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CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 1 Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 8.n.1, agosto de 2010 ARTE E ABDUÇÃO NA OBRA TEÓRICA DE UMBERTO ECO ART AND ABDUCTION WITHIN UMBERTO ECO’S THEORETICAL WORKS Antonio Barros de Brito Junior 1 UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas RESUMO: Este artigo lida com o conceito de abdução presente na obra teórico-crítica de Umberto Eco. O objetivo principal consiste em mostrar como, ao abordar as questões relativas à interpretação da obra de arte, Umberto Eco desvalorizou o aspecto estético da fruição artística em favor de uma concepção cognitivista, calcada numa semiótica representacionalista. Além disso, pretende evidenciar o parentesco da noção de abdução com o conceito de juízo teleológico de Kant. Por fim, como conclusão, oferece-se uma análise de algumas consequências não vislumbradas por Eco nessa associação entre a semiótica e a estética de cunho kantiano. PALAVRAS-CHAVE: Umberto Eco; Abdução; Estética; Interpretação. ABSTRACT: This article deals with the concept of abduction within Umberto Eco's theoretical work. The main goal of this text is to show how Umberto Eco disdains the aesthetic component in favor of a more cognitive approach of artistic fruition. Besides, the article intends to show the relationship between abduction and the Kantian concept of teleological judgment. It also offers, as a conclusion, an analysis of some of the consequences of this relationship which Umberto Eco was not totally aware of. KEYWORDS: Umberto Eco; Abduction; Aesthetics; Interpretation. Introdução Estou diante da última obra de arte da face da Terra. Eu a observo. Mais do que isso: eu a interpreto. Interpretar uma obra de arte romance, poema, novela, quadro, escultura, música, que seja... é diferente de apenas observá-la. A interpretação exige um esforço cognitivo que transcende o mero correr de olhos sobre a forma. Ela exige, fundamentalmente, uma resposta calculada acerca de por que aquela obra, enquanto forma absolutamente original, compõe-se e se comporta de tal ou tal forma. A interpretação constitui-se, a bem da verdade, no momento mesmo em que, da neutralidade primordial do objeto, passa-se à proposição de um juízo, de uma hipótese a respeito de uma intencionalidade supostamente subjacente. Vê-se, portanto, que a interpretação articula-se em dois níveis distintos: por um lado, ela é “extraída” daquela experiência tipicamente estética da fruição, em que, dos sentimentos do espectador (com toda a marca de sua subjetividade, de sua 1Doutor em Teoria e História Literária, na área de Teoria Literária, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas.

Arte e Abdução Na Obra Teórica de Umberto Eco

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estudo da obra de Umberto Eco.

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    Cadernos de Semitica Aplicada

    Vol. 8.n.1, agosto de 2010

    ARTE E ABDUO NA OBRA TERICA DE UMBERTO ECO

    ART AND ABDUCTION WITHIN UMBERTO ECOS THEORETICAL WORKS

    Antonio Barros de Brito Junior1

    UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas

    RESUMO: Este artigo lida com o conceito de abduo presente na obra terico-crtica de Umberto

    Eco. O objetivo principal consiste em mostrar como, ao abordar as questes relativas interpretao

    da obra de arte, Umberto Eco desvalorizou o aspecto esttico da fruio artstica em favor de uma

    concepo cognitivista, calcada numa semitica representacionalista. Alm disso, pretende evidenciar

    o parentesco da noo de abduo com o conceito de juzo teleolgico de Kant. Por fim, como

    concluso, oferece-se uma anlise de algumas consequncias no vislumbradas por Eco nessa

    associao entre a semitica e a esttica de cunho kantiano.

    PALAVRAS-CHAVE: Umberto Eco; Abduo; Esttica; Interpretao.

    ABSTRACT: This article deals with the concept of abduction within Umberto Eco's theoretical work.

    The main goal of this text is to show how Umberto Eco disdains the aesthetic component in favor of a

    more cognitive approach of artistic fruition. Besides, the article intends to show the relationship

    between abduction and the Kantian concept of teleological judgment. It also offers, as a conclusion, an

    analysis of some of the consequences of this relationship which Umberto Eco was not totally aware of.

    KEYWORDS: Umberto Eco; Abduction; Aesthetics; Interpretation.

    Introduo

    Estou diante da ltima obra de arte da face da Terra. Eu a observo. Mais do que

    isso: eu a interpreto. Interpretar uma obra de arte romance, poema, novela, quadro,

    escultura, msica, que seja... diferente de apenas observ-la. A interpretao exige um

    esforo cognitivo que transcende o mero correr de olhos sobre a forma. Ela exige,

    fundamentalmente, uma resposta calculada acerca de por que aquela obra, enquanto forma

    absolutamente original, compe-se e se comporta de tal ou tal forma. A interpretao

    constitui-se, a bem da verdade, no momento mesmo em que, da neutralidade primordial do

    objeto, passa-se proposio de um juzo, de uma hiptese a respeito de uma intencionalidade

    supostamente subjacente. V-se, portanto, que a interpretao articula-se em dois nveis

    distintos: por um lado, ela extrada daquela experincia tipicamente esttica da fruio,

    em que, dos sentimentos do espectador (com toda a marca de sua subjetividade, de sua

    1Doutor em Teoria e Histria Literria, na rea de Teoria Literria, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da

    Universidade Estadual de Campinas.

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    intuio), eleva-se o conceito; por outro lado e por conta disso , a interpretao funda-se a

    partir da postulao de uma universalidade (ainda que apenas ideal) que se d a conhecer

    fenomenologicamente.

    Mas voltemos nosso olhar para esta ltima obra de arte da face da Terra. O que

    ela? Com que se parece? Ao mesmo tempo em que podemos dizer genericamente que se

    trata de arte, no podemos ir muito alm desse reconhecimento imediato a no ser que

    ponhamos em marcha uma srie de raciocnios lgicos que, em ltima instncia, engendra um

    reconhecimento num nvel superior de anlise: Esta obra fala de.... De qu? Como saber do

    que fala uma obra de arte antes de decidir que ela , por assim dizer, um exemplo prototpico

    de uma ideia geral, de um conceito que paira em algum lugar fora da interpretao anterior

    a ela? preciso antes perceber a forma da obra, cotej-la com algo que nos parea familiar

    e que nos faa falar, enfim, que ela, a obra, fala disso. Sim, mas... Esta a ltima obra

    produzida na face da Terra e, a no ser que seja uma cpia fiel de alguma outra,2 ela

    naturalmente descortina uma infinitude de sentidos possveis, to variveis quanto so os

    fruidores e as suas perspectivas. Ento como que podemos estar seguros de que ela, a obra

    de arte, fala disso? Ou ento: como o isso se adere forma, como um contedo latente que

    ressurge como epgono da interpretao?

