezes os

mesmos, ganham nomes parecidos, exemplos em comum, alusões aos mesmos

epicentros do debate, mas isso não quer dizer que coincidam. Os contextos

interceptam a cognição, nutrindo-a de maneiras específicas.

Esse raciocínio parece razoavelmente compreensível de um ponto de vista

conceitual. Porém, como isso se dá na prática do trabalho com textos?

Contextos podem disfarçar-se por detrás das palavras. Sim, as palavras

que esclarecem, registram, conferem precisão, delimitam, expressam, são as

mesmas palavras que ludibriam a percepção, interferindo na cognoscibilidade dos

fenômenos e das ideias sobre eles. É assim que um mesmo vocábulo pode

denotar processos, estruturas ou relações categoricamente distintos. Um caso

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exemplar de mal-entendidos dessa natureza é a significação do vocábulo

“globalismo” – como veremos, ele denota, para Beck, uma ideologia e, para Ianni,

um processo24. É claro que investigações a respeito das causas desses mal-

entendidos, bem como sobre a problemática da tradução numa situação de

globalização não podem ser adequadamente discutidas aqui. Importa, não

obstante, chamar a atenção para uma certa babelização em que frequentemente

os estudos globais se encontram imersos, precisamente por apresentarem uma

tendência à sobrevalorização do horizonte (ainda não inteiramente efetivo) do

mundo como “um só mundo”, acompanhada da desatenção às especificidades

histórico-sociais dos contextos que se materializam nas diversas línguas e

linguagens, através das quais realizam-se as tentativas de comunicação25.

Uma vez observadas algumas das questões que envolvem a abordagem de

textos como os investigados aqui, o tipo de realidade mental que podem instaurar,

sua relação com os contextos em que se inserem e os pensamentos que os

originam, e também no que tange àqueles pensamentos empenhados em

compreendê-los, é possível dar um passo adiante e buscar refletir sobre o que

fazer com os frutos do trabalho conduzido paralelamente a essas reflexões.

24Ver capítulos 3 e 5, em especial.

25Creio que não valha a pena recuperar aqui os meandros dos trabalhos sobre a chamada “virada contextualista”. Ao leitor que por ela se interesse, recomendo os trabalhos de Skinner (1978, 2002) e Pocock (2009), ligados à conhecida Escola de Cambridge de filosofia da linguagem. Também relevantes são os aportes de Luhmann sobre a formação sistêmica de campos por comunicação dadas em contextos específicos – ver, entre outros, Luhmann (1997). Por fim, cabe recordar um debate dos estudiosos de tradução, em que se questiona, como formulou Derrida (1999), “o que é uma tradução relevante”. Nessa linha, Derrida (1996, 1999) observou que traduções são um problema de leitura, isto é, da (in)capacidade por parte do tradutor de compreender, o mais próximo possível, e malgrado distâncias contextuais de linguagem, aquilo que está sendo efetivamente enunciado.

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IV. Para a cognição de pensamentos: a leitura como atitude

A leitura de um corpus como esse pode ser feita com base em uma atitude

semelhante àquela identificada nos próprios sociólogos da globalização, a saber, a

de uma criação seletiva. Ora, a ideia de criação é, por si só, provocativa. Com ela,

quero chamar a atenção para três aspectos relativos ao caráter da pesquisa que

deu origem à presente dissertação.

Primeiro, o fato de que assim como há, por parte dos autores, uma eleição

necessariamente arbitrária dos fenômenos que parecem mais significativos para a

inteligência dos processos globais, também uma sociologia de suas sociologias

pode – e talvez até mesmo deva – proceder de modo semelhante. E é preciso

escolher e apontar, em meio a uma gama de ideias, aquelas que parecem mais

decisivas para a compreensão dos processos globais por parte dos autores.

Porém, nada disso está dado: a condição de cada ideia em meio ao conjunto de

um pensamento não se mostra de maneira transparente. É nesse sentido que se

pode falar, a respeito da atividade do intérprete, em um arbítrio criativo. Sim, as

escolhas são criativas precisamente na medida em que cabe ao pesquisador

dessas ideias sociológicas preparar um terreno sobre o qual os aspectos

cognitivos estudados possam ser trazidos à tona.

Segundo, a própria construção do objeto desta pesquisa é arbitrária. Mais

uma vez, o caráter da busca pela cognição de processos globais, como tratada

aqui, não é um recorte baseado simplesmente num achado metodológico

qualquer, porventura encontrado nas obras dos autores e transposto para a

reflexão que proponho aqui. Não. Como um construto metodológico, a criação de

um objeto com base nos objetos de reflexão de Ianni e Beck, caminha em paralelo

a estes últimos, numa ordem metodológica, e tem o propósito de buscar linhas de

pensamento através das quais se possa compreender passagens, teses, análises,

conceitos etc., posicionados com maior ou menor centralidade nos escritos.

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Terceiro, a construção de cada explicação pode também ser vista como

uma criação de sua inteligibilidade. Trata-se de, a partir da construção do objeto e

da escolha de ideias, elaborar um raciocínio o mais coerente e coeso possível, a

fim de instituir linhas de compreensão que tornem um pensamento, teoria ou

diagnóstico, mais apreensíveis à própria reflexão. Essa explicação de explicações

abre caminho à crítica – enquanto racionalização de razões – e a novas

possibilidades de percepção, aplicação, apropriação e desdobramento das ideias

presentes nos pensamentos estudados. Ora, tal é, por excelência, um dos

objetivos do trabalho interpretativo em teoria e pensamento sociológicos.

Tendo em vista esses três aspectos, cabe ressaltar que toda criação é

seletiva. Parece necessário adjetivá-la dessa maneira uma vez que cada passo

em direção à construção do objeto, à sua investigação e explicação, implica o

expediente da escolha. Às vezes, enfatizam-se certos elementos; noutros casos,

procuram-se vieses ainda inexplorados na abordagem de palavras, análises,

conceitos; noutros ainda, pede-se licença para, deliberadamente, ignorar26. Tem-

se, portanto, um conjunto de apostas; nesse sentido, trata-se de um trabalho

essencialmente autoral.

V. Sobre a escrita deste trabalho

Após introduzir o leitor, ainda que de modo bastante genérico, ao debate

histórico sobre a constituição da globalização como problemática nas ciências

sociais, coube tratar da construção seletiva do objeto de reflexão da presente

dissertação, recuperando certas questões metodológicas enfrentadas por esta

pesquisa. Com base nisso, é possível iniciar o percurso pelas páginas e capítulos

que seguem, atentando para o fato de que serão encontrados mais hiatos que

26Retirei a ideia de “pedir licença para ignorar” do célebre texto de Umberto Eco (1977).

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continuidades, mais lacunas que respostas. Já alerta quanto à atitude

metodológica deste trabalho e à construção de seu objeto, caberá ao leitor

proceder, a seu turno, sua própria crítica. Qualquer que seja, ela será bem-vinda,

na medida em que contribuirá para o necessário aprimoramento das análises que

estão por vir.

Em respeito ao leitor que porventura não esteja ainda ambientado com a

sociologia da globalização, procurei formular, no início de cada capítulo, seção ou

item, introduções muito sucintas contendo os elementos principais a respeito dos

temas que neles serão abordados. Na mesma linha, tive o cuidado de elaborar

dois capítulos introdutórios aos trabalhos de Octavio Inni e Ulrich Beck sobre a

globalização.

Destarte, a presente dissertação configura-se como um percurso que vai do

amplo ao restrito, passando pela reflexão amiúde e retornando, no final, a uma

perspectiva mais abrangente. Assim, o primeiro capítulo consistiu numa

apresentação geral do debate, propondo uma periodização com base em

momentos marcantes de seu desenvolvimento. O segundo capítulo, que agora

termina, visou problematizar a própria realização deste trabalho, a partir de

reflexões metodológicas, num tom próximo ao metanarrativo. O terceiro capítulo,

intitulado O Emblema do Globo..., tem o propósito de introduzir o leitor a alguns

dos aspectos que entendo com mais centrais no conjunto da obra de Octavio Ianni

sobre a globalização. Dessa forma, trato do conceito de globalismo, como definido

pelo autor, da associação entre globalização e paradigma social, bem como da

concepção ianniana de sociedade global. Em seguida, em Filhos do Mundo...

(capítulo quarto), há uma apresentação dos elementos fundamentais que

compõem a visão de Ulrich Beck sobre a globalização. O foco analítico está sobre

as concepções beckianas de individualização, cosmopolitização e modernização

da modernidade (ou modernização reflexiva). Note-se que, consoante com os

propósitos deste trabalho, ambos os capítulos apresentam uma abordagem

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simultaneamente crítica e interessada dos pensamentos de Ianni e Beck. Seu

caráter enviesado faz-se mister a fim de que se possa adentrar o coração desta

dissertação. Este corresponde ao capítulo quinto – O Lugar do Pensamento na

Globalização –, em que são analisados alguns dos elementos pinçados por esses

dois autores na tentativa de fomentar e conduzir suas reflexões, com vistas à

cognição dos processos globais que se lhes apresentam. Para tanto, procedi um

novo recorte metodológico a fim de conferir maior acuidade à abordagem. Ele se

deu a partir de um elemento que é comum aos dois pensamentos: a curiosidade

pela situação da Política numa condição mundial. Por fim, no capítulo sexto,

procuro reajustar o foco analítico, recuperando o debate como um todo e a

reflexão metodológica em Heranças e Horizontes.... Trata-se de um ensaio dirigido

à retomada dos temas abordados, apontando para alguns dos desafios que

enfrenta atualmente a chamada Sociologia da Globalização.

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Capítulo III

O Emblema do Globo

Octavio Ianni e a Taquigrafia do Mundo

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A História antiga clássica é História das cidades (…); a Idade Média (germânica) parte do território como sede da História,

cuja evolução se contrapõe então ao território e à cidade; a História moderna é citatização do território,

não como na territorialização da cidade na antiguidade.

História mundial não existe sempre: a História como mundial é resultado.

Karl Marx27

“A globalização é o novo paradigma das ciências sociais”, anuncia Octavio

Ianni em plenos anos 1990, quando o debate sobre a globalização criava raízes

mundo afora. A frase é, no mínimo, provocativa. Sendo um dos mais respeitados

intelectuais da América Latina, Ianni ousa lançar um alerta à intelectualidade

brasileira para o desmoronamento e a reconstrução de estruturas, processos e

relações em nível mundial. É um momento avassalador e fascinante; um marco

que anuncia uma revolução nos pensamentos e na História, nas civilizações e na

Humanidade. Não se trata, certamente, de legar as bases tradicionais do

pensamento social à obsolescência. Não é o fim da história28. Trata-se de

reformulá-las, recriá-las, imaginando novas categorias para a inteligência de

processos, relações e estruturas em níveis local, nacional, regional e mundial. É

preciso formular e reformular o patrimônio cognitivo da humanidade em dimensão

27MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (1858) – até “…na antiguidade” – e “Einleitung” (1857) – a partir de “História mundial…”. O texto, descoberto em 1902, fora escrito como capítulo introdutório à obra Zur Kritik der politischen Ökonomie (1859). Segue o original: “Die klassische alte Geschichte ist Stadtgeschichte (…); das Mittelalter (germanische Zeit) geht vom Land als Sitz der Geschichte aus, deren Fortentwicklung dann im Gegensatz von Stadt und Land vor sich geht; die moderne [Gechichte] ist Verstädtischung des Landes, nicht wie bei den Antiken Verländlichung der Stadt.” (MARX, 1858) “Weltgeschichte existiert nicht immer; die Geschichte als Weltgeschichte [ist] Resultat” (MARX, 1859).

28Ver, capítulo primeiro, seção III. Ianni publica A Sociedade Global, seu primeiro livro sobre a problemática da globalização, ainda em 1992, e a maior parte de sua obra situa-se nos anos 1990, quando era especialmente necessário posicionar-se frente a esse tipo de perspectiva.

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planetária. E Ianni enfrenta o desafio. Formula uma análise sobre a problemática

da globalização, num esforço para taquigrafar a máquina do mundo (para usar

uma expressão do autor), no Brasil.

Neste capítulo, a intenção é apresentar ao leitor uma abordagem concisa,

embora crítico-analítica, dessas formulações teóricas, partindo de alguns temas

que considero centrais para a compreensão do pensamento do autor. A análise foi

organizada em três etapas. Primeiro, procuro refletir sobre a concepção do

globalismo como um novo ciclo do capitalismo e condição para a emergência da

globalização, buscando precisar suas fronteiras conceituais (I). Em seguida,

discuto a ideia da globalização como novo paradigma das ciências sociais.

Procuro situar essa formulação no conjunto do debate, a fim de melhor explorar

algumas de suas qualidades e insuficiências (II). Com base nisso, dedico a

terceira parte do capítulo à categoria da sociedade global, buscando apontar

elementos para a compreensão de seu efetivo alcance analítico e atualidade (III).

I. O Globalismo: novo palco da história

No epicentro da globalização está, para Ianni, a expansão do capitalismo

em nível mundial. Ao longo do século XX, o capitalismo, entendido como um modo

de produção e um processo civilizatório universal29, logra desenvolver suas

relações, processos e estruturas em dimensão planetária. Trata-se de um novo

ciclo da reprodução ampliada do capital, do próprio capitalismo em processo de

globalização, assinalando uma grande transformação com implicações sociais,

políticas, econômicas e culturais, uma nova fase para a história mundial. É essa

configuração histórico-social, esse novo ciclo do capitalismo, que Ianni identifica

29Levando-se em consideração algumas contribuições e desdobramentos do debate mais recente sobre a globalização, é preciso distinguir entre universal e global (tratarei do tema no capítulo 6, primeira seção). Ianni não chegou, contudo, a incorporar essa diferenciação em seus escritos.

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com o termo globalismo: um capitalismo de alcance efetivamente global.

Primeiro, o modo capitalista de produção […] define-se originariamente em moldes nacionais, em termos de formações sociais nacionais. A revolução burguesa – madura, tardia ou prematura – expressa a forma pela qual o capitalismo transforma, recria ou supera todas as relações sociais locais e regionais que entravam a emergência da sociedade civil.

Segundo, o capitalismo organizado em bases nacionais transborda fronteiras, mares e oceanos. […] Ao mesmo tempo que subsistem e florescem as formações econômicas nacionais, desenvolvem-se e prosperam os sistemas mundiais. Mas sistemas sempre centralizados, metrópoles simbolizando países dominantes e coloniais, dependentes ou associados. [...]

Terceiro e último, o capitalismo atinge uma escala propriamente global. Além das suas expressões nacionais, bem como dos sistemas e blocos articulando regiões e nações, países dominantes e dependentes, começa a ganhar perfil mais nítido o caráter global do capitalismo (IANNI, 1992: 37-38, grifos do autor).

O globalismo aparece, na elaboração de Ianni, como o nascedouro da

globalização. Sim, é a partir do globalismo, da expansão do capitalismo, que se

abririam, historicamente, as condições e possibilidades para processos

efetivamente globais. Por isso, creio que valha a pena refletir sobre o conceito de

globalismo, como proposto por Ianni, antes dos demais elementos que entendo

como fundamentais no seu pensamento sobre a globalização. Para tanto, é

preciso fazer ao menos três observações.

1) A primeira delas, e também a mais fundamental, diz respeito à distinção

entre globalismo e globalização. Pode-se colocar a questão da seguinte maneira:

o globalismo abre caminho para a globalização, desenvolvendo-se ele próprio

dentro dela. O globalismo constituiria o novo palco da história. Um palco que será,

aos poucos ou de repente, substituído, ou renovado, sem que, no entanto, a

história deixe de existir. Dito de outro modo, para Ianni o globalismo é uma

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expressão desenvolvida ou um ciclo do capitalismo, no sentido marxiano do termo,

um modo de produção e um processo civilizatório universal; a globalização, por

sua vez, é entendida como um processo ou uma realidade social mais ampla, que

nasce a partir do globalismo, mas que sobrevirá a ele.

2) É nesse sentido que, com o globalismo, surgiriam as condições e

possibilidades para o neo-socialismo, o socialismo de dimensão mundial. Com o

neo-socialismo, anunciar-se-ia também a sua superação – e assim o globalismo

tenderia, ao metamorfosear-se no neo-socialismo, a tornar-se algo distinto. O neo-

socialismo, porém, permaneceria como processo civilizatório em uma sociedade

mundial (ao menos até que, a seu turno, também se metamorfoseasse).

Temos, assim, a distinção lógica entre os processos. O globalismo

engendraria as possibilidades para a formação da sociedade global que, no

entanto, permaneceria após os seu desaparecimento. O globalismo não só

distingui-se como torna-se parte dela. Configura, portanto, o cenário no qual

emerge a globalização e, com ela, a sociedade global. É universalizante por

princípio, mas não eterno. Engendra, em verdade, as condições de sua própria

superação.

[As] experiências socialistas nacionais representam uma base importante para a eleição de meios e modos para a redefinição de novas propostas sobre as condições e as possibilidades de socialismo no mundo. Sim, “socialismo no mundo”, e não apenas em âmbito nacional. A globalização das tensões e contradições sociais, bem como das reivindicações e lutas, lança em nível internacional, ou propriamente global, o que se imaginou que seria viável em nível nacional. (…) Essas são as condições e as possibilidades histórico-sociais do neo-socialismo. Juntamente com as ideias, os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e as correntes de opinião pública, cabe reconhecer a importância e a prevalência das condições histórico-sociais constituídas com a globalização do capitalismo, visto como modo de produção e processo civilizatório. É daí que emergem as novas raízes do socialismo, como modo de produção e processo civilizatório (IANNI, 2004: 353 e 357, grifos do autor).

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3) Tendo em vista o caráter abrangente do globalismo, como formulado por

Ianni, é preciso também distingui-lo do neoliberalismo. Nesse sentido, é preciso

diferenciar e desvincular a contribuição de Ianni das inúmeras teses

contemporâneas de caráter puramente economicista, que usam o mesmo termo,

carregado, porém, de outros significados30. O globalismo concebido por Ianni diz

respeito não só a um modo de produção e reprodução ampliada do capital em

escala global, mas constitui também um processo civilizatório complexo,

abrangente e ainda por ser desvendado. Engloba, não só economia, mas também

sociedade, política e cultura, em nível local, nacional, regional e mundial. Nesse

sentido, com alguma ousadia, pode-se rearrumar o argumento do autor e afirmar

que um processo civilizatório equivalente ao globalismo seria, para Ianni, o neo-

socialismo, o socialismo global31. Isso implica, no conjunto da teoria ianniana,

compreender o neoliberalismo como uma ideologia (limitadora do globalismo, até

mesmo). Sim, uma leitura mais diligente evidencia, com bastante clareza, que

Ianni trata neo-socialismo e globalismo nos mesmos termos: sendo categorias

histórico-sociais nesse sentido “semelhantes”, é no neo-socialismo, no socialismo

mundial, que o globalismo (ou o capitalismo mundial) se metamorfoseará. O

neoliberalismo apresenta-se, assim, como parte desse processo histórico, como

30O neoliberalismo, como descrito por Ianni corresponde, em seus aspectos fundamentais, à noção de globalismo (Globalismus) de que nos fala, muito criticamente, Ulrich Beck. Tratarei dessa diferença com mais atenção na segunda seção do quinto capítulo.

31A procura pelos sinais históricos da transição do capitalismo para o socialismo em nível mundial aparece em escritos mais antigos, de outros autores. Entre eles, um que parece ter influenciado em grande medida a obra de Ianni, e o debate como um todo (ver capítulo I) foi Immanuel Wallerstein. Ainda no fim dos anos 1970, Wallerstein coloca a questão da seguinte maneira: “temos buscado revisar os 50 anos desde a Primeira Guerra Mundial e os vinte e cinco anos que estão por vir como a fase inicial da transição mundial do sistema mundial capitalista para o sistema mundial socialista. Essa transição não será terminada em meros vinte e cinco anos. Mas, se nos desenvolvemos rapidamente, é importante refletir criticamente sobre experiências iniciais e conduzir as dificuldades de modo crítico” (WALLERSTEIN, 1979: 248).

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uma das ideologias presentes no globalismo que corroboram, no limite, para o seu

esgotamento, que fomentam as condições e possibilidades para um neo-

socialismo ou socialismo mundial.

É no contexto da globalização que o socialismo se transforma em neo-socialismo. O neo-socialismo […] tem raízes no globalismo. É uma expressão do globalismo, quando os grupos sociais e as classes sociais subalternas expressam o seu protesto, as suas reivindicações, as suas formas de luta e os seus ideais, além das fronteiras estabelecidas, consolidadas, estratificadas, opressivas. […] Sim, as determinações constituídas no âmbito do globalismo são fundamentais para a inteligência, o equacionamento e a realização das condições e das possibilidades do neo-socialismo. […] Sim, o socialismo não é apenas um modo de organizar a economia e a vida social, mas um processo civilizatório de amplas proporções. Transforma mais ou menos profundamente as condições de existência e consciência, o modo de ser, pensar, agir e imaginar. Tem raízes em outros processos civilizatórios, principalmente o capitalista, visto criticamente. Tem raízes no balanço crítico das condições de existência e consciência que prevalecem no capitalismo, também visto como modo de produção e processo civilizatório. Mas abre outras possibilidades e outros horizontes de emancipação e realização, na medida em que busca a globalização a partir de baixo, dos grupos e classes sociais subalternos que compõem a grande maioria da humanidade (IANNI, 1996: 293, 300-301, grifos do autor).

À guisa de sua leitura da obra de Marx, é possível afirmar que o conjunto

dos trabalhos de Octavio Ianni a respeito da problemática da globalização

corresponde a uma reflexão sobre o capitalismo. Do mesmo modo, expressa

também a intenção de captar tensões a partir das quais germina sua superação

em nível local, nacional, regional e mundial. Daqui advém, possivelmente, parte do

seu entusiasmo pelos processos e fenômenos globais: o globalismo anuncia, para

ele, algo novo, simultaneamente angustiante e fascinante. Trata-se, por um lado,

do desconhecido, de uma realidade ampla, cuja inteligência escapa ao alcance do

patrimônio teórico das ciências sociais. Por outro lado, no entanto, representa

também novas possibilidades. É nesse sentido que Ianni atribui às assimetrias e

tensões do globalismo, do capitalismo que se globaliza, o caráter de indícios do

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surgimento ou ressurgimento de tensões histórico-sociais. Assim, o liberalismo,

metamorfoseado em neoliberalismo, configuraria teórica ou ideologicamente uma

globalização pelo alto, de cima para baixo. Da mesma maneira, o socialismo se

transfiguraria no neo-socialismo, nascido do globalismo, como uma expressão de

tensões e contradições do capitalismo mundial. Em suma, a globalização do

capitalismo é vista como o prenúncio de uma revolução de amplas proporções. No

fundo, Ianni imagina a superação de um capitalismo expandido em nível mundial

por um socialismo global. Um novo (ou renovado) processo civilizatório de uma

civilização planetária.

II. A tentação metodológica

Uma maneira de sintetizar as formas-pensamento dos estudos sociológicos

é agrupando-as segundo dois emblemas fundamentais: o indivíduo – isto é, o ator

social – e, na maior parte dos casos, o Estado (nacional). Esses seriam, na

concepção de Ianni, os grandes emblemas nos quais se baseiam os estudos

sociais. Emblema, para ele, denota um tema que é capaz de açambarcar,

abranger outros. Seguindo-se esse raciocínio, pode-se afirmar que estudos sobre

educação, violência, gênero, trabalho, terrorismo, literatura, classes sociais,

desigualdade, partidos políticos e eleições, mercado e empresa estariam, de

algum modo, atrelados a esses emblemas. Ocorre que, no fim do século XX, o

Estado nacional e seus indivíduos já não parecem ser categorias suficientes para

apreender a totalidade dos fatos. Refletem uma realidade ilusória, porque parcial,

obnubilando a percepção dos fatos que se descortinam para muito além dessas

dimensões, envolvendo-as.

Modificou-se substancialmente o objeto das ciências sociais. O indivíduo e a sociedade, que inspiraram a formação e boa parte de seu

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desenvolvimento, localizavam-se no âmbito da nação. Ao passo que o indivíduo e a sociedade que desafiam as ciências sociais nesta altura da história localizam-se em algum lugar da sociedade global, determinados também pelos movimentos dessa sociedade (IANNI, 1992: 171)

A emergência de processos de globalização, do globalismo e da sociedade

global configura, para Ianni, uma novidade histórica. Essa nova realidade imporia

uma reestruturação do pensamento social a partir de suas bases, que já não

poderiam ser consideradas suficientes para a inteligência de relações, processos

e estruturas operantes em nível mundial. Nesse sentido, Ianni nos fala de uma

subsunção paradigmática, na qual o globo seria o grande emblema que se

sobreporia a todos os demais, abarcando-os. O emblema da sociedade global

lograria, assim, encobrir os demais, não eliminando-os, mas revestindo-os de um

novo significado, complementando-os, dando-lhes identidade na fábrica do

mundo, em nível local, nacional, regional e, agora, reconhecidamente global.

Este é um momento epistemológico fundamental: o paradigma clássico, fundado na reflexão sobre a sociedade nacional, está sendo subsumido formal e realmente pelo novo paradigma, fundado na reflexão sobre a sociedade global. O conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos de uma realidade que já é sempre internacional, multinacional, transnacional, mundial ou propriamente global. É óbvio que a sociedade nacional continua a ter vigência […]. Mas a sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem metodologicamente, nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações. Aos poucos, e às vezes de repente, a sociedade global subsume formal ou realmente a sociedade nacional (IANNI, 1995: 239-240).

Essa ideia de subsunção paradigmática assume uma posição central na

teoria ianniana da globalização. Em alguma medida, carrega a força de impacto

necessária para “despertar” o ambiente sociológico brasileiro para uma

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factualidade emergente, de dimensão mundial32. A concepção da globalização

como paradigma das ciências sociais, no entanto, envolve certas “armadilhas”

conceituais que merecem ser examinadas. A obra de Ianni, a partir de um ponto

de vista latino-americano, brasileiro (paulista ou quiçá campineiro, “unicampiano”,

“uspiano”), insere-se em um debate maior, como uma voz que procura articular

uma compreensão de mundo própria. Luta contra um senso comum peculiar, fora

e dentro da academia, partindo de, e dirigindo-se a certos epicentros do debate.

