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Educ. Matem. Pesq., São Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 O ensino de geometria no ciclo de alfabetização: um olhar a partir da provinha Brasil The geometry teaching in literacy cycle: a view from “provinha Brasil” _____________________________________ CÁRMEN LÚCIA BRANCAGLION PASSOS 1 ADAIR MENDES NACARATO 2 Resumo O ensino de geometria na educação básica talvez seja o tema que mais mereceu estudos e pesquisas no final do século XX. Depois de longo período de abandono, voltou a compor, de forma mais integrada a maioria dos livros didáticos de matemática. Contudo, ainda não ocorreu o avanço esperado. O abandono, problemático no ensino fundamental I, se torna maior em se tratando do ciclo de alfabetização. Há uma forte tendência nesse ciclo de se colocar a ênfase na alfabetização da língua materna, desconsiderando tratar- se de um processo mais amplo que abrange todas as áreas do conhecimento. O objetivo deste texto é analisar o que vem sendo exigido de habilidades geométricas pela Provinha Brasil. Como pressuposto consideramos que, muitas vezes, os conteúdos e a forma como são cobrados nas avaliações externas acabam orientando as práticas dos professores. Palavras-chave: Ensino de Geometria no Ciclo de Alfabetização. Desenvolvimento do Pensamento Geométrico. Provinha Brasil. Abstract The geometry teaching in primary education is perhaps the topic that deserved more studies and research in the late twentieth century. After a long period of neglect, returned to compose, in a more integrated way most math textbooks. However, has not yet occurred expected progress. Abandonment, problematic in elementary school, gets bigger when it comes to literacy cycle. There is a strong trend of putting the emphasis on literacy mother tongue in this cycle, disregarding that this is a broader process that covers all areas of knowledge. The objective of this paper is to analyze what is being required of geometric skills by “Provinha Brazil”. As assumption, we believe that often the content and the way they are charged for external evaluations end up guiding the practices of teachers. Keywords: Geometry Education in Literacy Cycle. Development of Geometric Thought. Provinha Brasil. 1 Doutora em Educação: Educação Matemática pela Unicamp, Professora do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, SP - [email protected] 2 Doutora em Educação: Educação Matemática pela Unicamp, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade São Francisco, SP [email protected].

(ART) O Ensino de Geometria No Ciclo de Alfabetização Um Olhar a Partir Da Provinha Brasil

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GEOMETRIA

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  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014

    O ensino de geometria no ciclo de alfabetizao: um olhar a partir da

    provinha Brasil

    The geometry teaching in literacy cycle: a view from provinha Brasil

    _____________________________________

    CRMEN LCIA BRANCAGLION PASSOS1

    ADAIR MENDES NACARATO2

    Resumo

    O ensino de geometria na educao bsica talvez seja o tema que mais mereceu estudos

    e pesquisas no final do sculo XX. Depois de longo perodo de abandono, voltou a

    compor, de forma mais integrada a maioria dos livros didticos de matemtica. Contudo,

    ainda no ocorreu o avano esperado. O abandono, problemtico no ensino fundamental

    I, se torna maior em se tratando do ciclo de alfabetizao. H uma forte tendncia nesse

    ciclo de se colocar a nfase na alfabetizao da lngua materna, desconsiderando tratar-

    se de um processo mais amplo que abrange todas as reas do conhecimento. O objetivo

    deste texto analisar o que vem sendo exigido de habilidades geomtricas pela Provinha

    Brasil. Como pressuposto consideramos que, muitas vezes, os contedos e a forma como

    so cobrados nas avaliaes externas acabam orientando as prticas dos professores.

    Palavras-chave: Ensino de Geometria no Ciclo de Alfabetizao. Desenvolvimento do

    Pensamento Geomtrico. Provinha Brasil.

    Abstract

    The geometry teaching in primary education is perhaps the topic that deserved more

    studies and research in the late twentieth century. After a long period of neglect, returned

    to compose, in a more integrated way most math textbooks. However, has not yet occurred

    expected progress. Abandonment, problematic in elementary school, gets bigger when it

    comes to literacy cycle. There is a strong trend of putting the emphasis on literacy mother

    tongue in this cycle, disregarding that this is a broader process that covers all areas of

    knowledge. The objective of this paper is to analyze what is being required of geometric

    skills by Provinha Brazil. As assumption, we believe that often the content and the way they are charged for external evaluations end up guiding the practices of teachers.

    Keywords: Geometry Education in Literacy Cycle. Development of Geometric Thought.

    Provinha Brasil.

    1 Doutora em Educao: Educao Matemtica pela Unicamp, Professora do Departamento de Teorias e

    Prticas Pedaggicas e do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de So

    Carlos, SP - [email protected] 2 Doutora em Educao: Educao Matemtica pela Unicamp, Professora do Programa de Ps-Graduao

    em Educao da Universidade So Francisco, SP [email protected].

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    Introduo

    Depois de longo perodo de abandono quase absoluto, no final do sculo XX, o ensino de

    geometria na educao bsica comea a fazer parte de debates e estudos acadmicos,

    gerando muitas discusses em congressos nacionais e internacionais de Educao

    Matemtica e deu lugar a muitas pesquisas de mestrado e doutorado tanto no Brasil, como

    no exterior.

    O ensino de geometria nas escolas, at ento relegado s ltimas pginas dos livros

    didticos, volta a compor, de forma mais integrada e ao longo das unidades, a maioria dos

    livros didticos de matemtica quando esses passam a contemplar, de certo modo,

    orientados pelos Parmetros Curriculares Nacionais (1997).

    Nota-se uma preocupao dos pesquisadores e a defesa de que o desenvolvimento do

    pensamento geomtrico deva ser estimulado desde o incio da escolarizao. Contudo,

    ainda no podemos dizer que ocorreu o avano esperado. Talvez o longo perodo em que

    a geometria ficou relegada a um segundo plano tenha deixado marcas profundas em vrias

    geraes de estudantes e so sentidas at hoje pelos professores que no tiveram a

    formao geomtrica quando estudantes.