    A ideia segundo a qual a interpretao uma resposta cognitiva calculada e a

    ideia de que qualquer obra comporta-se como um objeto inusitado, que se abre

    conceitualizao, encontram abrigo na obra terico-crtica do semioticista italiano Umberto

    Eco. Ao longo de seus livros, Eco reiteradamente afirma o carter propositivo e experimental

    da interpretao, associando-a descoberta de um sentido que subjaz forma final da obra de

    arte.3 Com efeito, observando o percurso terico de Eco, percebe-se que ambas ideias esto

    interconectadas: em princpio, existe uma obra, cuja forma final o resultado de uma

    manipulao consciente da forma, dos estilemas (os cdigos semntico e pragmtico), a fim

    de criar uma ambiguidade formal (ECO, 1962) que leva o intrprete4 a buscar

    2E, ainda que fosse, por assim dizer, um plgio processo tpico da cultura de massa, famigerada embotadora

    das formas artsticas da vanguarda (cf. ECO, 1964; BRITO Jr., 2006) ou simplesmente uma cpia fiel, no

    seria absurdo defender que uma segunda interpretao seja em parte, ou em todo diferente da primeira o que

    nos faria pensar que, por mais que tenha circulado, uma obra no se esgota definitivamente diante de suas

    interpretaes, seja porque os contextos se diferenciam, seja porque os leitores mudam suas impresses a

    respeito do que significam para si as formas artsticas. No limite, poder-se-ia afirmar que nenhuma interpretao

    idntica outra. Essa afirmao, que antes parecia uma heresia bom que se diga , hoje goza dos

    relativos confortos do senso comum. Grande parte dessa guinada deveu-se, claro, arte de vanguarda e sua

    incessante busca pela indeterminao das formas, ideia que foi abordada por Eco (1962) abordada e, por que

    no dizer tambm, popularizada. Nesse sentido, mesmo velha, comum, conhecida ou embotada, uma

    obra capaz de reacender o debate em torno de seus sentidos, de modo que, fenomenologicamente, para um

    espectador qualquer, a ltima obra de arte da face da Terra acaba sendo a ltima obra efetivamente fruda

    ainda que o seja pela segunda, terceira, quarta vez... claro que, quanto mais clssica uma obra, mais

    informaes circulam e mais ciente o intrprete pode estar a respeito de seus sentidos cannicos. De qualquer

    maneira, a ideia persiste: reconhecer o sentido cannico de uma obra depende, primeiramente, de interpretar a

    obra com base em determinados pressupostos, vinculando o sentido forma de modo no espontneo.

    3Eco, em suas obras, trata preferencialmente do texto literrio. Creio, todavia, que o que pode ser dito acerca do

    texto literrio, pode ser aplicado interpretao da arte, de modo geral a despeito, claro, das especificidades

    de cada uma. Opto por tratar da arte em geral a fim de dar, a este texto, uma abrangncia maior entre o pblico

    leitor.

    4E vale a pena salientar que a preferncia de Eco pelo termo intrprete evidencia ainda mais o fato de que, para

    ele, fruidor e intrprete no so necessariamente a mesma coisa. bvio que no h interpretao sem a

    contemplao, sem a fruio (o processo mecnico); porm, para diferenciar o processo do seu resultado, Eco

    prefere sempre pensar na figura de um fruidor que postula, que prope, que pressupe uma lgica, apontando

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    (experimentalmente) algumas interpretaes, ao passo que refuta outras (ECO, 1979; ECO,

    1990); em seguida, a obra artstica, enquanto produto dessa potica, entregue aos leitores,

    que tentam dar forma uma interpretao condizente com a suposta inteno latente da forma

    final e com o contexto em que se insere (Eco, 1979; Eco, 1990); enfim, essa interpretao,

    como resultante do processo, afirmada ou proposta como um topic textual (Eco, 1990, p.

    208) que agencia a percepo de elementos pertinentes na forma com noes importadas de

    uma enciclopdia (ECO, 1990; 1997). Nesse sentido, na dialtica entre a forma aberta e a

    determinao imposta pelo cdigo que o intrprete encontra os subsdios para suas

    afirmaes. Em ltima instncia, para Eco, portanto, a interpretao no passa de um

    exerccio de investigao e estipulao do cdigo em dois sentidos distintos: por um lado,

    porque a forma inusitada tem que encontrar abrigo na malha de contedos dispostos na

    enciclopdia; por outro, porque, embora dependa do que a enciclopdia estipula, a forma ,

    ainda assim, desafiadora, o que faz com que, no final das contas, a interpretao escape do

    universo do j-dito para cumprir a funo de incrementar o cdigo. Percebe-se, ento, que,

    na dialtica de Eco, esconde-se, na verdade, uma legtima antinomia: como pode a

    enciclopdia, escorada na sua relativa imobilidade, enquadrar sentidos, interpretaes,

    contedos, enfim, funes sgnicas originais? exatamente essa antinomia que buscaremos

    investigar, neste texto, com o intuito de compreender melhor como que se d, no

    pensamento de Eco, a intermediao entre o campo autnomo da forma esttica e a validez da

    interpretao como conhecimento universal e intersubjetivo, apontando para seus problemas

    intrnsecos e, eventualmente, indicando solues.

    O campo esttico em Eco e os problemas da forma artstica

    Umberto Eco tratou da questo da forma artstica (e da forma literria, em

    particular) na maior parte de seus escritos terico-crticos. Por conta disso, suas formulaes

    exibem as marcas de um pensamento em transformao, atento ao que se passava nos diversos

    cenrios acadmicos. No raro, portanto, deparar-se, em suas obras, com formulaes que

    ora reverberam a teoria da formatividade de Pareyson que vai contra a esttica croceana em

    voga at meados do sculo XX , ora exibem as convices forjadas nos estudos

    estruturalistas da dcada de 1960, na Frana, ora, ainda, derivam de uma especulao

    semitica ou filosfica na esteira de Peirce e Kant. De qualquer maneira, na transformao

    conceitual por que passa, o pensamento de Eco acerca da forma artstica conserva algumas

    caractersticas que, por um lado, solidificam-se conforme os diversos aportes tericos se

    integram e que, por outro lado, do-lhe sua autenticidade. Podemos destacar, portanto, as

    seguintes caractersticas como fundamentos do que se pode considerar a definio de arte e

    literatura, para Eco: (i) a noo de abertura; (ii) a noo de idioleto esttico e (iii) a noo de

    autorreferencialidade.

    No que diz respeito primeira ideia, podemos perceber que, desde a dcada de

    1950, Eco pensava a forma artstica, em geral, como uma forma indeterminada, fruto de uma

    dialtica entre definio e abertura: na passagem da intencionalidade autoral para a forma

    artstica, sempre h uma margem de indefinio, caracterstica da situacionalidade da fruio

    para o fato de que a interpretao guarda alguma relao com a cincia (voltaremos a isso) e, tambm,

    recuperando algumas sugestes que, na verdade, encontram-se na obra de seu mestre e orientador, Luigi

    Pareyson, para quem a interpretao da obra de arte, entre outras coisas, uma espcie de execuo de uma

    partitura, que, de certo modo, reintegra os trs fatores implicados na produo e interpretao da arte: o estilo

    da obra, a personalidade autoral suposta na criao e, logicamente, o fruidor (cf. PAREYSON, 1954).

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    (ECO, 1968a). Tal concepo ganha mais fora com a reflexo em torno da obra aberta (Eco,

    1962), que comea com uma especulao sobre a indeterminao da forma (as obras que se

    compem de sees permutveis ou as obras chamadas work in progress), para chegar a

    uma especulao sobre a indeterminao dos sentidos nas poticas contemporneas (estamos

    falando da produo artstica do ps-guerra). Eco observa, nesse momento, que a obra de arte,

    apesar de sua fixidez formal, capaz de gerar uma variedade significativa de respostas

    interpretativas que no se anulam em vez disso, complementam-se. Diante disso, Eco

    advoga que o que caracteriza o fazer artstico justamente essa capacidade de gerar mltiplos

    sentidos a partir de um nico estmulo considerando como unitrio o estmulo que a

    forma final da obra implica. A frmula encontrada por Eco para explicitar essa diferenciao

    do discurso esttico coincide com a dicotomia entre mensagens referenciais e mensagens

    estticas: as primeiras dizem respeito quelas mensagens que buscam no cdigo e no hbito

    semitico os meios para orientar a interpretao (e, por isso, tendem redundncia e

    repetio como mecanismo bsico); as segundas, por sua vez, so aquelas mensagens que se

    apoiam sobre ambos apenas para subvert-los.

