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XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Uberlândia - 2011
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Proposta de aplicação da rítmica de José Eduardo Gramani para
elaboração de arranjos na música popular
Dr. Marcelo Pereira Coelho e-mail: [email protected]
Resumo: Este artigo apresenta experimentações sistemáticas com a estrutura rítmica denominada Séries, presente nos volumes Rítmica e Rítmica Viva de José Eduardo Gramani. Trata-se da elaboração de arranjos do repertório da música popular, especificamente o jazz e a música brasileira. A adequação desta estrutura rítmica aos demais parâmetros musicais como as relações de alturas, complexos harmônicos, forma e fraseologia têm por finalidade o aprimoramento da sensibilidade rítmica, contemplando o conceito de dissociação rítmica, defendido por Gramani.
Palavras-Chave: arranjo, música popular, estruturas rítmicas, José Eduardo Gramani
A proposition for arrangments in popular music based on the rhythmic approach developed by José
Eduardo Gramani
Abstract: This article presents a systematic experimentations based on the rhythmic structures called Séries found in the volumes Ritmica and Ritmica Viva by José Eduardo Gramani. It’s was created some arrangments based on the repertoire of jazz and brazilian music. These experimentations gather the rhythmic structures with other musical parameters such as intervals, harmony, form, and phraseology, reaching through the arrangment the concept proposed by Gramani known as rhythmic dissociation.
Keywords: arrangment, popular music, rhythmic structures, José Eduardo Gramani
1. Introdução
O presente artigo apresenta uma proposta de elaboração de arranjos voltados para
o repertório da música popular mais especificamente o jazz e a música brasileira, a partir da
rítmica de José Eduardo Gramani presentes nos volumes Rítmica e Rítmica Viva. Os
procedimentos que serão apresentados neste texto foram elaborados e experimentados no
‘Laboratório de Composição e Improvisação a partir da rítmica de José Eduardo Gramani’,
projeto de pós-doutorado desenvolvido através do programa de pós-graduação da USP, sob
supervisão do professor Doutor Rogério Costa com apoio da FAPESP. As experimentações
foram realizadas com um grupo de alunos da Faculdade de Música Souza Lima, localizada em
São Paulo. A instituição é reconhecida pelo programa voltado ao ensino da música popular.
A adequação sistemática das estruturas rítmicas aos demais parâmetros musicais
como as relações de alturas, complexos harmônicos, forma, fraseologia, e outros, visa
contemplar o conceito de dissociação rítmica, defendido por Gramani. Esse conceito,
influência direta do trabalho de Émile Jacques-Dalcroze, refere-se à percepção do pulso
através do aprimoramento da sensibilização rítmica.
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De acordo com Gramani (1992), o estudo tradicional do ritmo na música consiste,
quase que exclusivamente, na decodificação aritmética de uma idéia musical: se
conseguirmos efetuar uma operação de soma e divisão, estaremos aptos para executar um
evento rítmico. “Esta idéia, além de representar uma realidade parcial do ritmo, colabora para
que o mesmo se distancie muito da intenção musical [...]” (GRAMANI, 1992, p. 11). A
conscientização do pulso em substituição à mera decodificação de signos estimula o
surgimento de novas relações de percepção e apreciação do ritmo, que, quando aplicadas de
forma empírica ou planejada aos vários processos de criação musical, contribuem para a
criação de diferentes situações musicais.
O laboratório teve carga horária de 2 horas semanais e foi realizado de agosto de
2009 a dezembro de 2010. Os sujeitos da pesquisa foram 10 dicentes: 2 bateristas, 1
percussionista, 2 baixistas, 3 guitarristas, 1 pianista e 1 saxofonista.