    Nossa experincia, como formadoras e pesquisadoras, em contato com professores que

    atuam nos anos iniciais, tem nos apontado que, embora haja, por parte da maioria deles o

    desejo de trabalhar a geometria com seus alunos, ela acaba no sendo assumida como

    prioridade frente aos demais contedos de matemtica, pois ningum ensina aquilo que

    no tem domnio conceitual.

    Constatamos, tambm, que embora os contedos geomtricos estejam presentes ao longo

    dos livros didticos, os professores optam, na maioria das vezes, para deix-los para o

    final do ano e, com isso, eles no so ensinados, ou so apresentados aos alunos de forma

    acelerada e reduzida.

    Se esse abandono j problemtico no chamado ensino fundamental I (1 ao 5 ano),

    consideramos que ele se torna maior ainda em se tratando do ciclo de alfabetizao (1 ao

    3 ano). H uma forte tendncia nesse ciclo de se colocar a nfase na alfabetizao da

    lngua materna, desconsiderando tratar-se de um processo mais amplo que abrange todas

    as reas do conhecimento.

    Aps dez anos da publicao de nosso livro, no qual sistematizamos os achados de nossas

    teses de doutorado (NACARATO; PASSOS, 2003), sentimo-nos instigadas a ter um olhar

    mais atento para a forma como a geometria vem sendo apresentada aos professores que

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    atuam no ciclo de alfabetizao. Considerando que questes relativas geometria vm se

    fazendo presente nas avaliaes externas, optamos por analisar a Provinha Brasil, uma

    vez que essa a nica prova que fica disponvel nas escolas e secretarias de educao.

    Dessa forma, o presente artigo refere-se a uma anlise documental e tem como objetivo

    analisar o que vem sendo exigido de habilidades geomtricas nesse instrumento de

    avaliao externa. Partimos do pressuposto que, muitas vezes, os contedos e a forma

    como so cobrados, nas avaliaes externas acabam orientando as prticas dos

    professores. Essa anlise ser complementada pelo documento: Matriz de Referncia

    para Avaliao da Alfabetizao Matemtica Inicial.

    O texto est organizado em trs sees: inicialmente apresentamos algumas reflexes

    tericas sobre a formao do pensamento geomtrico; em seguida, a anlise de algumas

    questes de geometria da Provinha Brasil e, finalmente, tecemos nossas consideraes.

    A formao do pensamento geomtrico

    Vrios so os autores que tm centrado suas pesquisas na formao do pensamento

    geomtrico, em diferentes vertentes tericas. Aqui nos interessa um olhar mais atento

    para as questes que julgamos estar na base da construo desse pensamento, como,

    principalmente, as habilidades de percepo espacial.

    Del Grande (19943), ao se referir habilidade de percepo espacial sugere que alguns

    tipos de atividades geomtricas poderiam desenvolver e realar as habilidades espaciais

    da criana dos anos iniciais. Ele define percepo espacial como a habilidade de

    reconhecer e discriminar estmulos no e do espao e para interpretar esses estmulos

    associando-os a experincias anteriores (p.126). Na tica desse autor, a natureza das

    atividades matemticas relacionadas com a geometria na escola bsica permite a

    aquisio de experincias de percepo visual dando aos professores oportunidade de

    observar e detectar, desde cedo, como o pensamento geomtrico das crianas vai sendo

    construdo. Segundo esse autor, essa percepo inicial das habilidades de percepo

    visual ser fundamental para o planejamento de tarefas de geometria a serem propostas

    pelo professor.

    3 Ressalte-se que a primeira edio desse artigo foi publicada, originalmente, em 1987, em DEL GRANDE,

    J. J. (1987) Spatial Percetion and Primary Geometry. In Lindquist, M. M. e Shulte A. P. Learning and

    Teaching Geometry, k-12. Reston, Virginia: NCTM.

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    Hoffer (1997) defende que a habilidade de percepo visual e os conceitos geomtricos

    podem ser aprendidos simultaneamente, isto porque, aprender geometria no significa

    que o aluno apenas reconhea figuras, mas tambm suas relaes e suas propriedades.

    Del Grande (1994) analisa um conjunto de cinco habilidades de percepo descrito por

    Frostig e Horne (1964). Ele explica que esses autores produziram material para testes

    referentes s cinco primeiras das sete aptides espaciais, quais sejam: 1) coordenao

    visual-motora; 2) percepo de figuras em campos; 3) constncia de percepo; 4)

    percepo de posio no espao; 5) percepo de relaes espaciais; enquanto Hoffer

    (1977) examinou mais duas dessas aptides, a saber: 6) discriminao visual e 7) memria

    visual. Consideramos importante para as argumentaes que nos propomos neste artigo,

    trazer tais habilidades discriminadas:

    A coordenao visual-motora consiste na habilidade de coordenar a viso com

    movimentos do corpo (DEL GRANDE, 1994, p.158). Quando as crianas apresentam

    dificuldades motoras em habilidades e movimentos simples, tambm possuem

    dificuldades em pensar qualquer outra coisa quando se concentram na tarefa que esto

    fazendo. O autor explica que, se uma criana apresenta dificuldade para ligar pontos no

    papel, ou juntar blocos para construir estruturas de madeira, provvel que no perceba

    as ideias ou noes geomtricas envolvidas, pois s o esforo motor j suficiente para

    absorv-la completamente. Apenas quando esta coordenao se tornar habitual que ela

    ser capaz de dar toda sua ateno ao ato de aprender, percebendo objetos exteriores e

    suas relaes. Esta habilidade constitui-se, dessa forma, indispensvel para o aprendizado

    da Matemtica e, de modo particular, da Geometria, no qual as relaes espaciais tm um

    papel de especial destaque. Consideramos que esta habilidade difcil de ser includa

    num instrumento escrito de avaliao, principalmente numa questo de mltipla escolha,

    visto que pressupe o movimento do corpo.