    Isso significa que a interpretao de qualquer obra depende de um esforo por

    parte do espectador para pr em ordem algo da experincia catica que se lhe apresenta. Ora,

    uma vez que as mensagens estticas (ou a grande mensagem esttica que a obra na sua

    integralidade) desafiam os hbitos interpretativos, fundamental que o intrprete se imiscua

    na obra, a fim de selecionar aqueles aspectos mais relevantes para sua conceitualizao.

    Assim, a interpretao desautomatizada; por conta disso, alguns dos aspectos

    eminentemente estticos da fruio isto , aquelas sensaes experimentadas com o devir da

    interpretao, com a simbolizao da arte (sensaes de que nos fala Aristteles, desde h

    muito, como demonstra o conceito de catarse) no se estabelecem de pronto, de modo que,

    ao fim e ao cabo, o sentido final, que o que desencadeia alguma reao, acaba sendo fruto de

    um rduo trabalho de conscientizao e conceitualizao da forma (voltaremos a tratar disso

    em breve).

    Sendo assim, surge a pergunta: como ficaria a unidade da obra de arte no

    mbito coletivo se, com sua circulao irrestrita, os seus diversos intrpretes imbudos das

    intuies mais inusitadas podem formular as interpretaes de acordo com seus prprios

    pontos de vista (a situacionalidade que caracteriza um dos termos da dialtica mencionada

    acima)? Se se levar s ltimas consequncias o postulado de que o intrprete quem

    determina os sentidos da obra, ento no se poderia, pelo menos em princpio, determinar

    quais so os limites exatos da interpretao de um texto. Diante desse dilema qual seja,

    integrar a definitude da obra (a sua identidade) e a indefinio dos sentidos (a representao

    coletiva dessa identidade) , Eco (1968b) socorre-se da noo de idioleto esttico importada,

    em grande medida, do estruturalismo em voga nos anos 1960. De acordo com Eco, portanto, a

    transgresso produzida pelas mensagens estticas de uma obra coerente no seu todo. Isso

    quer dizer que existe uma lei, um princpio, que governa a transgresso, mantendo uma

    coerncia que determina um horizonte final de interpretao que fruto de uma unidade

    estrutural (algo que Pareyson chamaria de estilo).

    Que outra coisa significa a afirmao esttica da unidade de contedo e

    forma numa obra bem acabada, se no que o mesmo diagrama estrutural

    preside aos seus vrios nveis de organizao? Estabelece-se uma espcie

    de rede de formas homlogas que constitui como que o cdigo particular

    daquela obra, e que nos surge como medida calibradssima das operaes

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    efetuadas no sentido de destruir o cdigo preexistente para tornar ambguos

    os nveis da mensagem. Se a mensagem esttica, como quer a crtica

    estilstica, se realiza ao transgredir a norma (e essa transgresso da norma

    no outra coisa seno a estruturao ambgua em relao ao cdigo),

    todos os nveis da mensagem transgridem a norma segundo a mesma regra.

    Essa regra, esse cdigo da obra, em linha de direito, um idioleto

    (definindo-se como idioleto o cdigo privado e individual de um nico

    falante) [...]. (Eco, 1968b, p. 58, grifo do autor).

    Essa unidade pressuposta responsvel por decantar os sentidos que, de

    algum modo, reiteram-se ao longo do processo de interpretao. no constante devir dos

    processos lgicos que se sedimenta a interpretao e, consequentemente, forma-se a unidade

    (ou identidade coletiva) da obra de arte. Desnecessrio dizer que, para Eco, essa reiterao

    dos sentidos , claro, fruto de uma estratgia autoral que se traduz em funes sgnicas, em

    comportamentos codificados e a noo de enciclopdia o que empenha essa convico.

    Porm, de acordo com Eco, a ideia de idioleto esttico pressupe, tambm, a instituio de um

    novo cdigo: composta de um sem-nmero de mensagens estticas que, cada qual, na sua

    singularidade, afronta os hbitos cristalizados pela enciclopdia , a obra apresenta-se como

    um cdigo parte, um cdigo avulso, parasitrio, em alguma medida, da enciclopdia, mas

    fundamentalmente distinto dela.

    Nesse sentido, do ponto de vista formal que por onde Eco amide aborda

    essas questes , o texto literrio (a obra de arte, em geral) constitui-se como uma forma

    autorreferencial, em todo distinta das mensagens tipicamente referenciais ou altamente

    codificadas que, de certo modo, buscam apagar-se em benefcio de um contedo mais ou

    menos definido e altamente redundante que ela procura (ingenuamente, claro) veicular. De

    acordo com Eco (1971, p. 109, grifos do autor),

    [c]aractersticas do uso esttico de uma lngua so a ambiguidade e a

    autorreflexividade das mensagens [...]. A ambiguidade permite que a

    mensagem se torne inventiva em relao s possibilidades comumente

    reconhecidas ao cdigo, e uma caracterstica comum tambm ao uso

    metafrico (mas no necessariamente esttico) da linguagem [...]. Para que

    se tenha mensagem esttica no basta que ocorra uma ambiguidade em

    nvel da forma do contedo onde, no jogo de trocas metonmicas,

    produzem-se as substituies metafricas que obrigam a ver o sistema

    semntico de modo diverso, e de modo diverso o mundo por ele

    coordenado. mister tambm que ocorram alteraes na ordem da forma

    da expresso, e alteraes tais que o destinatrio, no momento em que

    adverte uma mutao na forma do contedo, seja tambm obrigado a voltar

    prpria mensagem, como entidade fsica, para observar as alteraes da

    forma da expresso, reconhecendo uma espcie de solidariedade entre a

    alterao verificada no contedo e a verificada na expresso. Desse modo,

    a mensagem esttica torna-se autorreflexiva, comunica igualmente sua

    organizao fsica, e desse modo possvel asseverar que, na arte, forma e

    contedo so inseparveis: o que no deve significar que no seja possvel

    distinguir os dois planos e tudo quanto de especfico ocorre em nvel de

    cada um, mas, ao contrrio, quer dizer que as mutaes, aos dois nveis, so

    sempre uma, funo da outra.

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    Ao transgredir, de forma homognea, o cdigo que sustenta a referencialidade

    das mensagens habituais, a mensagem esttica, por conseguinte, a obra artstica, incita o

    fruidor a voltar-se para ela prprias; em funo disso, a interpretao como j dissemos

    torna-se uma tarefa cognitiva (rdua, dependendo do grau de transgresso), que visa,

    primeiramente, intuio ou ao reconhecimento de um padro que indique um cdigo (ou

    seja, a unidade idioletal da obra) e, em seguida, associao dessa estrutura subjacente a um

    sentido que orbita a enciclopdia, mas, na contramo, enriquece-a.

