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    UFPE - UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

    MESTRADO EM DIREITO PBLICO E PRIVADO

    SUBSDIOS PARA CONCESSO DA PENA ALTERNATIVA DE

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    Anlise da Personalidade do Agente Infrator

    na Perspectiva da Psicologia Jurdica

    Orientador Professor Dr. George Browne Rgo

    Elvira Daniel Rezende

    Recife

    2002

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    Elvira Daniel Rezende

    SUBSDIOS PARA CONCESSO DA PENA ALTERNATIVA DE

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    Anlise da Personalidade do Agente Infrator

    na Perspectiva da Psicologia Jurdica

    Recife PE, setembro de 2002

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    UFPE - UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS-FACULDADE DE DIREITO

    MESTRADO EM DIREITO PBLICO E PRIVADO

    SUBSDIOS PARA CONCESSO DA PENA ALTERNATIVA DE

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    Anlise da Personalidade do Agente Infrator na Perspectiva da Psicologia Jurdica

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Pblico e Privado da Universidade

    Federal da Paraba em cumprimento s exigncias para obteno do grau de mestre em

    Direito.

    MESTRANDA: Elvira Daniel Rezende

    ORIENTADOR: Professor Dr. George Browne Rgo

    Recife-PE, setembro de 2002

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    UFPE - UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

    MESTRADO EM DIREITO PBLICO E PRIVADO

    Subsdios para concesso da Pena Alternativa de

    Prestao de Servios Comunidade:Anlise da Personalidade do Agente Infrator na Perspectiva da Psicologia Jurdica

    Elvira Daniel Rezende

    Banca examinadora

    Professor:_____________________________________

    Professor:_____________________________________

    Professor:_____________________________________

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    RESUMO

    Cresce na atualidade a preocupao com o valor e a eficcia das penas que tentam proteger a

    sociedade do aumento da criminalidade. Discute-se enfaticamente o que se vem denominando

    de crise da pena privativa de liberdade, voltando-se as reflexes para a anlise das reais

    possibilidades do vigente sistema penal. Na dialtica contempornea entre o crime e a punio

    verifica-se, mais do que nunca, um intenso conflito entre as propostas de represso pura e a

    introduo de elementos humanitrios e individualizantes. Neste cenrio, as maiores

    esperanas e expectativas voltam-se para as penas alternativas e, em especial, para a prestao

    de servios comunidade. Cabe destacar, desse modo, a necessidade de uma ao

    interdisciplinar e multiprofissional para o pleno xito dos programas de fiscalizao e

    acompanhamento dos apenados, beneficiados com as penas alternativas de prestao de

    servios comunidade. A disponibilizao de assessorias devidamente habilitadas para

    subsidiar os magistrados acerca das condies pessoais subjetivas dos rus , tambm,

    pressuposto indispensvel. Prevalecendo as tendncias humanitrias, a personalidade do

    infrator ganha relevncia diferenciada, sobretudo com o concurso do psiclogo jurdico nos

    processos de cominao e execuo das penas substitutivas e, em especial, na prestao de

    servio comunidade. Discute-se a necessidade de elevar o nvel de confiana da sociedade

    no potencial humano dos infratores, atravs do maior conhecimento de suas caractersticas

    psicolgicas, de modo a estimular a participao das comunidades no processo de sua

    ressocializao.

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    ABSTRACT

    One of the characteristics of present days is the problem concerning penalties created to

    protect society from the increasing of criminality. Recent discussions have emphatisised the

    crises of private freedom penalty, arising reflections towards real possibilities of current legal

    penalties system. In the contemporary dialectic involving crime and punishment is verified an

    intense conflict between pure repression proposal and humanitarian proposal. Largest hopes

    and expectations in this context are related to alternative penalties and, more specifically, to

    related community services penalties; in this case is important to highlight the need of

    professional from different areas in a interdisciplinary action to reach full success in

    supervising and accompaniment programs to people who are benefited with the alternative

    penalty of rendered community services. The availability of properly qualified consultant

    ships to subsidize the judges related to personal subjective conditions of defendant is also an

    indispensable presupposition. Prevailing the humanitarian tendencies, the offender's

    personality assumes differentiated relevance, especially with the juridical psychologist's

    contribution in the commination and execution processes of substitutive penalties, mainly in

    the rendered community services. The need of increasing the level of society trust in the

    offenders human potential is discussed through a higher knowledge from his psychological

    features stimulating the communities participation in its new socializing process.

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    NDICE

    Resumo I

    Abstract II

    Introduo 01

    Captulo Primeiro

    CONCEPES FILOSFICAS SOBRE A PENA 12

    1.1 Trs noes fundamentais da pena. 12

    1.2 Kant e a concepo moral da pena. 17

    1.3 Hegel e a concepo jurdica da pena. 221.4 Beccaria: o coprnico da humanizao do Direito Penal. 28

    1.5 Michel Foucault e a microfsica do poder punitivo 36

    1.6 Franz von Liszt e a pena na concepo poltico-criminal 44

    Captulo Segundo

    TEORIAS JURDICAS DA PENA 51

    2.1 Por qu teorias da pena? 51

    2.2 Teorias absolutas da pena. 542.3 Teorias relativas da pena. 57

    2.3.1 Preveno geral. 60

    2.3.2 Preveno especial. 64

    2.4 Teorias mistas da pena. 66

    Captulo Terceiro

    HISTRICO E PROPOSIO DAS PENAS ALTERNATIVAS 72

    3.1 Notas histricas. 72

    3.2 Documentos legais internacionais. 73

    3.2.1 8 Congresso da ONU: Regras de Tquio 77

    3.2.2 9 Congresso da ONU: preveno do crime e tratamento do delinqente 81

    3.3 Documentos legais nacionais. 82

    3.3.1 A reforma penal brasileira at a Constituio de 1988 82

    3.2 Lei n. 9.099/95. 89

    3.3 Lei n. 9.714/98. 93

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    Captulo Quarto

    PENAS ALTERNATIVAS NO BRASIL 98

    4.1 Caracterizao das penas alternativas 98

    4.2 Espcies de penas alternativas 103

    4.3 A pena de prestao de servios integrada a outros institutos penais 107

    4.4 Penas alternativas no contexto social brasileiro 109

    Captulo Quinto

    ANLISE DA PERSONALIDADE PARA APLICAO DA PENA DE

    PRESTAO DE SERVIOS 115

    5.1 Perspectiva interdisciplinar nas aplicaes do Direito Penal 115

    5.1.1 Modelos criminolgicos interdisciplinares 116

    5.1.2 Psicologia Jurdica 117

    5.1.3 Regulamentao legal da Psicologia Jurdica 119

    5.1.4 Algumas aplicaes da Psicologia Jurdica 120

    5.2 Anlise psicolgica da personalidade 124

    5.2.1 Conceito e definies de personalidade 125

    5.2.2 Teorizao psicolgica sobre a personalidade 1263 Avaliao psicodinmica da personalidade do infrator 129

    3.1 Modelos psicolgicos do criminologia cientfica 131

    3.2 Tcnicas psicolgicas de avaliao da personalidade 133

    3.3 Exame criminolgico para individualizao da pena 135

    4 Anlise da personalidade na execuo da pena alternativa de prestao de

    servios comunidade com enfoque na ressocializao 140

    4.1 Participao da comunidade na execuo da pena de prestao de servios142

    4.2 Anlise da personalidade do infrator: uma atribuio do juiz? 145

    Consideraes finais 150

    BIBLIOGRAFIA 153

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    Introduo

    A humanidade tem presenciado, ao longo dos sculos, ofensas das mais

    variadas. Tais ofensas quebram a harmonia entre os homens e, numa certa medida,

    ameaam seu iderio de um bem comum. Bem este, segundo Locke, o menos comum

    dos bens. A longa histria da humanidade, vista sob este ngulo, compem-se de uma

    narrativa sobre as ofensas praticadas e o seu respectivo ressarcimento, formalmente

    descritos nos cdigos desde os sistemas mais primitivos at a modernidade.

    Ao longo desta evoluo o Direito desempenha um papel formalista, destacando-

    se, com sua tipicidade prpria, das demais reas do conhecimento social. A natureza

    social do fenmeno jurdico, todavia, requer, para sua melhor compreenso uma anlise

    mais ampla e interrelacionada deste fenmeno.

    Partindo desta premissa, embora este trabalho situe-se no campo jurdico,

    procurar-se- ressaltar a sua dimenso interdisciplinar, fazendo-o interagir com outras

    reas do saber que lhe so pertinentes. Tal estratgia, longe de descaracterizar a

    autonomia do saber jurdico, enriquece-o, tanto do ponto de vista do seu significado

    quanto do ponto de vista da sua compreenso e da sua funcionalidade.

    O ser humano ser, portanto, aqui considerado no simplesmente como um

    objeto de vigilncia e punio, mas nas dimenses recnditas da sua personalidade, nas

    suas virtudes e nas suas fraquezas que caracterizam o seu modo de ser. Portanto, este

    trabalho abordar a questo do papel e da funo dos procedimentos do avaliar e julgar

    a personalidade do infrator, contando com o auxlio, considerado relevante, do

    psiclogo jurdico, o qual, certamente, poder assessorar o magistrado no desempenho

    da sua rdua tarefa de julgar. Mais especificamente, pretende-se verificar quais ascondies de possibilidade de utilizar-se de penas alternativas de encarceramento,

    substituindo-a, em algumas hipteses, pela de prestao de servio comunidade, isto

    tudo, naturalmente, condicionado a uma anlise mais apurada da conduta social do

    infrator, das suas motivaes, da gravidade que caracteriza o ato delituoso e, sobretudo,

    das circunstncias econmicas, sociais e polticas que envolvem este mesmo fato.

    No h dvida de que se trata de questo doutrinria da mais alta controvrsia

    em que, no raro, as opinies se dividem gerando polmicas e perplexidades que, longede facilitar, dificultam a tarefa do magistrado. Discusses em torno da natureza da pena

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    e sua eficcia tm assim marcado o estudo do Direito, principalmente na modernidade.

    a represso pura e simples, medida adequada e suficiente soluo, dos ilcitos

    penais? A introduo de elementos humanitrios e individualizantes no produziria

    efeitos mais positivos e duradouros para o apenado e para a sociedade em geral? Tudo

    indica que h hoje uma tendncia bastante acentuada no sentido de acatar medidas

    alternativas para reabilitao do infrator. H em favor desta alternativa a possibilidade

    de modificar os tradicionais mecanismos punitivos do Estado, atravs da insero do

    apenado na sociedade, com vistas sua reintegrao.

    A hiptese que permeia todo este trabalho parte do pressuposto de que, tirante a

    competncia do ato de julgar pelo prprio juiz, que deve ser assegurada, uma assessoria

    do psiclogo jurdico ampliaria os horizontes de entendimento sobre a personalidade do

    infrator e, conseqentemente, de uma justia mais humana e mais eqitativa.