    A percepo de figuras em campos refere-se ao ato visual de identificar uma figura

    especfica (o foco) num quadro (o campo) (DEL GRANDE, 1994, p.158). Essa

    percepo descrita pelo autor pelo ato distinguir a frente do fundo. Para focalizar a

    ateno numa figura, h necessidade de se desconsiderar todos os marcos estranhos a ela,

    no se distraindo com estmulos visuais irrelevantes para sua caracterizao. Para ele,

    essa uma habilidade importante a tal ponto de prejudicar as crianas que no a

    adquirirem. As atividades de percepo de figuras em campos incluem interseo de retas,

    interseo de figuras, figuras ocultas, figuras sobrepostas, finalizao de figuras, reunio

    de partes de uma figura, semelhanas e diferenas e inverso de uma figura ou campo.

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    A constncia de percepo ou constncia da forma e tamanho refere-se habilidade

    de reconhecer que um objeto tem propriedades invariveis, como tamanho e forma, apesar

    das vrias impresses que pode causar conforme o ponto do qual observado (DEL

    GRANDE, 1994, p.158). O autor identifica a constncia da percepo da forma no mais

    vinculada a um determinado objeto, mas envolvendo o reconhecimento de certas figuras

    geomtricas apresentadas em vrios tamanhos, sombras, texturas e posies no espao.

    Segundo ele (1994, p.159), uma pessoa com constncia de percepo reconhecer um

    cubo visto de um ngulo oblquo como um cubo, embora os olhos vejam uma imagem

    diferente quando o cubo visto bem de frente ou de cima. Nesse sentido, o autor cita os

    estudos de Frostig e Horne (1964), referidos anteriormente, os quais descobriram que a

    constncia de percepo depende, em parte, da aprendizagem e de experincias que so

    possibilitadas por atividades de natureza geomtrica.

    A percepo da posio no espao consiste na habilidade que permite ao sujeito

    determinar a relao de um objeto com outro e com relao a si prprio (observador).

    Segundo Del Grande (1994, p. 159), a ausncia dessa habilidade resulta em inverses,

    que constituem um dilema para os educadores da rea de matemtica. As atividades

    desse componente lidam com a discriminao de rotaes, reflexes e translaes de

    figuras, as quais permitem que as crianas percebam que duas figuras so iguais

    (congruentes), quando uma imagem da outra, mediante uma dessas transformaes.

    A percepo de relaes espaciais a habilidade que o sujeito tem de ver dois ou mais

    objetos em relao a si prprio ou em relao um ao outro. Se uma pessoa, exemplifica

    Del Grande (1994, p. 159), v que duas figuras so congruentes, quando uma imagem

    da outra, por meio de uma transformao simtrica, como uma translao, uma rotao

    ou uma reflexo, essa pessoa consegue perceber as relaes espaciais que lhe permitem

    observar a congruncia, isto , uma relao entre duas figuras.

    A discriminao visual seria a habilidade de distinguir semelhanas e diferenas entre

    objetos independentemente da posio. Del Grande (1994, p. 159) explica que atividades

    de escolha e de classificao de objetos e formas geomtricas, tal como se faz com os

    blocos lgicos4 (atributos), podem ajudar as crianas a aprenderem a discriminar

    visualmente. As crianas podem usar desenhos e abstraes medida que desenvolvem

    sua discriminao, fazendo comparaes visuais e verbais entre as coisas que veem.

    4 Blocos Lgicos: jogo de blocos composto de peas de madeira ou plstico, nas quais faz-se variar,

    sistematicamente, as seguintes variveis: cor, forma, espessura e tamanho (Dienes, Z. P. (1986) As seis

    etapas do processo de aprendizagem em matemtica. So Paulo: EPU, p. 3).

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    A memria visual refere-se habilidade de lembrar precisamente de objetos que no

    esto mais vista, relacionando suas caractersticas com as de outros objetos presentes

    ou ausentes. Segundo Hoffer (1977), como a maioria das pessoas retm pequena

    quantidade de informaes visuais cerca de cinco a sete itens por perodos

    relativamente curtos de tempo, para memorizar mais elementos ou informaes, dever

    lanar mo das abstraes e do pensamento simblico.

    Tal recurso comumente usado em atividades geomtricas, tendo em vista a natureza da

    organizao do conhecimento geomtrico, que se fundamenta na identificao de

    caractersticas, a princpio, visuais, mas que acabam definindo-se como conceitos e

    relaes abstratas. Atividades referentes memria visual, segundo Del Grande (1994),

    envolvem a lembrana de um objeto entre dois ou mais, de um objeto submetido a

    inverses, ou da posio de muitos objetos.

    Sem dvida, o desenvolvimento de habilidades de percepo espacial fundamental para

    a construo do pensamento geomtrico, mas, h tambm necessidade de considerarmos

    outros aspectos, como a questo do prprio conceito geomtrico.

    Fischbein (1993) explica que o objeto geomtrico tratado como conceitos figurais por

    causa da sua dupla natureza, j que composto por duas componentes: uma conceitual e

    outra figural. A componente conceitual expressa propriedades que caracterizam uma certa

    classe de objetos atravs da linguagem escrita ou falada, com maior ou menor grau de

    formalismo, dependendo do nvel de axiomatizao com que se est trabalhando. A

    componente figural corresponde imagem mental que associamos ao conceito e que, no

    caso da Geometria, tem a caracterstica de poder ser manipulada atravs de movimentos

    como translao, rotao e outros, mantendo invariveis certas relaes.