    Esse postulado tem as seguintes consequncias: por um lado, significa que no

    se pode mais interpretar a obra atravs de um mero cotejamento de sua forma significante

    com contedos previamente delimitados por um cdigo que lhe serve de base; no se pode,

    portanto, pretender que os critrios que orientam as mensagens referenciais sejam vlidos para

    orientar a interpretao da obra de arte. Por outro lado, para instituir esse cdigo paralelo ad

    hoc, necessrio estabelecer relaes entre o que considerado relevante na obra (o campo

    perceptivo) e o que, supostamente ou possivelmente, aquilo capaz de dizer, formando um

    conjunto de correspondncias que s tem relevncia e s adquire o status de cdigo na medida

    em que define regras combinatrias e previses comportamentais para alm da

    situacionalidade da fruio. O cdigo paralelo, portanto, para firmar-se como cdigo,

    obedece aos mesmos parmetros semiticos que fundamentam, na enciclopdia, a hierarquia

    de valores do signo. Com isso, a denotao se impe sobre a conotao, mesmo ali onde a

    obra de arte parece inverter a hierarquia dos sentidos. A bem da verdade, s faz sentido em

    falar de interpretao, nos termos de Eco, se levarmos em conta essa fundamentao, essa

    hierarquia; do contrrio, esse cdigo avulso no pode se estabelecer, pois que perderia

    aquilo que o torna um cdigo por excelncia, a saber, a iterabilidade (cf. Kenshur, 2005).

    Se a interpretao da obra artstica tem a ver com esse agenciamento entre o campo do

    sensvel e a racionalidade subjacente forma autorreferencial, ento, j no primeiro contato

    com a forma, o intrprete deve encar-la como um objeto a ser percebido, conhecido (ou

    reconhecido), analisado e referenciado pela linguagem comum que caracteriza os enunciados

    tipicamente referenciais. Ora, se h uma verdade da interpretao e, para Eco, no

    somente h essa verdade, como ela se manifesta na ideia repetidamente afirmada de que a

    interpretao tem limites (ECO, 1990; ECO, 1992) , ento ela no pode se manifestar na

    mesma indeterminao semitica que caracteriza as mensagens estticas. Assim, a obra,

    enquanto objeto, deve ser representada, do ponto de vista do cdigo, com base na

    enciclopdia, ainda que, a rigor, aquela se distancie desta. Essa aparente antinomia, porm,

    no constitui, para Eco, um problema; alis, para ele, essa contradio terminolgica e

    estrutural no seu pensamento o que lhe permite alicerar a ideia de que a obra de arte

    aberta porm coerente em sua transgresso e, ao mesmo tempo, a ideia de que ela legvel e

    intersubjetivamente reconhecvel. No fundo, o que Eco procura um modelo terico que

    explique, ao mesmo tempo, a extravagncia de certos itens artsticos e a sua legibilidade, sua

    interpretabilidade e, portanto, sua aceitao coletiva como obra de arte que significa o que

    ela significa.

    Nesse sentido, do ponto de vista de Eco, a interpretao (enquanto conceito)

    guarda estreita relao com o campo do cientfico uma vez que se atm s questes relativas

    verdade e justeza dos sentidos em sua relao imediata com o campo do perceptivo

    (com a forma autorreferencial) e na medida em que patrocina a reduo do campo do sensvel

    a uma (suposta) racionalidade subjacente. A interpretao toma o objeto (a obra de arte, no

    caso), tira-o de sua neutralidade no campo perceptivo e o coloca em relao com um contexto,

    a partir de uma intencionalidade pressuposta que, entre outras coisas, explica a presena

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    objetiva da obra no contexto e a sua relao intrnseca com o intrprete e o que mais

    importante, talvez compreende o modo de ser desse objeto atravs do resgate da forma.

    Interpretar a obra , portanto, conhec-la; poder dizer algo sobre ela, algo cuja validez

    transcende a prpria situacionalidade da experincia esttica e busca se impor como uma

    explicao e uma compreenso (para usar os termos diltheianos) no nvel mais elementar da

    relao entre o cdigo e o mundo. Essa adequao da formulao lingustica resultante da

    interpretao (entendida como processamento lgico, como foi dito) e a objetividade da obra

    so um problema tipicamente filosfico (da filosofia do conhecimento, pelo menos) que tem a

    ver com a relao entre os predicados e os fenmenos que eles referenciam. E nesse sentido

    que se pode falar que a interpretao, do modo como Eco a considera, assemelha-se aos

    procedimentos cientficos.

    O campo cientfico na obra de Eco: induo, deduo e abduo e o juzo teleolgico

    kantiano

    A adequao da linguagem ao mundo , talvez, o principal problema com que a

    filosofia do conhecimento lida. A descrio dos fenmenos bem como o entendimento de sua

    relao com outros fenmenos ou com os conceitos que traduzem algum conhecimento a seu

    respeito dependem inteiramente de uma convergncia entre os campos perceptivo e

    intersubjetivo, compostos pelos sentidos permitidos pela enciclopdia. E, no caso de objetos

    ou fenmenos em algum grau desconhecidos e tambm de se considerar a obra de arte como

    uma forma autorreferencial que vira as costas para um referente externo obra para

    apresentar-se como um objeto a ser percebido, segmentado e conceitualizado , entender essa

    relao entre linguagem, cdigo e mundo algo que se torna imperativo. por isso que Eco

    dedicou questo um livro de grande flego: Kant e o ornitorrinco (1997). Nele, possvel

    encontrar uma srie de formulaes acerca de, por um lado, como percebemos os objetos e os

    relacionamos com os contedos veiculados pelo cdigo e, por outro, como somos capazes de

    passar do campo lingustico (mas tambm do campo expressivo da linguagem visual, por

    exemplo) para os atos de referncia feliz de acordo com a denominao de Eco (1997).

    Doravante, basear-me-ei nesse livro de Eco, a fim de esclarecer seus pressupostos no campo

    da filosofia do conhecimento. E, posto que o que me interessa, aqui, observar como esses

    pressupostos se comportam posteriormente no campo esttico, pretendo me ater s seguintes

    ideias mais relevantes para a disciplina esttica e mais prximas dela: (i) a percepo no

    livre , antes, determinada pelas linhas de fora do emprico; (ii) a regularidade da

    percepo forma tipos cognitivos mentais; (iii) a abstrao desses tipos cognitivos so a base

    de sustentao dos signos, da linguagem e dos predicados.

    Com relao primeira ideia, podemos notar que Eco vai contra o solipsismo

    psicologista que, amide, encontra-se na base de certas posturas tericas e filosficas ps-

    modernas. Contrariando as correntes mais radicais da desconstruo e a corrente crtica do

    pensiero debole (de seu conterrneo e contemporneo Gianni Vattimo), Eco defende que,

    ainda que as percepes e as interpretaes do mundo sejam sempre perspectivadas

    dependentes, enfim, do modo como a subjetividade do intrprete se relaciona com o mundo ,

    existem interpretaes que so mais impositivas e que decorrem, no fundo, da regularidade de

    certas respostas cognitivas. Segundo Eco (1997, p. 52-53),

    [d]e qualquer modo, seria aceitabilssima a ideia de que as descries do

    mundo so sempre prospectivadas, ligadas ao modo como estamos

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    biolgica, tnica, psicolgica e culturalmente radicados no horizonte do ser.

    Estas caractersticas no impediriam os nossos discursos de adequarem o

    mundo, pelo menos a partir de certa perspectiva, sem que por isso sintamos

    satisfeitos com a quota de adequao obtida, de modo a sermos induzidos a

    nunca considerar seno as nossas respostas, mas quando afinal de contas

    parecem boas, tm de ser consideradas definitivas.

    Mas o problema no como chegar a acordo com o fato de se poder falar

    do ser de muitos modos. que, uma vez identificado o mecanismo

    profundo da pluralidade das respostas, se chega questo final, que se

    tornou central no mundo dito ps-moderno: se infinitas, ou pelo menos

    astronomicamente indefinidas, so as perspectivas sobre o ser, significa isto

    que uma vale a outra, que todas so igualmente boas, que toda a afirmao

    sobre o que diz algo de verdade, ou que como disse Feyerabend para as

    teorias cientficas anything goes?