2. Metodologia
Para compreender o pensamento estrutural adotado por Gramani para construção
dos seus exercícios polimétricos, foram adotadas as classificações e nomenclaturas sugeridas
na dissertação de mestrado O GESTO PENSANTE: A proposta de educação rítmica
polimétrica de José Eduardo Gramani, por Indioney Rodrigues. Após as análises e
classificações, partiu-se para a prática, interpretação e execução das estruturas. Nesta etapa,
foram realizadas experimentações com algumas peças do repertório da música brasileira e do
jazz, onde foram alterados o ritmo harmônico, melodia e a Forma. Posteriormente, foram
realizadas outras experimentações com o mesmo repertório, explorando a fragmentação e
alternância das células rítmicas. Todos estes procedimentos serão descritos a seguir.
2.1. A Série Básica e as Linhas Rítmicas
Rodrigues (2001, p. 92) define as Séries como estudos que exploram proporções
rítmicas, “[...] obtida através de adições progressivas, sempre restritas aos valores que
compõem uma ‘célula rítmica geradora’.” O exemplo abaixo ilustra a célula rítmica geradora
[2.1]1 (colcheia-semicolcheia) como princípio gerador da linha rítmica [2.1], que se
desenvolve por meio de adições da figura rítmica de valor [1]:
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !
Ex. 1 - [2.1]+[2.1.1]+[2.1.1.1]+[2.1.1.1.1]+[2.1.1.1.1.1] etc.
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As linhas rítmicas apresentam pontos de apoio que permitem o praticante se
localizar durante a sua execução. Estes pontos correspondem às figuras de valor proporcional
[2]. As estruturas rítmicas denominadas Séries são formadas por três linhas rítmicas: [2.1],
[2.2.1] e [2.2.2.1], tendo cada uma delas o total de quatro células rítmicas. No exemplo a
seguir, temos a linha rítmica [2.1] composta por quatro células rítmicas separadas por uma
barra:
Ex. 2 – linha rítmica [2.1] formada por quatro células
Se considerarmos cada célula rítmica como sendo um ‘compasso’ independente
da sua métrica, será possível construir uma progressão harmônica onde o ritmo harmônico dos
acordes estará subordinado ao tamanho das células. Se posicionarmos os acordes de uma
progressão sobre a figura rítmica de valor proporcional [2], no caso as colcheias, teremos uma
progressão com quatro acordes distantes entre si pelo comprimento da célula:
Cmaj7 Am7 Dm7 G7
Ex. 3 – ritmo harmônico gerado a partir da linha rítmica [2.1]
Seguindo o mesmo procedimento, é possível montar a mesma progressão sobre as
outras linhas rítmicas construídas a partir da adição da figura de valor proporcional dois
(colcheia) dentro de cada célula. Posicionando os acordes sobre a primeira colcheia de cada
célula teremos:
Cmaj7 Am7 Dm7 G7
Ex. 4 – ritmo harmônico a partir da linha rítmica [2.2.1]
Cmaj7 Am7 Dm7 G7
Ex. 5 – ritmo harmônico a partir da linha rítmica [2.2.2.1]
A adequação da melodia sobre as estruturas rítmicas está diretamente relacionada
às alterações do ritmo harmônico, sendo as melodias também ajustadas de acordo com o
tamanho das células rítmicas das linhas. O exemplo a seguir é um excerto de um arranjo feito
a partir da linha rítmica [2.1] para a composição “All the things you are”, um conhecido jazz
standard, onde foram seguidos os procedimentos descritos acima:
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Ex. 6 – adequação da melodia e harmonia de All the things you are sobre a linha rítmica [2.1]
A Forma também foi objeto de experimentação em laboratório. Usando a
progressão harmônica da canção Garota de Ipanema, experimentou-se alterar a Forma desta
composição combinando as três linhas rítmicas criadas a partir de [2.1]. A Forma original da
composição compreende 4 partes divididas em AABA. No entanto, optou-se por alterar o
número de partes dividindo a parte B em duas: Parte B (1ª. seção) e (2ª. seção):
Parte A | Parte A | Parte B (1a. seção) | Parte B (2a. seção) | Parte A
Quando se adéqua as três linhas rítmicas para cada parte da Forma (A, A, B1, B2,
A), cria-se uma alternância da posição das linhas dentro da Forma. Para que todo o ciclo
possa retornar à posição inicial, é necessária três repetições de toda a progressão. Logo, a
forma da composição será executada diferentemente até que se complete todo o ciclo
reiniciando o processo.
