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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO
MARCELO COELHO ALMEIDA
A RELIGI O N A C ASE RNA:
O P APEL DO C APEL O MIL ITAR
So Paulo
2006
MARCELO COELHO ALMEIDA
A RELIGI O N A C ASE RNA:
O P APEL DO C APEL O MIL ITAR
Dissertao de Mestrado stricto sensuapresentada Universidade Presbiteriana Mackenzie, como um dos requisitos para obteno do grau de mestre no curso de ps-graduao em Cincias da Religio.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Mspoli Gomes
So Paulo
2006
MARCELO COELHO ALMEIDA
A RELIGI O N A C ASE RNA:
O P APEL DO C APEL O MIL ITAR
Dissertao de Mestrado stricto sensuapresentada Universidade Presbiteriana Mackenzie, como um dos requisitos para obteno do grau de mestre no curso de ps-graduao em Cincias da Religio.
Aprovada em ___________de 200__.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Antnio Mspoli de Arajo Gomes Orientador
Prof. Dr. Calvino Camargo Centro Universitrio de Maring (CESUMAR)
Prof. Dr. Joo Baptista Borges Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dedico este trabalho ao Quarto Comando
Areo Regional, pela acolhida ao trabalho de
capelania evanglica, o apoio, o
companheirismo e o respeito com o quais
possibilitam o trabalho da pregao da Palavra
de Deus para o militar em toda a rea de sua
atuao. Assim como o IV COMAR, esta
pesquisa deseja contribuir com mundo e com
as pessoas, atravs de uma nobre misso.
AGRADECIMENTOS
Recebam deste autor a imensurvel gratido,
porque por razes sobre humanas. Antes do
apoio a esta pesquisa, a gratido pelo
simples fato de estas pessoas existirem, o que
tornou possvel que elas participarem desta
conquista e que haja esperana no mundo.
A Deus que habita em ns, e nos concede o dom maior: a vida.
minha esposa Paula Renata e minha filha Victoria.
Ao meu orientador e apoiador, Antnio Mspoli.
Aos membros da banca examinadora e amigos encorajadores, Calvino Camargo e Joo Baptista.
Ao amigo de mais de oito anos, Armando Silvestre.
Aos colegas da turma Mestrado em Cincias da Religio agosto 2004.
RESUMO
Esta pesquisa procura avaliar o trabalho de um capelo militar. O foco central analisar sua influncia e a validade de seu trabalho dentro de uma Organizao Militar. A partir de constataes histricas, teolgicas, tcnicas e prticas, no transcurso do trabalho procura-se comprovar a hiptese de que a capelania sempre foi, nos dias atuais, e sempre ser de extrema relevncia para as Foras Armadas. O servio de capelania em nvel de influncia, validade e importncia est para uma Organizao Militar tal qual a espiritualidade e a religio esto para o ser humano. O caminho percorrido nas constataes obtidas passa primeiramente por uma via histrica desde os primrdios at sua regularizao e prtica expansiva nos dias atuais. Depois, passa pela questo religiosa. Analisa, por um lado, a pessoa humana, sendo esta dotada de espiritualidade e, portanto, necessitada do encontro com o sagrado; e por outro lado, analisando o ambiente militar como uma instituio total, cujo conceito aponta inexoravelmente para uma interveno de ajuda no que tange aos recursos oferecidos pelas crenas religiosas. Por fim, este caminho trilhado em meio prtica profissional do autor, como capelo evanglico da Aeronutica. A profisso militar de um capelo abordada separadamente quanto ao militarismo e ao trabalho religioso, no deixando de lado a interseco dos dois, formando assim um conceito de capelania militar.
Palavras-chave: Religio, Capelania, Capelania militar. Fora Area Brasileira.
ABSTRACT
The present research seeks to evaluate the work of the military chaplain. The focus is on analyzing his influence and the validity of his task within a military institution. Taking as a starting point historical, theological, technical and practical observation, the research seeks to confirm the hypothesis that the role of chaplaincy has been, is today, and will always be, of great relevancy to the armed forces: chaplaincy services, in terms of influence, validity and import within a military organization parallels the role played by spirituality and religion in all of human life. The path covered for the development of these observations begins with the historical development of military chaplaincy, from its beginnings to its regular establishment and pervasive presence nowadays. Next, it covers the religious aspect, analyzing, on one hand, the human being as imbued with spirituality and, therefore, needing contact with the sacred, and on the other hand, the military environment as that of an encompassing institution whose very conception points inexorably to the need of a helping intervention in terms of the resources offered by religious beliefs. Finally, the research is complemented by drawing on the professional experience of its author as an evangelical chaplain in the Air Force. The military profession of the chaplain is seen in distinction from general militarism and from regular religious work, mindful of the intersection between both roles and, thus, establishing a concept of military chaplaincy.