    Este trabalho obedece a seguinte sequenciao: o captulo primeiro trata de

    algumas concepes de natureza jurdico-filosfica acerca da pena. As contribuies

    dos filsofos que representam ditas concepes sero sumariamente analisadas.

    Inicialmente sero estudadas as concepes kantiana e hegeliana sobre a pena, nas suas

    implicaes tico-jurdicas. Em sucessivo, analisar-se- a contribuio de Beccaria, um

    dos principais representantes do movimento de humanizao do Direito Penal. Michel

    Foucault, particularmente nas suas duas obras Vigiar e Punir e Microfsica do Poder,

    contribui para este trabalho com a teoria controversa mas profundamente intrigante do

    ponto de vista da funo e do papel dos mecanismos punitivos do Estado e seus

    objetivos. Finalmente, Franz Von Liszt, traz colao uma concepo mista da pena,

    que mais tarde influenciaria a implantao do projeto alternativo alemo.

    O estudo destas concepes tem por objetivo, primeiramente delinear o percurso

    da problemtica da pena na modernidade, tomando por base os seus princpios efundamentos de natureza jurdico-filosficas e com isso lanar luz mais decisiva

    compreenso das tendncias atuais de aplicabilidade das penas alternativas, revertidas

    na prestao de servios comunidade.

    Toda esta anlise conduz tripartio das tendncias atuais no sentido de manter

    a tradio do sistema retributivo (tolerncia zero), considerar a problemtica sob um

    ngulo mais humanitrio, enfocando a personalidade do infrator ou, finalmente, a teoria

    mista, que pretende estabelecer um equilbrio entre estas duas concepes. O percursodessas tendncias e os seus mecanismos de implementao so analisados atravs de

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    alguns documentos legais-internacionais que tratam do delinqente e do sistema

    criminal. No caso brasileiro, a reforma do Cdigo Penal, a Constituio de 1988, e as

    Leis 9.099/95 e 9.714/98 sero tambm objeto de investigao.

    Com vistas a tornar mais ilustrativo o presente estudo examinar-se- ainda e en

    passantalgumas repercusses dessas concepes em torno da pena na realidade social-

    brasileira sem, contudo, se ater a uma anlise emprica dessas experincias. O que se

    pretende, em ltima anlise com este trabalho, , com base numa investigao mais

    aprofundada da prpria personalidade do apenado, verificar em que medida possvel

    aplicar penas alternativas de prestao de servios comunidade.

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    Captulo Primeiro

    CONCEPES FILOSFICAS SOBRE A PENA

    Sabemos hoy en da muchas cosas en torno aldelito; pero muchas menos en torno a la pena(...) Carnelutti1

    Sumrio: 1.1 Trs noes fundamentais da pena. 1.2 Kant e a concepo moral da

    pena. 1.3 Hegel e a concepo jurdica da pena. 1.4 Beccaria: o coprnico da

    humanizao do Direito Penal. 1.5 Michel Foucault e a microfsica do poder

    punitivo 1.6 Franz Von Liszt.

    1.1 Trs noes fundamentais da pena

    Os indivduos partilham, at certo ponto, de idias e prticas comuns,

    basicamente porque o convvio em sociedade termina por delinear no apenas uma

    unidade cultural abstrata, mas tambm um processo concreto de socializao, o qual

    exerce formas complexas de controle, destinadas a guiar aprendizagens na direo de

    condutas adequadas ordem social.

    Nas palavras de Hoebel e Frost,2 o comportamento humano deve ir se

    reduzindo desde a plenitude de suas potencialidades at um corpo de normas

    moderadamente limitado. No obstante, ofensas das mais variadas so cometidas,

    quebrando a harmonia entre os homens e minando a construo do bem comum,

    segundo o filsofo Locke, o menos comum dos bens.

    Assim sendo, a histria da humanidade confunde-se em muitos pontos com

    narrativas sobre ofensas e sobre diversos cdigos que visavam administrar a revolta dos

    ofendidos e constituam em ltima instncia providncias capazes de retribuir a culpa,

    reparar o dano e satisfazer os fins preventivos.3

    Neste sentido, os germes do direito penal surgem e se desenvolvem j nas

    manifestaes embrionrias, grosseiras e primitivas, de agrupamento humano em

    1 CARNELUTTI, Francesco. El problema de la pena. Trad. Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires:Ediciones Juridicas Europa America, 1947, p. 9.

    2 HOEBEL, E. A. e FROST, E. L.Antropologia Cultural e Social. So Paulo: Cultrix, 1981, p. 302.3

    DOTTI, Ren Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas.So Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1998, p.26.

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    convvio social. Porm a ofensa aos usos j consagrados da maioria reputada um mal

    contra o qual a comunidade reage por um instinto de conservao e de defesa, 4muito

    embora, como ressalta Kelsen,5o contedo objetivo do que se busca sob o nome de

    Bem ou Justia ainda no est definido.

    Ganha relevncia o fato de que a via mais rudimentar de punio como reao

    contra as agresses s condies bsicas da existncia social foi, durante muito tempo, a

    simples vingana privada e irrestrita, verificada em sociedades mais primitivas, nas

    quais o privilgio de punir uma ofensa pertencia aos indivduos prejudicados ou a seus

    parentes.

    Uma complexa sucesso de mudanas scio-histricas nas formulaes e

    aplicao das punies redundou na estruturao dos atuais sistemas legais, destacando-

    se neste processo o surgimento da lei de Talio.6 Como ressalta Sodr,7 apesar de

    considerada uma lei brbara devido sua implacvel crueldade, a lei de Talio

    substituiu a vingana cega e ilimitada pelo princpio moderador da igualdade perfeita e

    absoluta entre a severidade do castigo e a gravidade da ofensa. Para Soler,8 este

    aspecto do sistema talional envuelve ya un desarrollo social considerable.

    Este princpio moderador tem razes to profundas que, de fato, apesar do

    progresso do instituto penal, ainda vigora; mesmo em alguns pases ditos civilizados,

    algumas ofensas so ainda punidas, por exemplo, com a morte.

    No obstante, um dos mais importantes marcos evolutivos se deu com a

    ideologia iluminista, a qual, definindo a sociedade como fora moral e a coeso social

    como produto de contratos racionais entre indivduos,9 transfere definitivamente a

    4 SODR DE ARAGO, Antonio Moniz.As trs escolas penais: clssica, antropolgica e crtica. 8 ed.

    Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 25.5 KELSEN, Hans.A iluso da justia. Trad. Srgio Tellaroli. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p.447.

    6 A lei de talio, utilizada pelos estudiosos olho por olho, dente por dente, mo por mo, p por p;queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe , est na legislao mosaica conformexodo, XXI, 24, 25; nas Leis de Hamurabi e na Lei das XII TbuasApudANTUNES, Ruy da Costa.A problemtica da pena. Recife: UFPE, 1958, 77.

    7 SODR DE ARAGO, Antonio Moniz.As trs escolas penais: clssica, antropolgica e crtica. 8 ed.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 26.

    8 SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino. 1 reimpresion. Buenos Aires: Tipografica EditoraArgentina, 1951, p. 55. Tomo I.ApudBRUNO, Anbal.Direito penal: parte geral. Tomo 3. 4 ed. 1 tir.Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 77.

    9

    PAIXO, Antonio Luiz. Recuperar ou punir?: como o Estado trata o criminoso.Coleo polmicasdo nosso tempo, v.21. 2 ed. So Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991, p. 18.

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    punio do plano vingativo e arbitrrio para um plano superior, em que as ofensas

    constituem acima de tudo violaes de regras legalmente formalizadas.

    Com efeito, ao cabo de vrias transformaes scio-histricas, nas sociedades

    que passaram a ser organizadas sob a forma de Estado a imposio das punies passa a

    ser incumbncia imputada ao funcionalismo pblico, destacando-se entre as punies

    aquela denominada pena.

    Conforme Abbagnano,10 o termo pena, do latim poena, tem por significado

    denotativo a privao ou castigo para quem se torna culpado de uma infrao, sendo

    esta uma definio coerente com a noo geral da pena apresentada por Grcio11j na

    Idade Moderna, um malum passionis quod infligitur propter malum actions, e com a

    idia bsica de pena encerrada no pensamento de Kelsen,12 para quem (...) Paga,

    afinal, significa apenas que se h de ligar o Bem ao Bem 13 isto , recompensa e,

    portanto, o Mal ao Mal14, ou seja, punio.

    Questionando-se, porm, o fundamento da chamada pena dentro do ordenamento

    jurdico atual, deve-se diferenci-la de outras sanes jurdicas15 negativas como

    10ABBAGNANO, Nicola.Dicionrio de Filosofia. 2 ed., Trad. Alfredo Bosi. So Paulo: Editora Mestre

    Jou, 1982, p. 749.11CORREIA, Eduardo.Direito criminal. Coimbra/Portugal: Livraria Almedina, 1999, p. 43.12 KELSEN, Hans. A iluso da justia. Trad. Srgio Tellaroli. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p.

    447.13Em Aristteles, encontramos a idia do bem expressa no seguinte dilogo: Meu caro Glucon (...)

    segundo entendo, no limite do cognoscvel que se avista, a custo, a idia do Bem; e, uma vezavistada, compreende-se que ela para todos a causa de quanto h de justo e belo. (...) Esqueceste-tenovamente, meu amigo, que lei no importa que uma classe qualquer da cidade passeexcepcionalmente bem, mas procura que isso acontea totalidade dos cidados, harmonizando-ospela persuaso ou pela coao, e fazendo com que partilhem uns com os outros do auxlio que cada umdeles possa prestar comunidade Aristteles, 321-325 - Livro VII /517b-520a.

    14 A pena ligada idia de mal porque implica em perda de bens jurdicos, como a liberdade, logo penase traduz em um mal. S para Plato a pena entendida como um bem, pois a medicina da alma.Segundo a concepo de Hobbes, a filosofia moral no mais do que a cincia do que bom e mau,na conservao e na sociedade humana. O bem e o mal so diferentes conforme os diferentestemperamentos, costumes e doutrinas dos homens. (...) Enquanto os homens se encontram na condiode simples natureza (que uma condio de guerra) o apetite pessoal a medida do bem e do mal. Porconseguinte, todos os homens concordam que a paz uma boa coisa, e portanto que tambm so bonso caminho ou meios da paz, os quais so a justia, a gratido, a modstia, a equidade, a misericrdia eas restantes leis da natureza; quer dizer, as virtudes morais; e que os seus vcios contrrios so maus.HOBBES, Thomas. Leviat. s/l, s/d, p. 135.