    Isso leva Eco a questionar se essa suposta unidade comportamental no seria,

    portanto, um efeito do mundo, como sua formatao especfica e suas linhas de resistncia,

    sobre a linguagem. Se no for, ento Eco est sujeito a considerar uma alternativa filosfica

    tipicamente pragmatista aquela que se nota na obra de Rorty (2000), que indica que essa

    regularidade pode ter uma raiz evolutiva. Se for, ento Eco aproxima-se mais daquilo que,

    para Kant, fundamenta a noo de esquema: um conjunto de conhecimentos pr-categorias e

    categoriais que define uma grade conceitual possvel de ser aplicada conceitualizao e

    compreenso dos fenmenos isolados e, principalmente, dos fenmenos entre si. Fica claro,

    no meu entender, que Eco (1997) nem sequer considera a primeira opo dado, inclusive,

    que ela tende a contra-atacar a prpria noo de filosofia do conhecimento , preferindo

    aderir prontamente ao kantismo. Sua noo de tipo cognitivo ilustra perfeitamente essa

    adeso: a sntese das interpretaes, das representaes mentais daquilo que percebido,

    compe uma estrutura mental que orienta, posteriormente, outras respostas cognitivas. Creio

    que o trecho abaixo bastante esclarecedor:

    [o] denominar o primeiro ato social que os [os astecas que veem pela

    primeira vez cavalos] convence de que todos juntos reconhecem variados

    indivduos, em momentos diferentes, como ocorrncias do mesmo tipo.

    No era necessrio denominar o objeto-cavalo para reconhec-lo, tal como

    eu posso experimentar um dia uma sensao interior desagradvel, mas

    indefinvel e s reconhecer que a mesma que tinha sentido no dia antes.

    Contudo, essa coisa que senti ontem j um nome para a sensao que

    tenho, e ainda o seria mais se da sensao, de resto privadssima, tivesse de

    dar contas a outrem. A passagem a um termo genrico nasce de uma

    exigncia social, para poder separar o nome do hic et nunc da situao, e

    fix-lo precisamente ao tipo. (ECO, 1997, p. 135-136).

    Para Eco um pouco diferentemente de Kant, bom que se diga , essa sntese

    do tipo cognitivo feita a partir do prprio campo do emprico, o que significa dizer duas

    coisas: em primeiro lugar, que a nossa grade conceitual, nossos esquemas cognitivos

    derivam da percepo e no do tipo de conhecimentos apriorsticos inatos; em segundo lugar,

    que a linguagem se enriquece desses tipos cognitivos formados na experincia, de modo que,

    se h regularidade intersubjetiva, isso devido prpria percepo. V-se, portanto, que Eco

    considera a formao dos tipos cognitivos a partir da concepo peirceana de iconismo

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    primrio (PEIRCE,1990): existe um contorno perceptivo que no pode ser ignorado, seja

    ele um contorno gestltico, seja ele um reforo neuronal que imprime no crebro formas,

    esquemas e memrias.

    De acordo com essa ideia de Eco, fica fcil entender como o sujeito capaz de

    compreender o mundo e os fenmenos que o cercam. Em alguma medida, cabe ao sujeito

    reconhecer, no campo perceptivo, as formas mnimas que se associam aos seus tipos

    cognitivos e manejar a linguagem conforme a imposio da percepo. Assim, a interpretao

    (e, consequentemente, o conhecimento dos objetos do mundo) caminha pelas vias lgicas j

    anteriormente discriminadas por Peirce (1990), quais sejam: a induo e a deduo. No

    limite, colocando a questo nestes termos, conhecer reconhecer o objeto como um exemplo

    tpico de um contedo mental anterior, ou reconhecer os processos esquemticos que fazem

    com que o objeto corresponda a um devir (uma relao de causa e consequncia)

    internalizado como mostram os diversos exemplos tratados na obra de Eco (1997), em

    especial o do ornitorrinco, que, para os bilogos do sculo XIX, ora mamfero, ora ave,

    ora peixe.

    Alis, esse exemplo interessante porque nos expe a aporia presente na teoria

    econiana da percepo e do conhecimento. Em primeiro lugar, a alocao do ornitorrinco na

    enciclopdia mostra a dificuldade em se pensar no conhecimento como a manipulao da

    grade conceitual dos tipos cognitivos: a hesitao em consider-lo como ave, peixe ou

    mamfero escancara a fragilidade da noo de tipo cognitivo e, ao mesmo tempo, exemplifica

    a possibilidade nem sempre implausvel de se deparar, eventualmente, com objetos ou

    situaes que contradizem o conhecimento internalizado (sobretudo se o sujeito em questo

    carece de uma experincia de mundo razovel). Em segundo lugar e por conta disso , h

    momentos em que o mundo desafia a enciclopdia, de modo que preciso um esforo muito

    maior por parte do intrprete na tarefa de conceitualizar a experincia inusitada. E isso nos

    soa muito familiar! Quando que estamos diante de um objeto relativamente inusitado, que

    desafia a enciclopdia e impe ao intrprete uma rdua tarefa cognitiva? J vimos: quando o

    intrprete est diante da forma autorreferencial da obra de arte.

    Nesse caso, ento, o intrprete tem que escolher, na grade conceitual dos

    tipos cognitivos, aquelas pores de contedo que melhor do conta da experincia inusitada.

    Porm, por outro lado, nem a forma est devidamente segmentada, nem o plano do contedo

    encontra-se disponvel, de modo que a articulao entre forma e contedo (a formao da

    funo sgnica, portanto) dificultada. A deduo e a induo, portanto, no socorrem mais o

    intrprete; no se trata de encontrar na forma artstica as estruturas que representam o

    exemplo de uma regra geral (deduo), ou deduzir uma regra geral para determinado exemplo

    (induo). Na total falta da articulao do mbito perceptivo com o mbito conceitual, entra

    em cena um processo lgico denominado abduo. E essa noo aparece com bastante

    destaque na obra de Eco (1975) noo que importada de Peirce (1990). De acordo com

    Peirce, a abduo

    [...] o processo de formao de uma hiptese explanatria. a nica

    operao lgica que apresenta uma ideia nova, pois a induo nada faz alm

    de determinar um valor, e a deduo meramente desenvolve as

    consequncias necessrias de uma hiptese pura.

    A Deduo prova que algo deve ser; a Induo mostra que alguma coisa

    realmente operativa; a Abduo simplesmente sugere que alguma coisa

    pode ser. (PEIRCE, 1990, p. 220, grifo do autor).

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    Percebe-se, ento, que a abduo no tem com a verdade (sobretudo a

    verdade cientfica) o mesmo compromisso que a induo e a deduo parecem ter. Com

    efeito, a julgar pelo que Peirce acaba de nos dizer, possvel afirmar que a abduo tende

    muito mais verossimilhana (o pode ser) do que verdade propriamente dita; ao

    mesmo tempo em que ela se prende ao campo do perceptivo e, por isso, tenha que prestar

    contas da objetividade do emprico , ela depende de uma intuio.5 No obstante essa

    parcela de criatividade presente na abduo entrar em conflito com o modelo enciclopedista e

    representacionalista de Eco, uma alternativa vivel para dar conta da aparente contradio

    encarada pelo intrprete da obra de arte: acomodar a experincia inusitada nas margens da

    enciclopdia. Em ltima instncia, trata-se de compor uma hiptese interpretativa que leva

    em conta, em alguma medida, o conhecimento estabelecido anteriormente. Nesse sentido, a

    interpretao sada da abduo, alm de indicar uma possibilidade (o termo hiptese deixa

    isso bem claro), um modo de ser plausvel para a obra, fruto de uma composio que, no

    limite, reintroduz o aspecto esttico na abordagem cientfica (voltaremos a isso).