Key-words: Religion, Chaplaincy, Military Chaplaincy, Brazilian Air Force.
LISTA DE ILUSTRAES
FIGURAS
Figura 1 Capelo catlico, patrono do SAREx. 25
Figura 2. Pastor Joo Filson Soren, pioneiro da capelania militar evanglica. 28
Figura 4. Fotos de culto promovido pela capelania militar evanglica. 33
Figura 5. Projeto Soldado Cidado. 62
Figura 6. Culto da pscoa dos militares 2006. Realizado na Assemblia de
Deus do Bom Retiro, em So Paulo. 65
Figura 7. Culto evanglico. Militares fardados. 75
Figura 8. Alunos das trs escolas de formao da Aeronutica, em
encontro das Unies Evanglicas das Escolas de Formao da Aeronutica 81
Figura 10. Cpia da pgina de Internet - culto da semana da asa 2006 87
QUADROS
Quadro 1. Carta enviada filha, pelo pesquisador, durante treinamento em escola
militar 52
Quadro 2. Requisitos inerentes seleo de um capelo militar. 57
Quadro 3. Texto do autor encaminhado para publicao no HASP. 77
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................15
1. HISTORIOGRAFIA E CARACTERIZAO
DA CAPELANIA MILITAR 19
1.1. PRIMRDIOS DO SERVIO MILITAR RELIGIOSO 19
1.2 A CAPELANIA EVANGLICA 28
1.3 OS PRIMEIROS CAPELES EVANGLICOS DA FAB 32
2. A QUESTO RELIGIOSA NA CASERNA 34
2.1 A QUESTO RELIGIOSA O HOMEM 37
2.2 A QUESTO INSTITUCIONAL A CASERNA 47
2.2.1. Conhecendo uma instituio total 48
3. AUTO-REPRESENTAO DA CAPELANIA MILITAR:
O TRABALHO DE UM CAPELO 60
3.1 A ADMISSO DE UM CAPELO 60
3.2 O TRABALHO MILITAR DO CAPELO 65
3.2.1 Tarefas educacionais 66
3.3 O TRABALHO RELIGIOSO 68
3.3.1 O aconselhamento 70
3.3.2 Os pequenos grupos 71
3.3.3 Capelania hospitalar militar 72
3.4 FUNERAIS 83
3.4.1. Cerimnias fnebres 84
3
3.4.2. O aviso da morte (antes da imprensa) 84
3.4.3. O suicdio 87
3.5. TRABALHOS ESPECIAIS 91
3.5.1 Bblia comemorativa ao centenrio do 14 Bis 91
CONCLUSO ................................................................................................93
REFERNCIA ...............................................................................................97
ANEXO ...........................................................................................................100
INTRODUO
A presente dissertao de Mestrado em Cincias da Religio tem a finalidade de
contribuir para a produo cientfica e atingir o grau de aprofundamento acadmico
que se espera para um curso de tal nvel de excelncia. Dadas a experincia como
capelo militar do autor e a pesquisa prvia que se fez para a sua elaborao, a
dissertao inspira-se numa tentativa de avaliar e propor um olhar acadmico sobre
a rea em que atua o pesquisador.
Para analisar o papel do capelo militar e a religiosidade na caserna, mais
especificamente na Fora Area Brasileira, circunscrevendo-se rea de Cincias
da Religio, a presente pesquisa se organizou em torno de trs enfoques. O primeiro
captulo apresenta a caracterizao da capelania militar, fazendo um levantamento
historiogrfico de sua existncia. Em segundo lugar, feita uma anlise da questo
religiosa no meio militar, apresentando um arcabouo terico, primeiramente acerca
do homem como um ser religioso, e depois da caserna como uma instituio total.
Num terceiro momento, apresentada a questo prtica da capelania e sua auto-
representao. Os dados foram levantados a partir de pesquisas desde o incio do
curso at o perodo atual.
Alm do interesse pessoal do pesquisador, justifica-se a presente pesquisa, porque
o tema se mostra relevante para a rea em que se insere. O assunto instigante
para os crculos religioso e militar, nesta primeira dcada do sculo XXI. boa a
contribuio que uma pesquisa desta natureza pode emprestar compreenso do
real papel do capelo numa comunidade militar, marcadamente composta de
pessoas em busca de aperfeioamento pessoal, de formao acadmica e
profissional, alm de uma crescente busca por valores profundos e existenciais.