    Para o autor, o que caracteriza um conceito o fato de que ele expressa uma ideia, uma

    representao geral, ideal de uma classe de objetos, baseada em seus traos comuns. Por

    outro lado, uma imagem mental uma representao sensorial de um objeto ou

    fenmeno. O autor apresenta essa distino atravs de exemplos de demonstraes

    geomtricas. Nessas demonstraes usa-se uma certa quantidade de conhecimentos

    conceituais, informao figural e operaes representadas figuralmente, lidando com

    entidades independentes, isto , com ideias abstratas (conceitos) e representaes

    sensoriais (operaes concretas). Ele ressalta que, em processos como esses, as operaes

    so descritas como aparentemente prticas; entretanto, no possvel separar um objeto

    de si mesmo na prtica. Isto significa que tratamos de um mundo ideal, com significados

    ideais, j que os objetos aos quais nos referimos, como pontos, lados, ngulos e as

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1153

    operaes com eles, tm uma existncia ideal, so de uma natureza conceitual; mas que,

    ao mesmo tempo, tm uma natureza figural intrnseca: somente enquanto nos referimos

    a imagens podemos considerar operaes tais como separar, inverter ou superpor.

    Fischbein (1993) faz alguns destaques a respeito das caractersticas das figuras

    geomtricas relacionadas a sua natureza conceitual. Primeiramente, diz que no raciocnio

    matemtico no nos referimos aos elementos de um objeto geomtrico (pontos, lados,

    ngulos, tringulos propriamente ditos) como objetos materiais ou desenhos; os objetos

    materiais modelos manipulativos (como o jogo de slidos geomtricos utilizado nas

    escolas) ou desenhos so somente modelos materializados de entidades mentais com as

    quais os matemticos lidam. Em segundo lugar, o autor destaca que somente em um

    sentido conceitual pode-se considerar a perfeio absoluta das entidades geomtricas:

    linhas, retas, crculos, quadrados, cubos, etc. Em terceiro lugar, destaca que estas

    entidades geomtricas no tm correspondentes materiais genunos. Isto , pontos

    (objetos de dimenso zero), linhas (objetos unidimensionais), planos (objetos

    bidimensionais) no existem, no podem existir em realidade. Os objetos reais da nossa

    experincia prtica so necessariamente tridimensionais, ... mesmo o cubo ou a esfera

    aos quais os matemticos se referem, no existem em realidade, embora eles sejam

    tridimensionais. Estes so tambm meras construes mentais, as quais no se supe

    terem qualquer realidade substancial (p.141). Em quarto lugar, Fischbein (1993) destaca

    que todas as construes geomtricas so representaes gerais, como todo conceito, e

    nunca cpias mentais de objetos concretos particulares. Por ltimo, o autor destaca uma

    quinta caracterstica das figuras geomtricas que tambm est relacionada sua natureza

    conceitual, ou seja, o fato das propriedades das figuras geomtricas serem impostas ou

    derivadas de definies no domnio de um certo sistema axiolgico. Como exemplo, o

    referido autor explica que um quadrado no uma imagem desenhada numa folha de

    papel. uma forma controlada por sua definio (embora possa ser inspirada por um

    objeto real). Um quadrado um retngulo que tem lados iguais. Partindo destas

    propriedades pode-se prosseguir descobrindo outras propriedades do quadrado (a

    congruncia de ngulos visto que so todos ngulos retos, a igualdade das medidas das

    diagonais, etc.). (FISCHBEIN, 1993, p.141).

    Uma figura geomtrica pode ser descrita como tendo, intrnseca a ela, propriedades

    conceituais, mas que ela no um mero conceito. Segundo ele, uma figura geomtrica

    uma imagem visual, que possui uma propriedade que conceitos usuais no possuem, ou

    seja, ela inclui a representao mental da propriedade do espao.

  • 1154 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    Consideramos a visualizao como a habilidade de pensar, em termos de imagens mentais

    (representao mental de um objeto ou de uma expresso), naquilo que no est ante os

    olhos, no momento da ao do sujeito sobre o objeto. Seria a percepo visual do sujeito

    enquanto a construo de um processo visual, o qual sofre interferncias de sua

    experincia prvia, associada a outras imagens mentais armazenadas em sua memria. O

    significado lxico atribudo visualizao o de transformar conceitos abstratos em

    imagens reais ou mentalmente visveis. A preocupao com a visualizao quando se

    aborda o processo de ensino e de aprendizagem da Geometria pode ser considerada como

    um dos processos envolvidos nas diferentes maneiras de representaes.

    Entendemos tambm que a visualizao est diretamente relacionada com a

    representao. Esta pode ser grfica, como um desenho em um papel ou como modelos

    manipulveis, ou mesmo atravs da linguagem e de gestos.

    Os diferentes tipos de visualizao que os estudantes necessitam, tanto em contextos

    matemticos, quanto em outros, dizem respeito capacidade de criar, manipular e ler

    imagens mentais; de visualizar informao espacial e quantitativa e interpretar

    visualmente informao que lhe seja apresentada; de rever e analisar situaes anteriores

    com objetos manipulveis.

    A dificuldade que os alunos possuem em ler o que as representaes bidimensionais de

    objetos tridimensionais traduzem pode estar em no conseguirem identificar os diferentes

    elementos que compem esses objetos. Dessa forma, os alunos no conseguem

    representar para eles mesmos determinadas propriedades desses objetos, prejudicando o

    processo de aprendizagem da Geometria.

    Quando se imagina a construo de algum objeto especfico, como uma caixa, por

    exemplo, no se pode iniciar tal construo sem antes ver, na mente, o que ainda no

    pode ser visto com os prprios olhos. Tal destreza exige aprendizagem e deve ser

    sistematicamente construda em diferentes momentos, tanto na escola como fora dela.