    15 Sano, do latim sancire, consagrar, santificar, respeitar a lei (sanctio legis). a conseqnciafavorvel ou desfavorvel, proveniente do cumprimento ou da transgresso de uma norma. Noprimeiro caso temos a sano positiva ou premial e, no segundo, a sano negativa ou pena. Assim, asano a consagrao de uma norma pela coletividade, e pode se subdividir em msticas, ticas,

    satricas e jurdicas. A sanes msticas so os castigos oriundos da desobedincia nos imperativosrelacionados com a religio, acarretando a necessidade da expiao dos pecados pelo infrator; as

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    indenizao, restituio, nulidade ou inadmissibilidade. Mais precisamente, para

    Conde16, o conceito de pena encontra-se interligado ao prprio conceito de Estado;

    segundo afirma, o Direito Penal constitui um dos pilares em que o Estado se apia para

    facilitar e regulamentar a convivncia dos homens em sociedade, dentro de cada

    macrocontexto poltico-econmico especfico.

    Em outras palavras, a especificidade da noo de pena alcanvel abordando-

    se sua finalidade, isto , sua razo ltima. Nos termos de Soler,17sobre a pena(...) la

    pregunta se dirige en el sentido de saber porqu y para qu el derecho adopta, entre

    otras, precisamente esta forma especfica de sanciones, tan distintas de las dems .

    Posto assim, diferentes concepes de pena podem ser elaboradas a partir de

    idias distintas sobre qual deve ser sua finalidade. Seguindo este raciocnio, pode-se

    apontar como sendo uma das concepes mais antigas de pena aquela concebida por

    Aristteles, que lhe atribuiu a finalidade de restabelecer a ordem de justia prejudicada

    pela ofensa. Esta noo de pena inspira numerosas doutrinas jurdicas, bem como as

    instituies e leis nela fundadas.

    Aristteles, contrrio lei de talio, entende a pena como forma de restabelecer

    a justia em sua devida proporo, isto , de remediar a diferena entre o dano e o

    direito, infringindo uma penalidade que reduza a vantagem obtida.

    Tal entendimento da pena se verifica em meio tica de diversos pensadores: j

    havia sido defendido por Anaximandro de Mileto, que, analogamente ao iderio

    religioso, via a pena como tendo a finalidade de restabelecer a ordem csmica; est

    presente na racionalizao de S. Agostinho, o qual afirma que cumprimos a funo que

    por natureza cabe alma enquanto no nos perdemos na multiplicidade do universo, e

    se nos perdemos sofremos a Pena, tanto com nossa prpria perda quanto com o destino

    infeliz que mais tarde nos espera.

    sanes ticas referem-se a infraes dos hbitos sociais, sujeitando o agente a sofrer o remorso, oarrependimento ou a reprovao da opinio pblica; as sanes satricas constituem a conseqncia, areprovao social de certos procedimentos que acarretam o ridculo para o agente, por exemplo, a vaia,o riso, a pilhria e as sanes jurdicas so aquelas realmente disciplinadas pelo Direito e, portanto,pelo prprio Estado sendo muito graves suas conseqncias. ACQUAVIVA, Marcus Cludio.Dicionrio Jurdico Brasileiro. So Paulo: Editora Jurdica Brasileira, 1993, pp. 1106-7

    16 CONDE, Francisco Muoz. Derecho Penal y control social. ApudBITENCOURT, Cezar Roberto.Falncia da pena de priso: causas e alternativas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 98.

    17

    SOLER, Sebastian.Derecho Penal Argentino. Tomo II. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina,1951, p. 372.

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    Vale mencionar ainda a viso de Toms de Aquino, que define o pecado como

    ato contrrio ordem, definindo-se por essa mesma ordem o que reprimido e a

    represso, que a pena; bem como as concepes de Kant e Hegel. Para Kant, mesmo

    dissolvendo-se a sociedade civilizada o ltimo assassino, ainda na priso, precisaria

    sofrer a ao da justia, e Hegel considerava a pena como a conciliao do direito

    consigo mesmo.

    Uma outra concepo de pena, muitas vezes articulada primeira, enfatiza a

    salvao ou correo do ru, afirmando-se a necessidade de substituir a viso retributiva

    da pena por uma perspectiva preventiva.18

    A expresso mais clebre desta concepo a de Plato, apresentada em

    Grgias:19 melhor sofrer a injustia que comet-la e, para quem a cometeu, a melhor

    coisa submeter-se pena. E se algum de ns, (...), comete uma injustia, dever

    demandar voluntariamente e depressa o lugar onde obter a mais rpida punio, ou

    seja, dever procurar o juiz como quem procura o mdico. Nesta perspectiva, o juiz

    como um mdico, que impede a doena da injustia tornar-se crnica, sendo a pena uma

    libertao que o prprio culpado deve querer.20

    Essa finalidade purificadora muitas vezes negada por aqueles que vem na

    pena o restabelecimento da justia. Kant, por exemplo, afirma que o fim primeiro e

    ltimo da pena o de ser aplicada porque um crime foi cometido, e nunca como meio

    para atingir outro bem, seja em proveito do criminoso ou da sociedade civilizada.

    Por outro lado, alguns pensadores aceitam a conexo entre o restabelecimento da

    justia e uma finalidade purificadora da pena, a exemplo de S. Toms de Aquino:21As

    penas da vida presente so medicinais; assim, quando uma pena no suficientepara

    18CORREIA, Eduardo.Direito criminal. Coimbra/Portugal: Livraria Almedina, 1999, p. 43.19Scrates argumenta: ... o culpado e o injusto sero sempre infelizes, e mais infelizes sero se no

    prestarem contas justia e no forem castigados; sero menos infelizes se saldarem estas contas ereceberem o justo castigo da parte dos deuses e dos homens. In:Plato. Grgias. Lisboa-So Paulo:Editora Verbo, 1973, 472 e, p. 83. Sem embargo, observa Anbal Bruno que o pensamento de Platono deixa de ser oscilante, o que no raro tambm em outros pontos da sua doutrina. (...) A teoria quese deduz do Grgias a da pena como justa retribuio e expiao do crime. Mas esse castigo docrime, segundo Scrates, que fala noDilogo, para o criminosos no um mal, mas um bem, um bempelo qual, cometido o injusto, ele deve dar graas aos deuses. BRUNO, Anbal. Direito penal-partegeral:pena e medida de segurana. Tomo 3. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, p. 37.

    20 S para Plato a pena entendida como um bem, pois a medicina da alma.In:Grgias. Lisboa-SoPaulo: Editora Verbo, 1973, 480 b, p. 106.

    21

    ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. 2 ed. Trad. Alfredo Bosi. So Paulo: Editora MestreJou, 1982, p. 751.

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    deter um homem, acrescenta-se outra, como fazem os mdicos que empregam diversos

    remdios quando um s no eficaz.

    Tambm Hegel considerou essa conexo, afirmando que a pena no somente

    conciliao da lei consigo mesma, mas tambm conciliao do delinqente com a lei, a

    qual responde inclusive por sua prpria proteo, constituindo assim, em ltima anlise,

    seu prprio interesse.

    compreensvel, portanto, que a maioria dos filsofos e juristas atuais, bem

    como cdigos e direito positivos vigentes nas vrias naes do mundo, inspire-se em

    uma concepo hbrida da pena, uma conexo entre as noes aristotlica e platnica

    da pena. Denominada ecltica ou mista, esta concepo hbrida atribui pena uma

    funo mais ampla na defesa da sociedade, evidenciando como elementos primordiais

    as contribuies dos diversos pensadores consideradas relevantes para a compreenso

    da problemtica moderna da pena.

    Para efeito deste estudo, luz do disposto na literatura sobre o tema, foram

    destacadas as contribuies de Kant e Hegel, cujas idias neste particular aproximam-se

    da concepo aristotlica da pena, e, por outro lado, Beccaria, Foucault e Von Liszt,

    cujas consideraes acerca do tema podem ser basicamente identificadas como

    platnicas.

    1.2 Kant e a concepo moral da pena

    Deve-se considerar as obras de Emmanuel Kant22 um marco na filosofia

    moderna e, devido a seu carter prtico, um importante marco tambm no renascimento

    da Filosofia do Direito. Curiosamente, pensadores que seguiram a tradio kantiana

    entenderam, de forma equivocada, a teorizao de Kant sobre o direito como mero

    apndice do ordenamento lgico do sistema filosfico crtico, e chegaram a tom-la

    22 Kant (1724-1804), tambm conhecido como o filsofo das Trs Crticas Crtica da razo pura,Crtica da razo prtica e Crtica do juzo. Sua ltima grande obra sistemtica foi A metafsica dos

    costumesque se divide em Princpios Metafsicos daDoutrina do Direitoe Princpios Metafsicos daDoutrina da Virtude.

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    como uma recada no dogmatismo que ele (Kant) havia refutado em sua teoria do

    conhecimento.23

    No obstante, tenha sido mal recebida no mundo filosfico, a Rechtslehreteve

    uma aceitao excepcional entre os juristas, tornando-se ponto de apoio para as

    doutrinas jusnaturalistas e positivistas. Felizmente, na segunda dcada do sculo XIX,

    houve uma reinterpretao das idias jurdicas de Kant, possibilitando sociedade

    contempornea uma nova reflexo sobre questes inerentes tanto cincia jurdica

    quanto Filosofia do Direito.

    Vrias questes jurdicas por ele tratadas foram aprofundadas no livroDoutrina

    do Direito, que completa a obra do autor. Mas a concepo kantiana da pena foi exposta

    mais precipuamente nas obras Crtica da Razo Prtica e Princpios Metafsicos do

    Direito segunda parte, bem como indiretamente contextualizada na obraA Metafsica

    dos Costumes,24em que se ateve aos princpios mais gerais da cincia jurdica.

    Nas idias kantianas, pena atribuda uma natureza moral. Mais precisamente,

    para Kant a lei um imperativo categrico, um princpio moral inquestionvel que

    envolve um valor absoluto: o dever. Estando o respeito s leis dotado de essncia moral,

    o no cumprimento das disposies legais torna o indivduo indigno do direito de

    cidadania e, simultaneamente, a autoridade encontra-se obrigada a punir o

    transgressor.25

    A afinidade com os campos moral e do direito foi uma caracterstica tanto da

    pessoa de Kant quanto de sua filosofia. Isto pode ser verificado explicitamente na obra

    Crtica da Razo Pura, quando ele diz: Duas coisas enchem-me o esprito de

    admirao e reverncia sempre nova e crescente, quanto mais freqente e longamente o

    pensamento nelas se detm: o cu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de

    mim.26

    23LEITE, Flamarion Tavares. O conceito de Direito em Kant: na metafsica dos costumes primeiraparte. So Paulo: cone, 1996, p. 18.