    Nesse ponto, portanto, as ideias de Eco encontram-se com as ideias da terceira

    crtica kantiana. Na medida em que serve de intermediria entre o conhecimento estabelecido

    pela enciclopdia e o conhecimento novo, trazido da experincia, e na medida em que a

    abduo, ao ocupar esse lugar intermedirio, reintroduz o aspecto esttico, fica mais clara a

    proximidade de Eco com a noo kantiana de juzo teleolgico (KANT, 1790).

    Se lembrarmos aquilo que o filsofo alemo disse a saber, que o juzo

    teleolgico

    [...] pode, ao menos de uma forma problemtica, ser usado corretamente na

    investigao da natureza; mas somente para a submeter a princpios de observao e

    da investigao da natureza segundo a analogia com a causalidade segundo fins,

    sem por isso pretender explic-lo atravs daqueles.(KANT, 1790, p. 204, grifo do

    autor)

    no teremos, ento, dificuldade em observar como a ideia de abduo de Eco resgata a ideia

    do juzo teleolgico de Kant, com todas as consequncias que isso traz para seu pensamento

    esttico.

    O juzo teleolgico kantiano responsvel por colocar os fenmenos em uma

    ordem causal de necessidade, ordem que esboada pelo intelecto como forma de

    compreenso dos fenmenos. Isso significa duas coisas: por um lado, significa que o juzo

    teleolgico instaura um antropomorfismo da natureza, isto , uma sobreposio do intelecto

    aos fenmenos; por outro lado, significa que o juzo teleolgico tem um alcance limitado no

    que diz respeito s verdades analticas. Do juzo teleolgico no se pode esperar o mesmo

    grau de certeza que se observa nos juzos sintticos e analticos (pelo menos do modo como

    5\

    Vale a pena citar aqui a opinio de Santaella, uma das maiores estudiosas brasileiras da obra de Peirce: [d]e

    fato, no seu ncleo central, ela [a abduo] se refere ao ato criativo de inveno de uma hiptese explicativa,

    sendo, consequentemente, o tipo de raciocnio pelo qual a criatividade se manifesta na cincia e na arte, do

    que decorre que , a, justamente nesse ponto de encontro, onde os caminhos de ambas se cruzam. Sendo o tipo

    mais frgil de argumento lgico, a abduo serve com perfeio s necessidades da arte, pois esta no tem

    nenhum compromisso com a verdade da cincia, produzindo uma verdade que lhe prpria, a pura

    verdade do admirvel e do sensvel da razo. Embora tenha a forma de um argumento frgil, essa fragilidade

    , paradoxalmente, tudo de que depende a criao tambm na cincia, nela repousando o processo subsequente

    da investigao (Santaella, 2004, p. 103, grifo nosso).

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    estes aparecem na obra de Kant). Por isso mesmo, parece-me que o juzo teleolgico tem algo

    do juzo de gosto na medida em que, dada essa ascendncia do intelecto sobre a natureza e

    dado esse carter imaginativo e criativo de que nos fala Kant, parece haver uma conformidade

    afim com um tipo de entendimento que no depende completamente do campo emprico. O

    juzo teleolgico desenha o seu prprio esquema intelectual, no qual a sua coerncia interna

    e tambm a sua plausibilidade se abrigam. Contraditoriamente, porm, no se pode negar que

    o juzo teleolgico tem um p no campo emprico e, por isso, deve prestar conta de uma

    verdade que busca se impor ao intelecto. apenas contrastando a realidade com o

    ajuizamento, com o esquema intelectual, que o juzo teleolgico encontra a sua razo de ser.

    Fao uma pausa apenas para introduzir o texto de Kant, que vale muito a pena ser relembrado.

    para ns inevitvel at atribuir natureza o conceito de uma inteno, se

    que pretendemos to somente investigar os seus produtos organizados

    mediante uma observao continuada e este conceito por isso j uma

    simples e necessria mxima para o uso experiencial da nossa razo.

    claro que, uma vez que concordamos em aceitar e confirmar um tal fio

    condutor para estudar a natureza, temos tambm que ao menos

    experimentar a mxima pensada pela faculdade de juzo na totalidade da

    natureza, porque segundo essa mxima ainda possvel descobrir muitas

    leis daquela, as quais de outro modo nos ficariam ocultas, dadas as

    limitaes da nossa compreenso no interior do seu mecanismo. Mas em

    relao a este ltimo uso aquela mxima da faculdade do juzo na verdade

    til, mas no indispensvel, pois a natureza no seu todo no nos dada

    enquanto natureza organizada (ou no significado mais estrito da palavra, j

    mencionado). Pelo contrrio, no que respeita aos produtos da mesma, os

    quais somente tm que ser ajuizados como sendo formados

    intencionalmente assim e no de outro modo, para que a respectiva

    constituio interna seja objeto de um conhecimento de experincia, aquela

    mxima da faculdade de juzo reflexiva essencialmente necessria, j que

    at pensarmos esses produtos como coisas organizadas impossvel, sem

    que se ligue a isso o pensamento de uma produo intencional. (KANT,

    1790, p. 239-240).

    Isso no muito diferente do que pensa Eco (e Peirce) em relao abduo.

    Aqui, tambm, trata-se de relacionar aquilo que experienciado com uma hiptese

    explanatria, um esquema mental que tem uma coerncia interna. A intuio uma das

    componentes da abduo encarrega-se de formar a hiptese, procurando, no campo do

    conhecimento internalizado pela enciclopdia, as informaes mais relevantes, traando, com

    base na experincia adquirida e a partir da experincia imediata, uma analogia produtiva que

    possa circunscrever o objeto dentro de uma lgica que no puramente subjetiva, mas que se

    pretende objetiva (isto , universalmente reconhecvel e, portanto, intersubjetiva voltaremos

    a isso). A abduo, portanto, fica sujeita de alguma forma traduzibilidade: tal como o juzo

    teleolgico kantiano, trata-se de fazer referncia ao objeto ou fenmeno inusitado atravs de

    conceitos que j esto dados e que se referem a experincias comuns, mas que, no conjunto,

    organizam-se aos moldes de um texto, inclusive, de acordo com Eco (1990, p. 208) para,

    metaforicamente, formar o conhecimento acerca do que experienciado. A exemplo do juzo

    teleolgico kantiano, portanto, a abduo, ao sobrepor a hiptese ao fenmeno, tenta mostrar

    a ordem supostamente inerente a elas, como se as coisas tivessem se passado de acordo com

    uma lgica plausvel. Esse parentesco da abduo com o juzo teleolgico tem

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    consequncias no campo esttico consequncias de que Eco parece no se dar conta,

    totalmente e que dizem respeito, por um lado, ao modo como a abduo se constri, com

    base na enciclopdia e, por outro lado, ao modo como a universalidade, a validez coletiva ou,

    ainda, a intersubjetividade pretendida pela interpretao (ou juzo) so posteriormente

    conseguidas.