    Entretanto, na escola, essa capacidade poder ser explorada com a anlise de aspectos

    visuais de uma figura geomtrica, de modo que se torne possvel desenh-la. Para

    desenhar um objeto geomtrico preciso que o indivduo seja capaz de imaginar o

    resultado final, antecipar mentalmente e inferir corretamente a forma plana

    (bidimensional) e as transformaes necessrias para apresent-la na forma espacial

    (tridimensional).

    Tendo em vista a ambiguidade do termo figura, o autor enfatiza que, em seu trabalho,

    figura refere-se somente a imagens mentais. Como uma figura possui uma certa estrutura,

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1155

    uma forma, sugere que algumas especificaes deveriam ser acrescentadas: 1) figura

    geomtrica: uma imagem mental cujas propriedades so completamente controladas por

    definio; 2) um desenho no uma figura geomtrica ele prprio, mas um grfico ou

    uma incorporao material, concreta dela, e 3) imagem mental de uma figura geomtrica

    , usualmente, a representao do modelo materializado dela.

    Assim, a figura geomtrica, ela prpria, somente a ideia correspondente da entidade

    figural idealizada, abstrata, estritamente determinada por sua definio.

    Entendemos que o desenho associado ao objeto geomtrico desempenha um papel

    fundamental na formao da imagem mental. Para o aluno, nem sempre fica claro que o

    desenho apenas uma instncia fsica de representao do objeto. Quando, para alguns,

    o desenho desempenha uma expresso de entendimento do objeto geomtrico, isto ,

    basta desenh-lo em uma folha de papel para compreender o problema, para outros pode

    se constituir em um obstculo para este entendimento. Isto ocorre porque o desenho

    guarda algumas caractersticas particulares que no pertencem ao conjunto de condies

    geomtricas que definem o objeto, o caso das projees.

    O conceito figural, afirma Fischbein (1993, p. 149), tambm um significado com uma

    particularidade, isto , um tipo de significado que inclui figura como uma propriedade

    intrnseca. Nesse sentido, exemplifica o autor, o significado genuno da palavra crculo

    em Geometria, como manipulado pelo nosso processo de raciocnio, no redutvel a

    uma definio puramente formal, mas uma imagem controlada por uma definio.

    Segundo o autor referido, ... sem esse tipo de imagens espaciais, a Geometria no

    existiria como um ramo da Matemtica. Tais posies sinalizam para a importncia de

    um trabalho sistemtico e intencional com o vocabulrio, com as palavras relativas

    geometria.

    Numa perspectiva vigotskiana, consideramos que a linguagem e, em especial, a palavra

    central ao processo de elaborao conceitual. O conceito a prpria palavra e esta

    carregada de significado e sentido. O sentido mais amplo que o significado e est

    relacionado subjetividade do sujeito, aquilo que ele traz de experincias vividas.

    O sentido sempre uma formao dinmica, fluda, complexa, que tem

    vrias zonas de estabilidade variada. O significado apenas uma dessas

    zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso

    e, ademais, uma zona mais estvel, uniforme e exata. Como se sabe, em

    contextos diferentes a palavra muda facilmente de sentido. O

    significado, ao contrrio, um ponto imvel e imutvel que permanece

    estvel em todas as mudanas de sentido da palavra em diferentes

    contextos. (VIGOTSKI, 2001, p. 465).

  • 1156 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    O objetivo da instruo trabalhar com os significados das palavras e esses tambm tm

    uma histria, seja no desenvolvimento das cincias, seja no desenvolvimento do prprio

    sujeito. Assim, quando o professor no incio da escolarizao utiliza a palavra quadrado,

    ele consegue se comunicar com o aluno e ambos so capazes de visualizar a mesma

    figura; no entanto, o conceito dessa figura geomtrica no est ainda construdo, essa

    construo vai ocorrer ao longo da escolarizao, quando o aluno for capaz de identificar

    todas as suas caractersticas e propriedades. H um momento em que o aluno precisa

    chegar a esse ponto estvel e imutvel do significado da palavra.

    Entendemos que, na prtica pedaggica, a compreenso das palavras presentes nas

    definies geomtricas precisa ser cuidadosamente trabalhada. Seus significados

    precisam ser ampliados medida que a escolarizao avana. A identificao de uma

    figura, por si s, no garante que j ocorreu a elaborao conceitual; preciso que as

    definies acompanhem suas representaes. Da a importncia de um ensino pautado

    nas discusses orais, principalmente no incio da escolarizao, pois o professor poder

    ajudar o aluno a ler o objeto geomtrico, identificando suas caractersticas, realizando

    classificaes por diferenas e semelhanas entre objetos e utilizando o vocabulrio

    correto.

    Talvez a resida a grande dificuldade dos professores em ensinar geometria, pois nem

    sempre tm os conceitos elaborados e, dessa forma, realizam um ensino reducionista,

    pautado apenas nos aspectos figurais, nas habilidades iniciais de percepo, no

    garantindo aproximaes com os conceitos cientficos da geometria.

    Como possibilitar um ensino de geometria que garanta a formao do pensamento

    geomtrico dos alunos? Vrios so os caminhos que a comunidade tem adotado para que

    a geometria seja ensinada nas escolas, como: projetos de formao docente; melhoria dos

    livros didticos; nfase na geometria nos documentos curriculares, dentre outros. No

    entanto, todo esse esforo poder no surtir efeitos se esses contedos no forem

    valorizados nas avaliaes externas, visto que elas tm um peso muito grande nas prticas

    dos professores. De que forma a Provinha Brasil, por exemplo, tem valorizado contedos

    de geometria? Esse o foco do presente artigo.