    24 As consideraes de Kant sobre justia, nesta obra, fazem uma diviso entre as justias civil ecriminal: a primeira se refere s relaes mtuas dos homens, a segunda, s relaes entre indivduose o direito penal pblico. CAYGILL, Howard. Dicionrio de Filosofia. Trad. lvaro Cabral. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 212-213.

    25 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falncia da pena de priso: causas e alternativas. So Paulo: EditoraRevista dos Tribunais Ltda., 1993, p. 103.

    26

    KANT, Emmanuel. Crtica da razo prtica. Traduo e prefcio Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro:Livraria Edies de Ouro, s/d, p.253.

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    Para bem compreender a relao que Kant estabelece entre moral e direito, isto

    , sua perspectiva moral da lei penal, preciso examinar alguns dos princpioskantianos

    referentes metafsica do conhecimento, uma vez que a teorizao de Kant no campo

    do direito no pode ser dissociada destes princpios.27

    As proposies de Kant modificaram a tradio filosfica quanto questo do

    conhecimento, que para ele constitui o objeto da filosofia. Kant concebe o

    conhecimento como sendo a sntese da sensibilidade e do entendimento, a serem

    estudados separadamente, sendosensibilidade a percepo do objeto, e entendimento o

    meio atravs do qual possvel pensar este objeto. Os objetos devem, ento, ser dados

    pelos sentidos para serem depois pensados pelo intelecto.28 Visto sob este prisma, o

    conhecimento implica em uma relao entre um objeto e um sujeito. A idia de Kant

    que os dados objetivos so produtos dessa relao.

    Desta forma, contrapondo-se ao empirismo de Locke e Hume,29Kant afirma que

    no o sujeito orientado pelo objeto (o real), mas sim o objeto determinado pelo sujeito,

    posto que s conhecemos o ser das coisas na medida em que nos aparecem, isto ,

    enquanto fenmeno.30Dito de outra forma, s conhecemos a prioridas coisas o que

    ns mesmos colocamos nela.31

    Neste contexto, Kant faz uma distino fundamental entre matria e forma,

    postulando que tudo o que existe, inclusive o conhecimento, se integra atravs da

    matria e da forma. Aquilo que depende do prprio objeto constitui a matria do

    conhecimento. O que depende do sujeito constitui a forma do conhecimento.32

    Por sua vez, transpondo as fronteiras da sensibilidade e adentrando ao mundo

    das idias, a razo distingi-se tambm em terica e prtica. Mais especificamente, Kant

    reconhece no homem no s uma faculdade cognoscitiva, mas tambm uma

    27ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do Direito: uma crtica verdade na tica e na cincia. SoPaulo: Saraiva, 1996, p. 30.

    28 REALE, Giovanni. Histria da Filosofia: do humanismo a Kant. v.2. So Paulo: Paulinas, 1990, p.100.

    29KANT, Emmanuel. Crtica da Razo Pura.Trad. J. Rodrigues de Mereje. s/l: Editora Tecnoprint S.A.,s/d., p. 106.

    30 LEITE, Flamarion Tavares. O conceito de direito em Kant: na metafsica dos costumes - primeiraparte. So Paulo: cone, 1996, p. 30.

    31KANT, Emmanuel. Crtica da Faculdade do Juzo. Trad. Valrio Rohden e Antnio Marques. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 1995, p. 30.

    32

    LEITE, Flamarion Tavares. O conceito de direito em Kant: na metafsica dos costumes - primeiraparte. So Paulo: cone, 1996, p. 30.

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    personalidade (motivaes e inclinaes) que se manifesta em sua conduta, concebendo

    ento a razo prtica como faculdade dirigida ao agir, propriamente dito, com

    capacidade para orden-lo atravs de um imperativo categrico cuja formulao age

    de tal modo que a mxima de tua vontade possa valer-te sempre como princpio de uma

    legislao universal.33

    Note-se que este princpio moral no estabelece o que se deve fazer, constituindo

    apenas um critrio geral para o agir tico representado pela expresso dever-ser,34que

    relaciona uma lei objetiva da razo com uma vontade que, por ser subjetiva, no

    determinada obrigatoriamente pela lei, mas sim orientada pelo juzo do que bom fazer

    ou evitar, definindo como bom aquilo que determina a vontade por meio da razo, ou

    seja, por causas objetivas e no subjetivas.

    Embora nem sempre se faa algo porque seria bom faz-lo, em consonncia com

    sua crena em Deus, na liberdade e imortalidade da alma, que instiga a recompensa da

    virtude com a felicidade, Kant toma a liberdade do homem como pressuposto do

    imperativo categrico e a autonomia da razo prtica como aspecto fundamental de sua

    tica.

    De fato, para que se conceba uma vontade que se faa reger puramente pelo

    senso de dever, necessrio que esta vontade no seja subjugada, mas sim, ao contrrio,

    legisladora de si mesma. Destarte, uma incondicional obedincia ao imperativo

    categrico retiraria deste o seu real sentido.

    Sendo assim, o imperativo categrico agir por respeito ao dever um

    imperativo formal, que liberta o homem de suas inclinaes e desejos, prescrevendo a

    forma e no a matria (contedo da ao). No obstante, caso o homem no aja em

    conformidade com a lei, ter que se submeter s suas imputaes penais.

    Pode-se ento concluir que, em ltima instncia, da autonomia da vontadeprovm a legislao moral e a legislao jurdica, referindo-se esta ltima s aes

    33 7- Lei fundamental da razo pura prtica.In:Kant, Emmanuel. Crtica da Razo Prtica. Traduoe prefcio Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Livraria Edies de Ouro, s/d, p. 64.

    34A clebre frmula do imperativo categrico, age s segundo uma mxima tal que possas querer aomesmo tempo que se torne lei universal, postula que o homem deve agir espontaneamente, com ao

    produzida por sua vontade e no por vontade alheia. NALINI, Jos Renato. tica geral e profissional.2 ed., rev. ampl. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 56.

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    externas, enquanto a primeira diz respeito s aes internas do homem,35 cabendo

    moral somente mostrar que na lei positiva o motivo se encontra em cada dever

    representado na coao externa, e que faltar ao dever de respeitar a lei traz

    implicitamente uma penalizao.36

    Noutros termos, todos os deveres pertencem moral, assim como as obrigaes

    pertencem ao direito, gerando-se uma exigncia moral de que o direito seja acatado de

    modo que as obrigaes jurdicas convertam-se indiretamente em deveres morais. Esta

    parece ser, simultaneamente, a base sobre a qual repousa a identificao kantiana entre

    direito e faculdade de obrigar, e o mago de sua concepo moral da pena jurdica como

    objetivamente necessria, uma ao em si mesma sem nenhum outro fim, constituindo-

    se um imperativo categrico.

    Esse imbricamento entre Direito e Moral permite entender, em alguma medida, a

    afirmao de Kant37 sobre a obrigao que tem um soberano de castigar

    impiedosamente o cidado que transgrediu a lei, pois el que mate, debe morir; no

    hay aqu ninguna atenuacin posible, porque aun la vida ms penosa no puede

    identificarse com la muerte.

    Posto assim, para Kant, a pena jurdica (poena forensis) no ser considerada

    simplesmente como meio para realizar outro bem que no sua prpria aplicao, quer

    em benefcio do culpado, quer da sociedade civil, devendo ser infligida contra o culpado

    pela simples razo de este haver delinqido. Caso contrrio estaria o homem sendo

    tratado meramente como um meio para atingir outros fins. Essa nfase absoluta na

    Justia levou Kant a afirmar que:

    Se uma sociedade civil chegasse a dissolver-se, com o consentimentogeral de todos os seus membros, como por exemplo, os habitantes deuma ilha decidissem abandon-la e dispersarem-se, o ltimo assassinomantido na priso deveria ser executado antes da dissoluo, a fim deque cada um sofresse a pena de seu crime, e que o homicdio no

    35 LEITE, Flamarion Tavares. O conceito de direito em Kant: na metafsica dos costumes primeiraparte. So Paulo: cone, 1996, p. 33.

    36KANT, Emmanuel.Doutrina do direito. Coleo fundamentos do direito. Trad. Cludio de Cicco. SoPaulo: cone editora, 1993, p. 31.

    37

    KANT, Immanuel Apud SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino. Tomo II, 1 reimpresion,Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1951, p. 375.

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    recasse sobre o povo que deixasse de impor esse castigo, pois poderiaser considerado cmplice desta violao pura da justia.38

    Nesta tica, perdem relevncia teses como a da utilidade social da pena,

    entendendo-se como seu objetivo fundamental e nico o de realizar a Justia, sendo

    imprescindveis apenas duas diretrizes, que so: identificar o infrator como merecedor

    de castigo e aplicar-lhe a pena.

    Feitas estas consideraes, mister observar que, se por um lado Kant gesta no

    plano moral sua concepo acerca da pena, Hegel, por outro lado, apesar de

    semelhana de Kant aderir viso aristotlica da pena, diverge de Kant ao gestar no

    plano jurdico sua concepo penal. Tendo em vista o objetivo deste trabalho, essa

    distino torna no apenas oportuna, mas tambm importante, uma avaliao das idiasde Hegel sobre a pena.

    1.3 Hegel e a concepo jurdica da pena

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel39 escreveu sobre vrios temas e questes da

    tradio filosfica, entre eles o do Direito. A obra que apresenta a viso hegeliana da

    pena intituladaPrincpios da Filosofia do Direito, a qual encontra-se dividida em trs

    partes, a saber: O Direito Abstrato; A Moralidade Subjetiva e A Moralidade Objetiva.

    Cabe neste trabalho enfocar o Direito Abstrato, pois nesta parte que Hegel trata

    o direito do indivduo.40No obstante a excelncia da obra jurdica de Hegel, o jurista

    38 KANT, Immanuel. Principios metafsicos de la doctrina del Derecho. Apud BITENCOURT, CezarRoberto. Falncia da pena de priso: causas e alternativas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1993,p.105.

    39 (1770/1831) Filsofo alemo, nascido em Stuttgard. Alm de seus estudo sobre Teologia, interessou-sepela filosofia moderna, especialmente as de Hume e Kant. Como professor na Universidade de Iena,em 1801, na qualidade de livre-docncia, tornou-se amigo e mais tarde adversrio de Schelling. Nestapoca (1807) publicou a Fenomenologia do Esprito. Lecionou na Universidade de Heidelberg, nosanos de 1816 a 1818, perodo que levou a termo a mais completa exposio do seu sistema filosfico, aEnciclopdia das Cincias Filosficas. Em 1818 foi para a Universidade de Berlin assumir a ctedrade filosofia, sucedendo a Fichte, sendo valorizado seu ensino por estudantes e ouvintes ilustres. A obrapublicada mais importante deste perodo foi Os Princpios da Filosofia do Direito.