Nesse sentido, como ocorre com o conceito de globalismo, a ideia de paradigma 32 É importante recordar que o termo “subsunção” remete, do ponto de vista cognitivo, ao pensamento de Kant (1787). Na Crítica da Razão Pura (KrV), embora a ideia de subsunção (Subsumtion) não esteja entre os conceitos-chave mais repetidamente presentes na obra, essa noção permite captar o modo pelo qual operam os juízos categóricos e o tratamento dado por Kant à problemática do objeto (Objekt, Gegenstand) de juízo. Note-se que o seu primeiro aparecimento no segundo livro da KrV é destacado pelo próprio autor: “Se o entendimento [Verstand] em geral é explicado enquanto o cabedal de regras, então a faculdade de julgar [Urtheilskraft] será a capacidade de subsumir a regras, isto é, de discernir se algo encontra-se subordinado a uma dada regra (casus datae legis), ou não. [...] É preciso que, em todas as subsunções de um objeto em um conceito, as representações do primeiro e do segundo sejam do mesmo tipo [gleichartig], ou seja, o conceito precisa conter [enthalten] aquilo que é representado no objeto a ser subsumido, pois isso é o que significa a expressão: um objeto estar contido num conceito” (KrV/B: 171 e 176, grifos do autor). Essa ideia de subsunção está ligada ao esforço kantiano para explicar a aplicação de categorias abstratas à intuição sensível. Ela ajuda a compor o elo entre experiência, intuição e conceito, no denominado esquema transcendental, que é tanto intelectual quanto sensível. “O conceito de entendimento inclui a unidade sintética pura do diverso [Mannigfaltige] em geral. O tempo, enquanto a condição formal do diverso de sentido inerente e, portanto, a concatenação de toda representação, inclui um diverso a priori na intuição [Anschauung] pura. Ora, uma determinação transcendental do tempo é de mesmo tipo da da categoria (que perfaz sua unidade), enquanto ela for geral (allgemein) e se assente em uma regra a priori. [...] Disso se depreende que uma aplicação da categoria a fenômenos [Erscheinungen] possibilitada pela determinação transcendental do tempo que, como o sistema dos conceitos de entendimento, possibilita a subsunção dos últimos na primeira [dos fenômenos na categoria] (KrV/B: 177-178, grifos do original). Cabe observar, para fechar esse brevíssimo contraponto, que o esquema transcendental kantiano é um produto da imaginação (Einbildungskraft) – a qual, juntamente com o sentido e a percepção, é vista como uma faculdade primitiva da alma. Sim, a imaginação, que é fonte da síntese do diverso, aparece já aqui como uma das fontes desse juízo transcendental complexo. E é definida por Kant como “a faculdade de representar um objeto, mesmo que ele não esteja presente na intuição” (KrV/B: 151, grifos do autor). Como um contraponto elucidativo, creio que não valha a pena delongar-me mais nesta questão. Caso haja interesse por parte do leitor, recomendo, além da própria Crítica, a leitura de Eco (1997: 74 et seq.), Ricoeur (2006 [2000]: 120 et seq.) e Lebrun (1970, em especial o capítulo XV).

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parece ser, aqui, ressignificada: Ianni a concebe de um modo distinto em relação

ao de inúmeras vozes que intervêm no debate como um todo, falando-nos da crise

ou da ruptura dos paradigmas nas Ciências Sociais. Sim, Ianni trata do mesmo

fenômeno, mas, ao taquigrafá-lo, esforça-se para lhe atribuir um contorno distinto.

É que o problema fundamental no que diz respeito a essas concepções de

uma crise paradigmática ou de uma ruptura epistemológica reside no fato de que

se pressupõe a existência de uma quebra e (frequentemente a partir dela) também

de oposições no espaço e no tempo. Assim, em lugar do velho, surgiria o novo;

em lugar do local, do nacional ou do regional, o global. Ora, a metáfora da ruptura

denota uma mudança absoluta na medida em que se plasma uma realidade

essencialmente nova. Há, nesse sentido, o risco de uma contradição nas bases do

argumento, no que diz respeito à historicidade do conceito. Como observa Renato

Ortiz, ao longo do desenvolvimento do debate sobre a globalização, a busca por

novas categorias de análise tropeça em um emaranhado de impressões e, dentro

disso,

um aspecto equívoco e omnipresente expressava-se na ideia de 'crise dos paradigmas'. Este era o subterfúgio recorrente, presente nas mais diversas áreas disciplinares, em escritos pós-modernos, de marketing, estudos ecológicos (alguns autores chegavam a dizer que o planeta era o novo paradigma). Esse se fundamentava numa visão dicotômica da história, aplicada, porém, a questões de ordem epistemológica. […] Tudo se passa como se estivéssemos na presença de um movimento que funda um quadro teórico radicalmente distinto e superior ao que estaria esgotado. […] O mal entendido repousa na concepção progressiva que preside o argumento. O raciocínio pressupõe algo que foi superado; seria, portanto, necessário refundar um saber em ruínas (ORTIZ, 2009: 243-244, grifos do autor).

O leitor pode ter a impressão de que é exatamente isso que Ianni faz da

sua teorização dos processos globais. De fato, o autor não escapou

completamente à essa influência. No entanto, insisto, é possível identificar, na sua

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obra, uma certa dissonância em relação ao que se propunha majoritariamente.

São vários os momentos lógicos da reflexão sociológica [...]. Mas as teorias não os mobilizam sempre nos mesmos termos de modo similar, homogêneo. Aliás, as teorias distinguem-se, entre outros aspectos, precisamente porque conferem ênfase diversa aos momentos lógicos da reflexão. Há conceitos sociológicos que são comuns a várias teorias. Às vezes, o objeto é concebido de maneira semelhante. Mas a interpretação pode não ser precisamente a mesma. E quando a interpretação se revela diversa, logo se constata que a importância relativa dos momentos lógicos da reflexão não é exatamente a mesma. Nesse sentido é que as teorias podem ser mais ou menos distintas, distantes ou opostas. [...] As teorias multiplicam-se. Há contínuas criações quanto ao objeto e método, conceitos e interpretações, temas e linguagens. Em certos casos ocorre a reiteração de princípios explicativos, aperfeiçoados ou não; ao passo que em outros verifica-se algo de novo, a invenção paradigmática (IANNI, 2011: 64 e 68).

A dissonância a que me refiro é precisamente essa ressignificação (ainda

que parcial) da metáfora. No cerne da concepção ianniana está a reformulação e a

subsunção. Na ideia do novo, que se situa no presente, está também o antigo,

assim como as tendências do futuro. Nessa linha, a própria reformulação da

concepção de mudança paradigmática é um sinal de que o autor percebe suas

armadilhas e contradições. Por isso, tendo a compreender esse aspecto da teoria

de Ianni como uma espécie de “tentação metodológica”33. Pode-se pensar, com

alguma margem de acerto, que essa ressignificação tenha sido proposta

precisamente contra um certo senso comum (planetário) recorrente, quando da

emergência do debate. Assim, Ianni taquigrafa a globalização nos termos de um

novo horizonte histórico, pressupondo, portanto, causalidades e consequências,

potencialidades e perspectivas no espaço e no tempo. Nesse sentido, o autor não

formula a noção de paradigma apenas nos termos de um rompimento: ela

33A expressão alude a um ensaio de Ianni, intitulado “A tentação metodológica”, sobre aspectos metodológicos e epistemológicos nas ciências sociais ao longo do século XX. Ele corresponde ao capítulo II de uma publicação póstuma que reúne ensaios do autor – cf. Ianni (2011).

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significa, no conjunto da obra, uma quebra, uma destruição, seguida de um novo

recomeço, engendrado nas condições latentes dessa grande transformação.

Simultaneamente, envolve a subsunção de processos, relações e estruturas em

nível local, nacional e regional por uma totalidade histórico-social maior, de âmbito

mundial.

III. A sociedade global: sociologia da humanidade

Nesse contexto de mudança no pensamento sociológico, assim como nas

ciências humanas como um todo, Ianni aposta na categoria interpretativa da

sociedade global. O termo foi, acredito, recuperado de outros epicentros do

debate, como vimos anteriormente34. Foi, no entanto, também ressignificado. A

intenção de Ianni era apontar para o fato de que a sociedade global poderia ser

vista como o grande emblema da atualidade. Essa sociedade totalizante teria,

portanto, a capacidade de incorporar o conjunto de problemas estudados pelas

diversas ciências sociais, em nível local, nacional, regional e mundial.

No século XXI, muitos estão empenhados em compreender e explicar as situações, os acontecimentos e as rupturas, assim como as relações, os processos e as estruturas, que se formam e transformam com a sociedade global; uma sociedade na qual se subordinam as sociedades nacionais, em seus segmentos locais e em seus arranjos regionais. Ocorre que a sociedade global, vista em suas implicações simultaneamente econômicas, políticas e culturais, demográficas, religiosas e linguísticas, constitui-se como uma nova, abrangente e contraditória totalidade, uma formação geo-histórica na qual se inserem os territórios e as fronteiras, as ecologias e as coletividades, os gêneros e as etnias, as classes sociais e os grupos sociais, as culturas e as civilizações. Uma totalidade simultaneamente histórica e teórica, ou seja, uma formação social e uma categoria que adquirem predominância crescente sobre umas e outras formações sociais: locais, nacionais e regionais (IANNI, 2004: 20-21, grifo do autor).

34O leitor deve recordar-se do primeiro capítulo, no qual observei que a noção de sociedade global provavelmente foi introduzida no debate sociológico por Niklas Luhmann (1971), como uma das categorias dentro do seu pensamento sistêmico.

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A meu ver, as partes fundamentais dessa sociedade global não seriam

estados, nem instituições, e tampouco comunidades. Cada um desses elementos

está presente em sua composição, certamente, mas não constituem sua essência.

A sociedade global é, antes de tudo, sociedade. O seu equivalente é a

humanidade. A meu ver, essa pode ser uma chave do pensamento ianniano sobre

a globalização. A sociedade global anuncia a humanidade. E isso, note-se, não

significa eliminar categoricamente diversidades e desigualdades: representa,

antes, uma expansão das fronteiras do pensamento sociológico aos seres

humanos todos. Pode-se dizer que a humanidade ganha, nessa perspectiva, o

status de objeto maior de reflexão das ciências sociais, contemplando outros

objetos e abrangendo-os. É assim que “aos poucos, ou de repente, uns e outros

são desafiados a reconhecer que participam da mesma fábrica, ou máquina.

Indivíduos e coletividades, classes ou grupos sociais, povos e nações, culturas e

civilizações, em diversos arranjos, mesclam-se, integram-se, tencionam-se e

batalham, conferindo realidade à história universal; anunciando à humanidade”

(IANNI, 2004: 17).

A metáfora da sociedade global, como concebida por Ianni, implica ao

menos dois aspectos a serem comentados, no que diz respeito à construção do

conceito. (1°) A sociedade global, como sociedade civil mundial, constitui uma

consequência da expansão do capitalismo enquanto processo civilizatório

universal. Configura a realização máxima da reprodução ampliada do capital, em

escala planetária. Na contramão do raciocínio, porém, pode-se afirmar que

sociedade global pressupõe o modo de produção e reprodução capitalista, seus

ciclos, seu desenvolvimento. Dito em outros termos, a emergência da sociedade

global aparenta estar vinculada ao surgimento do globalismo, entendido por Ianni

como esse ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo

civilizatório de escala mundial. Isso significa, de algum modo, reconhecer que a

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sociedade global ianniana é capitalista, isto é, comporta-se e constitui-se segundo

as dinâmicas, processos e estruturas de uma compreensão universalizante de

capitalismo. O pensamento é fecundo, mas parece arriscado à medida que

expandimos noções e experiências específicas de uma ideia de capitalismo para

uma dimensão planetária que é, factualmente, desconhecida. Do ponto de vista do

pensamento, o capitalismo pode construir-se como universal, abrangendo

singularidades. No entanto, da perspectiva dos fenômenos sociais, adquire uma

miríade de ressignificações e refrações, desencaixes e assimilações que corroem

as bases de uma sociedade totalizante imaginada nesses moldes.

Na base da ruptura que abala a geografia e a história no fim do século XX está a globalização do capitalismo. Em poucas décadas, logo se revela que o capitalismo se tornou um modo de produção global. Está presente em todas as nações e nacionalidades, independentemente de seus regimes políticos e de suas tradições culturais ou civilizatórias. Aos poucos, ou de repente, as forças produtivas e as relações de produção organizadas em moldes capitalistas generalizam-se por todo o mundo. Alcançam não só as tribos e os clãs, ou as nações e as nacionalidades, mas também os países nos quais se havia criado o regime socialista ou a economia centralmente planificada (IANNI, 1996: 239).

No fundo, trata-se também (2°) de repensar a problemática da construção

do Estado nacional. Sim, sociedade global parece “ocupar” o lugar que pertencia

às sociedades nacionais, aos Estados-nação que, historicamente debilitados,

tenderiam a dissolver-se nessa totalidade planetária. Para Ianni, o Estado se

redefiniria, sendo subsumido por esta nova realidade, perdendo parte de suas

prerrogativas que, ao se desterritorializarem, fugiriam ao seu alcance. No entanto,

essa é uma representação mental da realidade que implica uma insuficiência em

duas dimensões: a factualidade histórica e a teoria social35. Do ponto de vista dos

fatos, é ainda questionável imaginar uma sociedade total que, efetiva e 35No capítulo quinto, trabalharei mais elementos da relação entre globalização e Estado nacional. Por ora, o objetivo é analisar a relação entre o Estado e a ideia ianniana de Sociedade Global.

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factualmente, subsuma-os, isto é, que englobe os Estados-nação. Isso implica

consequências sociais, políticas, culturais e econômicas empiricamente

desconhecidas. Em resposta a isso, pode-se pensar, com boa margem de acerto,

que Ianni trabalha com tendências, sintomas e possibilidades, uma vez que a

sociedade global está em processo de emergência. Todavia, de um ponto de vista

teórico, o dilema é mais complexo. Os Estados nacionais fundamentam, como

dito, quase todo o patrimônio teórico das ciências sociais. E isso se dá de um

modo às vezes mais penetrante do que possa parecer. Assim, embora Ianni afirme

que se trata de algo novo, tendo a pensar que a noção de sociedade global não

escapa por completo aos moldes de pensamento e imaginação fundados na

categoria dos Estados nacionais.

Talvez valha a pena observar, no entanto, que pensar a sociedade global

como capaz de tomar o lugar do Estado-nação, tanto empírica quanto

categoricamente, não significa preconizar o fim do Estado nacional. Essa seria,

aliás, uma leitura grosseira, seja do fenômeno, seja do autor. Para além disso,

deve-se notar o fato de que Ianni termina por projetar elementos da constituição

do Estado-nação sobre as expectativas que envolveriam a emergência de uma

sociedade global. É como se a imaginação da sociedade global em formação ou

em emergência fosse trespassada pela concepção emblemática da sociedade

nacional. Isso, evidentemente, não tira o mérito de sua teoria. Parece, inclusive,

até certo ponto inevitável, uma vez que, como dito, estudar a globalização significa

trabalhar também no campo das hipóteses e da percepção de fenômenos que

ainda não se apresentam manifestos ou evidentes.

Acontece que o pensamento científico ainda se acha surpreendido pelas novas características da realidade social. Ainda não assimilou a metamorfose da sociedade nacional em sociedade global. […] Quando o Estado-nação se debilita, devido ao alcance e à intensidade do processo de globalização das sociedades nacionais, emerge outra realidade, uma

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sociedade global, com suas relações, processos e estruturas. Trata-se de uma totalidade histórico-social diversa, abrangente, complexa, heterogênea e contraditória, em escala desconhecida. […] Na medida em que as sociedades nacionais tendem a “dissolver-se” na sociedade mundial, quando esta se torna predominante, pelas determinações que engendra, […] tanto se alteram as suas condições e perspectivas em escala nacional como em escala mundial (IANNI, 1992: 41 e 50).

A ideia de uma sociedade global como proposta por Ianni apresenta, a

despeito dessas insuficiências, uma característica importante que a diferencia da

proposta inicial de Luhmann, nos anos 1970. Ianni concebe a sociedade global

como uma totalidade em formação que abarca diversidades. Isso implica uma

compreensão de sociedade que ultrapasse a ideia de interconexões operando de

modo sistêmico, tendo por base privilegiada a comunicação eficiente de sentido36.

A concepção de Ianni, nessa perspectiva, mostra-se frutífera para perceber

fenômenos e processos, estruturas e relações da sociedade cujo alcance abrange

do local ao mundial, percorrendo suas muitas dimensões intermediárias. É,

certamente, mais difícil de ser trabalhada, por um lado, à medida que desfavorece

uma organização tipológica do pensamento, no sentido que lhe atribuía Weber

(1922). Por outro, no entanto, ajuda a salvaguardar a imaginação (sociológica, ao

menos) da ilusão de que o mundo já teria se globalizado, de que já estaríamos em

plena idade do globo ou globalidade. Não, a sociedade global está em

emergência: essa é uma constatação que Ianni assume como pressuposto em

toda a sua obra sobre o tema. Nesse sentido, Ianni trabalha com tendências

históricas, que ocupam cadeira cativa na orientação de sua percepção das

relações, estruturas e processos globais. Trata-se de uma “sociologia do futuro”,

como ele mesmo a denomina. São, no fundo, especulações ou relações

especulares, nos jogos do espelho (Spiegel) hegeliano.

36As ideias de Luhmann a respeito da globalização foram rapidamente tratadas no capítulo primeiro, seção I, e tornarão a ser abordadas no capítulo sexto, seção II, item 3.

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Essa sociologia, não obstante, parte de um ponto: o presente. Esse

presente é, hoje, em 2014, pretérito. Por isso, estando distantes ou distanciados

na linha do tempo, podemos identificar consequências, insuficiências e propor

questões com relativa desenvoltura. É preciso, todavia, reconhecer a coragem e a

ousadia crítica de Octavio Ianni. Hoje é possível, no Brasil, desenvolver um estudo

sobre globalização em teoria social sem maiores obstáculos. Ianni não desfrutou

desse privilégio; sim, foi um pioneiro. Trabalhou e produziu um obra sobre o tema

em um momento no qual era preciso, frequentemente, escolher entre o prestígio,

ou mesmo a admiração dos pares, e o compromisso com o ofício de pensar o

social: de taquigrafar a máquina do mundo.

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Capítulo IV

Filhos do Mundo

Individualização, Cosmopolitização e Modernidade

em Ulrich Beck

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A Burguesia configurou, através de sua exploração do mercado mundial de consumo, a produção e consumo de todos

os países como cosmopolitas. […] Em lugar da antiga auto-suficiência e insularidade caminha um intercurso em todas as direções, uma dependência, por todos os lados, das nações entre si. E tanto na

produção material, quanto na do espírito. As criações intelectuais de nações particulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e a estreiteza

nacionais tornam-se cada vez menos factíveis e, das muitas literaturas locais e nacionais forma-se uma literatura mundial.

Karl Marx & Friedrich Engels37

Um dos pilares fundamentais do pensamento beckiano é o indivíduo

(Individuum)i. Sim, seu interesse pelo indivíduo está presente na construção de

seus objetos de estudo, análises e diagnósticos desde os seus primeiros trabalhos

de maior envergadura38 até os mais recentes, nos anos 201039. Os indivíduos,

37MARX, K.; ENGELS, F. 1848. Manifest der Kommunistischen Partei. Berlin: Dietz Verlag, 1959. Segue o original: “Die Bourgeoisie hat durch ihre Exploitation des Weltmarkts die Produktion und Konsumption aller Länder kosmopolitisch gestaltet. […] An die Stelle der alten lokalen und nationalen Selbstgenügsamkeit und Abgeschlossenheit tritt ein allseitiger Verkehr, eine allseitige Abhängigkeit der Nationen voneinander. Und wie in der materiellen, so auch in der geistigen Produktion. Die geistigen Erzeugnisse der einzelnen Nationen werden Gemeingut. Die nationale Einseitigkeit und Beschränktheit wird mehr und mehr unmöglich, und aus den vielen nationalen und lokalen Literaturen bildet sich eine Weltliteratur”.

iParte deste capítulo retoma e desenvolve reflexões empreendidas nas fases iniciais da investigação que deu origem à presente dissertação e materializadas em comunicações de pesquisa (cf. ARNAUT 2010, 2011a, 2011b).

38Essa presença pode ser notada já nos primeiros trabalhos de maior fôlego da sua carreira como pesquisador, versando sobre sociologia do trabalho, em que a figura central é, curiosamente, quase sempre a do trabalhador (der Arbeiter) e seu núcleo familiar. (BECK; BRATER, 1977, BECK et al. 1979, 1980). Embora esses escritos não estejam entre os mais relevantes para analisar a visão do autor sobre processos globais (mesmo porque foram elaborados em co-autoria), é curioso notar que neles já estão presentes dimensões que mais tarde orientariam sua percepção e cognição com respeito a fenômenos planetários.

39Refiro-me aqui aos seus trabalhos de um modo geral. É claro que há aqueles em que o domínio do indivíduo é o próprio objeto. Esse é o caso do livro Fernliebe: Lebensformen im globalen Zeitalter (cf. BECK & BECK-GERNSHEIM, 2011). Escrito em parceria com Elisabeth Beck-Gernsheim, sua esposa, o livro apresenta uma análise sobre o fenômeno contemporâneo das relações afetivas (de amizade, amor, sexo etc.) estabelecidas à distância. O livro retoma uma reflexão anterior, materializada em Das ganz normale Chaos der Liebe (Idem, 1990), também

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enquanto categorias, estão de tal modo amalgamados no pensamento de Beck

que, mesmo quando suas análises ganham intenção e roupagem planetária,

parecendo por vezes privilegiar o conjunto ou o grupo, a comunidade

(Gemeinschaft) ou a sociedade (Gesellschaft), acredito ser possível afirmar, com

boa margem de acerto, que o indivíduo encontra-se, aqui e ali, sempre infiltrado.

Ele opera como um locus privilegiado que parece orientar a percepção do autor.

Porém, perguntar-se-á o leitor, que indivíduo é esse? Quais as suas feições

sociológicas, por assim dizer, e de que modo está ele situado no conjunto do

pensamento beckiano?

Ulrich Beck nos fala de um indivíduo que é herdeiro dos valores iluministas

de liberdade. Num contexto de globalização, é preciso investigar qual o lugar (ou

quais os lugares) desses indivíduos diante das novas possibilidades que se abrem

com a globalidade. Nessa perspectiva, no entanto, é impossível não se inquietar,

de pronto, com uma questão basilar: abrem-se possibilidades? Ou, dito de outro

modo, elas se abrem para quem? Como veremos, a contribuição de Beck para o

debate é altamente perspicaz e relevante. No entanto, talvez caiba questionar em

que medida ela abrange uma variedade maior de agrupamentos sociais

contemporâneos, e não alguns grupos específicos de uma Europa rica ou dita

“ocidental”, tanto de uma perspectiva econômica, como também dos pontos de

vista político, jurídico, social e cultural, seja normativa, seja efetivamente.

O objetivo aqui foi compor um conjunto de notas analíticas a respeito do

pensamento de Beck sobre a globalização, apontando alguns dos seus méritos e

insuficiências. Para tanto, organizei a abordagem da seguinte maneira. Primeiro,

procurei esboçar uma análise crítica da sua noção de individualização, tentando

mostrar que as possibilidades de uma (auto)biografia reflexiva só puderam ser

vislumbradas num contexto histórico, cultural, econômico e político como o

inédito no Brasil. Como o propósito deste capítulo é o de compor uma introdução geral às ideias do autor, e não a textos em particular, não farei uma apresentação mais detalhada desses livros.

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europeu contemporâneo (I). Então me detive no tema do cosmopolitismo, que se

anuncia como uma metanarrativa do mundo, um prelúdio da globalização,

apontando alguns problemas teórico-metodológicos (II). Finalmente, procurei pôr

em relevo certas dificuldades que, do meu ponto de vista, enfrenta a concepção de

uma modernização da modernidade, do modo como é teorizada por Beck (III).

I. Individualização: metodologia da (auto)biografia

O termo “individualização” é geralmente associado a temas como

isolamento, solidão, desconexão, vazio. Isso nas ciências sociais, nas artes ou no

senso comum ocidentais. Para Ulrich Beck, porém, essa noção é investida de um

novo sentido, diverso: trata-se da individualização da biografia. Isso quer dizer,

fundamentalmente, o seguinte: a biografia (a história de vida dos indivíduos) deixa

de ser padronizada para tornar-se uma biografia escolhida. Passa-se da

impossibilidade de escolha, ao livre arbítrio; isto é, cada um deve operar e persistir

como agente individual de sua própria biografia.

Individualização é um conceito que descreve uma transformação sociológica e estrutural de instituições sociais, e a relação do indivíduo para com a sociedade. Esse não é simplesmente um fenômeno da segunda metade do século XX. Fases históricas anteriores ocorreram na Renascença, na cultura cortesã medieval, no ascetismo interior do Protestantismo, na emancipação dos camponeses da servidão feudal e no afrouxamento (loosening) dos laços familiares inter-geracionais no século XIX e início do século XX. A modernidade europeia liberta pessoas de papéis historicamente atribuídos. Ela solapa elementos tradicionalmente assegurados, tais como fé religiosa, e cria, simultaneamente, novas formas de comprometimento social. Eu utilizo o conceito de individualização para explorar, não apenas como pessoas lidam com essas transformações, em termos de sua identidade e consciência, mas também como suas condições de vida e padrões biográficos têm mudado (BECK, 2001: 202).

Os indivíduos recriam-se, na idade do globo (globalidade), como filhos da

liberdade (Kinder der Freiheit). Assim acontece nas famílias ocidentais, por

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exemplo, que se reestruturam em diversas dimensões: os papéis dos sexos (ou

gêneros), a divisão sexual do trabalho entre mulheres e homens, ou a estrutura do

casamento, são processos que não podem mais ser compreendidos,

satisfatoriamente, apenas com base em critérios empíricos de renda familiar, por

exemplo, mas devem ser vistos como experiências de riscos pessoais. Pode-se

captar o fenômeno também no âmbito do direito: os direitos sociais são, na forma

e na prática, direitos individuais (mais precisamente dos indivíduos trabalhadores,

ativos ou temporariamente fora do mercado de trabalho). Assim também ocorre

nos sistemas educacionais, onde há uma crescente busca, não por

desenvolvimento cognitivo ou erudição, mais abstratos, mas sim por um

“certificado” (do curso de inglês, de informática ou de mestrado), um título ou

colocação objetiva (e, aparentemente, menos arriscada) que ajude a delinear

claramente o caminho para aquilo que se pretende ser ou fazer. No fundo, tudo é

obrigatoriamente uma questão de escolha, e muito mais o que se pensa ou faz, do

que o que se é, de fato.

Usando a expressão de Sartre, as pessoas são condenadas à individualização. A individualização é uma compulsão, mas uma compulsão pela fabricação, o autoprojeto e a auto-representação, não apenas da própria biografia, mas também de seus compromissos e articulações à medida que as fases da vida mudam, porém, evidentemente, sob as condições gerais e os modelos do welfare state, tais como o sistema educacional (adquirindo certificados), o mercado de trabalho e a regra social, o mercado imobiliário e assim por diante. Mesmo as tradições do casamento e da família estão se tornando dependentes de processos decisórios, e todas as suas contradições devem ser experimentadas como riscos pessoais (BECK, 1997: 26).

Estamos diante de uma boa interpretação. De fato, uma bela narrativa.

Implica, porém, algumas dificuldades. O conceito de individualização em Beck

aponta para o desenho de uma sociedade ocidental, pós-revolução industrial, pós-

welfare state. Esse indivíduo que individualiza-se reflexivamente pressupõe uma

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sociedade de trabalho industrial desenvolvida, algo que surge e ganha corpo a

partir dos anos 1960, em alguns poucos países industriais do ocidente. (Sim,

porque mesmo as “fases históricas anteriores” que porventura possam ser

apontadas caracterizam-se com base em uma visão à posteriori – o que é

compreensível, em se tratando de um conceito “novo”). Assim, identificado esse

limite, tem-se uma questão de natureza lógica: se o aparecimento desse indivíduo

é consequência de uma determinada sociedade, sem esta não há como ele existir.

Aqui mora uma parte do problema. Mais adiante, tratando dos temas do

cosmopolitismo e da modernização reflexiva, teremos ocasião de observar

algumas características dessa sociedade específica, identificando pontos

importantes, fortes e problemáticos, na análise beckiana. Neste momento, porém,

convido o leitor a deter-se no exame do conceito em si, antes de “contextualizá-lo”,

o que, imagino, ajuda a compreender boa parte das suas dificuldades.