    A geometria presente na Provinha Brasil de Matemtica

    A Provinha Brasil foi criada em 2007, pela Portaria Normativa no 10 de 24 de abril de

    2007. Inicialmente ela s era aplicada na rea de leitura, a de Matemtica teve a sua

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1157

    primeira edio em 2011 e aplicada a todos os alunos matriculados no segundo ano do

    Ensino Fundamental. Segundo consta no Guia de Aplicao dessa primeira edio: A

    Provinha Brasil de Matemtica, assim como a de leitura, tem como principal objetivo

    realizar um diagnstico dos nveis de alfabetizao das crianas aps um ano de estudos,

    de maneira que as informaes resultantes possam apoiar o trabalho do professor

    (BRASIL/INEP, 2011, p. 4).

    A prova aplicada em dois momentos do ano letivo, ao final do 1 e do 2 semestres.

    Assim, houve apenas uma aplicao em 2011 e, a partir de 2012, duas aplicaes anuais.

    Esse instrumento corrigido pela prpria rede de ensino ou pelos prprios professores e

    os resultados ficam disposio para aes efetivas nas escolas. Ela composta de 20

    questes de mltipla escolha.

    O kit que o professor recebe vem com trs cadernos: o guia de aplicao, o caderno do

    aluno e o guia de correo e interpretao de resultados. No caso do caderno do aluno h

    apenas as alternativas, visto que o professor quem far a leitura, duas vezes, do

    enunciado da questo. Essa forma de elaborao da prova tem sido criticada por

    professores5, uma vez que os alunos no dispem do enunciado da questo e, muitos deles

    j esto alfabetizados, ou ento, em prticas de letramento escolar fundamental que o

    aluno tenha acesso a textos escritos, mesmo que ainda no esteja alfabtico.

    As questes da Provinha Brasil so elaboradas a partir de uma grade de descritores,

    publicada pelo INEP, a Matriz de Referncia para Avaliao da Alfabetizao

    Matemtica Inicial. Dessa matriz, destacamos os descritores relativos ao eixo da

    Geometria 2 eixo conforme consta do Quadro 1:

    Quadro 1: Eixo da Geometria na Matriz de Referncia para Avaliao da Alfabetizao Matemtica

    Inicial

    2 EIXO Geometria

    Competncias Descritores/Habilidades

    C4 Reconhecer as representaes de figuras geomtricas

    D4.1 Identificar figuras geomtricas planas.

    D4.2 Reconhecer as representaes de figuras geomtricas espaciais.

    Essa grade j nos sinaliza que os contedos a ser exigidos no teste escrito no iro alm

    da identificao e reconhecimento de figuras geomtricas planas e espaciais. Podemos

    dizer que esses descritores esto coerentes com o que se espera de um aluno ao final dos

    dois primeiros anos de escolarizao. No entanto, mesmo se restringindo a essas

    5 A segunda autora deste texto participa de um Programa Observatrio da Educao, no qual as edies da

    Provinha Brasil tm sido discutidas pelo coletivo dos professores participantes do programa.

  • 1158 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    habilidades bsicas, h que se analisar como as questes esto sendo apresentadas aos

    alunos.

    Ao todo, at o momento, j foram aplicados sete testes da Provinha Brasil. No Quadro 2

    destacamos em cada edio, quais foram as questes relativas geometria e o foco das

    mesmas.

    Quadro 2 Questes de Geometria presentes na Provinha Brasil de Matemtica (2011-2014)

    Edio Nmero da Questo Habilidade exigida

    2011

    01 Habilidade relacionada ao reconhecimento de

    representao de uma figura geomtrica espacial

    05 Habilidade relacionada identificao de uma figura

    geomtrica plana em um conjunto de figuras.

    12 Habilidade relacionada capacidade de identificar

    figuras geomtricas planas.

    2012/1

    03 Habilidade relacionada ao reconhecimento de

    representao de uma figura geomtrica espacial

    06 Habilidade relacionada identificao de uma figura

    geomtrica plana em um conjunto de figuras.

    08 Habilidade relacionada identificao de uma figura

    geomtrica plana em um conjunto de figuras.

    2012/2 19 Habilidade de identificar figuras geomtricas planas.

    2013/1

    09 Habilidade relacionada ao reconhecimento de

    representaes de figuras geomtricas espaciais.

    11 Habilidade relacionada identificao de figuras

    geomtricas planas.

    2013/2

    05 Habilidade de associar figuras geomtricas planas a seus

    respectivos nomes.

    06

    Habilidade de reconhecer as representaes de figuras

    geomtricas espaciais, associando objetos do mundo

    fsico a representaes de alguns slidos geomtricos

    simples.

    09 Habilidade de relacionar representaes planas de

    objetos tridimensionais a figuras geomtricas planas.

    2014/1

    05 Habilidade de relacionar representaes planas de

    objetos tridimensionais a figuras geomtricas planas.

    06 Habilidade de reconhecer as representaes de figuras

    geomtricas espaciais.

    10 Habilidade relacionada capacidade de identificar

    figuras geomtricas planas.

    2014/2

    04 Habilidade de relacionar o formato de um objeto a uma

    figura geomtrica (plana ou espacial)

    10

    Habilidade de identificar figuras geomtricas planas e

    relacion-las com representaes dadas por meio de

    figuras tridimensionais.

    Constata-se haver uma coerncia entre as habilidades exigidas e aquelas prescritas

    na Matriz de Referncia. Assim, as questes centram-se nas duas habilidades esperadas.

    Da a semelhana na forma de escrita dessas habilidades, com algumas mudanas de

    redao a partir de 2014.

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1159

    Com exceo do segundo teste de 2012, em cada prova h, pelo menos, duas questes

    relativas geometria. No entanto, possvel constatar que as questes so muito

    semelhantes; mudam-se apenas alguns enunciados e as figuras apresentadas.

    Considerando as similaridades entre as questes, selecionamos apenas algumas delas para

    a nossa anlise.