    40 Indivduo entendido, segundo Hegel, como o que absoluta ou infinitamente determinado,possibilitando determinar de indivduo universal sem se evolver numa contradio dos termos. Aevoluo do indivduo em seu estado inculto at o saber deve ser compreendida em seu sentido geral, eo indivduo universal, isto , o esprito auto-consciente, em seu processo de formao. O indivduoparticular o esprito no acabado: uma figura concreta, em tudo o que o ser determinado domina, uma

    s determinao e na qual os demais esto presentes somente de vis. ABBAGNANO, Nicola.Dicionrio de Filosofia. 2 ed. Trad. Alfredo Bosi, So Paulo: Editora Mestre Jou, 1982, p. 529.

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    italiano Giuseppe Maggiore critica a qualificao do direito individual como sendo

    abstrato, argumentando que:

    S h um direito concreto: o que se realiza no Estado. Qualquer outrodireito extra-estatal ou pr-estatal portanto abstracto, um no-ser. Dialectizar um direito privado (direito da pessoa, da coisa oucontratual), abstracto, ao mesmo tempo que um direito pblicoconcreto absurdo.41

    Maggiore chega a afirmar que um dos obstculos mais difceis da filosofia

    jurdica hegeliana , sem dvida, a infelicssima especulao sobre o direito abstrato.

    Sendo assim, para que se possa melhor compreender a viso hegeliana da pena, faz-se

    necessrio observar a orientao de Reale.42Para esse autor, os trs pontos bsicos que

    podem direcionar o leitor no pensamento de Hegel so: a realidade enquanto Esprito

    infinito; a estrutura dialtica, que a prpria vida do Esprito; e a peculiaridade dessa

    dialtica.

    O primeiro ponto trata da relao entre a realidade e o esprito. O Esprito em

    Hegel tem existncia abstrata ou ideal; mais precisamente, a razo infinita. Por sua

    vez, a realidade enquanto tal entendida como a essncia que atuou como existncia, ou

    seja, a manifestao efetiva do Esprito no exterior. Cada momento da realidade ,

    portanto, absoluto, posto que se realiza em cada um e em todos os momentos, sendotodos absolutamente necessrios.

    Conforme Reale, na proposio de Hegel, o Esprito constitui-se a partir de trs

    dimenses: o esprito subjetivo, o esprito absoluto e o esprito objetivo, conceitos que

    ao mesmo tempo assumem e superam as proposies que precederam as de Hegel,

    formuladas por Fichte e Schelling.

    Por esprito subjetivo Hegel entende o esprito finito, que a alma, o intelecto e

    a razo; o esprito absoluto compreende o mundo das artes, da filosofia e da religio; e oesprito objetivo delineia o mundo das normas do direito, da moralidade e a eticidade.

    Desses, apenas o esprito objetivo e o absoluto constituem realizao plena da razo

    infinita em si mesma.

    41 MAGGIORE, Giuseppe. Apud Orlando Vitorino. In: Hegel. Princpios da Filosofia do Direito.Prefcio e Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimares Editores Lda., 1990, p. XV.

    42

    REALE, Giovanni. Histria da Filosofia: do humanismo a Kant. v.2. So Paulo: Paulinas, 1991, p.100.

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    O segundo ponto para o entendimento das idias de Hegel, a estrutura dialtica,

    a prpria vida do Esprito, ou seja, como ele se realiza. O filsofo concebe a vida do

    Esprito como movimento dialtico, no qual desenvolve-se o prprio saber filosfico.

    Esse dinamismo dialtico constitudo por trs momentos, que so: a tese o momento

    abstrato ou intelectivo ; a anttese, que a negao da tese o momento dialtico ou

    negativamente racional ; e a sntese o momento especulativo ou positivamente

    racional.

    Na dialtica est implcita a idia de que todas as coisas morrem, mas o

    movimento de destruio , em contrapartida, movimento de criao, que provoca a

    superao, a qual, em ltima instncia, caracteriza a realizao do chamado processo

    histrico da realidade.

    Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a espiritualidade dialeticidade,

    evidenciando-se desta forma a constante transformao do ser e, conseqentemente, a

    emergncia de uma nova lgica que parte do princpio de contradio para dar conta

    dessa dinmica do real.

    Merece destaque o fenmeno da negaoque emerge do momento dialtico

    anttese , mas consiste em uma falta apresentada por ambos os opostos tese e anttese

    quando em confronto. A importncia desta falta a fora que a acompanha e que

    impele a uma sntese superior, que se configura como momento culminante do processo

    dialtico momento especulativo.

    O momento especulativo precisamente o terceiro ponto que, segundo Reale,

    deve ser analisado visando-se maior compreenso do pensamento de Hegel,

    constituindo uma peculiaridade de sua dialtica. A dialtica hegeliana um dos aspectos

    de sua filosofia que a diferenciam das formas anteriores de dialtica.

    Para Reale,43 o momento especulativo representa a reafirmao do positivo,entendida como uma negao da negao contida na anttese dialtica, o que promove a

    elevao das teses ao nvel mais elevado.44

    Em outras palavras, o momento especulativo significa, simultaneamente, superar

    e conservar, ambivalncia do uso lingustico do termo alemo aufheben, que,

    paradoxalmente, vem efetivamente esclarecer o elemento especulativo.

    43 REALE, Giovanni. Histria da Filosofia: do humanismo a Kant. v.2. So Paulo: Paulinas, 1991, p.

    109.

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    25

    Esclarecidos esses trs pontos, pode-se ento eleger as trs principais premissas

    a partir das quais se poder delinear a concepo de pena em Hegel: em primeiro lugar,

    entender-se- o Esprito como Razo Infinita, pois o esprito, em sua verdade simples,

    conscincia;45segundo, assumir-se- que a realidade manifestao desta Razo

    nas palavras do autor, o que racional real e o que real racional;46e por fim,

    considerar-se- o princpio da contradio como a lgica a caracterizar a dinmica

    histrica da realidade, expressando-se assim o movimento dialtico, que estrutura tanto

    a realidade quanto o pensamento. Isto porque, segundo a escola histrica, todo este

    percurso do Esprito em busca da sua auto-realizao ocorre na Histria.47

    Partindo-se da premissa de que real o que racional, cabe observar que para

    Hegel o indivduo um ser de razo por ser ele pertencente a uma comunidade que se

    consolidou atravs da sua vivncia histrica, isto , que se concretizou pela ao dos

    indivduos que nela se reconhecem como cidados.

    Desse modo, a eticidade o lugar de integrao (e de atualizao) do indivduo

    na comunidade, da qual ele membro48e, portanto, quem cometeu o crime foi o que,

    no estando na posse [do poder], atacou a comunidade cabea da qual estava o

    outro.49

    Nestes termos, o agir motivado por uma conscincia individual qualifica o delito

    como fator desencadeante da destruio da comunidade, corroborando a formulao

    hegeliana de que o esprito da singularidade precisa ser reprimido para existir a

    comunidade, embora seja esta mesma comunidade quem produz esse esprito como

    decorrncia de sua ao repressiva com um princpio hostil.

    Enquanto nenhuma ao tenha sido cometida, a conscincia-de-si no aparece

    como individualidade singular,50mas quando ocorre a ao, a conscincia-de-si torna-se

    culpa. Nesta relao entre culpa e delito, a culpa se constitui em um agir quando a

    44Idem.45HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Fenomenologia do Esprito. Parte II. Trad. Paulo Meneses. 4 ed.

    Petrpolis: Editora Vozes, 1999, 444, p. 10.46HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princpios da Filosofia do Direito. Prefcio e Traduo Orlando

    Vitorino. Lisboa: Guimares Editores Lda., 1990, p. 13.47 MONCADA, L. Cabral de.Filosofia do Direito e do Estado. 1 v. s/l: Editora Coimbra, s/d, p. 280.48 ROSENFIELD, Denis L.Poltica e liberdade em Hegel. So Paulo: Editora brasiliense, 1983, p. 87.49 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Fenomenologia do Esprito. Parte II. Trad. Paulo Meneses. 4 ed.

    Petrpolis: Editora Vozes, 1999, 473.50Ibidem, 464.

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    escolha se direciona para um comportar-se negativamente para com o outro; quer dizer,

    em viol-lo, mediante seu ato, que constitui o momento do delito.

    Pode ser que o direito, que se mantinha espreita, no esteja presentepara a conscincia operante em sua figura peculiar, mas somenteesteja em si, na culpa interior da deciso de operar. Porm aconscincia tica mais completa, sua culpa mais pura, quandoconhece antecipadamente a leie a potncia que se lhe opem, quandoas toma por violncia e injustia, por uma contingncia tica; e comoAntgona, comete o delito sabendo que o faz.51

    Essa anlise permite retomar a premissa referente dinmica histrico-dialtica

    da realidade, opondo a ao delitiva necessidade de restabelecer a ordem jurdica, que

    negada pelo delinqente. Mais especificamente, uma vez circunscrito no processo

    histrico, pode-se enfocar o Direito Penal atravs da tica hegeliana, tomando-se por

    tese a ordem jurdica (vontade geral), o delito (vontade individual) por anttese, e por

    sntese a pena.

    O delito, contradio entre as vontades individual e geral, a expresso de uma

    vontade irracional alm de particular, constituindo assim uma negao do direito, o que

    faz da pena, castigo que vai reafirmar a vontade geral, a negao da negao.

    Seguindo esse raciocnio, as noes de justia e injustia podem para Hegel ser

    estabelecidas tendo por parmetro a vontade geral. Aquilo que, por outro lado, decorre

    de uma vontade individual, que no coincide com a geral e for praticado contra esta

    vontade geral, ser entendido como injustia, ou seja, oposio entre o direito em si e a

    vontade particular.52

    Vale ressaltar que se deve entender a injustia como um fato comum a todas as

    comunidades, mediante o qual emerge um direito que exige efetivao. Em outras

    palavras, para Hegel a injustia no deve ser analisada somente pelo mal que causa ao

    corpo social, mas tambm por conter uma espcie de apelo negativo de verdade: forma

    pela qual se ver nascer o direito liberdade subjetiva.53

    51Ibidem, 470.52 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.Princpios da Filosofia do Direito. Trad. Norberto de Paula Lima,

    adaptao e notas de Mrcio Pugliesi. So Paulo: cone, 1997, p. 99.53 ROSENFIELD, Denis L.Poltica e liberdade em Hegel. So Paulo: Editora brasiliense, 1983, p. 89.

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    Nesta argumentao, o direito se torna a prpria existncia da vontade livre,54

    liberdade realizada em instituies historicamente determinadas, que como tais nada

    mais tm a fazer com a liberdade entendida como arbtrio individual. A eticidade

    culmina ento no Estado, que a realidade histrica mxima e, portanto, a mais ampla,

    a nica verdadeira e definitiva realizao do direito.