    As consequncias da abduo no mbito da esttica

    Quando consideramos o conceito de abduo no mbito da esttica, quando

    levamos em conta tudo aquilo que Eco afirma sobre a arte e quando observamos o parentesco

    da noo de abduo com a filosofia do conhecimento kantiana, somos capazes de perceber

    algumas consequncias que no foram de todo vislumbradas pelo semioticista italiano em sua

    obra terico-crtica consequncias que, de certo modo, minam a coerncia interna do seu

    pensamento. Em primeiro lugar, vale notar o fato de que a abduo se aplica como processo

    lgico-interpretativo por excelncia da fruio artstica porque conserva algo da intuio e dos

    procedimentos compositivos tpicos da atividade artstica. Em segundo lugar e decorrente da

    primeira observao , percebe-se que a formulao lingustica da hiptese interpretativa

    sada da abduo fundamentalmente dependente da metfora. Finalmente, existe, na

    interpretao sada da abduo, uma componente mimtica, que a responsvel por instaurar

    a sensao de verossimilhana que, por sua vez, articula a passagem daquilo que j

    devidamente conhecido pela enciclopdia quilo que estabelecido como novidade. Vejamos

    cada um desses aspectos em detalhes.

    De incio, podemos dizer que aquilo que parece consistir uma desvantagem no

    campo filosfico e cientfico a intuio e sua incerteza analtica , no campo artstico, um

    verdadeiro ganho. Como vimos, Eco encara os problemas da interpretao da obra de arte

    com vistas a uma verdade, reduzindo o aspecto esttico ao aspecto cognitivo. Porm,

    quando a abduo entra em cena no processo interpretativo da obra de arte, resgata-se

    exatamente essa componente esttica anteriormente perdida. Na intuio do intrprete,

    resguarda-se o mesmo tipo de atitude compositiva que se observa na produo da obra de arte.

    O agenciamento do campo perceptivo e a analogia daquilo que considerado pertinente com

    provveis conceitos j devidamente discriminados tm a ver com a formao de um sentido,

    de uma intencionalidade que, em ltima instncia, prima pelo convencimento no pela

    verdade, mas sim pela simpatia. A interpretao, na medida em que no pode reivindicar a

    verdade analtica do saber cientfico, almeja o consentimento com base numa arquitetura

    conceitual que, em ltima anlise, apela para algo da ordem do afetivo. Quer dizer, ento, que

    o tipo de compreenso e o tipo de consentimento que a interpretao abdutiva da obra de arte

    busca so fundamentalmente estticos. Se a validez coletiva da interpretao no pode mais

    ser referendada pela objetividade da forma artstica ou mesmo pela rigidez da enciclopdia

    isto , se a validez da interpretao no condiz com uma suposta verdade ali, disponvel ao

    alcance de todos, to palpvel quanto a prpria experincia esttica , ento a interpretao s

    pode ser vlida na situao propcia (nem sempre possvel) de se instaurar uma convergncia

    intersubjetiva que se configura como uma homologia que , em ltima anlise, afetiva. Na

    impossibilidade de atingir a verdade, a boa interpretao, do ponto de vista coletivo, s

    pode ser aquela que conquista para si as subjetividades alheias o que configura, na minha

    opinio, uma noo de interpretao como criao a partir do pathos.

    Para alcanar isto, a interpretao decorrente da abduo no tem outra

    alternativa a no ser formalizar-se em termos e contedos que tm a ver mais com os

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    processos compositivos da obra de arte do que com os procedimentos analticos da cincia.

    Eco no parece se dar conta disso, mas, quando um intrprete afirma, com base no seu

    conhecimento, que a ltima obra de arte publicada na face da terra diz tal ou tal coisa, ele s

    pode fazer isso se tiver condio de manejar o cdigo aos moldes como so manipuladas as

    metforas. No limite, o cdigo no dispe de uma estrutura fixa e pronta, capaz de induzir a

    formulao da hiptese explanatria do intrprete; e, nessa carncia, os signos com os quais o

    intrprete compe sua interpretao final so obrigados a assumir um valor distinto daquele

    que tm no seu uso referencial. Interpretar a obra de arte, portanto, abord-la pelo avesso

    do signo: no possvel coordenar a experincia indita com um conhecimento

    compartilhado; preciso, antes, estabelecer essa relao entre linguagem e mundo; preciso

    fazer referncia experincia fruitiva apenas tangenciando o referente no limite do conceito,

    no limite daquilo que j discriminado pela enciclopdia. Assim, a interpretao metafrica

    na medida em que envolve a obra numa nebulosa de signos, conceitos e sentidos que, ao

    mesmo tempo em que buscam referenciar-se quela experincia contemplativa singular, dela

    escapam, porque no so capazes de aderir completamente a ela, dada a histria que os signos

    tm no interior do cdigo e da enciclopdia e dado o carter refratrio da forma

    indeterminada da obra. Nesse sentido, destaca-se, uma vez mais, o aspecto eminentemente

    esttico da interpretao que Eco, na minha opinio, no vislumbra ou simplesmente ignora.

    Se a interpretao fosse um mero cotejamento da forma significante com os contedos

    discriminados pela enciclopdia, ento teramos, em princpio, uma reivindicao de verdade

    que puramente referencial (tal como acontece num juzo sinttico ou num juzo analtico):

    a interpretao X verdadeira porque Y verdadeiro. Como ela no um mero

    cotejamento, ento a verdade da interpretao da obra de arte a exemplo da prpria

    verdade da arte s pode ser alcanada mediante a sugesto e incitao do intelecto, no

    sentido de uma conformidade que anloga s ideias kantianas acerca do belo e do sublime. E

    Eco no percebe que apenas mediante esse mise en abme que o efeito esttico por

    excelncia se prolonga no decorrer do seu percurso ao longo de sua incessante circulao

    social. O efeito esttico no se detm exclusivamente na produo da obra; ele sobrevive da e

    na metfora da interpretao abdutiva; ele sobrevive na interpretao.

    No se pode esquecer, porm, que, para ser aceita, a interpretao precisa ser

    referendada pela coletividade por onde ela e a obra circulam. A validez de uma interpretao

    obtida, tambm, mediante a chancela que lhe dada no mbito intersubjetivo. Essa

    afirmao tantas vezes reiterada por Eco tem, no mnimo, duas consequncias. A primeira

    delas diz respeito ao fato de que o tipo de atitude esttica ou cognitiva que o intrprete tem

    para com a obra, uma vez que no confrontada com o que a coletividade pensa, deixa de ser

    um problema crtico do ponto de vista da justeza da interpretao. S faz sentido interrogar a

    validez (ou verdade, o que muito pior) intersubjetiva de uma determinada interpretao,

    de uma determinada abduo, se, em ltima instncia, o que for afirmado pelo intrprete

    puder ser acolhido pelos outros intrpretes. No se trata de configurar um campo autnomo ou

    arbitrrio de circulao de sentidos; pelo contrrio: no plano intersubjetivo, a arbitrariedade

    uma atitude muito pouco conveniente. Em seu foro ntimo, o que um intrprete faz com a

    obra, como ele a interpreta, pouco nos diz sobre a validez e a justeza das interpretaes. Se,

    por um lado, como quer Eco, a interpretao um juzo vlido, extrado de um rduo processo

    cognitivo, ento no se pode nem por um momento esperar que a interpretao seja arbitrria.