Para tanto, vislumbremos um exemplo heurístico, através do qual é possível

captar alguns pontos que merecem atenção. Beck narra a seguinte crônica, que

tem como personagem central uma senhora “alemã”.

Uma senhora de 84 anos. Onde ela vive...? Assim começa a história. De acordo com as estatísticas oficiais, ela mora há mais de trinta anos, sem qualquer interrupção, em Tutzing, à beira do lago Starnberger. Um caso típico de imobilidade (geográfica). Na verdade, nossa senhora idosa viaja pelo menos três vezes por ano por alguns meses ou semanas para o Quênia (geralmente dois meses durante o inverno, três ou quatro semanas na Páscoa, e mais outra vez durante o outono). Onde ela está “em casa”? Em Tutzing? No Quênia? Sim e não. No Quênia ela tem mais amigos do que em Tutzing, convive num amplo círculo de relações com africanos e alemães, entre os quais alguns “moram” nas vizinhanças de Hamburgo, embora todos “sejam” de Berlin. Ela se diverte mais no Quênia do que em Tutzing, cidade da qual também não abre mão. Na África ela é recebida e acolhida pelos nativos, que a convidam para permanecer em suas casas. O bem estar de sua velhice é devido ao fato de que no Quênia ela “é alguém”, tem uma “família”. Em Tuzing, onde está registrada [gemeldet], ela é ninguém. Lá, diz ela, vive “como os pássaros cantores” [Singvögel].

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E Beck termina a narrativa.

Os conhecidos que ela encontra no Quênia, com os quais vive em uma “comunidade” bastante peculiar [besondere], também vieram da Alemanha, mas se estabilizaram entre os lugares e continentes. Doris, quarenta anos mais nova do que ela, casou-se no Quênia com um índio (muçulmano), mas retorna periodicamente à Alemanha para lá, ou aqui (dependendo do ponto de vista a ser adotado), receber seu dinheiro e arrumar a casa e o jardim que possui em Eifel. Ela se sente bem tanto num lugar quanto no outro, o que não quer dizer que as viagens constantes não a cansem. A “saudade de casa” tem, no caso da senhora idosa, duas faces, dois tons: ela pode evocar tanto Tutzing, quanto o Quênia. O ponto de origem dessa voz talvez dependa, em última análise, do lugar em que ela se encontre (BECK, 2007: 127-128, grifos do autor).

A narrativa é curiosa, e toca em pontos centrais para a compreensão

beckiana sobre a globalização.

Primeiro, há uma separação entre dois planos: o aqui e o lá, que se

(con)fundem num oximoro “glocal”. Deve-se observar, quanto a isso, que o

conceito de “glocalização” foi forjado nos anos 1990 por Roland Robertson, e

influencia de maneira categórica o trabalho de Beck. Robertson, contra uma visão

unívoca (e, portanto, reducionista) do mundo, parte da premissa de que a

globalização envolve não apenas a particularização do universalismo, como

também a universalização do particularismo (ROBERTSON, 1992). A ideia de

“glocalização” visa, para esse autor, afastar a confusão entre globalização e

homogeneização, forjando um conceito que evoque uma dimensão espacial, para

além da noção de processo temporal (temporal process) que a globalização

suscita per se (ROBERTSON e WHITE, 2003). No fundo, Beck está interessado

em demarcar uma fronteira importante entre uma análise cultural da globalização

(à moda da cultural theory) e certos pressupostos das teorias de um sistema

mundial. Ele a formula no seguinte axioma:

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A “cultura global” não pode ser compreendida de modo estático, mas apenas como um processo contingente e dialético (e que já não permanece restrito, de modo economicista, à sua lógica do capital, aparentemente unívoca) – segundo o modelo da “glocalização”, que compreende e desvela [begriffen und entschlüsselt] elementos contraditórios em sua própria unidade. Nesse sentido nos é permitido falar de paradoxos de culturas “glocais” (Ibidem: 91, grifos do autor).

Segundo, é preciso observar que essa velhinha relaciona-se em um curioso

círculo de africanos e alemães. Por que alemães? E por que “africanos”? As

palavras são eloquentes, às vezes mais que o desejável. A senhora da narrativa

beckiana convive com um grupo específico (alguns alemães cosmopolitas) e com

um conjunto amorfo (“africanos”). Pode-se imaginar, sem maiores problemas, que

os alemães convivam entre si, neste gueto queniano-germânico pitoresco, porque

não poderiam se comunicar com muitas outras pessoas. No Quênia talvez haja

menos dificuldades uma vez que muitos grupos no país falam inglês (vale lembrar

que o Quênia esteve sob domínio britânico durante parte dos séculos XIX e XX).

Note o leitor que Beck não narra o momento em que as personagens procuraram

aprender o suaíli, ou um dialeto local, como certamente aconteceria, imagino, se

fosse um queniano que chegasse à Tutzing. Dito mais explicitamente, há aqui uma

hierarquia cosmopolitista, legitimada por uma visão teórica de pretensões globais.

A África aparece aqui como uma ideia abstrata, distanciada, reduzida a uma

totalidade obscura, um monólito, uma “África que existe em Nottingham”, para usar

uma expressão do autor40. É uma “África” que continua distante, pequena, fora de

foco, mesmo estando debaixo do nariz.

No fundo, é o mesmo que assistir, em 1569, a Gerard Mercator expondo

sua Projeção Cilíndrica do Globo Terrestre (ainda hoje muito usada), na qual a

Europa se apresenta maior que a América do Sul (que é quase duas vezes mais

40Beck refere-se à ideia abstrata que parecem fazer de África os descendentes de imigrantes africanos das comunidades situadas nessa região da Grã-Bretanha.

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extensa), e a Índia, menor que a Escandinávia (que tem cerca de um terço seu

território). Sim, essa cosmopolitização, como aparece, é europeia, a própria

palavra já nasce grega. A velhota alemã, que vive “transnacionalmente” e nem

sabe mais qual é de fato a sua casa, é cosmopolita. O africano que vai à Europa é

imigrante, ilegal ou representante de um determinado povo com o qual os

europeus se sentem em dívida historicamente. O mesmo valeria, com algumas

adaptações, para latino-americanos, árabes, europeus do leste ou turcos. O fato é

que não há cosmopolitização para todos. O mundo continua sendo apenas para

alguns.

Terceiro, há aqui uma confusão com a ideia do viajante. Para ilustrar essa

parte do meu argumento, caberia estabelecer um breve contraponto. Certa feita o

célebre jornal alemão Spiegel Online (SPON) publicou um relato semelhante

àquele que nos narra Ulrich Beck, intitulado “Warum bist du bloβ so deutsch?

(Abschied vom geliebten Land)” [Por que você é assim, tão somente alemão?

Adeus à terra amada] (FLOHR, 2009). A matéria consistia num relato de Markus,

um rapaz alemão que viaja a Israel. Separa-se de sua terra, da namorada, do que

lhe é familiar; vai a uma outra parte do mundo (note-se, nem tão distante assim,

seja geográfica, seja historicamente). Markus relata sentir-se como se carregasse

uma mochila cheia de pedras preciosas e, em alguma medida, questiona a sua

própria “germanidade”. Insinua mesmo que, mais tarde, quando sua namorada

termina com o relacionamento, ela o tenha feito por considerá-lo “demasiado

alemão”. Israel aparece aqui como uma experiência mais rica que a vivenciada na

Alemanha. É à primeira, e não à segunda, que se refere o subtítulo “Adeus à terra

amada”. Ele regressa à Alemanha. Israel torna-se uma imagem do distante; com

efeito, uma vivência cosmopolita. E aqui cabe um esclarecimento. O problema não

está em viajar. Markus poderia ser um mochileiro brasileiro, ou um missionário

canadense, não importa. O ponto é a confusão entre a possibilidade de uma visão

mais cosmopolita e a multiplicidade de pontos de vista. Trata-se de observar que o

viajante é (ainda) um “outro”, uma alteridade; de distinguir entre Abschied von

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einem geliebten Land, adeus à uma terra amada, e Abschied von der Heimat,

adeus à minha terra.

Note o leitor que se trata de um ponto difícil, simultaneamente abstrato e

concreto. Entretanto, uma análise como a proposta aqui parece conferir um pouco

mais de realismo (ou realidade) à uma narrativa parece idealizada, focada num

tipo de perspectiva do “eu”, cosmopolita e livre, que esquece de um “nós”, do qual

ele parte, e de que também não pode tão facilmente se libertar. Markus partira no

final de Julho e retornara no início de Setembro do mesmo ano. Aproximadamente

um mês de cosmopolitismo. Menos de dois meses depois, publicou, no jornal

mencionado, trechos do seu diário de viagem, inclusive narrados em vídeo. Esse

material, é claro, foi dirigido a um público leitor bastante específico: europeus,

germanófonos, alemães – sem mencionar o funil intelectual, que também mostra-

se acirrado na “Europa culta”, como se costumava dizer, poucas décadas atrás.

Ora, o relato de Markus poderia ser substituído facilmente por outro, de um

viajante qualquer, e guarda importantes semelhanças com o da velha senhora,

narrado por Beck. É curioso perceber que, em ambos os casos, há um domínio do

indivíduo41, que se percebe como uma espécie de transeunte mundial cujos

movimentos do ponto de vista do espaço são voluntários. (Muito embora esse

deslocamento não seja suficiente, note-se, para provocar uma alteração

substancial em seus pontos de vista.)

Beck apega-se à observação de que as experiências e impressões de

indivíduos podem expandir-se pelo planeta. Como venho procurando sustentar, é

através dessa globalização de particulares que Beck constrói seu cenário

sociológico. É preciso, com efeito, dirigir uma crítica à universalização de certas

ocorrências particulares, porquanto desmedida. Por outro lado, contudo, é preciso

41 A expressão é inspirada no termo “domínio do eu” (domain of the self), usada por Richard Sennett (1977).

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observar e reconhecer o valor metodológico da opção pelo enfoque no indivíduo,

pela orientação do pensamento a partir dessa categoria. Afinal, perceber-se como

um indivíduo sem fronteiras, positivamente desterrado, é uma possibilidade

bastante nova na história e fascinante do ponto de vista sociológico. Trata-se, em

certo sentido, de uma efetivação, malgrado todos os limites, de um velho sonho

europeu (e alemão, em particular) que vislumbra a formação de uma sociedade

planetária.

Quarto e último, a tal senhora, Doris e seus vizinhos viajam, escrevem suas

biografias no Quênia (no Japão ou no Peru) porque podem. Note-se que Doris

retorna à Alemanha frequentemente, para “receber seu dinheiro”. Certamente não

seriam condenados às mesmas escolhas se tivessem de vencer a violência no

subúrbio de Nova York ou na Cidade do México, ou mesmo se tivessem de se

sustentar numa pequena aldeia russa ou tibetana. Talvez suas amizades não

fossem tão interessantes para os amigos africanos (há também o outro lado da

moeda). Talvez não pudessem comprar a passagem aérea. Talvez nem

soubessem do que isso tudo se trata.

Pensar um processo de individualização reflexiva, no qual o indivíduo

disponha dos meios e possibilidades para escrever sua autobiografia, segundo

suas próprias escolhas, isso tudo implica uma consequência lógica: é preciso que

esse indivíduo tenha a oportunidade de escolher. A essa altura o leitor talvez já

não se pergunte mais quem disporia desse tipo de oportunidade. A questão seria,

de certo, outra: como, de que maneira essas possibilidades de escolha se

apresentam ou, ainda, de onde provêm. Aqui se inserem outros dois temas,

centrais à narrativa beckiana. São eles o cosmopolitismo e a modernização da

modernidade, ou modernização reflexiva. Vamos por partes. Vejamos o primeiro

deles.

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II. Cosmopolitização, cosmopolitismo: interlúdio da globalização

Se o indivíduo pode escolher, é porque há (ou devem existir) opções,

alternativas. A cosmopolitização diz respeito, para Beck, a um conjunto de

processos de caráter transnacional, envolvendo a aceleração, intensificação,

circulação, difusão, de bens tecnológicos, riscos ecológicos, processos

migratórios, cidadanias múltiplas, viagens, mídia, ciência, criminalidade, estética,

bens culturais. Isso empiricamente verificável, factual. O indivíduo beckiano tem

(ou deve ter) acesso a esses processos. O cosmopolitismo seria uma espécie de

interlúdio normativo da globalização. Constitui o eixo sobre o qual se

intensificariam as relações, estruturas e vínculos entre os indivíduos e grupos, em

nível local e mundial, em dimensão cultural, econômica, política e normativa.

Beck chega mesmo a advertir de que não se deve confundir

cosmopolitização (uma vez que o sufixo denota um processo dinâmico) com

algum tipo de processo linear ou normativo, como o cosmopolitismo kantiano, cuja

consequência “direta” seria a sociedade mundial (Weltgesellschaft) cosmopolita.

Ele adverte, mas nem por isso deixa de fazê-lo. O discurso contradiz a

advertência. Se é evidente que a cosmopolitização é um processo repleto de

contradições que, do ponto de vista sociológico, trazem consigo inúmeras

incertezas e insuficiências, trata-se também de uma narrativa muito próxima do

idealismo (e até mesmo do teleológico). Isso não representa necessariamente um

demérito. Em certo sentido, Hegel, Marx e, especialmente, Kant elaboraram trilhas

de pensamento e imaginação nas mesmas diretrizes. “Idealismo alemão”, talvez

pudéssemos chamar assim. Para além dos fatos, possibilidades e

improbabilidades, paira o desenho de uma ideia, de um ideal, algo em cuja direção

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caminham todos os acontecimentos, processos, mudanças, fenômenos. Há uma

espera por um vir-a-ser, um constante “estar a caminho de algo” (auf dem Weg)42.

Dentro dessa perspectiva, estaríamos a caminho de uma nova sociedade,

uma sociedade mundial cosmopolita, que é produto, consequência, de uma

modernização da modernidade, uma modernização reflexiva, que desemboca

numa segunda modernidade (esse é o tema da terceira parte deste capítulo).

Aqui, o importante é ter em mente que o cosmopolitismo é uma trilha aberta pelo

desenvolvimento dessa segunda modernidade, e (como veremos mais adiante)

pelas consequências, não do fracasso, mas do sucesso da primeira modernidade,

da vitória da sociedade industrial.

“Cosmopolitismo” significa – como mostrou Immanuel Kant, 200 anos atrás – ser um cidadão de dois mundos – “cosmos” e “polis”. Isso implica cinco diferentes dimensões, distintas entre afastamentos [otherness] externos e internos. Externamente, significa: (a) incluir o afastamento da natureza; (b) incluir o afastamento de outras civilizações e modernidades; e (c) incluir o afastamento do futuro; internamente, significa: (d) incluir o afastamento do objeto; e (e) superar o (estado de) controle da racionalização (científica, linear) (BECK, 2002: 18, grifos do autor).

O cosmopolitismo pressupõe o “cosmos” e a “polis”. Pressupõe uma

natureza afastada, o futuro afastado, civilização, cidadania e modernidade. Implica

uma racionalização a ser superada. Os pilares do cosmopolitismo são tão

europeus quanto os termos nos quais são descritos, desenhados. Assumindo

42 O leitor pode se perguntar: será que os trabalhos de Octavio Ianni não incorreriam nas mesmas idealizações? De fato, é possível pensar que o conceito de neo-socialismo, como formulado por Ianni, constitua uma idealização, uma utopia. O próprio autor reconhece isso. No entanto, não me parece que o neo-socialismo esteja conceitualmente vinculado aos processos, relações e estruturas que envolvem a emergência da globalização – caracteriza muito mais uma aposta em seus desdobramentos futuros. Não é um eixo sobre o qual a globalização se desenvolve, mas apenas uma tendência ou uma possibilidade.

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outro ponto de vista, latino-americano, brasileiro, pertencente a uma semiperiferia

mundial, à modernidade periférica, a minha proposta é simples: tudo isso só pôde

ser percebido no interior de uma sociedade onde se vivenciavam esses

processos.

Beck propõe uma conexão entre uma dimensão interna, de feição subjetiva,

e outra externa, objetiva. Esse tipo de análise, que me parece um equívoco

teórico-metodológico, também se manifesta, de modo embrionário, na teoria da

sociedade de risco (Risikogesellschaft), a partir da qual o autor tornou-se

conhecido. Há uma confusão entre o normativo e o empírico, entre o que deveria

(ou poderia) ser, e o que é, de fato. A expansão dos riscos em nível mundial é o

que constituiria uma sociedade mundial de risco. Risco, aqui, significa que as

instituições da própria sociedade industrial perderam o controle sobre (ou a

capacidade de compensação das incertezas geradas pelas) consequências do

desenvolvimento da produção industrial. É, assim, também uma consequência de

um certo tipo de modernização, pressupondo-o, portanto.

A categoria do risco defende um tipo de pensamento e ação social que não foi de forma alguma percebido por Max Weber. É pós-tradicional e, em certo sentido, pós-racional, pelo menos no sentido de não ser mais instrumentalmente racional [post-zweckrational]. Entretanto, os riscos têm sua origem precisamente no triunfo da ordem instrumentalmente racional. Somente depois da normalização, seja de um desenvolvimento industrial além dos limites do seguro, seja do questionamento e da forma perceptível de risco, torna-se reconhecível que – e em que extensão – as questões de risco anulam e fragmentam, por seus próprios meios e de dentro para fora, as questões de ordem. Os riscos tornam-se mais evidentes na matemática. Estes são sempre probabilidades, e nada mais, que não excluem nada. Hoje em dia é possível afugentar as críticas com um risco de quase zero, somente para lamentar a estupidez do futuro público – após a ocorrência da catástrofe – por má interpretação das declarações de probabilidade. Os riscos são infinitamente reprodutíveis, pois se reproduzem juntamente com as decisões na sociedade pluralista. Por exemplo, como os riscos das empresas, dos empregos, da saúde e do ambiente (que por sua vez se transformam em riscos globais e locais, ou importantes e sem importância) devem se relacionar um com o outro, se comparados e colocados em uma ordem hierárquica? (BECK, 1997: 20).

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Se o futuro é construído intencionalmente, há que se enfrentar sempre a

escolha entre duas ou mais possibilidades. Sim, somos livres para escolher e,

note-se, escolher racionalmente. O risco tem uma dupla face: a ameaça e a

oportunidade. É uma categoria da probabilidade, e só podemos entendê-la por

meio do cálculo. Trata-se de uma dimensão impalpável, do ponto de vista

empírico, e que não pode ser estimada com qualquer precisão, seja sociológica,

jurídica, ou matematicamente, no Brasil, na Alemanha, ou no Butão.

Em comparação aos brancos, os nativos possuem uma percepção bem menor dos riscos da vida. (...) Conformados com o imprevisto e acostumados com o inesperado, os quicuios [um dos grupos étnicos do Quênia] nisto se distinguiam dos europeus, a maioria dos quais procura se precaver contra o desconhecido e a fatalidade. Já o negro mantém relações amistosas com o destino, ao qual sempre esteve submetido. De certo modo, o destino é como o seu lar, a obscuridade familiar da choça, a natureza profunda de suas raízes. Por isso, enfrenta todas as mudanças da vida com grande tranquilidade (BLIXEN, 1937: 32-38).

Beck não sugere que o mundo não já fosse arriscado anteriormente. Trata-

se de notar que a natureza dos riscos seria, hoje, outra. Eles são produto da

própria ação humana, de escolhas da humanidade, que se vê obrigada a enfrentá-

los (BECK, 1986, 2000, 2008)43. Precisamente aqui mora o elo entre risco,

43 Dado o caráter metateórico e imanente da análise que pretendo desenvolver, preferi evitar referências a comentadores tanto quanto possível. Além do mais, o recorte da cognoscibilidade de processos globais dificulta a recuperação de quase todos os bons estudos sobre o autor, uma vez que o foco quase sempre recai sobre o conceito de risco, de sociedade de risco (nacional ou mundial), reflexividade etc., e menos sobre a sua sociologia da globalização. Aliás, como o leitor notará, esforcei-me para desagregar analiticamente a noção de risco das categorias mobilizadas por Beck na tentativa de compreender o fenômeno da globalização. Conquanto seja de importância irrefutável, a noção de risco tende a preencher em demasia a leitura dos trabalhos de Beck e, assim, tende a ofuscar os demais alicerces do seu pensamento. Ironicamente, a supressão analítica do risco, permite tornar mais vulneráveis e, portanto, mais apreensíveis outras categorias que norteiam a percepção do autor. Ademais, já existem abordagens bastante avançadas das variadas formas que a ideia de risco assume e com que se desenvolve no pensamento de Beck. Entre elas, vale a pena citar Bosco (2011, 2012), Costa (2000, 2004, 2006), Ferreira (2006, 2011),

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cosmopolitismo e globalização. Os riscos tornam-se cada vez mais globais, e isso

envolvendo indivíduo, sociedade, economia e política. Apontam para uma

sociedade mundial unida pela possibilidade da fortuna ou da desgraça. O tema da

energia nuclear é, nesse sentido, um fenômeno heurístico. A existência de uma

força capaz de destruir o mundo um sem número de vezes implica, de imediato,

duas possibilidades: extraordinárias oportunidades de mercado, de

desenvolvimento em C&T, entre outras, por um lado e, por outro, a visão do fim do

planeta. É realmente interessante a observação de que isso tende a engendrar

uma espécie de solidariedade mundial, unindo a humanidade pela incerteza. E

guarda relação com temas como desenvolvimento sustentável, responsabilidade

cidadã, crise ecológica, e assim por diante. Põe em relevo uma nova posição

ocupada pela (ou atribuída à) Natureza (com N maiúsculo): quebra-se a dicotomia

iluminista “natureza versus sociedade”, a Natureza entra para a sociedade, para o

nosso cotidiano, toma parte nas vidas dos indivíduos e, inclusive, nos riscos por

eles enfrentados. As catástrofes naturais, por exemplo, são imprevisíveis, por um

lado, mas, por outro – embora em medida desconhecida –, provocadas pela ação

dos indivíduos e pela produção industrial em escala global. Por baixo de tudo isso,

há a ideia de um mundo que é de todos e de cada um ao mesmo tempo.

Indivíduos que devem ser livres para tomar decisões arriscadas e sem contar com

a proteção de um aparelho institucional estatal, com uma visão cosmopolita,

apontando para a globalidade.

Guivant (2001), Áurea Ianni (2010, 2012), Vandenberghe (2001). Em outra oportunidade, esbocei uma análise a respeito do papel das sociologias do risco na emergência da sociologia da globalização, focalizando os aportes de Beck e de Niklas Luhmann (cf. ARNAUT, 2013b).

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III. Modernização da Modernidade: raízes da globali dade, caminhos da

globalização

O leitor mais diligente vai perceber que, na minha exposição, tomei uma

decisão ousada: inverti a ordem dos argumentos na teoria beckiana. O meu

propósito, com isso, foi evidenciar alguns dos seus problemas e insuficiências.

Note-se, entretanto, que se trata de enfrentar uma teoria sofisticada, refinada do

ponto de vista sociológico, de modo que desmembrá-la e apontar suas

dificuldades é sempre uma tarefa difícil. Minha intenção foi, neste espaço

reduzido, tratar de três pontos centrais: a individualização, a cosmopolitização e a

modernização reflexiva. Apresento-os dessa maneira, porém sua ordem lógica

seria exatamente a oposta. São fenômenos que engendram a si mesmos, e que

produzem, como consequência, outros processos. Assim, a partir da

modernização da (primeira) modernidade industrial, pode surgir uma segunda

modernidade, reflexiva, com a qual irrompe a possibilidade de visões e vivências

cosmopolitas, acompanhadas de um processo de individualização das biografias

em escala mundial. Isso implica uma outra vivência da Política, como veremos

mais adiante44, e também das relações afetivas – o “amor”, em especial (BECK,

2011). Como dito anteriormente, a modernização reflexiva, que desemboca na

segunda modernidade (zweite Moderne) é o pilar da cosmopolitização e da

individualização da biografia. Apresentar estes temas desacompanhados de sua

base, suas raízes, proporcionou a oportunidade de visualizá-los de maneira mais

contundente, por estarem despossuídos de parte de sua beleza, de seu contexto,

de sua força. Trata-se de uma estratégia discursiva e argumentativa, que torna

mais fácil captar e pôr em relevo os problemas implícitos numa narrativa, no caso

a beckiana.

44 Ver capítulo quinto.

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Mas em que consiste, afinal, a modernização reflexiva? A ideia é

relativamente simples. Beck a concebe como o processo de passagem da

sociedade industrial à sociedade de risco. O raciocínio segue o modelo (histórico)

da transição da chamada modernização simples, à modernização industrial, na

Europa do século XIX (ou parte dela). Há, porém, um ponto que distingue

decisivamente os dois momentos: o sujeito da análise não é um processo

revolucionário, tampouco uma crise da sociedade industrial, mas sim o sucesso da

modernização ocidental. Trata-se de uma nova fase da história do mundo, na qual

um tipo de modernidade sucede a outro, estabelecendo uma relação de

causalidade. A segunda modernidade advém da vitória da primeira, a modernidade

simples caminha para a modernização reflexiva.

O indivíduo logra “libertar-se” das amarras da sociedade industrial, e vê-se

mergulhado numa sociedade de risco mundial [Weltrisikogesellschaft]. Aqui, as

raízes dessa visão ou consciência cosmopolita. Pode-se, então, dizer que agora

encaixam-se todos os pontos que levantei. Numa situação de globalidade,

estaríamos condenados a experimentar essa liberdade de escolha, dirigida a uma

individualização reflexiva, essa compulsão por escolher diante do imperativo de

escrevermos, numa espécie de “faça você mesmo”, nossas próprias biografias.

Essas escolhas são consequência de uma visão de mundo ampla, a ponto de,

passado o deslumbramento da (primeira) modernidade, da Revolução Industrial e

da Belle Époque, desvelar-se um fato de todo simples: o mundo apresenta riscos,

incertezas, e a ciência e a racionalidade ocidentais não são capazes de dominá-

los. Este é (mais) um dos paradoxos do mundo contemporâneo: frente a uma

situação de progresso técnico-científico jamais imaginada na história, vemo-nos

acuados, ainda que “livres”, diante do não conhecimento, das infinitas

possibilidades que a nossa razão não é capaz de alcançar.

Mais uma vez, como dito para os demais pontos (a individualização e o

cosmopolitismo), a modernização reflexiva implica uma inadequação categórica,

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histórica e empírico-metodológica, quando pensada fora de seu contexto

específico, de uma situação particular experimentada por parte da Europa

ocidental contemporânea, parte da América do Norte e Japão. Perdoe-me o leitor,

caso eu seja demasiado categórico neste apontamento histórico-geográfico. Meu

esforço é para mostrar, ou propor, o seguinte: trata-se de um fenômeno que

pressupõe acontecimentos, estruturas, processos e relações que não podem ser

observados fora de algumas situações bastante específicas. Aplicada à realidade

brasileira ou queniana, do Haiti ou da Índia, a noção de modernidade toma formas

inteiramente distintas e mesmo, em certos casos, não toma forma alguma. Sim, a

modernidade (ainda) não alcançou o mundo todo. Mesmo na Inglaterra, França,

Japão ou Estados Unidos, nem todos são filhos da liberdade. Há os filhos guerra,

da miséria, da fome, da exclusão, da violência, do medo, da doença, e também da

nobreza, da abastança, da força. Todos nascem, crescem e morrem neste mesmo

planeta. As mães são muitas, por assim dizer, embora todos sejam filhos do

mesmo mundo. Certamente, o problema não está em teorizar os movimentos da

modernidade europeia, mas sim em pensar que ela pode (vir a) ser experimentada

globalmente.