    O ingresso de Deus no mundo, diz Hegel, o Estado; o seufundamento a potncia da razo que se realiza como vontade. Naidia do Estado no se deve ter presentes estados particulares,instituies particulares, mas se deve considerar a Idia por si mesma,esse Deus real.55

    Torna-se fundamental assinalar que Estado para Hegel significa um Estado

    perfeito, que chega quase a ser divino, o que escapa condio de simples contrato em

    que as partes, o indivduo, negociam o bem comum a partir da parcela de liberdade que

    delegaram ao Estado.

    Estado, para Hegel, representa a unidade final, a sntese dos interesses

    contraditrios entre os membros da comunidade que para superar as questes que

    podem pr em risco esta convivncia, reconhecem a sua soberania. Os cidados tm a

    percepo clara de que devem agir visando ao bem comum, sendo o Estado a esfera dos

    interesses pblicos e universais.Fazendo-se uma aluso ao pensamento de Hobbes, pode-se entender que quando

    o indivduo, um ser livre, pratica um ato representativo de seu desejo, este ser injusto

    quando em conflito com a vontade geral que ele mesmo ajudou a criar quando abriu

    mo de uma parte de sua liberdade para manter a ordem social.56

    Pode-se dizer que o delito faz parte de um contrato que reprime as pulses, ou

    motivaes individuais, que no tm como meta o bem-comum. Como manifestao da

    vontade particular, a ao que infringe o direito pode assumir vrias aparncias: como odano involuntrio ou civil, quando ele for imediatamente em si; como impostura,

    quando for afirmado como tal pelo sujeito; ou como no crime, quando for puramente

    negativo.57

    54 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princpios da Filosofia do Direito. Prefcio e Trad. OrlandoVitorino. Lisboa: Guimares Editores Lda, 1990. 29, p. 48.

    55 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.Princpios da Filosofia do Direito. Trad. Norberto de Paula Lima,adaptao e notas de Mrcio Pugliesi. So Paulo: cone, 1997, p. 99.

    56Ibidem, 82, p. 99.57Ibidem, 83, p. 99.

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    O verdadeiro carter do delito negativo e deve ser contestado para que o direito

    se restabelea e se afirme como real e vlido em si mesmo,58e restabelece-se na medida

    em que resulte num castigo isto , numa pena que dever anular a infrao.

    Embora d uma aparncia de destruio do direito, o ato delituoso no deve ser

    assim entendido: enfocando-se o Direito Penal atravs da perspectiva hegeliana, em que

    a negao do direito pelo ato delituoso tem na pena a negao da sua negao. Portanto

    o Direito, por sua natureza, invulnervel. La pena realiza una especie de

    demonstracin (...) es una especie de retorsin de la propia negacin del derecho que el

    delinquente intenetara; una voluntad racional, al querer la violacin del derecho, es

    como si quisera la pena. Isto justifica a noo absoluta da pena.59

    Dito de outra forma, aceitando-se a pena como fator restabelecedor da ordem

    jurdica, deve-se aceit-la no como um mal que responde a um mal anterior, visto que

    isto seria tambm irracional, como a vontade individual do delinqente. A pena

    retributiva, pois vai retribuir ao delinqente pelo ato praticado segundo a intensidade da

    negao do direito, ou seja, a intensidade da pena se dar conforme a intensidade do

    delito.

    Significa dizer que com a aplicao da pena devolve-se ao delinqente a

    condio de ser racional e livre, a honra e seu direito de sanar o prejuzo imposto por

    sua ao resultante de sua vontade particular. Nesta tica, semelhana do que se

    verificou no pensamento de Kant, ficam excludas as teses referentes utilidade social

    da pena, entendendo-se como seu objetivo fundamental e nico o de realizar a Justia,

    sendo imprescindveis apenas duas diretrizes, que so: identificar o infrator como

    merecedor de castigo e aplicar-lhe a pena.

    Fica assim comprometida a integrao de dois aspectos sociais fundamentais da

    pena: a flexibilizao do encarceramento e a reintegrao do apenado ao social, cabendo

    por isso avaliar a seguir algumas destas teses; mais precisamente, as de Beccaria,

    Foucault e Von Liszt, que constituem uma viso preventiva, ou seja, uma concepo de

    pena que enfatiza a salvao ou correo do ru.

    58Ibidem, 82, p. 99.

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    1.4 Beccaria: o coprnico da humanizao do direito penal

    Cesare Beccaria entra para a histria do Direito Penal inaugurando na Itlia o

    movimento renovador, abrindo caminho escola clssica, adotando uma concepo

    platnica da pena, visando correo do ru, para impedi-lo de promover novos danos

    aos seus concidados.

    Considera-se parte central de seu pensamento as suas reflexes sobre a origem

    das penas e do direito de punir, pois, em uma perspectiva histrica, questiona na

    tradio francesa as penas aplicadas no sentido de garantir a perpetuao do corpo

    social, bem como meios preventivos do delito, consolidando assim sua nova filosofia

    quanto ao fundamento e necessidade das penas, concebidas pelo autor como um dos

    maiores freios para os delitos.

    Partindo-se de sua obra fundamental, Dos Delitos e das Penas,escrita aos seus

    26 anos, pode-se fazer uma anlise do pensamento de Beccaria, identificando suas

    principais idias e influncias. Para este autor, mais importante que a moral poltica -

    que no suficiente para dar uma garantia de convivncia social harmnica - a

    vontade humana, no qual devem estar os princpios essenciais do direito de punir,

    constituindo-se, assim, os motivos sensveis, a fonte primeira das penas.

    Defendendo esta posio, Beccaria recusa-se a alicerar a pena apenas na

    crueldade, para alguns a fonte nica da sua fora e poder. Em sua concepo, ele atribui

    o poder da pena sua infalibilidade, a ser conseguida mediante a vigilncia dos

    magistrados e a severidade do juiz, dentro de uma legislao branda.

    Mais precisamente, postula que a certeza de um castigo, mesmo moderado, ter

    um efeito maior na motivao do homem do que o receio da punio mais severa com

    possibilidade da impunidade. Para que a pena produza efeito (...) deve ser calculada a

    infalibilidade da pena e a perda do bem que o crime deveria produzir. O resto

    suprfluo e, portanto, tirnico.60

    59 SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino. Tomo II. 1 reimpresion. Buenos Aires: TipograficaEditora Argentina, 1951, p. 376.

    60

    BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2 ed.ver., 2 tir. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 88.

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    Como a pena no ir desfazer o delito cometido, segundo Beccaria,61 inexiste

    razo lgica para fazer sofrer e atormentar o infrator, sendo funo da pena apenas

    impedir nova ao delituosa deste ru e construindo-se a infalibilidade penal, impedir,

    atravs do exemplo, que outros possam querer agir do mesmo modo. Ademais, para

    Beccaria, fundamental que se deva cuidar para que as penas atinjam menos os corpos

    dos rus do que o imaginrio dos homens, causando somente, com sua eficcia, um

    impacto duradouro nos cidados.

    Muito provavelmente este posicionamento de Beccaria resulta, ao menos em

    grande parte, do fato de ter ele prprio vivido uma experincia no sistema prisional,

    para onde foi injustamente enviado por interferncia paterna. Pode-se ento

    compreender melhor sua motivao para escrever sobre o tema, ou seja, sua indignao

    para com o sistema prisional, ainda que expressa na forma de crtica discreta, por receio

    de novas represlias: Receoso de possveis perseguies, imprimiu a obra

    secretamente, em Livorno, e, mesmo assim, abrandando sua colocao crtica com

    expresses vagas e genricas.62

    Devido natureza de suas contribuies, que ainda hoje so alvo da anlise dos

    criminalistas, e por ter sido o primeiro a fazer um protesto pblico contra a legislao

    penal de sua poca, Beccaria conhecido por alguns autores como o Coprnico da

    humanizao no Direito Penal. Chega-se a atribuir reforma do Direito Penal, incluindo

    a transformao dos institutos penais em uma cincia do Direito Penal, ao ousado

    movimento humanizador e legalista impetrado por Beccaria, marcado por seu forte

    poder de argumentao, o qual influenciou os iluministas franceses.

    Por outro lado, alguns autores no reconhecem Beccaria como autor da reforma

    humanista, a exemplo de Ugo Spirito e Manzini. Alm disso, adeptos de Von Liszt,

    pesquisando as causas deste movimento humanitrio, fazem ainda meno s idias deoutros filsofos, Grcio, Hobbes, Spinoza, Locke, Pufendorf e Tomasius, como sendo o

    ponto de partida do movimento, alegando caber a Beccaria apenas a contextualizao

    destas idias e a iniciativa prtica da luta reformista.

    Controvrsias parte, os motivos concretos da reforma penal, questes como a

    tortura, j vinham sendo motivo de estudos e teses universitrias desde o sculo XVII,

    61Ibidem, p. 52.

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    como tambm viria a ser, mais tarde, a pena de morte. Assim sendo, na Europa do

    sculo XVIII havia exigncias de mudanas no sistema penal e a obra de Beccaria

    trouxe luz a matria penal e a necessidade de seu enfrentamento.

    O genial panfletrio teve a percepo do exato momento favorvel reforma e forneceu a arma ideolgica que faltava ao homem mdio

    para se contrapor aos argumentos especiosos dos juristas caudatriosdo absolutismo. Ele, enfim, teve o mrito raro de ser o intrprete fielde uma poca da Histria: quantas outras obras podero, sem exageronem favor, reclamar para si iguais ttulos?63

    Diante do exposto, inegvel a importncia da obra de Beccaria, uma vez que

    objetivou atravs das palavras as aspiraes de uma poca, menos pelo mrito de ter

    sido o primeiro a faz-lo do que por t-lo feito com um vocabulrio acessvel ao homemcomum.

    Cumpre, portanto, examinar algumas de suas colocaes acerca da justia penal,

    partindo de suas colocaes sobre as fontes das quais se originam os ditames morais e

    polticos que regem a vida dos indivduos: a Revelao, a Lei Natural e as Convenes

    artificiais. Conforme afirma, essas fontes tm em comum a tarefa de levar a felicidade

    ao homem e, portanto, nunca devem entrar em contradio.

    A Revelao, de natureza divina, e a Lei Natural, no podem ser modificadas.Diferem, portanto, das convenes artificiais, que, por serem estipuladas por intermdio

    dos pactos expressos ou tcitos que os homens acordam entre si, podem variar no tempo

    e no espao.

    Conseqentemente, as justias divina e natural so constantes e imutveis,

    enquanto a justia humana ou a poltica podem mudar quando no forem necessrias ou

    teis sociedade, sendo a sua essncia resultante das relaes entre os governos e os

    homens. Desta forma, Beccaria contribuiu para a desmistificao do sistema penal,

    estabelecendo os limites entre a justia divina e a humana, bem como entre o pecado e

    o crime.64 Atacando, igualmente, o direito de vingana privada como alternativa

    jurdica individual, substituindo-a pelo ius puniendicomo um fim social.