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- Part A: – linha [2.1]
- Part A: – linha [2.2.1]
- Part B (1a. seção) – linha [2.2.2.1]
- Part B (2a. seção) – linha [2.1]
- Part A: – linha [2.2.1]
- Part A: – linha [2.2.2.1]
- Part A: – linha [2.1]
- Part B (1a. seção) – linha [2.2.1]
- Part B (2a. seção) – linha [2.2.2.1]
- Part A: – linha [2.1]
- Part A: – linha [2.2.1]
- Part A: – linha [2.2.2.1]
- Part B (1a. seção) – linha [2.1]
- Part B (2a. seção) – linha [2.2.1]
- Part A: – linha [2.2.2.1]
As experimentações prosseguiram com a alternância das linhas dentro de cada
parte da Forma. Desta maneira, a progressão harmônica da Parte A de Garota de Ipanema foi
executada com as três linhas rítmicas. Este procedimento foi experimentado com todas as
outras partes da composição (A, A, B1, B2, A):
Fmaj7
G7 Gm7 Gb7(#11)
Fmaj7 Gb7(#11)
Ex. 7: Parte A: linha rítmica [2.1] - linha rítmica [2.2.1] - linha rítmica [2.2.2.1]
Outras combinações possíveis:
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1ª. linha 2ª. linha 2ª. linha 3ª. linha 3ª. linha
3ª. linha 1ª. linha 3ª. linha 1ª. linha 2ª. linha
2ª. linha 3ª. linha 1ª. linha 2ª. linha 1ª. linha
Após esta etapa, foram elaboradas outras experimentações onde a estrutura interna
das linhas rítmicas também foi alterada. As experimentações compreenderam a fragmentação
e alteração na ordem das células de cada linha rítmica. Este procedimento altera diretamente o
ritmo harmônico e a melodia possibilitando um vasto número de alterações na Forma. Fmaj7
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !G7
! ! ! !Gm7
! ! ! ! !Gb7(#11)
! ! ! ! ! ! ! ! !Fmaj7
! ! ! !Gb7(#11)
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! Ex. 8: Linha rítmica [2.1]: (cel.3), (cel.2), (cel.4), (cel.1) | Linha rítmica [2.2.1]: (cel.3), (cel.2), (cel.4), (cel.1) |
Linha rítmica [2.2.2.1]: (cel.3), (cel.2), (cel.4), (cel.1)
A última experimentação realizada compreendeu a mescla de células rítmicas
provenientes de diferentes linhas, fragmentadas de dois em dois e de uma em uma célula.
Fragmentação das linhas – 2 em 2 células | Parte A – Garota de Ipanema
Fmaj7
! !G7
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !Gm7 Gb7(#11)
! ! ! !Fmaj7
! ! ! ! !Gb7(#11)
! ! ! ! ! ! ! ! ! Ex. 9: Linha rítmica [2.1]: (células 1 e 2) | Linha rítmica [2.2.1]: (células 3 e 4) | Linha rítmica [2.2.2.1]: (célula 1
e 2) | Linha rítmica [2.1]: (célula 3 e 4)
Fragmentando as frases – 1 em 1 célula | Parte A – Garota de Ipanema
Fmaj7
! !G7
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !Gm7 Gb7(#11)
! ! !Fmaj7
! ! ! ! !Gb7(#11)
! ! ! ! ! ! ! ! ! ! Ex. 10: LR [2.1]: (cel.1) | LR [2.2.1]: (cel.2) | LR [2.2.2.1]: (cel.3) | LR [2.1]: (cel.4) |
LR [2.2.1]: (cel.1) | LR [2.2.2.1]: (cel.2) | LR [2.1]: (cel.3) | LR [2.2.1]: (cel.4)
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3. Conclusão
Kieffer define ritmo como “aquilo que flui, aquilo que se move” (1973, pg. 23).