O leitor talvez já tenha percebido que, nesse debate, também está presente

outra questão, menos interessante, porque grosseira, mas muito conhecida nas

ciências sociais surgidas no velho mundo, ao menos do nosso ponto de vista.

Refiro-me à presença de um certo eurocentrismo. No fundo, um problema da

modernidade (primeira, segunda, décima, não importa) é que ela se apresenta

como um fenômeno de centro, propagado globalmente através de processos

hierárquicos que se manifestam em nível local, nacional, regional e mundial. E,

diga-se de passagem, isso foi percebido, exemplarmente, por Max Weber. Já no

começo da segunda edição de sua Ética, o autor esclarece que teoriza um

“espírito” específico, aquele do “capitalismo moderno, naturalmente. Escusado

dizer, dada a própria colocação do problema, que aqui se trata apenas do

capitalismo da Europa ocidental e da América do Norte. ‘Capitalismo’ existiu na

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China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade e na Idade Média. Mas, como

veremos, faltava-lhes precisamente esse ethos peculiar” (WEBER, [1920] 2004:

45, grifos do autor)45.

Estamos diante de uma hierarquia mundial reeditada. Quem está no topo

pode apreciar, no conforto da polis, seu cosmos ampliando-se em dimensão

mundial, numa visão cosmopolita do mundo. Quem não está, talvez não consiga

ver. Por isso, sou prudente, advirto mais uma vez que a probabilidade de eu estar

completamente errado é enorme. Resta a visão do seguinte quadro. Na

perspectiva de Darwin, meus descendentes (e, se for o caso, os do leitor) talvez

possam, aos poucos, evoluir e compreender as maravilhas de uma modernidade

cosmopolita e global (quem sabe, ainda numa terceira ou quarta fases, tardias).

Tenho notícias de que engenharia genética e a bioquímica têm se desenvolvido de

maneira impressionante, sobretudo nos Estados Unidos, de modo que talvez se

possa, em alguns anos, mensurar mais precisamente em que geração meus

“genes sociais” se tornarão cosmopolitas. Para Lamarck, haveria alguma

esperança. Se eu for esforçado, quem sabe, talvez possa alcançar um patamar

minimamente adequado. Pronto, está dado o objetivo (possível). Despeço-me

tomando minha caneta, a fim de começar ensaiando a redação da minha

autobiografia. Talvez eu possa ser adotado pela velha mãe liberdade, e ela me

condene a ser livre.

45 O trecho foi inserido na segunda edição, cerca de quinze anos depois da publicação da primeira. Certamente havia uma demanda do público leitor por esse esclarecimento, embora esse ponto seja contemplado em outros escritos weberianos. Vale a pena citar um trecho da nota número 38, referente a esse mesmo capítulo: “Por isso, a implantação também de indústrias capitalistas muitas vezes não tem sido possível sem amplos movimentos migratórios provenientes de regiões com cultura mais antiga. Por corretos que sejam os comentários de Sombart sobre o contraste entre, de um lado, as ‘aptidões’ e segredos de ofício do artesão, que são inseparáveis da pessoa, e, do outro, a técnica moderna, cientificamente objetivada, essa diferença mal se fazia presente à época do surgimento do capitalismo – aliás, as qualidades (por assim dizer) éticas do operário no capitalismo (e em certa medida também do empresário) adquiriram um ‘valor de raridade’ cada vez mais alto em relação às aptidões do artesão, solidificadas por séculos de tradicionalismo” (Ibidem: 180, grifos do autor).

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PARTE SEGUNDA

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Capítulo V

O Lugar do Pensamento na Globalização

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O olho por olho deixará todo o mundo cego. Mohandas Karamchand Gandhi46

A Política, como fenômeno mundial, modifica e deixa-se modificar por todas

as demais esferas da sociedade. Dificilmente se poderia pensar sistemas e

relações, assim como estruturas e processos econômicos, jurídicos, culturais ou

ecológicos sem que a levemos em conta. É assim que guerras, conflitos armados,

manifestações populares, censuras, crises de cada vez maior alcance e impacto, e

também movimentos ecológicos ou humanitários, fenômenos midiáticos e de uma

rede de alcance global, todos eles trespassam, ainda que em diferentes medidas,

aldeias e continentes, indivíduos e grupos, corações e mentes. Sim, a Política

mundial não se limita às instituições, às leis, à ordem. Diz respeito também ao

poder, ao conviver, à (sobre)vivência. De um ponto de vista sociológico, o advento

da globalização parece abrir um caminho de ida e volta. Numa direção, torna

possível uma redescoberta da Política, sob os diversos prismas da sociabilidade;

noutra, permite (re)conhecer a sociedade através da Política. Para as ciências

sociais, esse momento representa o desafio de explodir a “jaula de ferro” da

métrica de uma política estatal. Assim, pode-se vislumbrar que a Política, como

atributo da Humanidade, supera fronteiras e limites, fazendo-se presente nas mais

particulares relações sociais e também nas grandes translações humanas pelo

mundo.

Os dois capítulos anteriores compuseram uma introdução concisa, crítica e,

de certo, interessada aos principais elementos que parecem orientar a cognição

de processos de globalização nos trabalhos de Octavio Ianni e Ulrich Beck. Nesta

etapa que se segue, convido o leitor a avançar e contrapor os esforços desses

autores para a cognição desses processos. E esse contraponto deve, é claro,

46A frase é atribuída ao Mahatma, ainda que não haja provas de que ele a tenha usado de fato. Segue o original: “An eye for an eye leaves the whole world blind” (SHAPIRO, 2006: 269).

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partir de uma questão adequada, que norteie os pensamentos de ambos os

autores, possibilitando o estudo confrontado dos dois. Assim, começo por uma

pergunta aparentemente simples, mas que se revelará frutífera: qual a situação da

Política em meio à globalização? Com efeito, o recorte dessa esfera da

sociabilidade em particular deve-se à própria escolha dos autores. Tanto Ianni

quanto Beck fazem o que se poderia denominar Sociologia Política da

Globalização. Note-se que isso não significa afirmar que eles desconsiderem

quaisquer das outras dimensões da vida em sociedade. Trata-se, antes, de

observar que todas as demais esferas da sociabilidade (econômica, cultural,

jurídica, social etc.) apresentam-se, nos pensamentos de ambos os autores,

trespassadas pela Política, fazendo-se nela presentes47.

Se a globalização, como visto, abala os fundamentos da principal instituição

política da era moderna – o Estado nacional – é de se esperar que se procure

captar os diversos mecanismos através dos quais a Política se transforma. A

Política trespassa os limites do Estado-nação, fugindo cada vez mais claramente

ao seu controle, revelando-se transnacional ou propriamente mundial. Assim

também, por outro lado, manifesta-se nas mais particulares situações, assumindo

formas espaço-temporais restritas e até mesmo aparentemente isoladas do todo.

Nesse sentido, a Política pode ser observada como uma categoria que abarca

fenômenos através dos quais é possível captar transformações em nível planetário

47O leitor de Beck e Ianni poderá perceber que a dimensão cultural, embora importante, não apresenta o mesmo caráter multifário da Política. A primeira não é explorada pelos autores com a mesma acuidade presente nas referências à segunda, não recebe tanta atenção em suas dimensões. Algo semelhante ocorre com a esfera econômica. Há observações, insights referentes à economia global, mas tais contribuições não chegam a caracterizar um tratado de economia mundial, e mesmo tradicionais sistemas econômicos são abordados em termos sociopolíticos. Em geral, tanto em Beck quanto em Ianni, as análises econômicas ganham mais densidade quando assumem o caráter de economia política. Outra dimensão importante seria a social. No entanto, uma análise sobre “o social” representaria um recorte demasiado abrangente que, conquanto possível, poderia espraiar o foco da investigação e até mesmo conferir a este texto um caráter prolixo.

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à medida que são investigadas as próprias transmutações por que passa a

Política no mundo contemporâneo. Do ponto de vista do conhecimento

sociológico, pensar a situação da Política na globalização significa perscrutar

fenômenos que façam parte dos que se pode chamar de Política-mundo, ou que a

ela estejam ligados. Em outras palavras, a inteligência de estruturas, relações e

processos políticos em nível planetário envolve a busca por elementos que

permitam perceber a gama de forças neles presentes, sejam elas agentes,

subjacentes ou intermediárias.

Com o objetivo de refletir sobre as contribuições de Ianni e Beck para essas

inquietações tão pertinentes, organizei este capítulo da seguinte maneira. Procurei

iniciar a minha análise apresentando uma reflexão sobre a problematização

sociológica de categorias políticas e de economia política, abordando elementos

como o papel do capitalismo, as configurações dos globalismos, em suas

diferentes formas de compreensão e o problema teórico dos Estados-nação no

mundo contemporâneo (I). Busquei então esclarecer as razões para um recorte

majoritariamente político, tendo em vista os objetivos deste trabalho (II). Com

base nisso, foi possível avançar e acessar uma dimensão mais factual dos

pensamentos dos autores, trabalhando os diagnósticos sociais de fenômenos

ligados à violência planetária (III). Nessa linha, tratei do modo como Ianni e Beck

concebem e lidam com o as desigualdades em nível mundial, suas relações com a

segurança e a violência, bem como no que diz respeito à produtividade do

trabalho e a seguridade social (IV). Por fim, expus uma visão convergente dos

pensamentos de Beck e de Ianni, com vistas a apresentar os novos horizontes

que se abrem a partir dessas reconfigurações da Política em escala global. Aqui,

procurei apresentar o modo como a Política pode ser, simultaneamente, fonte de

ilusões e de novos insights, de desencantamento e de reencantamento do mundo

(V).

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I. Enigmas do globalismo, respostas à globalidade

Como vimos nos quatro capítulos anteriores, as tentativas de teorizar os

processos de globalização são marcadas pelo uso de metáforas. Isso nos permite,

por um lado, uma certa maleabilidade na expressão das linhas de compreensão

do fenômeno, na medida em que abre caminho para a abstração. Por outro lado,

no entanto, essa maleabilidade semântica implica o risco de que uma mesma

palavra denote ideias distintas. É precisamente isso que ocorre com o termo

“globalismo”, se confrontarmos os seus usos nos trabalhos de Ianni e de Beck.

Com efeito, a metáfora do “globalismo” aparece investida de sentidos

essencialmente distintos nos conjuntos das duas obras. Mas, note o leitor, essa

diferença não é simples, nem evidente: os sentidos não são diametralmente

opostos – na verdade, um “globalismo” é consequência e também parte integrante

do outro. Nesta etapa da minha análise, creio que seja imprescindível estabelecer

as linhas que separam essas duas formulações.

1. A expressão máxima do Capitalismo

O globalismo configura, para Octavio Ianni, o novo ciclo do capitalismo,

como modo de produção e processo civilizatório que logra, aos poucos ou

repentinamente, alcançar proporções mundiais. Compreender essa tese, requisita

que sejam revisitados alguns aspectos da obra marxiana. Para Marx, assim como

para Ianni, o capitalismo pode ser entendido como um modo de produção que

tende à expansão. É desse modo que se torna possível conceber o que Ianni

denomina “globalismo” como uma fase do desenvolvimento histórico do

capitalismo, de sua expansão. O leitor provavelmente recorda-se de que esse

conceito já foi apresentado, quando procurei analisar as bases do pensamento

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ianniano sobre a globalização48. Quero, agora, dar um passo adiante, mais

polêmico.

Pode-se dizer que, no fundo, Ianni propõe uma compreensão do globalismo

como a expressão máxima do capitalismo. Sim, o globalismo aparece aqui na

essência do capitalismo, mas de maneira latente – do mesmo modo como, no

pensamento de Marx, o capital encontra-se na essência do dinheiro, embora este

tenha se realizado efetivamente antes daquele, na história. Assim também

acontece, para Ianni, com as formas locais e nacionais do capitalismo, que são

anteriores à sua globalização. Nesse raciocínio, o globalismo está presente em

cada uma delas, está no mais alto ponto conhecido da disposição que vige no

interior dessas fases historicamente precedentes do capitalismo, mas evidencia-se

somente na atualidade, quando encontra as condições históricas para sua

emergência. Assim, com a emergência do globalismo é possível identificá-lo nos

movimentos anteriores do capitalismo (o que, note-se, não quer dizer que se

confundam: são, aliás, essencialmente distintos49). Do mesmo modo, se

compreendemos que, no globalismo, o capital atingiria o seu ciclo máximo de

expansão, é possível conceber as condições e possibilidades de uma revolução

mundial como imaginada por Ianni, a partir do sufocamento dos processos,

relações e estruturas do capitalismo expandido em seu limite geográfico.

Para evidenciar essa ideia, vale a pena citar, do próprio Marx, uma das

passagens destinadas a apresentar o método da sua contribuição à economia

48 Capítulo terceiro, seção I.

49 Como sustentava Marx, “nos animais, os indícios de uma espécie superior em uma espécie inferior somente podem ser compreendidos, em contrapartida, quando o superior [Hörere], ele próprio, já é conhecido. A economia burguesa fornece, assim, a chave para a Economia na Antiguidade, e assim por diante. Mas de modo algum à maneira dos economistas que apagam [verwischen] todas as diferenças históricas e veem, em todas as formas de sociedade, a sociedade burguesa. Pode-se compreender o tributo, o dízimo etc., se se conhece a renda fundamental [Grundrente]. É preciso, porém, não identificá-los” (MARX, 1859).

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política.

Seria, pois, errôneo e impraticável [untuber] sobrepor as categorias econômicas na ordem segundo a qual se sucedem umas às ouras, na qual foram historicamente determinantes. Sua ordem de sucessão é muito mais determinada através da relação que elas têm entre si na sociedade burguesa moderna, e que é precisamente o contrário do que parece ser conforme sua natureza ou que corresponde à sequência do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão das diferentes formas sociais. Trata-se menos ainda de sua sequência de sucessão “na ideia” (Proudhon) (de uma representação desfocada [verschwimmenlt] do movimento histórico). Em lugar disso, trata-se de sua disposição [Gliederung] no interior da sociedade burguesa moderna (MARX, 1859, grifos do autor).

2. Economia política: globalismos do globalismo

No quarto capítulo, dedicado ao pensamento de Beck sobre a globalização,

optei por não abordar mais detidamente a questão do globalismo. É que essa não

parece ser uma categoria propriamente fundamental para compreender sua

percepção dos processos globais. Com efeito, o globalismo configura, para Beck,

muito mais uma consequência negativa da influência de certos atores globais. São

claramente distinguíveis, aqui, a globalidade (Globalität) – complexa, policêntrica e

cheia de contingências políticas – e o globalismo (Globalismus) que, para ele, é

simplório. Como dito, a metáfora é a mesma usada por Ianni, mas o significado é

diverso. Nos trabalhos de Beck, “globalismo” é o nome dado à ideologia que

preconiza os domínios do mercado mundial em moldes lineares obsoletos, quando

não ilusórios. Esse globalismo é visto como uma fonte de enganos (Irrtümer) que

turvariam a percepção da complexidade característica dos processos globais.

Nesse sentido, o leitor atento talvez já suspeite da conclusão analítica a que se

pode chegar com essa distinção contrapositiva: o “Globalismo” de Ianni contém o

“Globalismus” de Beck (ver esquema conceitual 1). Afinal, o que Beck chama de

“globalismo” consiste em uma faceta (economicista) da globalização, sendo esta

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entendida como um processo maior.

Aqui é possível observar uma curiosa diferença no percurso de cada um

dos autores em direção à cognição de certos processos globais significativos. E

essa diferença é exemplar, para os propósitos deste estudo, uma vez que revela o

caráter arbitrário da teorização de fenômenos sociais de amplas proporções. É

que, além de uma mesma palavra poder designar, de um ponto de vista

categórico, dois fenômenos distintos, ocorre também de duas categorias, distantes

por princípio, serem empregadas para descrever um mesmo fenômeno. Com

efeito, o “globalismo” beckiano aproxima-se do que Ianni denomina

“neoliberalismo” (ver esquema conceitual 2). Cada um desses termos destina-se a

captar o que os autores identificam como uma faceta ideológica e

preferencialmente economicista da globalização. No fundo, ambas as categorias

expressam tentativas de cognição e explicação de um mesmo fenômeno mundial.

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Esquema conceitual 1

Como visto neste e no terceiro capítulo, o que Ianni denomina “globalismo” é o palco da história mundial no qual se formaria a sociedade global em suas diversas dimensões. Beck, por sua vez, utiliza-se desta metáfora (Globalismus) para designar apenas um dos aspectos desse fenômeno planetário. Por isso, de um ponto de vista conceitual, é possível afirmar, com boa margem de acerto, que o globalismo de um contém o globalismo do outro.

Num debate que ainda não dispõe de um léxico comum, é curioso observar

como palavras podem desvincular-se do plano denotativo dos conceitos50. É assim

que um termo x pode designar um fenômeno y, o qual também é descrito por uma

ideia z. E também, por outro lado, duas metáforas que contam com distintas

origens e percursos históricos podem expressar percepções de um mesmo

fenômeno. Há neologismos polissêmicos e terminologias ressignificadas. Nesse

50Retornarei à questão do significado das palavras no capítulo VI, em especial no item IV.

Globalismo ianniano

Globalismus beckiano

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quadro, pelo termo “globalismo” pode-se entender, simultânea e paradoxalmente,

um processo e uma ideologia; “globalidade” pode denotar um estágio ou uma

condição – dimensões que não se confundem, embora não sejam propriamente

opostas – e “neoliberalismo” pode configurar e dar nome a um fenômeno de

transformação (do liberalismo em neoliberalismo, para Ianni) e, sob outra

perspectiva (a beckiana), expressar-se como atributo desse mesmo fenômeno,

adjetivando-o e tornando possível pensar em “globalismo neoliberal”.

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Esquema conceitual 2

Globalismo/ Globalismus

O esquema conceitual 2 mostra como esse uso de palavras e designações

pode ser diverso, tendo em vista a cognição dos processos globais. Uma mesma

expressão (Globalismo, ou Globalismus, em alemão) pode, como visto,

representar diferentes conceitos. Para Beck, designa um efeito colateral de certos

Ulrich Beck

Octavio Ianni

Efeito colateral

Ideologia economicista

Ilusão, engano

Palco da História

Estágio máximo do Capitalismo

Processo civilizatório e modo de produção

Globalidade/

Globalität

Neoliberalismo

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atores globais, uma ilusão planetária de caráter ideológico e economicista. Para

Ianni, o termo é utilizado em sentido mais amplo (chegando mesmo a conter o

primeiro, como mostra o esquema conceitual 1). Para este último, trata-se do

estágio máximo do capitalismo, entendido como um modo de produção e um

processo civilizatório, que constitui-se no palco da história em que se dá a

globalização. A proposta aqui é a de que, em contrapartida, podem ser

encontradas duas equivalências. Por um lado, o “globalismo” ianniano denota algo

próximo ao que Beck denomina “globalidade” (Globalität) e, por outro, o que Beck

denomina “globalismo” aproxima-se muito do que Ianni descreve em termos de

“neoliberalismo”.

Nesse sentido, para Beck,

dessa complexidade da globalidade distingue-se claramente a nova simplicidade [Einfachheit] do globalismo, entendida como o império do mercado mundial, que a tudo penetra e modifica. Não se deve entender, por isso, demonizar a ação econômica (mundial). Muito mais que isso, deve ser revelado o ditado e o primado do mercado mundial para tudo – para todas as dimensões da sociedade – prenunciados na ideologia neoliberal do Globalismo, como ela é: um economicismo antiquado projetado como gigantesco, uma renovação da metafísica da história, uma revolução social apolítica feita de cima. É o brilho no olhar dos “reformadores do mundo (do mercado)” neoliberais, que pode provocar medo (BECK, 1997: 195, grifos do autor).

Já para Ianni,

é no contexto do globalismo que o liberalismo se transfigura em neoliberalismo. […] A rigor, o neoliberalismo articula prática e ideologicamente os interesses dos grupos, classes e blocos de poder organizados em âmbito mundial; com ramificações em âmbito regional, nacional e até mesmo local, quando necessário. As estruturas mundiais de poder, tais como as corporações transnacionais e as organizações multilaterais, com frequência agem de modo concertado e consensual. E contam habitualmente com a colaboração ativa dos governos dos países dominantes no sistema capitalista mundial (IANNI, 1996: 280 e 283).

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É preciso notar que, nos trabalhos de Beck, o termo “neoliberalismo” é

usado em suas variedades nominal, adjetiva e adverbial (Neoliberalismus,

neoliberal). Mas, se é assim, por que motivo ele não entrou para os esquemas

anteriores? É que seu significado parece mais restrito. Com efeito, a ideia de

Neoliberalismo, como utilizada por Beck, categoriza preferencialmente enganos

ideológicos e valores ligados a certos grupos, ou qualifica negativamente outros

fenômenos. Em seus escritos, ela aparece predominantemente de duas maneiras.

Uma delas é como um atributo, isto é, como característica da globalidade ou de

alguns de seus aspectos. É nesse sentido que Beck trabalha em termos de

“globalismo neoliberal”, “ideologia neoliberal”, “os [empresários e grupos]

neoliberais” etc. Outra, é através do vocábulo “neoliberalismo” em sua forma

nominal. Nesse caso, denota uma atitude política de certos partidos e grupos de

poder, dizendo mais respeito a valores que aos interesses da economia em

sentido amplo. Aqui que mora o risco de mal-entendidos. O neoliberalismo, como

categorizado por Beck, não parece guardar relações diretas ou nexos causais com

indivíduos e grupos, vistos de modo abrangente, numa sociedade civil mundial,

mas preferencialmente com grupos políticos de poder. Tampouco faz-se presente

como categoria compreensiva (verstehend) central em seu trabalho. É, como

veremos adiante51, mais marcantemente uma ilusão, uma mentira presente em

certas arenas políticas, e menos uma ideologia que penetre corações e mentes,

modos de pensar e fabular no cotidiano de todos e cada um. Por isso, além de

representar um risco de babelizar a minha tentativa de explicação, a inclusão da

ideia de “neoliberalismo” em Beck num esquema dessa natureza representaria um

desequilíbrio categórico. Afinal, como o interesse aqui é perscrutar os elementos

que permitem a Beck e a Ianni captar e compreender aspectos dos processos

globais contemporâneos, é preciso afastar analiticamente conceitos que não

51 Seção V, item 1.

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ocupem, ao menos até onde pude compreender, uma posição basilar em seus

pensamentos.

3. O Estado-nação como um problema sociológico ren ovado

Tanto Ianni quanto Beck buscam interpretar, descrever, explicar os

processos que emergem, ressignificam-se ou se intensificam numa situação de

globalização. Mas não do mesmo modo. Eles não os percebem a partir da mesma

perspectiva, embora por vezes o façam através dos mesmos fenômenos. Ora, a

globalização é diversa, assim como também são diversas as maneiras de

percebê-la, descrevê-la, analisar seus aspectos52. Isso produz pensamentos

distintos a respeito de um objeto comum: os processos de globalização. É assim

que podemos dizer que o globalismo beckiano ou o neoliberalismo ianniano,

embora vistos como equívocos em escala mundial, representam uma chave para a

compreensão de uma questão maior. Ocorre que a atuação de indivíduos, grupos

e também de empresas (multinacionais, supra-estatais ou transnacionais) ao longo

do século XX e início do século XXI intensifica, ainda que de maneiras diferentes

ao redor do mundo, o enfraquecimento da mais poderosa instituição social

existente na história mundial há cerca de dois séculos: o Estado-nação. Sim, os

Estados-nação apresentam-se, em maior ou menor medida, vulneráveis diante de

atores outrora aparentemente subordinados. Ao longo da segunda metade do

século XX, não apenas empresas que atuam globalmente, mas também

52É nesse sentido que se torna possível pensar em “globalizações” (no plural). Creio, no entanto, que tal distinção não seja tão frutífera de um ponto de vista sociológico quanto talvez pareça, à primeira vista. Ela pode provocar a impressão de que haveria “uma” globalização (no singular) que ocorreria numa parte do globo, “outra”, que se daria alhures e assim por diante. Dito de outro modo, a ideia de globalização pluralizada implica também a imagem de “unidades” de globalização, o que não se dá, de fato – e essa também não me parece ser a perspectiva dos autores sobre os quais escrevo. Essa unidade enxergada por Braudel e Wallerstein (apresentada, aqui, no capítulo primeiro), dificilmente seria verificada nas demais dimensões da sociabilidade.

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movimentos sociais, movimentos ambientais, organizações terroristas ou

vinculadas ao tráfico de drogas, de armas, de biodiversidade e mesmo de

pessoas, entre muitos outros elementos, evidenciam as rachaduras nos pilares

dos Estados nacionais.

Isso tudo abre espaço, é claro, para outras questões. De onde vem o poder

desses grupos, organizações ou corporações? Que tipo de influência possuem e

em que medida podem determinar o desenvolvimento de processos, relações e

estruturas sociais? Quais são as contingências que implicam e envolvem? Note o

leitor: aqui temos poder, influências, o caráter de organização, determinações,

contingências; a lista está longe de ser exaustiva, mas, exposto dessa maneira,

não é difícil chegar à conclusão que se trata de questionamentos eminentemente

políticos. É que a globalização traz consigo uma questão fundamental: qual o lugar

(ou os lugares), teórica e factualmente, da Política no mundo contemporâneo?

Não tenho a intenção de responder essa pergunta por completo. Nem ao menos

poderia sintetizar todas as contribuições relevantes que têm sido formuladas a

esse respeito de modo suficiente. O que segue é uma observação crítica das

tentativas de Ulrich Beck e de Octavio Ianni de compreender e explicar o que

denominaram redescoberta (no caso de Ianni) e (re)invenção (Erfindung, no de

Beck) da Política53, buscando apreender os elementos que fundamentaram essas

interpretações.

II. A inteligência da Política: um recorte possível

O valor de se observar as maneiras pelas quais Beck e Ianni buscaram

53 As transformações da política foram designadas de outras maneiras pelos autores, de sorte que as designações “redescoberta” – cf. Ianni (2004, 2011) em particular – e “(re)invenção” – ver especialmente Beck (1993, 1997, 2002) – foram eleitas por mim como palavras-chave. Tal escolha é, dessarte, passível de questionamentos.

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compreender as transformações da Política para a além das bases teóricas

forjadas a partir dos Estados nacionais é considerável, e desdobra-se em ao

menos duas vertentes. Primeiro, deve-se notar que esses pesquisadores

estiveram entre os poucos que apostaram numa análise efetivamente sociopolítica

da globalização. Com efeito, embora haja alguns trabalhos sobre a Política na era

global, tais estudos não costumam enfrentar as transformações institucionais

operantes no mundo contemporâneo: em geral, compõem análises ligadas às

tradicionais relações políticas “internacionais” que, como o próprio nome indica,

pressupõem as soberanias estatais e suas interações como entidades jurídicas

constituídas e reconhecidas em nível planetário. Não se trata aqui, é claro, de

desqualificar qualquer um desses trabalhos, mas, antes, de perceber que uma

análise sociopolítica permite captar certos aspectos através dos quais se pode

tentar compreender as transformações mundiais, que têm maior amplitude e

caráter multi ou transdimensional.