    62Cretella & Cretella In:BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. Trad. J. Cretella Jr.;Agnes Cretella. 2 ed. rev., 2 tir. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 09.

    63 ANTUNES, Ruy da Costa.Problemtica da pena. Recife: UFPE, 1958, p. 186.64

    BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. Trad. Lucia Guidicini; Alessandro BertiConfessa. So Paulo: Martins Fontes, 1999a, p. 9.

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    Tratando a pena como um instrumento decorrente de fatores humanos, Beccaria

    analisou o Cdigo Romano compilado por Justiniano,65conduzindo um estudo crtico

    sobre os abusos do sistema criminal, atravs de uma avaliao das formas de penalidade

    aplicadas poca. A partir desta anlise, formulou os princpios da igualdade perante a

    lei e da proporcionalidade entre a pena e o delito, que visavam impedir as injustias dos

    processos penais e, mais especificamente, os problemas relacionados com a priso.

    Nenhum homem, afirma o autor, com base no contrato social, sacrifica

    gratuitamente parte de sua liberdade sem uma contrapartida; se o faz, para garantir um

    nvel mais amplo de liberdade, e de modo mais seguro, na sua comunidade social. Nos

    termos do autor, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua

    liberdade; (...) a menor poro possvel dela, quer dizer, exatamente o necessrio para

    empenhar os outros em mant-lo na posse do restante.66

    Seguindo esse raciocnio, Beccaria entende a soberania da nao como a soma

    destas partes de liberdade sacrificadas, em prol de um bem geral, adotando como

    fundamento da sustentao desta soberania o direito representado pelas leis de punir

    os abusos, sendo a pena a fora coativa que tenta garantir o cumprimento desta mesma

    lei.

    A partir desta assero, depreendem-se alguns princpios reguladores da matria

    penal postulados pelo autor. Inicialmente, tem-se que somente as leis podem determinar

    qual penalidade deve corresponder a cada delito especfico; segundo, que as referidas

    leis penais devero ser estabelecidas de acordo com o contrato social, ou seja, tambm

    por representao legal, no caso, atravs da figura do legislador.

    Quanto questo de serem as penas justas67ou injustas, o princpio regulador a

    necessidade de sua aplicao, isto , as penas que vo alm da necessidade de manter o

    depsito da salvao pblica so injustas por natureza.68Beccaria enftico sobre aquesto da injustia penal quando, por exemplo, se refere aos juzes que aplicam um

    castigo maior do que o fixado na lei. A base deste princpio parece ser a prpria

    65 Justiniano (482 a 565) foi o responsvel pela elaborao do Corpus Juris Civilis.66BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimares. So Paulo: Hemus

    Editora, 1983, p. 15.67 Beccaria conceitua justia como sendo o ponto de vista a partir do qual os homens encaram as coisas

    morais para o bem-estar da cada um. BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas. Trad.Lucia Guidicini; Alessandro Berti Confessa. So Paulo: Martins Fontes, 1999a, p. 29.

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    concepo de Beccaria sobre a pena que alm de encontrar-se centrado na necessidade

    de proteo do indivduo69 uma maneira de alcanar a convivncia social, ficando as

    penas cruis sem justificativa por serem contrrias natureza do contrato social.

    Note-se, portanto, a importncia que recai sobre o processo de seleo e

    aplicao das penas. Segundo o pensamento do autor, impossvel evitar as desordens

    decorrentes das aes humanas,70 tendo em vista tambm o aumento da populao e

    interesses particulares. A tendncia que os crimes aumentem em funo do interesse

    de cada um.

    Desta forma, h sempre a necessidade de ampliar as penas71, que o obstculo

    poltico capaz de impedir o efeito nocivo das aes humanas, mas que s ser eficaz se

    respeitada uma certa lgica punitiva, erigida sobre trs pilares principais: a

    infalibilidade, a proporcionalidade e a constncia da lei.

    A infalibilidade, definida anteriormente como a certeza da punio prometida na

    lei, faz o cidado avaliar os inconvenientes de suas atitudes, combatendo assim a

    motivao para delinqir e, conseqentemente, desviando-se do crime. Para tanto, todos

    os cidados devem ter acesso fcil ao texto das leis e os julgamentos, provas do crime e

    a deciso devem ser pblicos, pois no possvel duvidar que, na mente do que pensa

    cometer um crime, o conhecimento e a certeza das penas coloquem um freio

    eloqncia das paixes.72

    Para Beccaria, um aspecto importante da infalibilidade da lei a rapidez com

    que esta aplicada, isto , quanto mais clere for a justia mais atinge o seu propsito

    porque protege o ru dos tormentos cruis e incertezas quanto a sua situao. Estende-se

    essa preocupao ao tempo de recolhimento ao crcere destinado a impedir a fuga, a

    68BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas.Trad. Torrieri Guimares. So Paulo: Hemus

    Editora, 1983, p. 15.69 FREITAS, Ricardo de Brito A. P.Razo e sensibilidade: fundamentos do direito penal moderno. So

    Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 85.70O autor se refere as aes humanas como decorrentes de uma srie de motivaes desorganizadas e

    confusas que se chocam e ferem os interesses individuais.71 Embora a evidncia da necessidade de novas leis seja decorrente da prpria natureza humana, Beccaria

    tambm argumentava sobre a necessidade da clareza das leis. Nas palavras de Ricardo de Brito Freitas:para que as leis fossem claras teriam que ser necessariamente em pequeno nmero. Leis emabundncia seriam sinnimo de obscuridade, pois estariam freqentemente em concurso, ensejandodificuldades hermenuticas. Clareza, para os iluministas em geral, seria sinnimo de pequenaquantidade de leis. FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Razo e sensibilidade: fundamentos do direitopenal moderno. So Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 87.

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    qual no deveria atuar j como uma pena, por no haver ainda uma condenao. Essa

    rapidez tambm necessria para no desarticular a punio do delito. Nas palavras do

    autor:

    A prontido da pena mais til porque, quanto mais curta adistncia do tempo que se passa entre o delito e a pena, tanto maisforte e mais durvel , no esprito humano, a associao dessas duasidias, delito e pena, de tal modo que, insensivelmente, se considerauma como causa e a outra como conseqncia necessria e fatal.73

    Visando-se diminuir no apenas em quantidade, mas tambm em potencial

    agressivo, os delitos praticados, torna-se fundamental o conhecimento quanto fora

    das penas, encontrada na proporcionalidade entre os delitos e as penas, pois a verdadeira

    medida do delito o mal que causa sociedade, contrariando os que acreditam que ele

    deve ser quantificado pela inteno do ato, ou ainda pela dignidade da pessoa ofendida.

    A pena deve, portanto, acompanhar o delito: nos crimes violentos o infrator deve

    sofrer restries sua liberdade fsica; nos furtos praticados sem violncia deve ter uma

    pena pecuniria e nas injrias pessoais e contrrias honra a pena deve ser a infmia.74

    Nesta situao, dividem-se os delitos em duas espcies, os crimes horrendos e

    leves, que devem ser colocados em bases diferentes, privilegiando a segurana dos

    indivduos, que um direito natural, e no a segurana dos bens, que um direito dasociedade. Assim, no caso de crimes degradantes que se perpetuam no imaginrio dos

    cidados, o culpado no deve ser favorecido pela lei.

    Todavia, quando se trata de crimes de menor potencial ofensivo, ignorados e

    pouco relevantes, segundo o autor, o infrator deve ter um prazo determinado para voltar

    ao convvio sem temer novos castigos.

    Para um povo que aceitasse as vantagens das penas moderadas, se as

    leis encurtassem ou aumentassem a durao dos processos e o tempoem que prescrevem de acordo com a gravidade do crime, se a priso

    72BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimares. So Paulo: HemusEditora, 1983, p. 19.

    73BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. Trad. J. Cretella Jr.; Agnes Cretella. 2 ed.rev., 2 tir. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 72.

    74 Nas palavras de Beccaria, infmia o que marca a pblica desaprovao que priva o ru do respeito dacomunidade, da ptria e daquela quase fraternidade que a sociedade inspira, no devem ser nemmuito freqentes para no enfraquecer a fora da opinio e no deve incidir sobre um grande nmerode pessoas para no acabar se reduzindo a infmia nenhuma. BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos

    delitos e das Penas. Trad. J. Cretella Jr.; Agnes Cretella. 2 ed. rev., 2 tir. So Paulo: Editora Revistados Tribunais, 1999, p. 78.

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    provisria e o exlio de moto prprio fossem computados como parteda pena que o culpado merece, se chegaria a estatuir assim uma justa

    progresso de castigos leves para um grande nmero de crimes.75

    No basta, pois, serem as penas proporcionais ao delito, devem tambm serdiferenciadas quanto ao modo de aplicao, propiciando-se o estabelecimento de poucas

    penas suaves para um grande nmero de delitos no violentos, que no necessitem da

    pena privativa de liberdade.

    Isto significa dirigir a pena de priso somente aos criminosos que possam causar

    um maior mal sociedade, constituindo um erro colocar numa mesma masmorra o

    criminoso convicto e o suspeito, bem como providenciar dois encaminhamentos para os

    delitos, somando a proporcionalidade infalibilidade: nos crimes graves a sentena

    definitiva deve ser rpida, inviabilizando aos maus a perigosa possibilidade de

    impunidade; nos crimes de pouco potencial ofensivo e mais comuns, no h tanta pressa

    pois a impunidade menos perigosa.

    Como conseqncia, cuidado anlogo deve ento ser tomado quanto

    interpretao das leis. Segundo Beccaria, muito perigoso que o juiz consulte o esprito

    da lei,76 pois cada homem tem a sua percepo dos fatos, os quais se modificam

    conforme a poca ou ainda segundo as idias que estejam no momento em seu esprito.

    Uma vez adotado semelhante procedimento, fica ameaada a constncia da lei, o

    terceiro pilar da lgica punitiva de Beccaria, sendo mais correto assumir que em cada

    crime o juiz dever estruturar um silogismo perfeito: a maior deve ser a lei geral; a

    menor, a ao conforme ou no a lei; a conseqncia, a liberdade ou a pena.77

    Vale ressaltar que o princpio da igualdade perante a lei, anteriormente

    mencionado, um pressuposto da lgica punitiva proposta por Beccaria. Mais

    precisamente, tendo afirmado que a medida do delito, e por conseguinte da pena que o

    acompanha, corresponde ao dano pblico causado e no sensibilidade ou nobreza do

    infrator, o autor combateu a idia de que as penas devem ser aplicadas diferentemente

    75BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas.Trad. Torrieri Guimares. So Paulo: HemusEditora, 1983, p. 38.