    Na Figura 1, trazemos a Questo 5 (teste 2011). Verifica-se que ela requer a habilidade

    de percepo de figuras em campo (DEL GRANDE, 1994) e tambm habilidade de

    reconhecer um objeto tridimensional na representao bidimensional.

    Figura 1 - Questo 5 (teste 2011)

    No primeiro teste de 2012, para responder corretamente Questo 3 (Figura 2) as crianas

    deveriam ter vivenciando tarefas em que pudessem ler o que as representaes

    bidimensionais traduzem de objetos tridimensionais, alm de identificarem os diferentes

    elementos que compem esses objetos. Nesse caso houve o cuidado de anunciar que o

    boneco foi construdo com sucata.

    Fischbein (1993) chama a ateno para a necessidade de se considerar trs categorias de

    entidades mentais quando se faz referncia a figuras geomtricas, ou seja: a definio, a

    imagem (baseada na experincia perceptivosensorial, como a imagem de um desenho)

    e o conceito figural. Ele enfatiza que o conceito figural uma realidade mental, a

    construo conduzida por raciocnio matemtico no domnio da Geometria, isento de

    quaisquer propriedades concretas sensoriais, mas que revela propriedades figurais.

  • 1160 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    Figura 2 Questo 03 (teste 1/2012)

    No teste 2 de 2014 observa-se que na Questo 4 (Figura 3) requerido que a criana

    relacione o formato de um objeto tridimensional a sua representao bidimensional.

    Novamente cobrada a habilidade de percepo de figuras em campo (DEL GRANDE,

    1994) e tambm habilidade de reconhecer um objeto tridimensional na representao

    bidimensional. Para responder ao teste a criana necessita pensar em termos de imagens

    mentais a representao do tubo de cola, sua percepo visual sofre ainda interferncias

    de sua experincia prvia, associada a outras imagens mentais armazenadas em sua

    memria. Se o conhecimento que ela tem de um tubo de cola no for de um cilindro ela

    poder ter dificuldade de assinalar o item esperado.

    O desenho em perspectiva apresentado no plano e o sentido dele implica em considerar o

    espao no qual a criana se situa; desse modo, a representao grfica desse objeto

    tridimensional bidimensional.

    Assim, cabe instruo escolar ajudar o aluno a fazer a leitura de figuras tridimensionais

    quando desenhadas no plano, em perspectiva. Se esse trabalho no foi realizado, os alunos

    tero dificuldades em responder a questo.

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1161

    Figura 3 - Questo 4 (Teste 2/2014)

    Em algumas questes, a forma como as figuras so apresentadas tambm podem

    confundir o aluno. Por exemplo, na questo 12 do teste de 2011 (Figura 4) o desenho da

    folha do caderno induz a criana a reconhecer o nome da figura desenhada por Jos como

    um retngulo.

  • 1162 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    Figura 4 - Questo 12 (teste 2011)

    J no teste 2 de 2012, a Questo 19 (Figura 5) apresenta a mesma proposta, contudo, no

    coloca mais o desenho da folha do caderno. O enunciado da questo diz que Paulo

    desenhou um crculo, sendo que a criana deveria assinalar o item c.

    Figura 5- Questo 19 (teste 2/2012)

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1163

    Observa-se nessa questo que a circunferncia (ou contorno do disco) foi considerada

    como crculo; enquanto que na Questo 8 desse mesmo teste (Figura 6) , aplicada no

    primeiro semestre, as figuras planas esto hachuradas, que podem ser consideradas como

    superfcies planas e contnuas. Aqui a habilidade exigida apenas a identificao do nome

    da figura.

    Figura 6 Questo 8 (teste 1/2012)

    A representao de figuras planas requer cuidado e coerncia. Identificamos contradies

    e lacunas que podem comprometer o desenvolvimento do pensamento geomtrico.

    Observa-se que o objeto geomtrico est sendo tratado somente na componente figural.

    Identificar figuras geomtricas atravs de contorno de objetos tem sido recorrente nas

    Provas.

    A Questo 6 do teste 1 de 2012 (Figura 7), indica que a criana precisa revelar habilidade

    em perceber os elementos que compem uma caixa em forma de paraleleppedo.

    Nota-se que o item considerado correto o contorno de um retngulo (item B). Da forma

    que o paraleleppedo se apresenta pode dar ao aluno a ideia de um tringulo.

  • 1164 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    Figura 7 Questo 6 (teste 1/2012).

    Na questo 9 do teste 2 de 2013 (Figura 8), solicitado o resultado do carimbo de uma

    das faces de um objeto tridimensional.

    Figura 8 Questo 9 (teste 2/2013)

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1165

    Enquanto a face do objeto carimbado est representada por um retngulo com seu interior

    preenchido, ou seja como uma superfcie, o conjunto dos slidos geomtricos, no qual a

    criana dever relacionar a figura dada, est desenhado em perspectiva, porm sem o

    preenchimento de suas faces, o que no implica que o objeto utilizado para fazer o

    carimbo tenha superfcies planas pode ser apenas a estrutura de um objeto

    tridimensional.

    No teste 1 de 2014 a Questo 5 requer (Figura 9) que a criana conhea a brincadeira

    ciranda, cirandinha, como uma brincadeira de roda e identifique o formato circular

    do posicionamento das crianas nessa brincadeira. Se o aluno no conhecer a brincadeira,

    provavelmente no conseguir relacionar com a figura. Alm disso, o formato da

    brincadeira de circunferncia e no de crculo. Entendemos que o contexto utilizado no

    foi adequado para a habilidade que se desejava avaliar.

    Figura 9 - Questo 5 - 2014/1

  • 1166 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    Embora muitos estudantes possam considerar a figura geomtrica (desenho) como o

    prprio conceito, como supostamente observado pelos descritores nas questes das

    Provinha Brasil, importante considerar reflexes tericas trazidas nesse artigo no

    processo ensino-aprendizagem da Geometria.