Em segundo lugar, o enfoque na cognição de fenômenos políticos tem um

valor metodológico para a presente dissertação. Como é de se esperar,

dificilmente seria possível perscrutar todas as nuances dos pensamentos de

qualquer autor (quanto mais de dois!). Uma atitude desse tipo, lançaria este

trabalho à superficialidade, ou terminaria por reproduzir argumentos, teses e

percursos de modo repetitivo e delongado. Este trabalho de teoria sociológica

pode ser visto como uma tentativa de explicação de explicações, ou como uma

sociologia de sociologias. Trata-se de próximo daquilo que Ritzer (1988)

denominava metassociologia (metasociology) ou, mais precisamente, a metateoria

(metatheorizing), entendida como “uma forma de metassociologia que examina

especificamente a prática da teorização sociológica. (...) Enquanto a teorização

sociológica busca dar sentido ao mundo social, a metateoria procura dar sentido à

teorização sociológica” (RITZER et al., 2001: 144). Nessa linha, compete ao

pesquisador o esforço para encontrar as chaves cognitivas desses pensamentos,

a fim de reconstruí-los com vistas à sua melhor compreensão. Assim, em lugar de

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uma análise exaustiva, optei pelo trabalho eletivo de elementos que parecem

fundamentar, orientar ou estimular a inteligência dos processos globais por parte

dos autores estudados.

Para melhor desenvolver esse ponto, voltemos à problemática do Estado-

nação, abordada na seção anterior. É preciso recordar, antes de mais nada, que o

Estado-nação pode ser visto como uma criação do século XIX. É neste momento

que as formas nacionais anteriores – que remontam à antiguidade – fundem-se de

modo particular à instituição política do Estado moderno, que se conformava e

consolidava desde o século XIII, na Europa ocidental54. É claro que tais

desenvolvimentos ocorreram historicamente também em outras paragens – em

particular na China55. Não obstante, o debate sobre a globalização parece olvidar

essa informação histórica ou, ao menos, tem-na legado a um segundo plano,

fazendo-lhe menções muito discretas. Curiosamente, também passa-se ao largo

das formações dos contemporâneos Estados nacionais do continente africano.

Nessa altura, o leitor talvez se questione o porquê desta digressão. Ora, esses

54Sobre a constituição do Estado-nação, ver Bourdieu (2012), Schulze (1994), Balakrishnan (1996), Anderson (1991), Hobsbawm (1990).

55 Aqui cabe apontar, por exemplo, que Pierre Étienne-Will, um especialista em China moderna, teve ocasião de redigir, juntamente com Olivier Christin e Pierre Bourdieu, uma reflexão a respeito dos saberes de Estado e do que denominam Ciência do Estado – não no sentido de uma teoria do Estado, mas denotando a produção de uma ciência prática da força pública, cujas origens remontam à era moderna. Aqui, segundo os autores, “a comparação com a experiência chinesa parece particularmente sugestiva e convida, também a novas reflexões. Em seus esforços para adotar uma melhor medida de sua produção, dos parâmetros da atividade econômica e dos recursos de diferentes regiões, os Estados europeus da época moderna acompanham, se é possível dizer assim, uma venerável tradição chinesa associada, corriqueiramente, com o que se convencionou chamar de 'legista'.” (BOURDIEU, CHRISTIN, WILL, 2000: 266, grifos dos autores). Nesse escrito, os autores propõem uma sorte de história social comparada, cujos interesses fogem ao escopo da presente dissertação. Cabe, não obstante, chamar a atenção para o hiato presente em estudos sobre globalização quando se trata da inteligência de processos globais em contextos asiáticos ou africanos. Esse hiato também não será enfrentado adequadamente aqui porque, como é de se esperar, falta material para abordá-lo dentro do recorte que propus, muito embora a sua ausência faça-se, de certo modo, presente e ensine muito sobre o atual estágio de a cognição dos processos globais.

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aparentes limites são, todavia, significativos e permitem-nos captar ao menos dois

aspectos do caráter das análises sobre a situação dos Estados nacionais na

globalização, tanto de um modo geral, no debate, como nos escritos de Ianni e

Beck, em particular.

Primeiro, a observação de processos globais não significa necessariamente

a análise do “mundo” como um todo epistêmico, ou como um objeto constituível.

Como dito, há uma diversidade característica da globalização, de seus processos,

relações e estruturas, que configuram fenômenos de natureza, por assim dizer,

estratificada, e mesmo hierárquica. Como é de se esperar, essas diferenças se

manifestam não apenas nos fatos ligados à sociabilidade, tanto temporal quanto

espacialmente, mas fazem-se presentes também na sua cognição. Isso não

significa que a globalização se dê em blocos geográfica ou socialmente

localizados – uma perspectiva desse tipo poderia, aliás, turvar a percepção do

caráter dinâmico e móvel de seus processos. Trata-se, antes, de observar que as

abordagens dos processos globais encontram-se situadas em certos lugares

físicos e mentais de explicação e cognoscibilidade.

Segundo, a inteligência da globalização envolve um raciocínio de entremeio

que transita por uma dimensão teórica e outra conjuntural. Creio que os trabalhos

de Beck e de Ianni sejam bons exemplos dessa característica. Por um lado, é

imperativo aperceber-se das transformações em escala global, das novas

configurações sociais, culturais, econômicas e políticas que se manifestam mundo

afora, tanto efetiva quanto normativamente. Por outro, a problemática da

globalização, enquanto uma realidade nova, parece clamar por um quadro teórico

que viabilize a compreensão da própria globalização e das mudanças que ela

opera nas diferentes esferas da sociabilidade e, consequentemente, nas

categorias sociológicas construídas e empregadas tradicionalmente para a sua

compreensão.

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Até agora, foram abordadas questões preferencialmente conceituais – a

conformação de uma nova economia política globalista (nos diferentes sentidos

abordados) e a situação do Estado nacional na contemporaneidade (o que pode

ser visto como uma discreta investida em teoria do Estado). Com base nisso,

proponho uma reflexão a respeito de certos elementos heurísticos, de natureza

marcadamente sociopolítica, que são pinçados por Ianni e Beck visando

compreender algumas das reconfigurações do mundo contemporâneo.

Procedamos por partes. Primeiro, componho algumas notas a respeito de como o

problema global da violência é tratado pelos dois autores56. Numa segunda

etapa57, vale a pena observar o modo como Beck e Ianni abordam a questão não

menos planetária das desigualdades.

III. Violência, Terror e Vulnerabilidade

Viver é arriscado, para todos e para cada ser humano. Os perigos que são

experimentados individual e coletivamente traspassam fronteiras. Essas fronteiras

podem ser político-normativas – cujo grande exemplo são os marcos dos

continentes e dos territórios nacionais – ou estabelecidas pela ameaça e a

coerção por parte de indivíduos, grupos e instituições, ou ainda por fenômenos

tradicionalmente classificados como “naturais”, que expõem a vulnerabilidade

humana. Com efeito, a catástrofe, a violência e o terror escapam cada vez mais ao

controle por parte dos Estados nacionais. Espraiam-se e mancham a história do

mundo. A instituição do Estado nacional dá sinais de que não é mais capaz de

garantir a segurança. Às vezes, pode até mesmo protagonizar o terror, mas isso

não significa que possa controlá-lo. As forças de guerra e de paz movem-se e

56 Item III.

57 Item IV.

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operam além do seu alcance, através dos seus domínios, debaixo do seu nariz.

Além disso, as fronteiras também podem ser (aparentemente) particulares ou

específicas de determinados contextos – a exemplo dos toques de recolher que

vigem como um acordo tácito, oficioso, em regiões metropolitanas de todo o

mundo, seja em tempos de guerra declarada ou de pretensa paz. Sim, a atual

situação de globalização encontra-se permeada, em diversas instâncias da

sociabilidade, pela violência e pelo terror permanentes e cotidianos.

1. Quando a barbárie se institucionaliza: o Estado como agente do

terror

“Faz tempo que o mundo está em guerra. O século XX foi, todo ele, um

século de uma guerra que não termina, entrando pelo século XXI; como se fosse

um terremoto sem fim, uma vasta operação de destruição de coisas, gentes e

ideias, cidades, povos e nações, modos de ser e estilos de vida” (IANNI, 2004:

288). Octavio Ianni atribui à sociedade contemporânea o caráter de uma imensa

fábrica de violências. Para ele o poder e a violência caminham juntos,

mundialmente, revelando o fato de que “o mundo está amplamente organizado em

moldes totalitários. Trata-se de um totalitarismo que se lança, simultaneamente,

em diferentes níveis da vida social, de forma difusa e generalizada, imperceptível

e truculenta, inefável e perversa” (Ibidem: 297).

Para Ianni, o Estado nacional transforma-se em uma organização do

terrorismo global, entendido como um fato político, social e histórico. O terrorismo

é uma forma de violência e, ainda que possa assumir uma aparência isolada –

como muitos outros fenômenos políticos na globalização – nunca esgota-se em si

mesmo. Muito ao contrário, Ianni sustenta que ele tem origem nos jogos de força

sociais, enraíza-se neles, de modo que as ações, alegações e justificativas dos

seus agentes raramente servem como explicações para o acontecimento. No

entanto, Ianni tem o cuidado de sublinhar que a compreensão e o discernimento

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dos atores (isto é, verdugos e vítimas) apresentam-se, com frequência, alheios em

relação aos nexos sociais de um evento terrorista.

Nesse sentido é que o ato terrorista pode revelar-se reacionário, fundamentalista, fascista, nazista, anarquista, niilista ou revolucionário. Explica-se pelos jogos de forças sociais nos quais se insere. […] Esta é uma revelação fundamental: para defender, consolidar e expandir o seu poder, elites governantes e classes dominantes, em diferentes países, desenvolvem operações de terrorismo de Estado que, aos poucos, transformam o próprio Estado em uma instituição terrorista. Outra vez, realiza-se a metamorfose meios e fins, de tal forma que a multiplicação de operações terroristas, compreendendo a criação de técnicas, organizações e alegações, termina por contaminar mais ou menos amplamente a tecno-estrutura estatal, bem como a mentalidade de seus técnicos, funcionários, agentes e beneficiários, compreendendo setores das elites governantes e classes dominantes, o que resulta no Estado terrorista, simultaneamente totalitário e nazi-fascista (Ibidem: 287 e 289).

(Temos aqui um ponto que o diferencia categoricamente da percepção

beckiana. Processos, relações e estruturas subsumem a perspectiva dos

indivíduos – ainda que não as eliminem. Esse enfoque teórico e eletivo é o que

parece nortear a percepção ianniana das mudanças diametrais vislumbradas no

caráter da instituição do Estado nacional: de provedor da segurança e detentor do

uso legítimo das forças de coerção, passa a agente ilegítimo do terror planetário.)

O fenômeno mais exemplar dessa perspectiva certamente foi o atentado de

11 de Setembro de 2001. A esse respeito, alerta Ianni não se deveria permitir que

as supostas intenções dos seus autores turvassem a percepção sociológica dos

acontecimentos – inclusive porque nem ao menos se sabe quem foram esses

indivíduos. Para ele, os atentados às chamadas Torres Gêmeas do World Trade

Center, em Nova Iorque, constituíram um fenômeno político exemplar. Afinal, eles

foram atribuídos à organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda e iniciou-se,

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então, uma guerra espetacular contra um país paupérrimo58.

Essa visão está exposta de modo particularmente claro numa entrevista

concedida por Ianni em 26 de Novembro de 2001. A citação é longa, mas vale a

pena.

Pode ser só uma hipótese, pode até ser uma ideia equivocada, mas eu prefiro trabalhar com a ideia, mesmo que equivocada, de que nós entramos num outro ciclo da história, do que continuar acreditando que nós vivemos no ciclo do nacionalismo, do imperialismo e do colonialismo. Eu acho que é pouco. Não tem graça, não tem beleza. Está tudo evidente. Já é sabido. Estou brincando com a ideia, mas na verdade eu vejo assim. Então, eu acho extremamente fascinante nos colocarmos diante disso: afinal, somos humanidade, somos parte da humanidade. Não é a humanidade dos nossos sonhos, ela está sofrendo muito, mas já somos irmãos daqueles que vivem no Afeganistão. Já somos irmãos daqueles que são hindus. Já somos contemporâneos e estamos num intercâmbio muito intenso com eles. Eu acho isso uma glória! Acho fascinante. E isso significa que a nação, o indivíduo, se redefine neste cenário. É claro que este cenário, por enquanto, está dominado por interesses que predominam, tais como os [dos] Estados Unidos, a União Europeia, Japão [que] têm uma importância grande etc. E isso continua a ser problema, porque eles, em lugar de encaminharem soluções, eles buscam preservar as suas posições de mando, de controle. Então, cabe a nós questionarmos. Por isso que eu tenho uma interpretação totalmente heterodoxa do atentado do dia 11 de Setembro. […] É, aparentemente, um ataque terrorista. De fato, é um ato político. A reação, não só dos governantes dos Estados Unidos, mas dos governantes da Europa, e a formação da coalizão, e a declaração de uma guerra enlouquecida mundial contra uma nação paupérrima transformou aquele acontecimento num ato político excepcional.

58 É importante recordar que a Guerra do Afeganistão contou com o apoio militar de países como França, Inglaterra e Canadá, além de grupos político-militares como a Aliança do Norte (ou Frente Islâmica Unida para a Salvação do Afeganistão), interessada na queda do regime talibã. Deve-se recordar também que, na ocasião, houve quatro aviões lançados: dois chocaram-se contra as torres (em Nova Iorque), outro, contra o Pentágono, que é a sede do departamento de defesa dos Estados Unidos (no estado de Virgínia) e um quarto avião, menos lembrado, caiu num campo em Schanksville (no Condado de Somerset, na Pensilvânia). Mais que isso, vale lembrar que o suposto mentor de toda a operação que culminou no atentado terrorista, o líder terrorista Osama bin Laden, foi encontrado e assassinado pelo governo americano somente dez anos mais tarde – num momento de crise política e econômica. Não pretendo entrar nos méritos especulativos das “verdades e mentiras” a respeito do caso, mesmo porque Ianni não conheceu parte desses desdobramentos. Quero apenas evidenciar, à guisa do autor, seu caráter simultaneamente político e global.

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Nessa altura, Paulo Markun, um dos debatedores, questiona-lhe se matar

cinco mil pessoas não caracterizaria um atentado terrorista. E Ianni responde:

Mas isso acabou. Isso já é um dado. Vamos ser objetivos. Trata-se de um fato que deflagrou uma série de providências. Então, as providências que foram adotadas, transformaram aquele acontecimento num fato político excepcional.

Então, Markun toma novamente a palavra e indaga: “Mas, professor, o

senhor não acha, não tem na sua concepção que a ação de quem praticou aquele

ato tinha claro o que iria acontecer, o que isso ia provocar?” E Ianni exorta:

Não se iluda com as intenções dos autores, mesmo porque não sabemos quais são os autores. Não se iluda com as intenções, porque as intenções não definem a historicidade do acontecimento. O que define a historicidade do acontecimento é a dinâmica das atividades que se desenvolvem59.

Do ponto de vista iannino, fenômenos como esse revelariam que a

sociedade é uma fábrica de violências. É assim que, no mundo contemporâneo, a

violência e a barbárie terrorista comporiam um elemento central da sociedade

global em formação, que permitiriam captar parte do seu caráter. Há um clima de

barbárie mundializada, que percorre das cercas elétricas das casas, onde se vigia,

protege-se e aprisiona-se, até as ruínas dos holocaustos. Essas ruínas

exemplificam, para Ianni, o momento no qual a barbárie perde a aparência de

barbárie: a saber, o instante em que ela rui. A barbárie, ruída, torna-se, nesse

sentido, presente e pretérito, memória compartilhada de uma sociedade global em

59Os trechos das quatro últimas citações correspondem à entrevista concedida por Ianni ao programa Roda Viva, da Rede Cultura, a 26/11/2001, e disponibilizado no domínio de rede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Cf. Ianni (2001).

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formação.

Note-se, pois, que, com a formação do Estado terrorista, disfarçado de democrático, na realidade totalitário e nazi-fascista, institucionaliza-se a barbárie. Algo que se havia desenvolvido de forma difusa e indefinida na sociedade, em seus poros, frestas e recantos, logo se configura como ideologia e prática, técnica e missão do Estado como um todo ou de alguns dos seus aparelhos e agências de controle e repressão, em escala nacional e mundial. É como se a essência do poder estatal, o monopólio da violência, aos poucos permeasse ativa e generalizadamente o conjunto das organizações e instituições estatais, realizando, de forma paroxística, a fusão entre o complexo industrial-militar, a tecno-estrutura estatal e o monopólio da violência. Esse é o Estado-máquina-de-guerra, altamente racional, moderno e eficaz. Trata-se de uma sofisticada construção sistêmica, fundada no pragmatismo, na razão instrumental. Nele, as partes e o todo articulam-se eficaz e funcionalmente, aperfeiçoando-se e desenvolvendo-se de conformidade com a organização e dinâmica do poder, enquanto dominação e apropriação, complexo industrial-militar, tecno-estrutura estatal e monopólio da violência. Aí medram as mais diversas técnicas de violência, desde o terrorismo à tortura, do sequestro ao narcotráfico, do fundamentalismo islâmico ao fundamentalismo calvinista, da barbárie do eixo do mal à barbárie do eixo do bem (IANNI, 2004: 292-291).

Mas a barbárie de que trata Ianni não é feita por “bárbaros”. Não. Ela pode

ser vista inclusive, e preferencialmente, como um dos produtos da ação de grupos

que desfrutam das benesses da civilização moderna. Por isso Ianni também

observa que a barbárie faz parte da modernidade, sendo uma de suas faces. A

inteligência da situação dá-se através desta dialética: se o conhecimento e a

técnica alcançam altíssimo grau de desenvolvimento e, com isso, engendram-se

riquezas materiais e imateriais, tem-se, por outro lado, níveis de brutalidade e

insanidade inacreditáveis que intensificam seus efeitos através das potências e

recursos do progresso. A argamassa da compreensão é, neste ponto, sistêmica

(articulação funcional e eficaz) e dialética, relacionando-se pragmatismo (no

sentido mundano do termo) e razão instrumental – algo aparentemente paradoxal,

muito embora coerente com o caráter multifário da história política

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contemporânea.

2. Inimigos do Estado, Inimigos do Mundo: riscos pe rceptíveis e

individualização da guerra

A modernidade e o sucesso da modernidade podem ser vistos como o

motor da globalização, dos seus bons frutos, e também dos percalços que se

apresentam na emergência da globalidade. O tema da violência está presente em

Ulrich Beck de um modo semelhante ao como aparece na abordagem de Octavio

Ianni, isto é, como uma questão política por excelência. Mas há algumas

dessemelhanças, e certos aspectos podem nos indicar em que medida essas

perspectivas diferem. O primeiro deles é o problema do terrorismo. É claro que

ambos se esforçam para compreender o mesmo fenômeno; mas os parâmetros da

explicação são distintos. Enquanto Ianni está interessando nos efeitos de

devastação, em escala mundial, de uma barbárie planetária, focalizando

preferencialmente a amplitude de suas ações e consequências, Beck preocupa-se

mais com o modo pelo qual essas transformações são percebidas pelos indivíduos

e grupos de individualidades. O objetivo é interpretar os impactos sofridos por

eles, bem como suas reações. Nesse sentido, os grupos terroristas são descritos

por Beck como novos atores mundiais, sendo esse um status ao qual ascenderam

(subitamente), em especial a partir dos atentados do 11 de Setembro de 2001.

Mas há um porém: não é que os grupos terroristas ganham importância ou

destaque com o atentado em si. Claro que o “11 de Setembro” é (quanto a isso

não há dúvidas) um marco histórico, condenável sob qualquer aspecto e

assustador. Todavia, o que Beck procura sublinhar é o fato de que o terrorismo

ascende à posição de ator mundial a partir da veiculação em escala planetária,

pelas mídias, das imagens do horror. O interessante aqui, do ponto de vista

sociológico, é que

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o mundo tem, assim, em um domínio militar, a experiência da morte da distância, do fim do monopólio estatal da violência em um mundo onde tudo, no fim das contas, pode se transformar em míssil nas mãos de fanáticos determinados. Os símbolos pacíficos da sociedade civil podem ser transformados em instrumentos de horror. Isso não é – em princípio – novidade, mas, doravante, onipresente como experiência-chave própria à nossa época (BECK, 2002a: 41, grifos do autor).

Aquilo que Ianni busca captar em um plano macro, Beck traduz em termos

mais particulares. Em ambos os casos, o terrorismo aparece como a forma de

violência que tem sido capaz de evidenciar as frestas nas paredes da antiga

fortaleza estatal. Mas Beck enfatiza também outro aspecto. O terrorista é um

criminoso com o qual o aparelho estatal não pode lidar, com eficácia, a partir dos

métodos de coação. Assim, se o limite de toda violência física é a morte, o

terrorista é, por excelência, um ator singular precisamente porque conta,

frequentemente, com a prerrogativa do suicídio. Os fundamentalistas da Al-Qaeda

(assim como os kamikases) são, nessa direção, exemplares. O diagnóstico, para

esse caso, é o da vivência de uma individualização da guerra. Se a guerra contra

Estados era feita, tradicionalmente, por Estados, de agora em diante guerras

contra Estados podem ser declaradas por indivíduos60.

O terrorismo evidencia para a sociedade civil, em nível mundial, a

vulnerabilidade do Estado-nação. Pode-se dizer, inclusive, que os atentados de

Nova Iorque e Washington marcaram o início da queda dos Estados Unidos como

potência mundial, sem que houvesse, no entanto, um ou mais substitutos, num

mundo multipolar. É assim que os grupos terroristas se tornam mais que inimigos

dos Estados: são percebidos como inimigos da sociedade civil mundial,

representam um perigo para a humanidade como um todo. Sim, grupos terroristas

60 Nada mais condizente, note-se, com a tese, apresentada no capítulo quarto, de que a individualização pode ser vista como um pilar fundamental do pensamento de Beck, orientado-lhe a cognição de fenômenos globais.

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são, para Beck, atores “desestatizados” em princípio, ainda que ajam com o apoio

de Estados (tratados como) “maléficos”. Note-se que essa é uma diferença

importante em relação à concepção de Ianni de um terrorismo que pode ser visto

como fundamentado na própria instituição nacional, como produto do Estado que

se torna, ao longo do tempo, agente do terror. Para Beck, ao contrário, é

justamente a

flexibilização do conceito de inimigo desestatizado e desterritorializado [que] autoriza, portanto, várias coisas: primeiramente, o recurso universal às armas com fins de “defesa interior” (dos Estados Unidos, mas também da Rússia, da Alemanha, de Israel, da Palestina, da Índia, da China etc.); segundo, uma declaração universal de guerra a Estados sem que esses tenham agredido quem quer que seja; terceiro, a normalização e institucionalização do “estado de urgência” interior e exterior; quarto, um recuo do direito nas relações internacionais e para os inimigos terroristas, e também para o Estado de direito no interior de cada país e para as democracias estrangeiras (Ibidem: 45, grifos do autor).

O terror e o terrorismo, a insegurança e o caráter explosivo dos riscos

mundialmente experimentados têm como consequência a deslegitimação de

sistemas e instituições políticas. Eles teriam, para Beck, o poder de penetrá-las e

questioná-las a partir do seu interior, abalando suas estruturas. A despeito das

tentativas de superação ou de eliminação dos riscos, estes tendem a diversificar-

se, ampliando seus campos de ação e interferência. É assim que o Estado

nacional assiste à ruína de parte de suas prerrogativas fundamentais, como a

unilateralidade da soberania nacional em matéria de defesa territorial e segurança

policial. Nesse sentido, torna-se cada vez mais inelutável a cooperação

transnacional contra um terrorismo que é militar, militarizado, e também militante.

São riscos civilizacionais, no sentido de que constituem produtos da civilização

moderna e provocam uma reflexividade política que permite uma visão

cosmopolita (o termo polis não compõe a palavra por acaso), abrindo espaço à

ação política (BECK, 2000, 2002a, 2008, 2010).

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IV. Desigualdades, (in)segurança e seguridade

A globalização não é para todos. Embora se possa verificar que todos a

experimentam cotidianamente em alguma medida, é possível afirmar que boa

parte dos processos que engendram e envolvem a globalização são determinados

por poucos. Há linhas de força e de interesse que conferem os rumos históricos de

indivíduos e comunidades em suas diversas dimensões. Desse modo, a

globalização não elimina o problema da desigualdade; às vezes, o que ocorre é

precisamente o oposto: os abismos existentes entre os diversos setores, classes

ou estratos sociais se aprofundam – e, assim, surgem e ressurgem

(frequentemente mais acirrados) os conflitos existentes entre eles. Embora se

trate de um problema também socioeconômico, a relação entre globalização e

desigualdade é sociopolítica, ao menos nos moldes tratados por Ianni e Beck.

Vimos que parte significativa da literatura a respeito do tema aponta para o

enfraquecimento do Estado nacional como uma questão central para a inteligência

dessas relações61. Como ensinavam os contratualistas, o Estado constitui-se

como responsável por garantir as necessidades básicas dos homens,

estabelecendo os parâmetros para o convívio social e obtendo, “em troca”, a

subordinação política. Em certo sentido, essa concepção se desenvolve,

modernamente, em duas noções básicas: segurança e seguridade social. A

primeira, entendida duplamente, (a) como segurança da pessoa, manifestada, em

termos legais, no direito fundamental à vida e também na proteção à propriedade,

material ou intelectual, e (b) como segurança (militar) do território, compreendido

61O leitor deve recordar-se das minhas observações no primeiro capítulo. Além disse, recomendo também, por exemplo, além de Ianni e Beck, Arnaut (2010), Bauman (1998), Berking (2008), Brock (2008), Fischer (1999), Habermas (1998), Ortiz (2006, 2007), Santos (2002), Sundfeld e Vieira (1999), Forst (2008), Sassen (2007), Höffe (2001, 2004), Vandenberghe (2001, 2011), Luhmann (1998).

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dentro dos limites da instituição política estatal. A segunda, a seguridade social,

compreendida como o esforço do Estado com vistas a garantir a contemplação

das necessidades básicas dos cidadãos. Ocorre que, como visto, na atual

situação de globalização, o Estado perde uma parcela significativa das

prerrogativas que lhe permitiam – factual ou normativamente – assegurar aos seus

membros essas garantias fundamentais. É que essas garantias requerem, por

parte do Estado, a prerrogativa do controle. Afinal, essa ação estatal de garantia

também pode ser vista como controladora na medida em que o equilíbrio é

mantido a partir de uma ação de controle de parte dos excessos produzidos pela

ganância humana, corroborada pelo sistema capitalista. Trata-se, no fundo, de um

controle travestido de proteção. Com o processo de transnacionalização do capital

e da ação empresarial, a “livre” concorrência capitalista dá-se também em termos

mais acirrados, mais agressivos. É nesse sentido que é possível enxergar a

globalização como determinada, política, econômica, social e culturalmente, pela

ação de poucos sobre muitos.

Para Ulrich Beck, assim como para Octavio Ianni, a globalização dá-se pelo

alto, isto é, configura-se de cima para baixo. Esse é o movimento do globalismo,

tanto no sentido que lhe atribui Beck – de ideologia neoliberal –, quanto naquele

que lhe é imputado por Ianni, mais abrangente – de novo ciclo do capitalismo,

entendido como modo de produção e processo civilizatório. (A esse respeito, cabe

prevenir um possível mal-entendido e esclarecer que o fato de afirmar ser a

globalização configurada de cima para baixo não se confunde com as diferenças

de enfoque eletivo abordadas anteriormente, quando procurei sustentar que Beck

privilegiaria a perspectiva de uma individualização de biografias, enquanto Ianni

tenderia a buscar os processos, relações e estruturas que movem a história,

subsumindo os atores individuais e suas intenções. O que há aqui são apostas, de

ambos os autores, que convergem numa mesma direção: a de que a globalização

dar-se-ia, efetiva ou normativamente, de cima para baixo, consoante hierarquias

de poder e predomínio.) Isso significa dizer que nos processos globais encontram-

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se imbricadas hegemonias e disputas por poder e predomínio, seja do ponto de

vista social ou do econômico, seja do ponto de vista ecológico, jurídico, cultural ou

propriamente político.