H total relevncia cientfica nessa pesquisa uma vez que os cursos militares, no
Brasil, tm ainda uma procura muito grande, num pas onde no existe a
16
correspondente oferta de empregos a tantos que buscam uma slida formao.
Tanto no suprida a demanda, como no oferecida, de forma suficiente, uma
competente formao para a ocupao de cargos e empregos oferecidos no
mercado. Embora isso atinja grande parte da populao brasileira, o desemprego
continua margem das preocupaes daqueles que poderiam lutar em prol de
melhorias. A pesquisa pode, ento, contribuir, entre outras coisas, para a devida
avaliao da necessidade e da qualidade do profissional militar na rea de
capelania. Contribui tambm para uma compreenso da realidade deste pas em
desenvolvimento, no qual a qualificao profissional o grande instrumento de
cidadania; e, fornece elementos para um entendimento do que uma instituio militar
brasileira oferece aos seus integrantes.
Por outro lado, a relevncia social da pesquisa se mostra pelo fato de que o estudo
permitir ajudar na resposta a uma pergunta bsica: justifica-se a existncia da
figura do capelo militar no quartel? Ao mesmo tempo, a pesquisa poder ajudar a
compreender o papel e a relevncia deste profissional militar e religioso. Crendo na
sua real importncia, a pesquisa visa analisar histrica, teolgica e praticamente a
sua realidade para, de alguma forma, ajudar a compreender o seu papel, a partir do
que oferecido tropa, especificamente na Fora Area Brasileira.
O interesse pessoal do pesquisador, como j explicitado, advm do fato de ser um
militar na rea da capelania, e devido sua postura em prol de se envolver mais
efetivamente com o objeto de sua investigao (e de sua atuao profissional). A
despeito do pioneirismo, pela quase inexistncia de estudos na rea (especialmente
no Brasil), o tema se mostra de execuo vivel, primeiro, pela existncia de fontes
a serem consultadas; segundo, pelo apoio recebido tanto na instituio militar
quanto do programa de ps-graduao que forneceu subsdios para os estudos
tericos desenvolvidos nesta rea.
No apenas so aqui apontados os textos existentes at o momento, mas so
analisados os progressos, resultados, concluses e limitaes que ora se
apresentam. Segue, portanto, uma relao acerca do referencial terico do que se
tem pesquisado com vistas elaborao da presente dissertao, tanto no aspecto
da apresentao do estado atual da questo, como propriamente o referencial
terico empregado na pesquisa.
17
Foi de grande utilidade para a pesquisa o principal texto utilizado na elaborao do
primeiro captulo. Fruto tambm de uma busca visando o aprimoramento
profissional da capelania militar e sua implantao no Corpo de Bombeiro Militar do
Rio de Janeiro, a monografia do Capito de Bombeiro Militar, Josu Campos
Macedo, ocupa lugar de destaque neste trabalho.
Os dois referenciais tericos principais para uso no segundo captulo foram Gustav
Carl Jung, e Joo Calvino. Este fornecendo a perspectiva teolgica do homem e
aquele abordando sua espiritualidade a partir da psicologia. Outros autores clssicos
da teologia, psicologia, sociologia e cincias da religio forneceram tambm a sua
relevante contribuio. Deve-se especial destaque parte da obra de Santo
Agostinho. Os demais esto demonstrados nas referncias ao final do trabalho.
Por fim, foi empregada a observao participativa do pesquisador e capelo militar
evanglico. O interesse do autor foi ressaltar o conceito de trabalho religioso e
trabalho militar de um capelo. A partir desta perspectiva prtica, surgiram temas
que demandaram a busca por referencial terico disponvel. Sendo assim, para os
temas de aconselhamento e capelania hospitalar, este autor utilizou-se do material
existente e de contribuies bibliogrficas utilizadas durante as aulas presenciais no
Mestrado, bem como na graduao em teologia e psicologia. Por fim, para fazer
justia sua importncia para a histrica acadmica da sociologia e da religio,
utilizou-se a reflexo sobre um clssico de Emilie Duhkheim quando o assunto foi
suicdio no meio militar. Tais contribuies propem, assim, um instrumento
concreto para elaborao do presente trabalho. A anlise dos dados foi obtida
mediante o apoio terico medida que foram consultados os textos citados na lista
final de referncias, posto que foram livros indispensveis compreenso prvia do
problema de pesquisa.
A pesquisa se organiza a partir do seguinte problema central: h, de fato, uma real
influncia do trabalho de capelania militar na construo de uma espiritualidade no
quartel?