Para Gramani, a interpretação da idéia rítmica não significa lançar mão da regularidade
rítmica reduzida por uma grafia mensural de teor aproximativo, mas interferir acrescentando-
lhe significados. Trata-se da “possibilidade de [...] interpretar um ritmo não somente como um
conjunto de durações [...], mas sim como uma idéia inteira, com significado possível de ser
trocado entre o intérprete e o ouvinte.” (1996, p. 196). Desta forma, a busca pela suspensão do
ritmo a partir de uma suposta regularidade é um dos objetivos dos seus estudos. Para ele, é
preciso recorrer à sensibilidade musical “... para que esta, agregada ao raciocínio aritmético,
possibilite uma realização musical dos exercícios” (1996, p. 104).
Porém, a linha tênue entre o estruturado e o empírico presente durante o processo
de criação se revelou como a grande força de movimentação para o surgimento de novas
propostas sonoras. A estruturação rígida como procedimento de criação não é uma ferramenta
obrigatória na atividade de criação musical, no entanto, sua utilização conduz à consciência
plena dos recursos disponíveis, além de um maior detalhamento das etapas do processo de
criação. Para que não houvesse o risco de deixar os arranjos demasiadamente “engessados”
estruturalmente, embora fosse pretendido ilustrar um procedimento de criação musical
notadamente racional, vinculamos a binariedade entre o racional e o intuitivo, simplicidade e
complexidade, associação e dissociação rítmica ao que Pignatari (1984 apud Freitas, 1995, p.
10) chama de Texto e Contexto. O autor escreve que: “Claro que a demarcação entre os
níveis só é nítida para efeitos de metalinguagem crítica e analítica; na realidade concreta, os
níveis se inter-relacionam isoformicamente.
O Laboratório de Composição e Improvisação a partir da rítmica de José Eduardo
Gramani permitiu aos sujeitos da pesquisa experimentar, através da elucidação, prática e
aplicação musical das suas estruturas, o conceito de dissociação rítmica, defendido por
Gramani. Os procedimentos adotados para elaboração de arranjos apresentados neste texto
contempla a idéia da realização musical do evento rítmico para além da sua simples
decodificação aritmética. A aplicação das estruturas rítmicas voltado ao repertório popular
conhecido têm por finalidade o aprimoramento da sensibilidade rítmica não apenas do
executante, mas também do ouvinte que é capaz de perceber os desdobramentos rítmicos sem
decodificá-lo matematicamente. Trata-se da percepção da fluidez e do movimento linear do
ritmo que se apresenta dissociado da subdivisão do pulso e consequentemente a não
previsibilidade do resultado sonoro. Trata-se do despertar da sensibilidade tanto do executante
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quanto do ouvinte. O compromisso com o despertar da sensibilidade é uma atitude desde
muito cedo assumida por ele, influência direta do trabalho de Dalcroze cujo conceito visa
estimular a descoberta e a busca de uma expressão individual
Referências:
GRAMANI, J. Eduardo. Rítmica. Campinas: Minaz, 1988, 120 p. Edição bilíngüe. _________. Rítmica. São Paulo: Perspectiva, 1992. _________. Rítmica Viva. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. KIEFFER, Bruno, Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento, 1973. PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974. RODRIGUES, Indioney. O gesto pensante: A proposta de educação rítmica polimétrica de José Eduardo Gramani. São Paulo, 2001. 366 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Departamento de Música, Escola de Comunicação e Artes da Universidade Estadual de São Paulo. 1 [2.1]: Números separados por ponto(s) entre colchetes simples indicam os valores que compõem uma célula rítmica. No caso, se o valor unitário é representado pela semicolcheia, [2.1] representa a célula rítmica formada por uma colcheia e uma semicolcheia.