    Alis, se a interpretao realmente flerta com o conhecimento conforme afirma o

    semioticista italiano , ento, em princpio, ela no pode se safar da regulamentao filosfica

    que ou afirma que os caminhos do conhecimento so nicos e transponveis pelo mtodo, ou

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    sustenta que os indivduos so dotados de igual capacidade de reconhecer, na experincia

    emprica, as verdades intrnsecas do mundo, ou, ainda, defende que o prprio universo

    emprico formata a conscincia dos sujeitos de forma anloga. Se, por outro lado, a

    interpretao resgata o aspecto esttico da obra fruda (como advogo aqui), ento eu diria que

    naturalmente no pode haver nenhuma arbitrariedade: o tipo de envolvimento que o intrprete

    ter com a obra ser, de alguma forma, condizente com os efeitos que ela desencadeia, e, mais

    do que isso, a prpria aproximao do leitor para com a obra dar-se- sempre nesses termos.6

    E mesmo nessa lgica que eu chamaria de uma lgica do pathos, em que pese o oximoro

    a interpretao no ser arbitrria: nos efeitos que a obra proporciona e na tentativa de

    estabelecer uma homologia entre obra fruda, interpretao e, sobretudo, coletividade de

    fruidores, o intrprete ver-se- compelido a cooperar num nvel muito mais elementar do

    processo cognitivo, o qual se coloca, no meu entender, aqum da prpria formulao da

    interpretao o nvel afetivo. claro que, nesse nvel, a interpretao fica muito mais sujeita

    s idiossincrasias das diferentes subjetividades envolvidas na interao obra-intrprete-

    comunidade. Contudo penso que porque esse nvel eminentemente esttico que o

    intrprete buscara abrir mo de uma m-subjetividade para abraar uma boa-

    subjetividade:7 no fundo, o prazer maior da atitude esttica do intrprete consiste em

    apaziguar os nimos (aplacar as susceptibilidades, talvez), fazendo com que a sua

    interpretao seja de algum modo condizente com aquilo que ele prprio espera da arte, de

    modo geral (isto , um sentido de pertencimento coletividade, em ltima anlise), e com

    aquilo que esperam dele, como intrprete consciencioso. Alis, somente reconhecendo isso

    que poderemos tornar mais palpvel aquela particularidade da comunicao artstica, a saber,

    a empatia fundada no gosto, no prazer, na comunho...

    Mas eu havia dito que a submisso da interpretao intersubjetividade tem,

    tambm, uma segunda consequncia. Em ltima anlise, no se pode destacar a interpretao

    da obra, dando-lhe um estatuto ontolgico independente. Na verdade, porque existe uma

    ntima relao entre obra e interpretao que se pode falar em fruio, cognio, resposta

    interpretativa etc., e porque essa relao fundamental que no se pode ignorar que a

    interpretao se faz aos olhos de outrem. Alis, mesmo o apelo esttico da interpretao s

    6Aqui, estou claramente resgatando um pensamento defendido por Pareyson (1954; 1996), que Eco no deixa

    passar na sua resenha s obras do seu mestre (ECO, 1968a, p. 31), mas que no aparece com fora no restante

    das suas elucubraes. Em dado momento, Pareyson escreve: [a] interpretao ocorre quando se instaura uma

    simpatia, uma congenialidade, uma sintonia, um encontro entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos

    infinitos pontos de vista da pessoa: interpretar significa conseguir sintonizar toda a realidade de uma forma

    atravs da feliz adequao entre um dos seus aspectos e a perspectiva pessoal de quem a olha (Pareyson, 1996,

    p. 226). Creio que essa noo de congenialidade bastante profcua, na medida em que resgata o aspecto

    esttico da fruio. Atravs dela possvel sustentar que, entre a interpretao e a obra e, consequentemente,

    entre a interpretao formulada e sua validez , deve haver um princpio afetivo que formata a conscincia em

    torno da obra fruda, unindo a coletividade em torno da obra.

    7O leitor arguto certamente notar o dbito que tenho para com Paul Ricoeur, um dos principais filsofos e

    hermeneutas do sculo XX. Aqui, estou tomando a sua ideia relativa verdade do historiador e aplicando obra

    de arte. Ricoeur (1955, p. 38) afirma que a relatividade do ponto de vista subjetivo do historiador que pode,

    eventualmente, modificar a interpretao da histria, deliberada ou indeliberadamente deve ser compensada

    pela sobreposio de uma boa subjetividade (bonne subjectivit) sobre uma m subjetividade (mauvaise

    subjectivit). Mutatis mutandis, podemos aplicar o que ele diz obra de arte, dizendo que sobre uma m

    subjetividade, que pe em perigo a unidade pacfica da coletividade, deve se opor uma boa subjetividade. Em

    ambos os casos o documento histrico e a obra de arte h uma comunicao na distncia e, por isso, deve

    haver esse respeito para com aquilo que se pode dizer. Somente assim que possvel prolongar o devir da obra

    de arte, sua compreenso e sua fruio.

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    tem razo de ser dentro do contexto nico em que a obra interpretada: as diferentes reaes

    so prprias e peculiares quela determinada obra e a nenhuma outra. Sendo assim, a

    interpretao, a despeito da sua inclinao metafrica, ainda assim, mantm essa relao

    semirreferencial com a obra fruda e, como vimos, a interpretao explica essa reao,

    nessa sua mistura de intuio e cognio. E isso nos leva ltima ideia que pretendo defender

    neste artigo: penso que possvel afirmar que a interpretao imita a obra de arte. A

    interpretao imita a obra de arte no s na medida em que exibe algumas caractersticas

    semelhantes ao processo de criao artstico, mas tambm na medida em que, para manter-se

    ligada obra, ela captura, em algum grau, algo da prpria obra, passando-o adiante. Mas

    uma imitao que no se d to somente no nvel esttico: toda vez que recorre

    enciclopdia, a fim de selecionar os termos que melhor formalizam a hiptese abdutiva, a

    interpretao recupera a memria dos signos, mantendo com o j-dito que compe a

    estrutura formal do cdigo uma relao que, de certo modo, repete o sucesso de interaes

    semiticas anteriores (disso depende, inclusive, a verossimilhana mencionada acima: a

    interpretao imita a obra, imita o cdigo, tangenciando ambos, com o intuito de no se

    distanciar demais da experincia esttica da fruio).

    Creio, portanto, que podemos chamar de mimtica a interpretao sada da

    abduo, nos moldes como Eco a compreende, porque, em ltima anlise, o intrprete recorre

    ao cdigo e aos hbitos instncias tericas dignas da repetio, da imitao a fim de

    projetar aquele impulso primordial que eu identifiquei com um impulso esttico-afetivo. Dizer

    que o intrprete busca no j-dito, isto , na memria das interaes bem-sucedidas, as

    condies mnimas de cooperao, tendendo, inclusive, para o uso referencial da mensagem,

    no sacrificar o aspecto esttico, como faz Eco; , pelo contrrio, salient-lo. Mas isso s

    fica evidente quando colocamos a componente esttica o afeto e a intuio acima do

    aspecto cognitivo. Buscar na linguagem corriqueira imit-la, enfim os termos afins para

    favorecer a compreenso da obra de arte patrocinar um entendimento (congenialidade) no

    nvel intersubjetivo que promove a homologia das interpretaes ao longo dos diferentes

    contextos de fruio da obra de arte. Se, no final das contas, as pessoas se comportam de

    modo mais ou menos semelhante diante das obras (essa imitao que mencionei), no

    porque, na base dos seus juzos, existe necessariamente a mesma capacidade cognitiva, mas

    porque, buscando aparentar-se ao prximo, buscando exprimir-se como o prximo, o sujeito

    alcana uma fruio esttica que transcende a obra e consagra a comunidade. Esse aspecto,

    receio, completamente menosprezado pelo semioticista italiano Umberto Eco.

    Agradecimentos

    Uma vez que este texto fruto de uma pesquisa de doutorado (Brito Jr., 2010)

    desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, sob a orientao do Prof.

    Dr. Mrcio Seligmann-Silva, e com apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de

    So Paulo (Fapesp), devo manifestar o meu agradecimento a ambas instituies e ao

    orientador.

    Referncias bibliogrficas

    BRITO JR., Antonio Barros de. Obra aberta: teoria da vanguarda literria nas obras

    terico-crticas de Umberto Eco. Dissertao de mestrado em Teoria Literria.

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