    Ao considerarmos as habilidades referidas por Del Grande (1994) e os descritores e

    questes do campo da geometria da Provinha Brasil, identificamos contradies e lacunas

    relativas ao que se espera para o desenvolvimento do pensamento geomtrico. A matriz

    de referncias da Avaliao da Alfabetizao Matemtica Iniciais da Provinha Brasil se

    limita a conferir a competncia dos estudantes em reconhecer as representaes de figuras

    geomtricas, em identificar figuras geomtricas planas e reconhecer as representaes de

    figuras geomtricas espaciais. Se o que desejamos o desenvolvimento do pensamento

    geomtrico, observa-se que o objeto geomtrico est sendo tratado somente na

    componente figural.

    Algumas consideraes sobre as questes apresentadas

    Reconhecemos a dificuldade de se cobrar num teste escrito, com questes de mltipla

    escolha, contedos que precisam ser trabalhados de forma dinmica em sala de aula, com

    manuseio de modelos geomtricos. No entanto, se eles precisam constar das provas, h

    de se ter maior cuidado com os aspectos visuais e conceituais, visto que estamos

    assumindo que os conceitos geomtricos so figurais.

    Um aspecto que chamou nossa ateno diz respeito impreciso das figuras. Por

    exemplo, o crculo ora aparece hachurado como uma superfcie, ora apenas sua

    circunferncia, ou ainda, como aconteceu no teste 2 de 2013, ele apareceu como coroa

    circular (Figura 10):

    Figura 10 Questo 5 (teste 2/2013)

    Igualmente problemtico fato de as faces dos poliedros ou superfcies de slidos

    geomtricos no serem hachuradas e, portanto, no do a ideia de superfcie.

  • Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, pp. 1147-1168, 2014 1167

    Fica tambm, evidente, que em muitas questes, o que se exige apenas o nome da figura

    como na questo da Figura 6 e em outras que no trouxemos aqui para anlise.

    Como destacado em nossas discusses tericas, h que se ter o devido cuidado com as

    palavras, visto que elas so os prprios conceitos em construo e, com os desenhos, visto

    que as imagens mentais esto em processo tambm de construo e a representao e

    nomeao equivocada de uma figura poder comprometer a elaborao conceitual do

    aluno.

    Finalmente, retomamos nossa preocupao inicial: se os contedos cobrados nessas

    avaliaes nortearem as prticas do professor, a geometria continuar sendo ensinada de

    forma mecnica. Nesse sentido, nosso contato com professores do ciclo de alfabetizao

    tem nos evidenciado que os professores preparam seus alunos, ao longo do ano, para a

    realizao dessas provas, aplicando questes que j fizeram parte de testes anteriores.

    Assim, concordamos com Mortatti (2013, p. 28) quando considera

    (...) que os resultados dos testes padronizados servem de base para a

    organizao do trabalho pedaggico do professor, visando a que os alunos

    avancem para o nvel seguinte por meio da aplicao de testes simulados para os alunos aprenderem a responder o que deles se espera , a sala de aula tem-se tornado lugar, no de relaes de ensino-aprendizagem, mas de

    treinamento contnuo, para obteno de resultados positivos, os quais, por sua

    vez, retroalimentam classificaes e novos simulados como procedimento

    didtico.

    Cabe, dessa forma, aos formadores de professores buscarem romper com essas prticas,

    garantindo aos professores que atuam nos anos iniciais um repertrio de saberes

    geomtricos que lhes d segurana para ensinar seus alunos e contribuir para a formao

    de seu pensamento geomtrico.

    Tambm questionamos se essa prova, de fato, tem servido como diagnstico da

    aprendizagem dos alunos. As questes so muito simples. Alm disso, o teste 2 chega s

    escolas ao final do perodo letivo: como utilizar seus resultados como diagnstico?

    Referncias

    BRASIL. Ministrio da Educao. Portaria Normativa N 10, de 24 de abril de 2007.

    Institui a Avaliao de Alfabetizao "Provinha Brasil". Braslia: MEC, 2007.

    Disponvel em: <

    http://download.inep.gov.br/educacao_basica/provinha_brasil/legislacao/2007/provinha

    _brasil_portaria_normativa_n10_24_abril_2007.pdf >. Acesso em: 10 mar. 2012.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Provinha Brasil. Avaliando a alfabetizao. Guia de

    aplicao. Braslia: MEC, 2011.

  • 1168 Educ. Matem. Pesq., So Paulo, v.16, n.4, 1147-1168, 2014

    BRASIL. Ministrio da Educao. Provinha Brasil. Avaliando a alfabetizao. Guia de

    aplicao. Braslia: MEC, 2012.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Provinha Brasil. Avaliando a alfabetizao. Guia de

    aplicao. Braslia: MEC, 2013.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Provinha Brasil. Avaliando a alfabetizao. Guia de

    aplicao. Braslia: MEC, 2014.

    DEL GRANDE, J. J. Percepo espacial e geometria primria. In Lindquist, M. M. e

    Shulte A. P. Aprendendo e Pensando Geometria. Trad. Hygino H. Domingues. So

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    FROSTIG, M. e HORNE, D. The Frostig Program for the Development of Visual

    Perception. Chicago: Follet Publishing Co, 1964.

    HOFFER, A. R. Mathematics Resource Project: Geometry and Visualization. Palo

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    MORTATTI, M. do R. L. Um balano crtico da dcada da Alfabetizao no Brasil. In: Cadernos Cedes, v.33, n.89, p. 15-34, jan.-abr. 2013.

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    VIGOTSKI, L.S. A construo do pensamento e da linguagem. So Paulo: Martins

    Fontes, 2001.

    Recebido em: 01/10/2014

    Aceito em: 01/12/2014

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