1. Trabalho e produção da humanidade

Ianni exorta-nos de que um dos maiores legados de Marx foi a inserção, no

pensamento social moderno, da ideia de que o ser humano é trabalho, seja

material, seja espiritual. “O que constitui o ser humano é trabalho. [...] A ideia de

trabalho não significa só trabalho econômico, o trabalho que se realiza na fábrica,

no escritório ou no campo. Trabalho é atividade material e espiritual” (IANNI, 2011:

147). Beck, por sua vez, chama a atenção para o fato de que a globalização

também é trabalho – na medida em que se dá a partir do trabalho dos

“globalizadores”, dos agentes da globalização da produção que, por sua vez,

pressupõem o trabalho (mais particular) de indivíduos e grupos que não se

encontram em situações de hegemonia econômica, cultural ou política. Nesse

sentido, os mundos do trabalho e da produção apresentam-se como elementos

não só fundamentais na constituição de uma situação de globalização ou de uma

globalidade emergente, como também oferecem uma perspectiva exemplar das

iniquidades existentes e persistentes em nível local e mundial. É assim que

a globalização é trabalho, é o trabalho dos globalizadores. Trabalho que ocorre em um lugar determinado, nas metrópoles por exemplo, que vão adquirindo um ritmo cronológico especial, e essa situação laboral dura 24 horas por dia, sete dias por semana, como mostra o exemplo dos fluxos financeiros. O sol não se põe na terra da globalização. Por outro lado, esse trabalho globalizador pressupõe outros trabalhos locais, a prestação local de serviços – desde o cabeleireiro e os serviços de limpeza e segurança até a consultoria jurídica e financeira. Isso tem de se organizar de forma sedentária, de modo que emerge toda uma rede de atividades locais. E assim vai a coisa. [...] A localidade não adquire significado unicamente na situação laboral, mas também como centro cultural e político, como lugar de participação em um mundo que caiu totalmente no abstrato. Pode-se

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dizer até: a globalização – que afinal nunca deixa os globalizadores globalizados se globalizarem globalmente, mas sempre libera coerções para que em algum momento se volte a pôr os pés no chão, do contrário o processo não prosseguiria – impõe uma nova sociologia do local (BECK, 2000: 184).

Sobre a relação entre trabalho e globalização, é cabível dizer que os

pensamentos de Beck e de Ianni parecem convergir, e talvez possam ser

conjugados da seguinte maneira: se o homem é trabalho, não é difícil perceber

que numa situação de globalização verifica-se também a globalização do trabalho.

O chamado mundo do trabalho apresenta-se às percepções desses autores como

efetivamente global. Isso implica mais que a expansão das dinâmicas da produção

em nível planetário. Significa, para além disso, a emergência de novos quadros

mentais e sociais de referência. É assim que se pode pensar, como Ianni e Beck,

em termos de uma fábrica global, que é simultaneamente produtora e produto de

uma “nova divisão transnacional do trabalho e produção, a transição do fordismo

ao toyotismo e a dinamização do mercado mundial, tudo isso amplamente

favorecido pelas tecnologias eletrônicas, nesse âmbito colocam-se novas formas e

novos significados do trabalho” (IANNI, 1996: 155).

Há, contudo, ao menos uma nuance que diferencia esses pensamentos.

Conquanto observe os cada vez mais planetários movimentos do mundo do

trabalho, Beck não deixa de perceber que esse trabalho “global” e “globalizador”

também pressupõem trabalhos produzidos localmente. Como é de se esperar,

consoante a chave interpretativa que venho propondo, esse trabalho localmente

produzido tão logo revela-se, e especialmente num contexto de globalização, um

trabalho individualmente produzido. É que o advento da globalização provocaria,

na percepção beckiana, uma dissolução das configurações espaciais e temporais

que caracterizavam o trabalho, ao menos desde a Revolução Industrial. O trabalho

que ligava-se preferencialmente à atividade em conjunto, coletivamente articulada,

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torna-se cada vez mais individualizada e menos dependente de sua posição

espacial – isso em função e em razão do próprio sucesso da modernidade

industrial, tecnológica, cibernética, digital, veloz e em processo de intraconexão. É

claro que tais configurações dizem respeito, em grande medida, aos interesses

planetários do capital – que, note-se, também é gerido por um somatório de

relativamente poucos indivíduos62. Mas estes não se realizariam sem aqueles, e

aqui retorna, mais uma vez, a estrutura cognitiva da glocalização, da produção

(dialética) do global nas instâncias da localidade.

Processos econômicos perdem sua fixação local concreta. Com isso, cai por terra uma premissa aparentemente indissolúvel do sistema da sociedade industrial, a saber, a necessidade de se trabalhar em conjunto e em um local [Ort] determinado. Deslocamentos geográficos entre locais de produção enquanto fronteiras de concorrência “naturais” perdem significado. (...)

Com isso, porém, retardam-se e acentuam-se as relações de poder do trabalho e do capital na estrutura espaço-tempo. Pode-se reduzir tais processos à seguinte fórmula: trabalho é algo local, enquanto o capital é global. Essa inclinação sócio-espacial do poder expressa uma diferença de época no predicado organizacional: o capital é coordenado mundialmente, o trabalho é individualizado. O conflito entre interesses de capital diversificados e classes de trabalho virtuais permanece imbricado na antítese entre a lógica sem fronteiras dos fluxos de capital e os horizontes fragmentados de experiência (BECK, 2007 [1999]: 56-57, grifos do autor).

2. Desigualdade e Estratificação

62 “É possível compreender, mais precisamente do que outrora, que há uma desigualdade radical entre as situações dos decision-makers e as daqueles que são afetados por riscos e/ou perigos. Com a virada cosmopolita, torna-se evidente que a distinção entre risco auto-induzido e externo é um ponto crítico cosmopolita, na medida em que a relação entre o conjunto das regiões do mundo entre si pode ser analisado nos termos da externalização de riscos auto-produzidos, isto é, modificando-os em direção a outros. O poderoso produz e lucra a partir dos riscos, ao passo que aquele que não detém poder é afetado no âmago do seu ser pelos ‘efeitos colaterais’ das decisões tomadas por outros” (BECK e GRANDE, 2010: 423, grifos dos autores).

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A globalização do mundo do trabalho produz também efeitos nas estruturas

e estratificações sociais. Tais estratificações são econômicas, sociais, culturais,

mas também políticas. A desigualdade se dá no âmbito das oportunidades, nas

possibilidades de conhecimento, informação e formação, no mercado de consumo,

nas formas de ter e de ser. Se a produção se reorganiza, modificam-se também as

condições para a mobilidade social, horizontal ou vertical. Ora, a posição social do

indivíduo, sua situação na comunidade em que vive, interfere de modo basilar na

sua posição diante da alteridade, frente ao outro ou aos outros que o cercam

(ainda que não estejam fisicamente ao seu lado). Se abordarmos a questão do

ponto de vista dos indivíduos, podemos chegar, pelo caminho inverso, à mesma

observação: na medida em que vivemos e percebemos o mundo a partir de uma

determinada posição, isto é, de uma perspectiva específica, tendemos a julgá-lo a

partir dos ângulos de que dispomos para observá-lo. Seja do ponto de vista do

indivíduo, seja do da comunidade, isso significa dizer que a nossa posição na

sociedade determina, em grande medida, a nossa posição (em sentido amplo)

perante a sociedade. É assim que as novas assimetrias de poder, diversidades de

interesses, demandas e lutas, intenções, sucessos e frustrações configuram um

cenário político diferenciado numa situação de globalização. Nesse sentido,

organizações e movimentos sociais (sejam eles legitimados, temidos, rejeitados,

ignorados, pacíficos, armados, classistas, liberais, conservadores ou

revolucionários), assim como indivíduos e individualidades são reposicionados nas

estruturas de estratificação de mulheres e homens formadas ou reformadas em

escala mundial.

O mesmo processo de amplas proporções que expressa a globalização do capitalismo expressa inclusive a globalização da questão social. É claro que os problemas sociais continuam e continuarão a manifestar-se em formas locais, provincianas, nacionais e regionais. Mas também já é evidente que se manifestam em escala mundial. A dinâmica da nova divisão transnacional do trabalho, compreendendo a dinâmica das forças produtivas e a universalização das instituições que sintetizam as relações capitalistas de produção, tem recriado diferentes aspectos da questão social e, simultaneamente, engendrado novos (IANNI, 1996: 170).

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Desemprego estrutural, discriminação, segregação, assim como a

insurgência e ressurgência de movimentos sociais, isto é, da ação política coletiva

com respeito a demandas determinadas e determinantes, compõem o quadro

político da globalização. Guardam relações de causalidade e efeito, estão

imbricadas e inseridas no quotidiano de indivíduos e grupos, cujos pensamentos e

atos dizem respeito ao local, ao nacional, ao regional e ao mundial. Sim, porque,

como insistem tanto Beck, quanto Ianni, a globalização dá-se não apenas numa

esfera propriamente mundial. A palavra “globalização” esconde, por vezes, as

facetas locais dos processos planetários. Em ambos os autores, essa é uma

dimensão central. As desigualdades sociais agudizam-se com o advento da

globalização, redefinindo suas dimensões, efeitos e origens locais63. É assim que,

observa Beck, chega aos olhos dos habitantes pobres do sul a reviravolta da

política nacional para o que denomina política-mundo interna, ou política interna

mundial (Weltinnenpolitik). Por isso “o fato de que ‘o outro global está no meio de

nós’ – [é] uma assimetria dupla para expressar: eles sofrem ao máximo, mas são

aqueles que menos têm contribuído para o aquecimento global e que menos

podem empreender contra a catástrofe climática” (BECK, 2010: 136, grifos do

autor).

63No fundo, isso diz respeito ao conceito de glocalização, forjado por Roland Robertson (1992). Ele foi mencionado no capítulo 1, e apresentado no capítulo 4, seção I. Mais adiante, no capítulo sexto, apresentarei uma crítica ao uso de tal concepção. Embora ela me pareça importante para pensar a diversidade do alcance dos processos de globalização, dissipando a ilusão de uma globalização unilateral, entendida como expansão do local para o global (ou vice-versa), parece-me insuficiente o tratamento que se dá, frequentemente (e isso inclui até mesmo passagens de Beck e Ianni), à globalização apenas pela métrica espacial.

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V. A Política (re)descoberta e reinventada

A emergência da globalização envolve uma nova configuração da Política

em nível mundial – englobando localidades, o nacional e o regional. Assim, a

Política transforma-se num grande enigma e, ao mesmo tempo, em primorosa

fonte de respostas à globalização. A economia, a cultura, assim como as relações,

processos e estruturas sociais, as normas jurídicas e a novas ligações do homem

com a Natureza (incorporada à sociedade) e com a técnica, todas essas esferas

da sociabilidade implicam consequências ou guardam relações de causalidade

com a Política.

1. As ilusões da Política mundial

Num momento de transformações em escala global (junto, como visto,

àquelas de dimensões individuais, particulares ou locais) impõe-se a necessidade

de redefinir as formas pelas quais percebemos a sociedade: faz-se mister fornecer

respostas à globalização. Em contrapartida, é preciso também reconhecer uma

espécie de efeito colateral nisso tudo – há um conjunto de falsas questões, ilusões

e equívocos que permeiam os estudos globais. Em parte, pode-se dizer que o

grande responsável por essas interferências na inteligência dos fenômenos

globais seja a ideologia empresarial, financeirista e economicista do

neoliberalismo. Mas não só. Há também, nesse processo, o apoio de uma parte

importante da mídia (impressa ou digital), assim como de uma certa literatura que

se pretende científica – em especial no campo dos negócios (ORTIZ, 2006).

Dissipar essa cortina de ilusões é parte, certamente, do trabalho com vistas à

cognição de processos globais. Ambos os autores fizeram isso. No caso de Ianni,

basta recorda-se, por exemplo, das suas observações quando da ocorrência do

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“11 de Setembro”64. Beck, por sua vez, chegou a tipificar weberianamente ao

menos cinco ilusões vitais (Lebenslügen) que confeririam ao nosso tempo a

aparência de uma era apolítica.

A primeira dessas ilusões, segundo Beck, seria precisamente a de uma

globalização apolítica (unpolitisch), isto é, a ideia de que não haveria (e mesmo de

que não pudessem haver) respostas políticas globais às consequências da

globalização. Trata-se, no fundo, de uma espécie de determinismo neoliberal, da

ideia de que não seria possível agir politicamente contra o mercado. Mesmo os

próprios políticos se enxergariam como dirigidos pelos jogos de poder do capital. É

nesse sentido que se tornaria exequível e dominante a postura de uma inocência

apolítica, isto é, da reivindicação de uma isenção de responsabilidade no mundo

da política, na arena dos conflitos, demandas e contingências da sociedade,

acompanhada pela “justificativa” de que o mercado é determinante. É nesse

sentido que se daria uma espécie de mais valia política (politische Mehrwert).

A segunda ilusão seria o engano do nacional. Esta refere-se à crítica

contundente de Beck (note-se, também presente em Ianni) ao denominado

nacionalismo metodológico. Trata-se, como visto anteriormente, de uma tentativa

de chamar a atenção para o fato de que o Estado nacional perde, em enorme

medida, parte de suas prerrogativas. Beck pode, assim, afirmar que haveria um

engano mundial quanto ao nacional, isto é, uma ilusão de que seria possível, na

política interna mundial efetivamente existente, retornar às referências do Estado-

nação. Assim como Ianni, Beck não sustenta, com isso, que o Estado-nação

possa ou vá “desaparecer”. (Como já dito, essa seria uma leitura grosseira dos

autores e do fenômeno. Muito do que se afirma sobre o Estado-nação, na Europa

ou no restante do planeta, pode ser e frequentemente deve ser visto como

apropriado. O mal-entendido se origina quando isso é levado às bases dos

64 Cf. seção III, item 1, no presente capítulo.

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processos – à ideia, por exemplo, de que sem o Estado nacional não há

democracia.) Nessa direção, a análise de Beck sobre a problemática do Estado-

nação no contexto da União Europeia é exemplar.

De acordo com essa lógica nacional-estatal, tem-se que uma Europa pós-nacional precisa ser uma Europa pós-democrática. Isso significa, em contrapartida: quanto mais União Europeia, menos democracia. Essa argumentação é, em uma série de aspectos, falsa [...]. Primeiro, aqueles que fazem sua apologia se esquecem de que o caminho para uma Europa democrática não pode ser idêntico àquele das democracias nacionais. O próprio conceito de democracia precisa, como parâmetro para a União Europeia, ser outro. A União Europeia é constituída por Estados democráticos; não é, porém, um Estado no sentido tradicional. Segundo, com isso, torna-se questionável se os modelos de democracia desenvolvidos para os modernos Estados podem ser transpostos para a União Europeia ou se, para a legitimação democrática da política europeia, outros princípios não podem ser pensados, que não os pós-nacionais. Ambos (o conceito de democracia nacional-estatal não absolutizado e o fato de que a alternativa histórica à democratização da Europa é desconhecida) têm seu fundamento no nostálgico, na mentira do nacional que é absolutizada (BECK, 2010: 141-142).

A terceira mentira ou ilusão da política mundial já foi tratada neste capítulo:

a mentira neoliberal65. Para Beck, o neoliberalismo tornou-se quase um partido

mundial, devido à sua influência dentro dos partidos nacionais e da arena política.

O neoliberalismo não demanda os interesses da economia (em sentido amplo),

mas os substitui e torna-os efetivos valores mundiais.

O quarta engano seria o neo-marxista (die neomarxistische Lebenslüge). O

leitor pode, aqui, perguntar-se se esta não seria uma diferença cabal entre os

pensamentos de Ianni e de Beck. Parece-me que não. Foi com o objetivo de evitar

esse tipo de mal-entendido que procurei destacar o fato de que Ianni sofreu, ao

longo dos anos 1990 em especial, forte oposição por parte importante dos seus

65Recordar seção I, item 1.

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colegas e admiradores marxistas, dentre outras razões, justamente porque

propunha uma análise abrangente das transformações globais em curso,

suspendendo pressupostos “clássicos” das ciências sociais (a começar pelo

próprio Estado nacional)66. É assim que o leitor mais atento vai observar que o

discurso de Ianni dirige-se a um conjunto de intelectuais que, para ele, não se dão

conta dessas transformações.

Para reconhecer essa nova realidade, precisamente no que ela tem de novo, ou desconhecido, torna-se necessário reconhecer que a trama da história não se desenvolve apenas em continuidades, sequências, recorrências. A mesma história adquire movimentos insuspeitados, surpreendentes. [...] De maneira lenta e imperceptível, ou de repente, desaparecem as fronteiras entre os três mundos, modificam-se os significados das noções de países centrais e periféricos, do norte e sul, industrializados e agrários, modernos e arcaicos, ocidentais e orientais. Literalmente, embaralha-se o mapa do mundo, umas vezes parecendo reestruturar-se sob o signo do neoliberalismo, outras parecendo desfazer-se no caos, mas também prenunciando outros horizontes. Tudo se move. A história entra em movimento, em escala monumental, pondo em causa cartografias geopolíticas, blocos e alianças, polarizações ideológicas e interpretações científicas (IANNI, 1996: 11-12).

Retornando à crítica de Beck a um certo neo-marxismo, ou a uma certa

mentira neo-marxista, parece-me que a ideia central seria a de que

não são compreendidas tensões e dissidências [Spannungen und Spaltungen] que arrebentam com a crise financeira no contexto da política mundial no capitalismo global. Refiro-me especialmente à emergência de um novo capitalismo com variedades e variantes da América latina e da Ásia-Pacífico. Isso tem se tornado, cada vez mais, uma alternativa sistêmica à autocracia ocidental decadente, que se iguala, com o triunfo global do neoliberalismo, ao triunfo global do capitalismo.

Por que são [...] uma mentira? Porque fecham os olhos diante de como as crises financeiras e as mudanças climáticas quebraram o feitiço e deslegitimaram o script ocidental da modernidade. A mentira neo-marxista

66 Ver capítulo 3.

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desloca o olhar sobre os fatos centrais da política mundial: o script da modernidade tornou-se contingente – no que diz respeito à ideologia, política, instituições, expectativas de continuidade e, por último, mas não menos importante, também em respeito às perguntas gigantescas e primitivas [Mammutfragen]: “o que é o ‘humano’?” e “o que é ‘Humanidade’?” (BECK, 2010: 145, grifos do autor).

Acredito – e as citações anteriores fundamentam esta interpretação – que

não seja profícua uma tentativa de opor esses autores a partir de uma crítica de

Beck a um tipo de marxismo. Sim, a mentira, no sentido que Beck a atribui, pode

ser vista como neo-marxista, mas isso não quer dizer, evidentemente, que Beck

afirme ser o neo-marxismo, como um todo, uma mentira. No limite, Beck e Ianni,

se não concordam por completo, também estão longe de divergir inteiramente a

esse respeito67.

A quinta e última seria a ilusão tecnocrática. Ela pode ser lida, em certo

sentido, como a mais explicitamente ligada ao senso comum. Este procura

descrever o exagero da atual superelevação da expressão de opiniões,

percepções e experiências políticas. O agente típico-ideal dessa ilusão

corresponde, para Beck, a certos pesquisadores do clima. Eles seriam, para o

autor, “frequentemente idealistas do ponto de vista social e político, porque tomam

todos os seres humanos como pesquisadorezinhos do clima e, em consequência

67 Note-se que, se Beck prefere não tentar compreender a globalização a partir dos movimentos globais do capitalismo, também não deixa de reconhecer o seu “triunfo global” (globaler Sieg). O que tenho procurado mostrar é o caminho usualmente percorrido pela percepção do autor na busca pela inteligência da globalização. Com efeito, tanto nessa quanto nas demais ilusões vitais, o foco está nos equívocos ligados à percepção de indivíduos a respeito dos processos globais. Assim, a crença numa globalização apolítica, a compreensão limitada do papel dos Estados nacionais no mundo contemporâneo, a atribuição de valores políticos aos interesses neoliberais, tal como os desequilíbrios nas formas de lidar com os desenvolvimentos da modernidade (certos “neo-marxistas” que subestimariam o papel das crises financeiras e das mudanças climáticas e, em contrapartida, alguns pesquisadores do clima que, para Beck, os superestimariam), tudo isso envolve preocupações com o modo pelo qual a globalização interfere, opera e é percebida no cotidiano de indivíduos e grupos de indivíduos.

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disso, não podem entender por que seus cálculos apocalípticos não podem

resolver de imediato todos os contra-processos” (BECK, 2010: 147).

2. A Política cosmopolita e reflexiva

A globalização implica (e esse, como visto, é um ponto central para Beck)

uma virada cosmopolita, especialmente em termos políticos. Há uma nova gama

de perspectivas políticas envolvendo os indivíduos, que experimentariam e

experienciariam a dissolução das fronteiras do mundo. Essas novas formas

políticas causam conflitos, e também integração. São novas as formas de relação

entre o capital e o Estado, uma vez que há atores econômicos mais poderosos

que Estados no regime global. “No entanto, se temos que a economia global não

pode operar politicamente, ela permanece dependente dos Estados. Isso pode

empurrar estes últimos para submeter uma ‘auto-transformação’ através da

subpolítica global do fluxo do capital, sem um mandato democrático e em violação

aberta da solidariedade nacional” (BECK, 2004: 83-84, grifos do autor). São novas

as relações entre trabalho e capital, como visto, assim como há novas relações

entre Estados, entre Estado e organizações não-governamentais e organizações

internacionais, entre grupos transnacionais e Estados, e também relações entre

maiorias e minorias. Com isso, Beck procura mostrar que, naquilo que entende

como uma factualidade emergente de cosmopolitização, o Estado-nação não

desaparece. O papel de uma perspectiva (metodológica) cosmopolita seria, nesse

sentido, também o de investigar que elementos se encontrariam ainda amarrados

às categorias do Estado nacional.

O leitor já conhece a minha posição crítica quanto a essa perspectiva

cosmopolita, como proposta por Beck68. Tenho a impressão de que ela se trata,

68 Cf. capítulo 4, seção II.

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ainda que Beck se esforce para mostrar o contrário, de um modelo demasiado

normativo, que trata os reais atores (entendidos como instituições e indivíduos),

bem como relações e processos globais, como fatores que compõem

possibilidades de cosmopolitização aparentemente mais europeias que mundiais.

Sim, o cosmopolitismo metodológico é apenas uma dentre muitas possibilidades

imagináveis para se captar os desenvolvimentos dos processos de globalização.

Além dos aspectos mostrados no capítulo quarto, vale a pena observar, no

entanto, que um modelo de análise cosmopolita como o proposto por Beck permite

a ele vislumbrar de modo heurístico a questão da ordem política mundial. É desse

modo que se pode dizer que a expansão dos direitos humanos, por exemplo, e

das lutas sangrentas e constantes que a ele se encontram ligadas, permite-nos

perceber não somente a submissão do Estado nacional a outras dimensões

políticas numa situação de globalização e a elevação (ainda que não de maneira

unívoca) da posição dos indivíduos, mas também o caráter meta-político, reflexivo,

da globalização. É que, em certo sentido, globalização envolve, para além de

questões referentes ao avanço da técnica e o progresso, do reconhecimento do

sucesso da (primeira) modernidade, também o retorno à noção de Humanidade.

Se, para Ianni, a formação de uma sociedade global pode ser vista, creio, como

correspondente à constituição de uma sociedade humana, para Beck a

conscientização de cada ser humano daquilo que pode entender por sua

“humanidade” (atributo) é o que engendra uma Humanidade (substantivo)

contemporânea, que preenche uma Cosmópolis global, reivindicando

prerrogativas e direitos, numa sociedade mundialmente reflexiva.

Nesse sentido, é possível pensar em uma lei civil global que não dependa e

não se submeta aos códigos legais produzidos nos espaços público-jurídicos

nacionais, ainda que se relacione com eles. Os direitos humanos podem, assim,

ser vistos, não somente como uma evidência da divisão e das diversidades no

mundo: representariam também uma fonte de possibilidades de ação e mudança

em escalas global e local.

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O modelo alternativo de ordem global, a Cosmópolis global, assenta-se sobre o princípio contrastante da igualdade entre Estados e, de acordo com isso, enfatiza a importância da lei (civil) global, ainda que contra a hegemonia global. A Cosmópolis global deveria ser realizada degrau por degrau através de uma reforma correspondente da lei internacional e da organização internacional, em particular, as Nações Unidas, de acordo com os princípios de um regime cosmopolita que se assenta no reconhecimento da diferença dos outros e, em particular, no reconhecimento das modernidades múltiplas. Uma lei global teria de ser formulada considerando possibilidades contratualmente reguladas para consulta de alianças continentais e sua obrigação para com o ato que concerne. Incluiria, por exemplo, algo semelhante ao veto livre das Nações Unidas, o qual poderia funcionar como um parlamento global equipado com um exército permanente para propósitos de manutenção da paz e capaz de impor o desarmamento mundialmente (BECK, 2004: 134).

A ideia de um direito cosmopolita, assim como a concepção de uma

democracia cosmopolita não podem ser pensadas, na obra de Beck, sem que se

observe a noção de reflexividade. O raciocínio pode ser colocado da seguinte

maneira. Juntamente com a experiência (simultaneamente mundial e local) da

sociedade civil e, em especial, dos indivíduos que a compõem, a democracia

cosmopolita pode ser vista, para Beck, como fundada igualmente na afirmação e

luta por direitos elementares de validade transnacional – em certo sentido, esse

pode ser o caso dos direitos humanos que, ao menos em princípio, não se dirigem

a instituições estatais específicas. Essa ideia (também kantiana) fundamenta-se

na suposição (ou na esperança) de que esses direitos elementares logrem possuir

validade mundial. Esse é o objetivo maior dessa concepção e, simultaneamente, o

seu maior problema. É que a garantia de direitos pressupõe, historicamente, a

ação de uma instituição que detenha as condições dessa prerrogativa –

frequentemente, como ensinava Weber, a partir do monopólio do uso da força

física, da violência. É nesse sentido que afirmo ser a reflexividade e a

individualização fenômenos ou forças fundamentais no pensamento beckiano para

compreender esses processos. Beck aposta não numa solução internacionalista,

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vista logicamente como pouco provável num contexto de globalização, tampouco

num retorno à primazia do Estado como instituição soberana nas sociedades

nacionais à moda antiga. A aposta de Beck é no modelo cosmopolita. Para ele, as

soluções e as respostas não são e não serão encontradas em consensos, sejam

eles inter ou transestatais (ou mesmo transculturais). A solução deveria então

residir muito mais em acordos e procedimentos de cooperação, assegurados pela

dependência dessa cooperação.