    76 Esprito de uma lei deve ser, pois, o resultado da boa ou da m lgica de um juiz, de uma digestofcil ou difcil, da debilidade do acusado, da violncia das paixes do magistrado, de suas relaes como ofendido, enfim, da reunio de pequenas causas que modificam as aparncias e transmudam anatureza dos objetos no esprito mutvel do homem. BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e dasPenas. Trad. Torrieri Guimares. So Paulo: Hemus Editora, 1983, p. 18.

    77

    BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. Trad. Lucia Guidicini; Alessandro BertiConfessa. So Paulo: Martins Fontes, 1999 a, p. 24.

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    em virtude da diversidade da educao entre nobres e plebeus, ou por causa das

    conseqncias da penalidade famlia do ru.

    Quanto a este princpio, ganham relevncia especial suas colocaes acerca do

    crime de furto. Para Beccaria, o indivduo que:

    Procura enriquecer custa alheia deve ser privado dos prprios bens,mas como habitualmente este o delito da misria e do desespero, (...)a pena mais oportuna ser ento a nica forma de escravido que se

    pode chamar de justa, ou seja, a escravido temporria dos trabalhos eda pessoa a servio da sociedade comum,para ressarci-la com a

    prpria e total dependncia, do injusto despotismo exercido sobre opacto social.78

    Segundo Beccaria, se o desejo da sociedade for realmente prevenir os delitos,

    leis simples e evidentes devem ser elaboradas, despertando sobretudo nos juzes o

    interesse em manter a confiana nele depositada. Uma boa legislao79no mais do

    que a arte de conduzir os homens maior soma de bem-estar possvel, e para que a

    pena no seja a violncia de um ou de muitos contra o cidado particular, dever ser

    essencialmente pblica, rpida, necessria, a mnima entre as possveis, nas dadas

    circunstncias ocorridas, proporcional ao delito e ditadas pela lei.80

    Infelizmente, os processos at hoje utilizados para prevenir o delito tm sido

    insuficientes ou contrrios finalidade a que se propem. Este foi tambm o contexto

    com que se defrontava Beccaria, salientando-se entretanto que o autor acreditava na

    mudana daquela realidade e almejava a elaborao de novas estratgias penais que de

    fato alcanassem o fim desejado: medida que as penas forem moderadas, (...) que,

    enfim, a compaixo e a humanidade adentrarem s portas de ferro e prevalecerem sobre

    os inexorveis e endurecidos ministros da justia, as leis podero contentar-se com

    indcios sempre mais fracos para a priso.81

    Beccaria parecia vislumbrar a criao das penas alternativas ao tentar atender

    demanda universal de um instrumento capaz de minimizar o problema da pena privativa

    de liberdade e, mais especificamente, do sistema penitencirio.

    78Ibidem, p. 76.79 Felizes as pouqussimas naes que no esperam que o lento movimento das combinaes e

    vicissitudes humanas, aps haverem atingido o mal extremo, conduzissem ao bem, mas que aceleraramas passagens intermedirias com boas leis. BECCARIA, Cesare Bonesana.Dos delitos e das Penas.Trad. Lucia Guidicini; Alessandro Berti Confessa. So Paulo: Martins Fontes, 1999a, p. 23-24.

    80Ibidem, p. 138.81Ibidem,p. 99.

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    1.5 Michel Foucault e a microfsica do poder punitivo

    O pensador francs Michel Foucault82no apenas lanou novas luzes sobre as

    cincias humanas, como tambm sobre o papel social de vrios saberes cientficos,

    entre os quais encontram-se a Criminologia e o Direito.

    No campo do Direito foram particularmente influentes os seus estudos acerca da

    priso e das prticas punitivas, nos quais analisa um dos principais aspectos do

    funcionamento de nossas instituies jurdico-disciplinares, ou seja, a punio e o

    sistema punitivo.Valendo-se de relatos e exemplos de penas utilizadas desde o ano de 1757,

    poca em que as sanes penais no eram padronizadas quer em funo dos crimes,

    quer dos delinqentes, Foucault analisa em seu livro Vigiar e Puniras transformaes

    ocorridas na passagem do sculo XVIII para o XIX que modificaram a arte de punir.

    A prtica penal francesa foi regida pela ordenao de 1670 at a Revoluo,

    dentro do qual as penas fsicas tinham espao garantido, embora as penalidades mais

    utilizadas fossem a multa ou banimento, as quais vinham precedidas de algum suplciocorporal que constitua a parte significativa da penalidade.

    O suplcio, explica Foucault, caracteriza-se pelo sofrimento fsico, mas, em seu

    carter penal, trs um significado que o diferencia de uma simples punio corporal:

    um ritual organizado, um estilo especfico de produo de sofrimento que visa tambm

    eliciar a verdade do crime, por isso no comparvel a uma revolta da justia. Em caso

    de morte, no estaria se dando a privao do direito vida e sim o final de uma srie de

    sofrimentos calculados: a morte-suplcio a arte de reter a vida no sofrimento.83

    A justificativa para o uso do suplcio como penalidade e sua importncia na

    prtica judicial residem no fato de ele trazer tona a verdade, alm de ser instrumento

    de poder, visto que o corpo do condenado o objeto no qual recai o poder do soberano.

    Quanto tortura, Foucault afirma que, na hierarquia das punies da Ordenao de

    1670, ela considerada a penalidade mais grave abaixo da pena de morte. Enquanto no

    82 Michel Foucault, 1926-1984.83

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Trad. Raquel Ramalhete. 19 ed.Petrpolis: Ed. Vozes, 1999, p. 31.

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    suplcio, o corpo o objeto de castigo em busca da verdade, na tortura o sofrimento

    simultaneamente forma de punio e instruo.

    O sculo XIX foi marcado, ao menos em tese, ressalva Foucault, por uma

    movimentao social contra a prtica dos castigos tradicionais. De fato, em meio aos

    escndalos na justia tradicional que j vinham ocorrendo na Europa do sculo XVIII,

    surge, como visto no tpico anterior, a perspectiva humanizadora defendida por

    reformadores pioneiros como Beccaria, levando ao judicirio a discusso sobre a

    suavizao das penas.

    Sendo impulsionada por uma preocupao com a moral e o direito de punir, esta

    perspectiva fundamentou um projeto no qual o homem por trs do criminoso tornou-se

    a verdadeira meta, ou seja, um indivduo a ser corrigido e transformado pela

    interveno penal. Foucault aborda essa preocupao a partir de dois planos de anlise,

    o scioeconmico e o sciopoltico, esclarecendo um pouco os bastidores do

    reformismo.

    No primeiro plano, enfoca as modificaes na tipologia dos crimes, resultante de

    alteraes da realidade econmica, bem como a importncia da mudana na conscincia

    subjetiva dos indivduos em geral quanto ao papel da punio na sociedade, conseguida

    retirando-se gradativamente as punies do rol de espetculos dirigidos ao povo e

    passando-as condio de novo ato administrativo.

    Foucaultressalta que, com o crescimento das riquezas e propriedades, os crimes

    violentos foram dando lugar aos crimes contra a propriedade. Conseqentemente,

    mudou o perfil do criminoso, surgindo ento a figura dos velhacos e espertalhes, e

    tambm o perfil da delinqncia, passando esta a priorizar mais as operaes furtivas

    do que a demonstrao de fora, diminuindo os riscos de massacres.

    semelhana do que prev a dialtica social postulada por Hegel, essa novadinmica social (tese) teve seus reflexos na dinmica jurdica (anttese), ocasionando o

    investimento em vigilncia e mudanas no mecanismo legal de punio: como sntese,

    valorizou-se mais a sano sobre os atos ilcitos ocorridos contra os bens de

    propriedade, fazendo com que as prticas punitivas se adequassem a este raciocnio,

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    favorecendo uma outra poltica penal, suavizao dos crimes antes da suavizao das

    leis.84

    Segundo Foucault, neste contexto de novos crimes e criminosos, a nova

    proposta para afastar os indivduos da criminalidade era criar a certeza de punio, bem

    aosmoldes de Beccaria, evitando-se uma inverso dos papis, que faria o carrasco se

    parecer com o criminoso, os juzes aos assassinos, (...) fazendo do supliciado um objeto

    de piedade e de admirao.85

    Deixa, portanto, o suplcio condio de espetculo pblico, a mostrado pelo

    poder do soberano, tornando-se a prpria condenao a marca negativa da

    personalidade do criminoso, que a ela se adere transformando sua vida. A publicidade

    sobre o caso assumia o carter de uma punio a mais, criando-se a concepo de

    indecoroso ser passvel de punio, mas pouco glorioso punir.86

    No segundo plano de anlise da reforma humanizadora, o sciopoltico,

    Foucault destaca as crticas dos reformadores ao prprio sistema penal, levando ao

    judicirio tambm a discusso sobre os limites do direito de punir. O homem que os

    reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso tambm um

    homem-medida: no de coisas, mas de poder.87

    No s o castigo excessivo como tambm a irregularidade no poder de punir

    sofria crticas dos reformistas. O poder do soberano e o poder de punir fundiam-se no

    superpoder monrquico, fazendo do uso do suplcio, por exemplo, mais um

    instrumento de poder do que de busca da verdade, visto que o corpo do condenado era

    ento o objeto no qual recaa o poder do soberano.

    Estabeleciam-se, pois, dois tipos de poder: o que presta a justia e formula uma

    sentena aplicando a lei e o que faz a prpria lei,88 especialmente evidenciado na

    questo dos privilgios, que desde muito tempo enfraquece e torna incerta a justia.Portanto:

    84 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Trad. Raquel Ramalhete. 19 ed.Petrpolis: Ed. Vozes, 1999, p. 65.

    85Ibidem, p. 13.86Idem, p. 13.87 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Trad. Raquel Ramalhete. 19 ed.

    Petrpolis: Ed. Vozes, 1999, p. 64.88 Ibidem, p. 67.

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    A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratgia parao remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades queo tornam mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bemdetalhado em seus efeitos; enfim, que aumentem os efeitosdiminuindo o custo econmico e seu custo poltico. A nova teoria

    jurdica da penalidade engloba na realidade uma nova economiapoltica do poder de punir.89

    Sob a bandeira da humanizao das penas acontecia a retomada poltica do

    poder de julgar, at ento atrelado a um s soberano, tendo por meta torn-lo um poder

    pblico:

    Fazer da punio e da represso das ilegalidades uma funo regular,coextensiva sociedade; no punir menos, mas punir melhor; punir

    talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com maisuniversalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corposocial o poder de punir.90

    Como conseqncia, marcando o fim da era clssica, gestou-se uma completa

    reformulao da prpria dinmica do poder, j no definido a partir de polarizaes

    absolutas entre o soberano e os sditos, mas sim espalhado pela sociedade inteira, de

    modo que os indivduos submetiam-se, reciprocamente, uma nova realidade, que

    Foucault denominou microfsica d