3. Globalização e processo civilizatório

Dimensões jurídicas e políticas, assim como sociais, econômicas e

culturais, envolvem e presumem, para Ianni, o reconhecimento de que na

sociedade global abrem-se novas condições de possibilidade para a civilização. É

que, como dito, o globalismo ianniano é entendido como uma configuração do

capitalismo e, assim, como um modo de produção e um processo civilizatório de

proporções mundiais. Nesse contexto, para Ianni, a Política não apenas se

redefine, mas também realoca-se como uma esfera basilar na sociedade global

em formação. Como Beck, Ianni reconhece que a Política situa-se acima das

prerrogativas do Estado nacional, que perde muito de sua soberania, de sua

influência e ação hegemônicas. No seu entendimento, enquanto a sociedade civil

estaria submetida a um jogo de forças sociais mais restritas, locais, internas, o

Estado nacional estaria determinado pelo jogo de forças que opera em maior

escala, transnacionalmente, no âmbito das estruturas mundiais de poder. Ainda

que pareça consistir numa tipificação (ideal), tal distinção permite evidenciar um

fenômeno político que é parte fundamental das transformações políticas que

surgem com a globalização: a sociedade civil divorcia-se do Estado, há um hiato

crescente e cada vez mais evidente que os separa. As categorias políticas

fundadas no Estado nacional (e isso inclui a própria sociedade civil burguesa)

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transformam-se e se redefinem, desafiadas pelos dilemas globais do novo palco

da história, o globalismo ianniano. Este é, para Ianni, o quadro de uma crise

generalizada do Estado nacional como instituição que é fundada pela sociedade,

mas que também atua como fundadora desta.

Se a capacidade decisória do Estado está em causa, enfraquecida ou, ao

menos, reorientada pela transnacionalização da economia, temos um problema

não só de soberania nacional, mas também de hegemonia.

Sim, a constituição de hegemonias conflitantes, alternativas ou sucessivas pode ser um requisito essencial da dialética sociedade civil e Estado. E sem hegemonia fica difícil pensar não só em soberania nacional, mas também em democracia, mesmo que apenas política.

Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modalidades de expressão e realização, tem estado cada vez mais sob o controle das organizações multilaterais e das corporações transnacionais. Essas instituições habitualmente detêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes de se sobrepor e impor aos mais diferentes Estados nacionais. Por meio de sua influência sobre governos ou por dentro dos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias estabelecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem às sociedades civis, no que se refere a políticas econômico-financeiras, de transporte, de habitação, saúde, educação, meio ambiente e outros setores da vida social nacional. Nesse sentido é que as condições e possibilidades de construção e exercício da hegemonia podem ser decisivamente influenciadas pelas exigências da globalização, expressa na atuação das organizações multilaterais e das corporações transnacionais. [...] Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da política. Ainda que se continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tanto quanto de nacionalismo e Estado-nação, modificaram-se radicalmente as condições “clássicas” dessas categorias, no que se refere às suas significações práticas e teóricas (IANNI, 2011: 227-228, grifos do autor).

Essa mudança no locus da hegemonia política é percebida por Ianni

através do olhar sobre o papel da mídia no mundo contemporâneo, que se

apresenta cada vez mais intensificado, sobretudo por meio do desenvolvimento da

internet e ampliação do acesso a ela. Ainda que não seja, a meu ver, um ponto

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basilar na composição de sua análise sobre o advento da globalização, é curioso

observar como Ianni constrói a noção de “príncipe eletrônico”. Trata-se da

ressignificação de uma ressignificação. Note-se que o príncipe eletrônico é o

príncipe de Maquiavel (1513), revestido dos contornos que lhe atribui Gramsci

(1949). Na concepção de Ianni, a mídia poderia ser vista como o grande

intelectual orgânico das diversas formas de poder vigentes no mundo

contemporâneo, na tentativa de expressar a realidade virtual com a qual nos

deparamos, e na qual se transformam imagens e visões de mundo, assim como

informações, interpretações, opiniões e induções, sem esquecer da publicidade,

do consumo e do consumismo e suas ilusões.

Muito do que é a política revela-se espetáculo, entretenimento, consumismo, publicidade. Grande parte das linguagens das instituições políticas “clássicas” da modernidade dissolve-se, transforma-se ou simplesmente anula-se no âmbito das linguagens televisivas. Modificam-se ou apagam-se territórios e fronteiras, atropelando problemas fundamentais e curiosidades, política e novela, democracia e tirania, de par em par com realidade e virtualidade.

Nesse mundo virtual criado por meio da manipulação de tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, forma-se a mais vasta multidão solitária. [...] O príncipe eletrônico é o arquiteto do ágora eletrônico, no qual todos estão representados, refletidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivência nem da experiência. Aí, as identidades, alteridades e diversidades não precisam desdobrar-se em desigualdades, tensões, contradições, transformações. Aí, tudo se espetaculiza e estetiza, de modo a recriar, dissolver, acentuar e transfigurar tudo o que pode ser inquietante, problemático, aflitivo.

Se queremos compreender a crescente importância das eletrônicas, informáticas e cibernéticas, no mundo da mídia, o que é fundamental para compreendermos a crescente importância da mídia em todas as esferas da sociedade nacional e mundial, é importante começarmos pelo reconhecimento de que o século XX está profundamente impregnado, organizado e dinamizado por técnicas sociais. São inúmeras as inovações tecnológicas que adquirem o significado de poderosas e influentes técnicas sociais (IANNI, 1999: 19-20, grifos do autor).

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4. Politização, Despolitização e Repolitização: Mod ernidade e

Reencantamento do Mundo

As tentativas de cognição de processos planetários por vezes envolvem

reflexões aparentemente paradoxais. Mas isso não significa que elas sejam

negativas ou desestimulantes necessariamente. Ocorre que os fatores

responsáveis por asfixiar a sociabilidade em nível global também podem ser

aqueles que têm o poder de engendrar as condições e possibilidades para a

superação dessas tensões. Como vimos, a violência e a barbárie, assim como o

risco e o terrorismo também podem ser vistos, de um ponto de vista sociológico,

como fenômenos através dos quais podemos perceber uma realocação das

experiências políticas em nível mundial. Na mesma linha de raciocínio, o

totalitarismo de que nos fala Ianni é uma prática, uma cultura, mas também uma

ideologia, gerada pela organização sistêmica capitalista, que aprofunda abismos

sociais em nível mundial. A Política, nesses termos, é compreendida como fonte

de agruras em escala planetária. No entanto, ao mergulharem no mar de horrores

que aparenta ser a contemporaneidade, tanto Ianni quanto Beck parecem

esforçar-se para encontrar, nesse mesmo ambiente, centelhas de esperança.

Note-se que o modo pelo qual observam-se as questões é necessariamente

arbitrário. Com efeito, vislumbrar caminhos ou imaginar possibilidades de

reinvenção ou redescoberta da Política no mundo contemporâneo não é

obrigatoriamente uma característica do trabalho intelectual envolvido: é uma

questão de vontade.

Este é o desafio mais fundamental, posto pelo novo ciclo de globalização do capitalismo: reafirma-se a historicidade do capitalismo e cria-se o desafio de interpretar e realizar tanto as suas potencialidades como as suas negatividades, tendo-se em conta os seus dinamismos e as suas

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contradições. O mesmo êxito do neoliberalismo, como teoria, prática e ideologia da globalização do capitalismo, engendra novos surtos de fascismo, nazismo ou nazi-fascismo e inclusive surtos de social democracia; mas engendrando principalmente as condições e as possibilidades do neo-socialismo com suas implicações teóricas, práticas, ideológicas e utópicas. São ideias e práticas que se fermentam e fertilizam no âmbito do globalismo, recriando ou inovando muito do que se havia criado sob o signo do nacionalismo (IANNI, 2004: 29-30).

Do mesmo modo, em Beck, o perigo gera, em contrapartida, contra-poderes

(Gegenmächte) que se relacionam com as chances ou oportunidades de novos

comportamentos e redes sociais, que se apoderam das iniciativas. Trata-se de

uma atividade política subversiva, de uma espécie de sub-política (como

denomina Beck) que se fundamenta na crescente subjetividade advinda dos

processos de individualização. É como se as novas redes e comportamentos

sociais atuassem em lugar dos antigos partidos políticos estabelecidos outrora,

posicionando-se contra a oposição cerrada desta ignorância institucionalizada dos

grupos que se formaram no cenário contemporâneo das disputas políticas. Desse

modo, “os temas que estão agora em todas as bocas não são a presbiopia dos

governantes, nem derivam dos debates parlamentares – já não derivam,

certamente, das catedrais do poder em economia, ciência e Estado. A subversão

democrática ganhou uma vitória temática improvável” (BECK, 2006: 90).

Numa situação de globalização a Política apresenta-se para ambos os

autores de modo paradoxal. Por um lado, ela é fruto da modernidade, da

reflexividade, consciência, ciência e progresso técnico, desencantamento do

mundo. Advém do sucesso das conquistas dessa modernidade e da expansão do

capitalismo em nível planetário. Por outro lado, é também um minadouro de

emoções, ilusões e descobertas, imaginação e revolução. De certo modo, a

Política também pode ser vista como parte de um processo de reencantamento do

mundo. O que quero propor com isso é ideia de que precisamente aqui as teorias

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de Ianni e Beck convergem. Creio que, se é possível afirmar que tanto Ianni

quanto Beck se posicionam, corajosamente, na mira da crítica à “utopia” ou à

“normatividade”, é, contudo, fascinante pensar que exatamente neste ponto

também parece estar uma das grandes contribuições dos autores para o debate

sobre o tema: a esperança. Ora, o leitor possivelmente notou que estudar o

fenômeno da globalização significa também lançar um olhar para o futuro. É nesse

sentido que Ianni (2004) falava de uma “sociologia do futuro” e também Beck

(1997), à maneira da ironia germânica, chega a propor um exercício (necessário)

de “adivinhação” (comparável, humoristicamente, aos da cigana Cassandra: eine

kassandrierische Fingerübung)69, na tentativa de imaginar o que poderá ocorrer,

caso nada aconteça politicamente, caso vençam o fatalismo pós-moderno ou o

globalismo neoliberal logre converter-se em profecia auto-realizadora. Eis o

quadro imaginado, narrado do futuro, no presente.

Os neoliberais triunfaram. Inclusive sobre si próprios. O Estado nacional foi reorganizado. O Estado social são Estados em ruínas. No entanto, não impera a não-ordem. No lugar das construções do poder e do direito dos atores do Estado nacional estão diversas, ambíguas associações de poder, que se isolam e se combatem. Em meio a isso tudo existem zonas de terras de ninguém, jurídica e normativamente. […] Ao lado disso, há parques e áreas de preservação da natureza que são mantidas e protegidas sob violência armada por militantes ecológicos [Grünen] (conhecidos como os “vírus terroristas”). […] Quem põe os pés nos metrôs que ainda circulam, sinaliza que ele próprio expõe-se, por livre vontade, a ser assaltado. Pois que aqui o fato de ser assaltado corresponde a uma auto-acusação [Selbstklage]. A regra estabelece: os assaltados são, na condição de assaltados, eles próprios culpados.

Entre esses territórios, delimitados confusamente, de empresas reunidas, associações, cartéis de drogas, exércitos de salvação, militantes naturalistas, sociedades de ciclistas e oportunidades de se permitir roubar

69 O método expositivo de Ulrich Beck envolve, de um modo geral, a construção de cenários esquemáticos e pluridimensionais. A exploração dessas figurações hipotéticas permite-lhe expor as incongruências ainda latentes ou discretamente manifestas nos fenômenos, apontando tendências e estratégias de ação para o futuro. A especificidade da passagem exposta acima está, creio, destacada por meio da expressão Fingerübung – uma “adivinhação” feiticeira –, que revela uma parcial dificuldade de percepção dos caminhos possíveis à humanidade.

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livremente – talvez porque o terapeuta avalie essa experiência pessoal como indispensável à formação da personalidade – há somente ainda uma lembrança distante daquele altivo Estados nacional, pelo qual pessoas, aos milhões, de todos os lados, destacaram-se ou foram atingidos e explodiram pelos ares. Estados representam interesses particulares de interessados particulares (BECK, 1997: 266-268, grifos do autor).

O tom é evidentemente irônico, quando não humorístico, de uma catástrofe

possível, mas certamente não desejável – porquanto ninguém escreve sobre a

catástrofe quando realmente espera por ela. Dito de outro modo, a intenção é

sempre exortar a todos de que ela é plausível, mas com o fim de evitá-la. No

fundo, é possível que Ianni e Beck descrevam uma esperança ou uma aposta em

comum, ainda que de maneiras claramente distintas. Se examinamos a obra de

Ianni com atenção, torna-se perceptível o fato de que seus escritos também

constituem exercícios de observação esperançosa do devir.

Para muitos, a humanidade pode existir, ou já existe, como o reino da liberdade, igualdade, fraternidade, reino esse no qual prevalece o governo do povo, para o povo e pelo povo. Aí não há humilhados e ofendidos, famélicos da terra, los de bajo, multidões perigosas, servos, escravos, fugitivos, banidos, vítimas da violência do terrorismo de Estado – compreendendo crianças, mulheres, negros, nativos, colonizados, árabes, asiáticos, latino-americanos, europeus e norte-americanos.

São muitos, a grande maioria, os que querem algum tipo de comunidade, na qual se realiza a humanidade. É como se fosse a realização do futuro. Depois de muitas andanças, já não se almeja a não ser a vida sem carências, a plena transparência. Um mundo sem alienados nem alienações, plural, múltiplo, colorido, sonoro, vivo, em movimento, como se estivesse nascendo novamente (IANNI, 2011: 398, grifos do autor).

Com efeito, ambos os autores percebem, cada qual a seu modo, um novo

conjunto de oportunidades e visões, imaginações e ações, que emerge no mundo

contemporâneo em processo de globalização. E uma sociologia de suas

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sociologias permite notar que esses elementos se ressignificam em seus

pensamentos como uma promessa de futuro, uma aposta política na humanidade,

experienciada por todos e por cada um.

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Capítulo VI

Heranças e Horizontes

Perspectivas de um debate

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Da minha aldeia vejo quando da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura...

Fernando Pessoa70

(In)conclusão

Ao longo dessa dissertação, analisei alguns dos aspectos basilares das

teorias de Ianni e de Beck, individual e em contraponto, procurando pôr em relevo

os elementos que me pareceram mais significativas para investigar o modo pelo

qual ambos procuram compreender a atual situação de globalização. Mas talvez o

leitor se recorde daquilo que afirmei, ainda no princípio do primeiro capítulo: uma

reflexão a respeito da globalização faz pouco sentido se desmembrada dos

diversos modos pelos quais o tema tem sido problematizado nas ciências sociais

mundialmente, isto é, do debate “global” sobre a globalização. É claro que não

podemos alimentar a ilusão de que esse debate ocorra de maneira homogênea,

simétrica, independente de configurações de poder e hegemonia no jogo das

linhas de força que envolvem a globalização (por isso as aspas, propositais). Sim,

parece-me importante considerar que a cognição de processos de globalização

pressupõe o diálogo com uma gama de visões sobre o tema, visões estas que são

diversas e são produzidas nos muitos cantos do mundo. Precisamente aqui esse

estudo pode ter alguma relevância como análise crítica original de duas

importantes contribuições, tendo em vista a própria cognoscibilidade da

globalização enquanto um objeto sociológico. É que, com o amadurecimento do

debate sobre a globalização, surge a necessidade de retomar questões propostas

anteriormente, no decorrer de um debate de dimensões planetárias.

Procurei sustentar que as interpretações da atual situação de globalização

dificilmente poderiam ser vistas como completamente integrativas ou totais, como

70Fernando Pessoa (1925), Poemas Completos de Alberto Caeiro.

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propunha Ianni; tampouco podem contar com uma colaboração jurídico-normativa,

que engendraria, se exequível fosse, uma ordem global compreensível, nos

moldes pensados por Beck. O leitor talvez se pergunte, então, por que razão

dediquei tantas páginas ao estudo de dois autores, cujas propostas não me

parecem inteiramente suficientes. Ora, ciências não são feitas de contribuições

definitivas, não existe o “100%”. Nesse sentido, à medida que procuramos apontar

(pretensos) equívocos ou insuficiências, contribuímos precisamente através do

esforço no sentido de reunir as contribuições mais representativas desses autores,

o que de certo modo as corrobora, fortalece, divulga e consolida. Na verdade,

seria uma estupidez estudar trabalhos que não fossem relevantes. Dito de outro

modo, parece pouco frutífero estudar um autor para “acreditar” no que ele propõe

ou para simplesmente assimilar suas orientações. Ao contrário, estuda-se um

autor para, com ele, aprender a pensar, percorrendo trilhas de memória,

pensamento e sensibilidade que proporcionam a chance para desenvolver as

habilidades (ou, ao menos, parte das habilidades) necessárias para a cognição

dos processos e fenômenos que se nos apresentam como desafios no mundo

contemporâneo.

Neste capítulo final, a intenção é reajustar o foco analítico ao debate como

um todo e a alguns de seus aspectos teórico-metodológicos. Parto, naturalmente,

das contribuições com as quais o leitor já está familiarizado, mas o tom é (ainda

mais) autoral, na medida em que procuro também propor reflexões que dizem

respeito à inteligência da globalização de um modo geral, que retomam, mas

também transcendem as contribuições de Ianni e de Beck. Primeiro, faço algumas

observações de cunho metodológico, detendo-me, em especial, na questão das

estratégias de captação de fenômenos e processos de alcance mundial (I). Em

seguida, retomo algumas das “ilusões” epistemológicas que se produzem e

reproduzem em escala mundial, elaborando rápidas reflexões sobre temas que se

apresentam como promissores para pensar tanto os trabalhos de Ianni e Beck

quanto (e sobretudo) os desdobramentos mais recentes do debate. Aqui reflito

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sobre a diferenciação entre duas dimensões da realidade, isto é, entre uma

realidade universal, ideal, e uma realidade descritiva, efetiva ou propriamente

global; a concepção da globalização como ruptura; bem como a reconstrução

categórica da ideia de sociedade (II). Nesse sentido, volto à reflexão – talvez

aparentemente insignificante, mas fundamental – a respeito do papel da palavra

na inteligência da globalização. Mais especificamente, procuro apresentar uma

posição reflexiva sobre a importância metodológica das metáforas nos estudos

globais (III).

I. O problema da abrangência

Há uma tônica geral que permeia todo o debate sobre a globalização: a

ideia de que os estudos globais devam ser abrangentes e integrativos. Essa é,

creio, uma intenção necessária. Afinal, sem ela talvez não houvesse estudos

globais, nem fosse possível constituir “o mundo” como objeto científico. Essa

perspectiva implica, porém, ao menos duas dificuldades teórico-metodológicas.

Primeiramente, criou-se uma falsa impressão de que os fenômenos globais

se dariam “globalmente”. Contra isso, há o célebre conceito de “glocalização”,

apresentado anteriormente. Ele foi forjado por Roland Robertson (1992) com

intuito de sublinhar o fato de que o local e o global não deveriam ser vistos como

dimensões excludentes, mas sim como partes um do outro; desde Robertson,

tenta-se, com isso, evidenciar que muito do que é global dá-se localmente, e que o

local é também um aspecto do global. Embora esse seja um insight precioso, os

desdobramentos dessa perspectiva “glocal” – muito presentes, note-se, nas obras

de Ianni e principalmente de Beck – parecem implicar uma insuficiência analítica

na medida em que induzem uma submissão dos complexos fenômenos e

processos globais à métrica do espaço. Nesse sentido, um autor como Helmuth

Berking observa que situar o global em oposição ao local, ao nacional ou ao

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regional é analiticamente pouco profícuo. Não faz sentido que estes sejam, em

última análise, pensados a partir da categoria do territorial, enquanto aquele é

pensado quase exclusivamente em termos de desterritorialização. A formulação,

embora aparentemente simples quando reconstruída desse modo, expressa o

caminho trilhado por parte significativa das teorias da globalização: “tipicamente

'sociedade' e o nacional, assim como 'mundo' e a métrica global, são, de alguma

forma, soldados nas teorias da globalização” (BERKING, 2008: 133, grifos do

autor).

Uma segunda implicação dessa tendência à busca pela abrangência

analítica é a impressão – não menos questionável – de que a globalização não

passaria de um discurso ou de uma perspectiva discursiva. Essa ideia assenta-se

no pensamento de que a globalização, estando além da capacidade humana de

investigação e entendimento, deva ser entendida de forma meramente modal, isto

é, como uma maneira de enfocar a realidade, uma perspectiva discursiva ou

analítica, como proposto por Therborn (2001) e, até mesmo, pelo próprio Berking

(2002), quando trata a globalização nos termos da emergência de um “discurso de

globalização” (Globalisierungsdiskurs). Do ponto de vista sociológico, pode-se

dizer que haja, de fato, diversos discursos de globalização, e também sobre a

globalização (sim, porque são diferentes). No entanto, parece-me ilusório acreditar

que a globalização seja produzida fundamentalmente por “discursos

globalizantes”.

Parece preferível compreender a globalização, antes, e para além dessas

formulações, como um fenômeno da realidade empírica, envolvendo processos,

estruturas e relações sociais dessemelhantes, assimétricos e diversos. Nesse

sentido, é importante ter clareza de que as categorias sociais de tempo e espaço

dificilmente constituem-se como realidades a priori71, mas expressam marcos

71 Com efeito, Kant (1787) concebia tempo (Zeit) e espaço (Raum) como formas a priori – o primeiro concebido enquanto forma a priori da sensibilidade e o segundo, enquanto condição de

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estabelecidos historicamente pelo patrimônio cognitivo da humanidade e

assumidos pelo pensamento sociológico. Numa situação de globalização, parece-

me mais profícuo buscar investigar as relações, processos e estruturas que

envolvem, engendram ou coexistem com esses marcos categóricos que estão em

constante modificação, (re)configuração, e mesmo desaparecimento.

Mas há, aqui, um porém. Reconhecer que a perspectiva do discurso não é

determinante, não significa rejeitar o fato de que ela seja, em certa medida,

bastante frutífera. Muito ao contrário. O discurso pode ser uma excelente fonte

para a percepção de processos globais, um fenômeno heurístico exemplar. Trata-

se apenas de separar o joio do trigo, ou seja, de distinguir entre uma estratégia de

investigação, e um motor que desencadeie ou determine por princípio a produção

da globalização. Aqui é possível aludir a uma célebre aula inaugural de história

dos sistemas de pensamento, na qual Michel Foucault afirma que o discurso

produz a verdade (FOUCAULT: 1970)72. Isso significa que, malgrado não esteja

comprometido com a verdade (lembremo-nos de que se trata de um texto

filosófico), o discurso privilegiaria certos enunciados, marginalizando outros, em

contrapartida. Nessa concepção, o fundamental não seria nem a verdade, nem

aquilo que compõe esse discurso, isto é, sua substância, mas sim as suas

posições em meio às tensões sociais. Do ponto de vista sociológico, ainda que a

globalização não pareça ser cognoscível enquanto um mero produto do discurso,

a investigação das dimensões discursivas dos fenômenos e processos globais

possibilidade da experiência. Para um interesse propriamente sociológico, no entanto, dificilmente se poderia tratar o tempo e o espaço enquanto formas anteriores à experiência (Erfahrung). Em lugar disso, parece preferível observá-los como categorias cognoscíveis a partir da história, entendida como uma experiência possível.

72 Essa noção aproxima-se da proposta de que gueroultiana de que ideias (expressas em palavras e vivas no pensamento suscitado por elas) instituiriam uma realidade. (Recordar o capítulo segundo, item III.) Ao recuperar o discurso foucaultiano, o foco é redirecionado às formas discursivas em sentido amplo. Afinal, o objetivo aqui é observar também pensamentos provocados espontaneamente pelos fenômenos globais, e não apenas sistemas de cognição edificados com rigor.

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pode ser um importante minadouro de aspectos heurísticos, através dos quais é

possível perceber, atravessando-se a estrutura e o corpo do discurso, as diversas

tensões sociais dentro das quais se situam os enunciados, sejam eles

privilegiados ou marginalizados, desvendando, assim, o que está na origem das

aparências.

1. Teoria sociológica ou diagnóstico social? Um rac iocínio de

entremeio

Se a globalização não deveria ser vista apenas como uma realidade

discursiva, nem produzida diretamente por algo dessa natureza, ela suscita, com

efeito, discursos sobre si própria, elaborados e enunciados em meio às suas

dinâmicas. Ora, a presença de discursos provocados pela globalização abarca,

ainda que não unicamente, as tentativas de cognição do próprio fenômeno. E a

observação desse fato pode conduzir, por sua vez, a um questionamento –

discreto e que costuma permanecer intocado nos trabalhos sobre processos

globais – a respeito do status da escrita sociológica sobre globalização.

O leitor atento talvez tenha se dado conta de que tive o cuidado de evitar,

no mais das vezes, o uso da expressão “teoria(s) da globalização”. Ela é frequente

nos panoramas do debate, os próprios autores de que tratei aqui mais

detidamente utilizam-na em seus textos sem maiores justificativas, e eu mesmo a

empreguei diversas vezes nas fases mais iniciais das pesquisas que originaram

esta dissertação. Mas, aos poucos, pareceu-me inapropriado tratar a maior parte

dos trabalhos sobre a globalização em termos de “teorias”, tomando a palavra

num sentido rigoroso.

Tendo em vista que o mundo é um objeto cujas dimensões superam

quaisquer pretensões de compreensão total, a inteligência da globalização implica

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hipóteses sobre o imperscrutável, apostas no alcance da imaginação. Afinal, é

pouco provável que se possa captar, de fato, “o funcionamento” do mundo,

tampouco sua estrutura (no singular). Diante dessas dificuldades, uma saída é a

busca, ainda que nem sempre bem-sucedida, de elementos através dos quais se

consiga perceber algumas de suas dinâmicas. Esse é, com efeito, um exercício

teórico – malgrado sequer seja possível saber, de fato, se tais elementos contam

efetivamente entre os mais decisivos em um dado recorte da questão. Porém, se o

que está em jogo é o status dessa prática, será que exercícios teóricos como

esses são suficientes para caracterizar teorias? Dito de outra maneira: tendo em

vista o tipo de trabalho intelectual predominante no campo da sociologia da

globalização, pode-se falar, de fato, em teorias da globalização? Ou será que tais

trabalhos deveriam ser preferencialmente entendidos como cenários construídos

de forma sociologicamente significativa?

Ora, a ambas as questões é possível responder, e com boa margem de

acerto, sim e não.

Para refletir sobre esse aspecto, cabe propor um contraponto. Vale recordar

que, ao menos desde Robert K. Merton (1949, 1968) é possível trabalhar com a

ideia de que teorias sociais não sejam necessariamente universais, nem destinem-

se impreterivelmente à explicação de fenômenos de longo alcance. Para ele,

haveria dois planos interconectados, por sobre os quais se poderia avançar: de

um lado, um plano de teorias especiais (special theories), isto é, mais particulares,

das quais se poderiam retirar hipóteses empiricamente verificáveis; de outro, um

plano que envolveria um progressivo avanço na direção de um sistema conceitual

mais geral e adequado à consolidação de grupos formados por aquelas teorias

mais específicas. De modo muito sucinto, essa é a noção mertoniana de teorias

de médio alcance (middle range theory)73. Note-se que um raciocínio como esse,

73 Para uma visão geral sobre as teorias de médio alcance, ver também Boudon (1991).

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se aplicado às tentativas de inteligência de globalização, ajuda-nos a perceber

parte do seu caráter. Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, os principais

trabalhos no âmbito da sociologia da globalização, embora abordem “o mundo”,

dirigem-se, não obstante, a certos interlocutores ao enunciarem suas proposições,

partindo de contextos histórico-sociais e campos intelectuais também específicos.

De algum modo, se talvez não se deva falar de modo completamente adequado

em uma teoria ianniana (ou beckiana, robertsoniana, luhmanniana, wallersteiniana

etc.) da globalização, seria possível, em contrapartida, afirmar que cada uma

dessas tentativas de cognição do fenômeno, com seus limites, e também achados

intelectuais, ajuda a compor um quadro maior, dinâmico e ricamente diversificado

de contribuições que pode, este sim, ser identificado, ainda que num sentido

estrito, como um campo teórico abrangente. Dessa perspectiva, mesmo que seja

insuficiente conceber uma contribuição determinada em termos de “uma teoria” da

condição planetária, parece razoável referir-se a um conjunto de contribuições

como teorias (no plural) da globalização.

Ainda outra maneira de observar essa mesma questão é alocando as

tentativas de inteligência da globalização à posição de raciocínios de entremeio74.

Através dessa ideia é possível concebê-los como construções situadas entre a

aposta teórica e o diagnóstico de conjuntura social. (Note-se que, ao tratar a

questão em outros termos, não contradigo o observado no parágrafo anterior.) Se

nem Beck, nem Ianni – e talvez nenhum outro estudioso da problemática da

globalização – lograram elaborar uma teoria coesa e abrangente que de fato

explique satisfatoriamente o fenômeno da globalização em sua (ao menos quase)

totalidade, em contrapartida dificilmente se poderia afirmar que seus escritos não

possuam valor teórico, que não contribuam para a inteligência das novas

configurações da sociabilidade. Não obstante, a despeito das preocupações por

74Retiro a ideia de raciocínio de entremeio de Passeron (2005), tal como o fez Ortiz (2008). Ela será novamente utilizada na seção II, item 1 deste capítulo.

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vezes demasiado abrangentes (teóricas, em certo sentido), tais escritos podem

também ser vistos como verdadeiros relatos de história contemporânea, que

buscam identificar seus momentos marcantes, suas dimensões centrais,

chegando até mesmo ao arriscado exercício da previsão. “Prever para prover”,

diria Ianni, ou arriscar-se a “adivinhar o futuro”, talvez dissesse Beck, com base

nas tendências identificadas no hoje conjugam-se com investidas teóricas em

ambos os trabalhos.

Esse caráter intermediário dificulta, por um lado, o trabalho de uma

sociologia dessas sociologias, na medida em que torna pouco específico o caráter

dos escritos. No entanto, essa mesma característica lhes permite privilegiar certos

temas e questões, desprendendo-se, ainda que parcialmente, dos modos pelos

quais elas podem ser observadas. Precisamente aqui encontra-se um campo de

trabalho para sociologia dessas sociologias, e foi esta peculiaridade dos estudos

globais que fundamentou a construção da cognoscibilidade de processos de

globalização como objeto para o presente trabalho. Ora, uma vez que o foco

recaía sobre as questões, e que tais questões possuam caráter planetário, a

diversidade de suas abordagens revela-se um objeto da maior centralidade. É

nessa direção que está a minha aposta. Trata-se menos de observar um

fenômeno em si, mas de percorrer trilhas de pensamento e sensibilidade através

das quais esse dado fenômeno pôde ser apreendido pelos que tentaram conhecer,

explicar ou apenas apontar elementos na busca pela cognição da globalidade.

II. A cortina das ilusões: globalização e senso (in )comun

Globalização rima com transformação, revolução, cosmopolitização,

transnacionalização, individualização, assim como glocalização,

desterritorialização, mundialização da cultura, aproximação e distanciamento. Mas

rima também com ilusão. Parece que a dimensão planetária, magnífica e

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magnânima, e quase inimaginável da globalização termina por confundir a

percepção dos seus fenômenos e processos. Com efeito, o pensamento sobre a

globalização também reúne um conjunto de quimeras, que enganam os sentidos e

o raciocínio. Essas ilusões não dizem respeito somente a uma certa produção

midiática, que por vezes assume uma roupagem científica, e alcança maior

penetração nas visões de mundo de indivíduos e grupos que as reflexões de

pesquisadores ou mesmo de veículos midiáticos mais sérios. Ao menos no debate

científico, esse “príncipe eletrônico”, para falar como Octavio Ianni, (ainda) não

logrou subsumir por completo a reflexão e a reflexividade – ainda que ele se faça

presente e nem sempre seja tão logo identificado enquanto próprio a um senso

comum (nos diversos sentidos que ela toma, desde Aristóteles). Não quero, aqui,

me referir a uma literatura sobre globalização produzida e difundida por

instrumentos como a Harvard Business Review, entre outros, interessados, não na

globalização propriamente dita (embora usem o termo), mas na expansão mundial

do mercado e, potencialmente, dos negócios dos seus leitores. Cabe notar porém

que, com frequência, tanto esse tipo de literatura economicista quanto a mídia

eletrônica e cibernética difundem e reproduzem a ilusão de que “tudo se

globalizou”, estimulando a ignorância da diversidade e do caráter processual da

globalização75.

Há, contudo, os mal-entendidos que estão presentes em um “bom senso”,

ou naquilo que se poderia denominar senso incomum. Eles são menos óbvios,

mas nem por isso menos problemáticos. Sim, mesmo grandes estudiosos do tema

parecem ser, vez que outra, ludibriados pela cortina de ilusões que permeia a

atual situação de globalização. Certamente não seria possível esgotar as

(aparentes) ilusões do pensamento social da globalização: não ousaria sequer

tentar fazê-lo, como se pudesse pretender-me imune às possibilidades de engano.

75Para uma análise detida dessa literatura economicista, nos moldes em que a apresentei, recomendo Ortiz (2006).

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Nesta etapa, quero apenas apontar três desses “mal-entendidos”, pois estou

convencido de que a reflexão sobre esses aspectos pode ser frutífera para o

debate.

1. O real e o efetivo

O primeiro deles talvez seja o mais importante. Trata-se da falta de clareza

a respeito de duas dimensões essencialmente distintas: uma dimensão

preferencialmente conceitual, e outra propriamente efetiva da globalização. Uma

distinção próxima a essa tem sido proposta por Ortiz (2007, 2008), quando

procura diferenciar entre as categorias do “global” e do “universal”, e está presente

também em alguns dos mais recentes trabalhos de Beck, ainda que de outro

modo (BECK 2006, 2008, 2011; BECK e GRANDE, 2010).

Um parênteses. No caso de Beck, a reflexão se dá na tentativa de

fundamentar uma diferenciação entre um processo de cosmopolitização, com

caráter descritivo, e o projeto (filosófico) do cosmopolitismo. Cabe ressaltar, aliás,

que esta última distinção não me parece ter sido suficiente para circunscrever os

limites factuais entre essas duas dimensões, nos termos tratados por Beck. Com

efeito, configuram metáforas usadas para expressar concepções ainda muito

similares: no fundo, a cosmopolitização representa pouco mais que uma versão

“dinâmica” do cosmopolitismo. Como procurei mostrar, o maior problema do

cosmopolitismo, e também da cosmopolitização, para os interesses analíticos

dessa dissertação, parece ser a pressuposição das dinâmicas e das

consequências próprias do sucesso da modernidade (seja ela classificada como

“primeira” ou “segunda”)76. Quanto a isso, não obstante, quero chamar a atenção

para um ponto: ainda que a conclusão não me pareça convincente, vale a pena

76Recordar capítulo IV, seção II.

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observar como Beck compõe o raciocínio. “Minha tese é: a realidade [Realität]

torna-se ‘cosmopolita’. Precisamos compreender que não há um cosmopolitismo

puro [rein]: há somente a cosmopolitização, que é deformada. Daí precisarmos de

uma ciência social cosmopolita” (BECK, 2006: 252, grifos do autor). A despeito da

conclusão (de que vivenciamos uma cosmopolitização do mundo nos moldes já

apresentados), o raciocínio me parece valioso. Beck tem buscado, mais

recentemente, aproximar o cosmopolitismo das diversidades próprias dos

processos sociais, esforçando-se para distinguir uma dimensão descritiva (própria

às ciências sociais) de outra normativa (que ele identifica, nessa perspectiva, com

os modelos cosmopolitistas da filosofia e da religião).

Em certo sentido, a mesma distinção pode ser formulada também a partir

de uma reflexão presente no próprio campo da filosofia do conhecimento. Aqui,

pelo menos desde o sensualismo de Locke, há uma busca por distinguir entre o

ideal e o possível, em termos próximos aos que mobilizamos

contemporaneamente.

Os sens [“sentidos”, “sensações”] constituem atributos humanos, ligados ao corpo e à mente [...] de maneira necessária, embora não se confundam. A “realidade” percebida pelos sens e, a partir deles, pela mente, não pode ser tomada por “a Realidade”. O que é percebido consiste em uma “efetividade”, forjada numa relação especular (que é a metáfora hegeliana do espelho, Spiegel), isto é, mediada pelos limites do corpo e da razão humanos. O cotidiano, os atos, os sentimentos são efetivos (wirklich, em alemão), estão sujeitos à intervenção do homem, em maior ou menor medida. “A Realidade” (o termo germânico, deriva do latino: Realität) denota aquilo que é, o Ser (das Sein), a Natureza, o Universo, o Tempo. O sens enquanto sentido, razão de ser, sendo parte do Ser, é real; o sens como sentido físico ou fisiológico, experiência, sensação, sentimento, sensibilidade, compreensão, julgamento, acepção, e assim por diante, é wirklich, isto é, está na esfera da efetividade (ARNAUT: 2011b, grifos no original).

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Em seus escritos, Renato Ortiz expressa essa distinção, como dito, em

termos de uma delimitação, na história do pensamento, entre os atributos do

global e do universal. A proposta de Ortiz ajuda a elucidar o fato de que o global e

o universal são categorias situadas em campos distintos do pensamento e da

realidade, embora caminhem de mãos dadas. Ele procura mostrar que as Ciências

Sociais, estando amarradas aos seus contextos, têm dificuldades para

universalizar a sua explicação, mas que, no entanto, também não podem perder

essa “intenção” de universalidade. Dessa maneira é possível repensar o lugar da

interpretação dos fenômenos e processos globais, situando o pensamento e a

reflexão sociológicos numa posição intermediária.

Os conceitos encontram-se vinculados ao contexto particular da pesquisa, eles são polimórficos e pouco aptos a se universalizarem (a categoria trabalho não se aplica à compreensão das sociedades indígenas nas quais as relações de parentesco predominam). [...] O pensamento sociológico é sempre um raciocínio de entremeio, algo entre o ideal da universalidade (que é necessário) e o enraizamento dos fenômenos sociais. [...]

Não resta dúvida de que as ciências sociais se transformam com o processo de globalização. As mudanças em seu objeto, as relações sociais, requerem um novo olhar, a definição de novas categorias de pensamento. Certamente, ao tomar o mundo como tema de reflexão, seu raio de alcance se expande, liberando-se da territorialidade das regiões ou do Estado-nação. Mas seria incorreto imaginar que as análises sociológicas teriam se tornado, por isso, “mais universais” do que no passado. [...] Convenientemente esquece-se que o cosmopolitismo não é um atributo necessário da globalidade, e que o particularismo do pensamento enuncia-se tanto em dialeto, quanto em linguagem mundial, pois, na condição da modernidade-mundo, é perfeitamente plausível, e corriqueiro, ser globalmente provinciano (ORTIZ, 2008: 104-105, 191-194, grifos do autor).

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2. A univocidade do novo

Um segundo aspecto que merece ser melhor analisado na literatura

científica sobre a globalização seria a noção de ruptura histórica e epistemológica,

assim como a ideia de que é possível uma “virada” radical nas bases do

pensamento social. Já no terceiro capítulo indiquei que o uso da ideia de ruptura

para pensar as transformações que causam e advêm da globalização é arriscado:

ainda que seja útil para nos darmos conta de que estamos diante de “algo” novo,

não se deve entender, por isso, que “tudo mudou”. A globalização situa-se no fluxo

da história, em meio às suas tensões e complexidades (URRY, 2006). Esse pode

ser visto como um ponto crítico nas teorias de Ianni e de Beck (e no debate, como

um todo). Num esforço para mostrar a globalização como novidade, um sinal

presente e premente do futuro, esquece-se de que, se a globalização não surge

“do nada” (o que seria uma suposição grosseira), também não pode ser concebida

nos termos de uma negação do passado. A perspectiva de uma ruptura pressupõe

a superação de algo, fato e interpretações, de modo que “seria, portanto,

necessário refundar um saber em ruínas. Dificilmente as Ciências Sociais se

encaixariam dentro desta perspectiva. Não existe ruptura, a criatividade, a

abertura para o novo enraíza-se no solo da tradição que permanece e a antecede”

(ORTIZ, 2009: 244).

3. A reinvenção da sociedade

Um terceiro aspecto a ser posto em questão é a própria categoria de

sociedade num contexto de globalização. Refiro-me, em particular, à ideia de uma

sociedade global ou mundial, ou sociedade-mundo, sociedade do mundo etc.

Tratam-se, no limite, de metáforas da transformação, da mudança e do

desconhecido, que levam em conta uma gama de categorias originadas, no mais

das vezes, em formulações com respeito ao Estado nacional. É assim que

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algumas apostas nestas configurações planetárias de sociedade vêm sendo

formuladas e reformuladas ao menos desde os trabalhos de Luhmann (1971,

1975)77 sobre a Weltgesellschaft.

A fim de estabelecer um parâmetro de compreensão para tais

denominações da sociedade como mundial, vale a pena recordar o modo pelo

qual Luhmann constrói a sua Weltgesellschaft como um objeto sociológico com

vista à cognição e previsão de fenômenos (note-se) por vezes ainda pouco

evidentes. Ele formula a questão a partir de uma pergunta de partida, a saber: “se,

e de que maneira, a interação em nível mundial já se consolidou” (LUHMANN,

1975: 53). Note o leitor que a pergunta parte de uma incerteza (pois questiona a

própria existência do fenômeno), mas demonstra, ao mesmo tempo, uma tentativa

de identificar os elementos de um processo que já poderia estar parcialmente

consolidado. Luhmann segue adiante e busca delinear um conjunto de questões

teóricas, na tentativa de apreender o fenômeno. Esse esforço é longo e

pormenorizado, mas talvez possa ser resumido da seguinte maneira. Luhmann

parte da hipótese de que é possível haver interação (e não o simples contato) em

nível mundial, sem que as fronteiras das sociedades (nacionais, naquela altura) a

impeçam de existir. Essas interações implicariam consequências no âmbito da

ciência (o saber do saber) e, com elas, conquistas no campo da tecnologia,

através de redes de comunicação em nível mundial que neutralizariam referências

socialmente específicas das fontes de conhecimento. Em paralelo, haveria 77 Vale notar que o texto fundador “Die Weltgesellschaft” foi publicado, em sua primeira versão, em 1971, no Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 57, pp. 1-35. Para fins de citação, utilizo aqui a versão de 1975, que está revisada.

Os trechos que seguem sobre a Weltgesellschaft enquanto categoria de cognoscibilidade de processos globais nos trabalhos de Niklas Luhmann foram discutidos com pesquisadores das teorias de sistemas sociais e parte deles pode ser encontrada em versão preliminar numa comunicação de pesquisa em andamento constante nos Anais do III Encontro Internacional de Ciências Sociais, realizado em Outubro de 2012 – cf. Arnaut 2012b. Agradeço aos professores Fabricio Neves (UnB) e Leo Peixoto Rodrigues (UFPel), e ao colega Guilherme Nogueira (UChile-UFRGS) pela oportunidade de discutir esse aspecto da minha pesquisa.

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ressonâncias de uma opinião pública formada em escala mundial. Esse horizonte

mundial de possibilidades determinaria vivências e trocas concretas. A

Weltgesellschaft se tornaria uma unidade através das trocas comunicativas mundo

afora, e se constituiria em meio à expansão de estruturas de expectativa

(Erwartungsstrukturen), fossem elas cognitivas ou normativas.

Ainda, de um ponto de vista mais propriamente político, Luhmann observou

muito precocemente que ao nível da política nacional (“domesticada” e capitalista)

e do direito tradicional não seria possível articular o problema da Weltgesellschaft.

Para ele, como sistemas parciais da sociedade, a economia, a técnica e a ciência

absorveriam, cada qual a seu modo, as mudanças em curso através do

aprendizado operado de modo sistêmico. Note-se, contudo, que só seria possível

compor um quadro de expectativas à medida que se fosse formando, com o

conhecimento do fenômeno, um conjunto de situações frustradas para que, de

modo seletivo, pudessem ser construídas expectativas novas (isto é, baseadas em

novos horizontes de possibilidade), havendo, assim, substituições. É que normas

e valores integrativos não seriam, para Luhmann, facilmente encontrados no

sistema da Weltgesellschaft. Isso exigiria um enorme grau de abstração, uma vez

que ele se diferencia de modo desconhecido e implica novos estados de

compatibilidade do mundo na medida em que, por diferenciação, o gradiente de

complexidade entre sistema e ambiente (Umwelt) aumenta no sentido de se obter

um sistema total mais complexo e repleto de contingências (voraussetzungsvoll).

Ora, isso implicaria novas consequências para as funções na Weltgesellschaft,

assim como para os processos de diferenciação funcional. Já não era mais

possível simplesmente subentender que as fronteiras sociais entre seres

humanos, no que se refere ao pertencimento a um determinado grupo

permanecessem idênticas nas diversas dimensões sociais. “Com isso, a unidade

de uma sociedade que abranja todas as funções ainda é possível somente na

forma da sociedade mundial [Weltgesellschaft]” (Ibidem: 60).

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Ocorre que as ideias de sociedade-mundo, sociedade global ou mundial

tomam, no mais das vezes, a aparência de um Estado nacional expandido. Talvez

o leitor concorde que esse parece ser o caso em certas passagens tanto de Ianni,

quando de Beck, ainda que a presença categórica do nacional possa ser

encontrada, em cada um deles, de formas distintas. De certo modo, é preciso

notar que essa projeção categórica não deixa de ser coerente. Vale lembrar, por

exemplo, que Ernest Renan (1882) observava que a constituição de uma nação

envolve não somente uma memória compartilhada, mas uma soma de memórias

coletivamente esquecidas. Nesse sentido, os intérpretes da sociedade parecem

caminhar pelas trilhas de um pensamento muito próximo a esse, mas com alcance

planetário. Afinal, pode-se dizer que há uma história que é cada vez mais

efetivamente mundial, ainda que diga respeito a indivíduos, fenômenos ou

ocorrências aparentemente isolados. Dito de outro modo, há uma representação

coletiva de memórias e esquecimentos no curso da história global. Muito, é claro,

diz respeito à veiculação das notícias através das mídias que, como previa

Luhmann, já há tempos trespassam as fronteiras nacionais. Mas talvez se possa

sustentar, com boa margem de acerto, que tal veiculação não se confunde com o

processo em si, sendo apenas uma dimensão dele. É que não parece razoável

pensar a “globalização do noticiário” como correspondente à globalidade das

ocorrências, ainda que as influencie. Pode-se dizer que a mídia veicula

informações que se desterritorializam e nos permitem criar uma “representação

global”, um sentimento historicamente diferenciado de estar no mundo e, assim,

de ser parte dele. Sim, a globalização compõe também um imaginário específico –

como o fizeram os processos de nacionalização e colonização, feudalização,

citatização, e assim por diante. As ideias de uma sociedade global, em suas

variações, embora confira alcance imaginativo às sociologias da globalização,

precisam ser protegidas do risco de desconsiderar a reconfiguração histórica

desses sentimentos de pertencimento.

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Por outro lado, ocorre que uma (re)invenção da sociedade em moldes

(ainda) nacionais, expandidos em âmbito mundial, não deve olvidar outro aspecto

eminentemente político: a questão de se esfera pública existente hoje nos Estados

nacionais lograria se realizar, efetivamente, em nível planetário. Contra isso há,

certamente, a proposta beckianna de um conjunto de normas baseadas nos

direitos dos seres humanos, pois que eles, no fundo, precederiam normas e

legislações existentes entre nações, internacionais. Como vimos, isso implicaria

um conjunto de acordos e expectativas – que legitimariam essas normas. Ora, no

caso de uma proposta como essa se realizar, dar-se-ia a perda quase definitiva da

conhecida prerrogativa dos Estados-nação há tanto enunciada por Weber (1919):

a existência de uma instituição que controla e arbitra, acima de todas as outras,

detendo o monopólio legítimo da força física. A proposta de Beck é, certamente,

cativante, mas talvez oculte uma ingenuidade. O Estado nacional é uma arena de

poder político, um poder que tende a expandir-se, mas também a concentrar-se. A

questão parece ser: será que a sociedade mundial pode, efetivamente, realizar-se

como sociedade humana? Mais precisamente: estamos preparados para uma

situação política de poderes cuja distribuição é assegurada fundamentalmente por

acordos, ou a globalização nos reserva a materialização de uma concentração

magnânima de poder e violência, sob um cetro que ainda desconhecemos?

Com efeito, a Weltgesellschaft de que falava Luhmann não se referia a um

sociedade que, em nível mundial, poderia subsumir as sociedades estatais e as

demais coletividades, ocupando suas posições – como propõe Ianni (1992, 1994,

1996) – correndo o risco de se transmutar, na babelização característica do

debate, em versões globais do que já existia. Falar em sociedade do mundo, nos

termos da teoria de sistemas luhmaniana, significa a extensão (não uniforme e

nem automática) da comunicação seletiva e compreensível à dimensão

(potencialmente) planetária. Trata-se da expansão de um sistema social total por

diferenciação e criação de novos sistemas distintos, isto é, da sociedade que se

diferencia e, assim, transforma suas estruturas, alcançando proporções novas e

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mais amplas. Desse modo, as fronteiras dos Estados nacionais que terminam por

ser confundidas, no patrimônio cognitivo das ciências sociais, com as fronteiras da

própria sociedade, tornar-se-iam agora sistemas parciais de uma sociedade maior.

Esta sociedade, para Luhmann, não poderia se confundir com qualquer fronteira

geopolítica, porquanto a política (Politik) seria compreendida como um sistema

parcial da sociedade.

Para fechar esse ponto, cabe uma observação fundamental, conquanto

provocativa. “Mundo” (Welt), para Luhmann, não significa, necessariamente, o

Planeta! Aproximando-se do que Spencer-Brown (1969) entendia como um espaço

indeterminado (unmarked space), Luhmann compreende “mundo” como uma

unidade de distinção. Assim, o mundo é a abstrata unidade de diferença que se

forma no processo de constituição do sistema e de seu ambiente (Umwelt). Por

isso, creio, no fundo trata-se de um sistema total cuja unidade de diferença pode

ser o próprio planeta. Planeta e mundo são ideias que se aproximam em nível de

abstração, mas, note o leitor, não são a mesma coisa. Ocorre, no entanto, que a

imensa maioria das publicações sobre temas ligados à globalização empregam

termos como “sociedade global”, “sociedade mundial”, “sociedade planetária”, e

assim por diante, de uma maneira prêt-a-porter. (Essa é, aliás, uma boa metáfora:

é como se os sociólogos vestissem seus trabalhos com uma terminologia que não

foi feita para eles, mas que foi “comprada” pronta, e frequentemente sem os

ajustes necessários, na estante de uma biblioteca ou na plateia de uma

conferência.) Grande número desses autores parece desconhecer as origens

terminologias, quem as criou, como e para quê foram imaginadas, desenhadas,

fabricadas ou preparadas artesanalmente. Em linguagem marxiana, é como se as

palavras fossem fetichizadas, o que aliena parte do trabalho intelectual. Numa

apropriação da terminologia de Luhmann, é como se a própria sociologia não

lograsse se constituir em um sistema social, uma vez que nem sempre ocorre

comunicação eficiente de sentido.

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III. Signos, significantes e significados

Dar nome é atribuir significado. A emergência da globalização como

problemática nas Ciências Sociais provocou o surgimento de neologismos e

ressignificações que compõem um conjunto de metáforas da globalização. Vale a

pena voltar a essa questão e observar que metáforas implicam também

classificações (fico tentado, aqui, a recordar Saussure e Lévi-Strauss). Nesse

sentido, se as chamo de metáforas, isso já significa algo, indica a eleição de um

modo pelo qual pretendo compreendê-las. Aliás, é possível dizer, em certo

sentido, que metáforas em muito se assemelham a fronteiras políticas,

especialmente numa situação de globalização como a atual. Ora, toda metáfora é

também uma fronteira, na medida em que suspende os limites do pensamento,

criando novas diferenciações. Do ponto de vista sociológico, metáforas podem ser

mais que simples figuras de linguagem e estilo. Elas expressam,

simultaneamente, a separação e a conexão entre dois ou mais pensamentos.

Nesse sentido (se o leitor me permite o jogo de ideias), toda fronteira pode ser

entendida como uma metafórica na medida em que estabelece critérios de

comparação, de medição, definição, inclusão e exclusão. Essa visão, que orientou

o contraponto desenvolvido nos capítulos anteriores, parece profícua para situar

as diversas formas pelas quais a globalização tem sido significada e ressignificada

ao longo dos últimos anos.

Aqui a interpretação ganha uma nova função: em vez de decifrar o sentido, ela evidencia o potencial de sentido produzido pelo texto. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo comunicativo que deve ser descrito. É certo que no processo da leitura o potencial de sentido nunca pode ser plenamente elucidado. Mas é justamente por isso que a análise do sentido enquanto evento se torna ainda mais necessária; pois só desse modo se evidenciam os pressupostos que condicionam a constituição do sentido (ISER, 1996: 54).

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Fronteiras podem ser vistas como metáforas de escolhas, uma vez que

toda fronteira é arbitrária. Sendo assim, implica a negação de outras

possibilidades, isto é, constitui-se como expressão (ou como metáfora) das

materializações históricas dos seus limites, da sua estreiteza e, em muitos casos,

de sua aparente universalidade. Se as fronteiras, em geral, se pretendem eternas,

as metáforas também podem tomar uma aparência universal, sendo, de fato,

singulares, particulares, próprias dos contextos dentro dos quais se inserem.

Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito).

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. [...] É, pois, todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. [...] O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. [...] Os sentidos não estão nas palavras mesmas. Estão aquém e além delas (ORLANDI, 1999: 40-42)

Sim, metáforas dizem respeito a contextos específicos de possibilidades de

imaginação. No debate sociológico sobre a globalização, isso não se dá de

maneira diferente. Cada uma dessas metáforas que compõem as tentativas de

cognição da globalidade em emergência está arraigada em historicidades e

temporalidades específicas. Aqui voltamos ao problema da (não) abrangência.

Estando arraigadas (ou enraizadas, para falar como Ortiz), certas metáforas

podem não fazer sentido quando mudamos o registro, o ponto de partida das

linhas de perspectiva. E uma mesma metáfora pode se desdobrar em muitas

outras. Esse é o caso, para dar um exemplo, da metáfora do globalismo,

neologismo criado a partir da necessidade de expressar certos movimentos da

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globalização do capitalismo. Como vimos, a mesma metáfora assume contornos

profundamente diversos em autores deferentes, mesmo quando são

contemporâneos. É assim que, para Ianni, o globalismo está na origem da

globalização, sendo um dos nomes do próprio capitalismo (expandido em nível

planetário); ao mesmo tempo, para Beck, o globalismo expressa um efeito

colateral, uma ideologia que desenvolve-se em meio às dinâmicas do sistema

capitalista. Fenômenos como esse ilustram de modo exemplar o caráter

frequentemente polissêmico, e também o sempre latente (ou potencial) mal-

entendido das metáforas como ferramentas do trabalho intelectual de construção e

reconstrução de um debate que ainda não dispõe de um léxico comum.

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REFERÊNCIAS

NOTA: Todas as citações de textos cujas referências não estão em língua portuguesa foram

traduzidos por mim. Os problemas referentes às traduções são, nesses casos, de minha inteira

responsabilidade. Os grifos, no entanto, são sempre dos autores, estando presentes nos originais.

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