Com base em argumentos histricos, teolgicos, tcnicos e prticos, a hiptese
sugerida : o trabalho do capelo militar exerce influncia no militar, seja na
18
perspectiva da pessoa seja no mbito da instituio. O trabalho de um capelo
profundamente ligado sua convico pessoal de f. Sendo assim, a simples
presena da capelania militar em um quartel, j supe a viso institucional de que a
espiritualidade necessria e que, portanto, deve ser exercida de forma a gerar
resultados prticos.
O objetivo do trabalho : analisar o trabalho do capelo militar e apontar a sua
influncia no meio militar, uma vez que seu trabalho fruto de sua convico
pessoal de f. Tambm visa a apontar a viso institucional acerca da necessidade
de espiritualidade na vida da caserna.
Quanto aos procedimentos metodolgicos, a pesquisa segue etapas prprias, a
partir da sua hiptese norteadora e adota o procedimento de observao
participativa, bem como a leitura de textos de orientao terico-metodolgica e a
anlise geral dos resultados.
19
CAPTULO 1
HISTORIOGRAFIA E CARACTERIZAO DA CAPELANIA MILITAR
Capelania significa o cargo, a dignidade ou o ofcio de capelo. O capelo o
sacerdote responsvel por atender em uma capela ou prestar assistncia religiosa a
todos os que a esta capela pertenam, sejam seus adeptos ou familiares. A palavra
capelo, cuja etimologia data de 1153 (MACHADO, 1977), tem conotao
diversificada. Alm do uso tcnico exarado acima, pode significar, segundo alguns
regionalismos, o padre-mestre, aquele que puxa oraes ou ainda o macaco velho
e esperto que serve de guia para os outros do bando (KOOGAN HOUAISS, 1998,
verbete).
Para traar este breve histrico da capelania militar no Brasil, importante ressaltar
o grande apoio que proporcionou a este autor, o uso das informaes contidas na
monografia de autoria do Capito Bombeiro Militar Josu Campos Macedo,
apresentada no Rio de Janeiro, em 1994. O objetivo de Macedo (1994) era propor
recomendaes ao Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro, as quais
giravam em torno da criao de uma capelania militar evanglica naquela
Corporao. O documento, riqussimo em informaes histricas, fruto de
pesquisas junto ao Servio de Assistncia Religiosa do Exrcito Brasileiro (SAREx),
mas carece, todavia, de especificao acadmica.
1.1. PRIMRDIOS DO SERVIO RELIGIOSO MILITAR.
Na Antiguidade clssica j havia registros histricos da prestao da assistncia
religiosa a militares. O historiador Sozomeno, em Histria Eclesistico, escrito
20
aproximadamente entre os anos 439 e 450 d.C., informa acerca das providncias de
Constantino, quando das incurses em guerras:
[...] cada vez que devia afrontar a guerra, costumava levar consigo uma tenda disposta a modo de capela, para quando viessem a encontrar-se em lugares solitrios, nem ele, nem o seu Exrcito fossem privados de um lugar sagrado onde pudessem louvar ao Senhor, rezar em comum e celebrar os ritos sagrados. Seguiam-no o sacerdote e os diconos com encargo de atender ao local sagrado e de nele celebrar as funes sagradas. Desde aquela poca, cada uma das Legies Romanas tinha a sua tenda-capela, assim como os seus sacerdotes e diconos adstritos ao servio sagrado (Sozomeno apud MACEDO, 1944, p.54)
Vale referir que o Imperador Constantino converteu-se ao cristianismo e oficializou-o.
Com isso, devido ao assentimento de sua maior autoridade, esta religio veio a se
tornar o credo religioso oficial do Imprio Romano. Segundo informaes obtidas por
Macedo (1994), junto ao chefe do SAREx, as primeiras tradies militares do
Condado Portucalense, bero da nacionalidade lusa, fazem referncia aos monges
soldados das Ordens Militares, como a de Cristo. Estes lutavam juntamente com os
cruzados, durante a Idade Mdia para a expulso dos mouros infiis, invasores da
pennsula ibrica.
Para substituir a Ordem dos Templrios, extinta pelo Papa Clemente V, foi instituda
em 1319, pelo Rei D. Diniz, de Portugal, a Cavalaria de Cristo, oficialmente
denominada de Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual exerceu
considervel influncia na formao histrico-cultural das naes posteriormente
colonizadas por aquela Coroa. O Infante Dom Henrique, conhecido como o
Navegador, foi o Gromestre da Ordem de Cristo e, ao fundar a Escola de Sagres,
convocou os melhores cavaleiros da Ordem, que, senhores dos conhecimentos
nuticos, se transformaram nos valorosos navegadores das grandes descobertas
martimas de ento. Segundo relato de um Major capelo do Rio de Janeiro,
[...] esta a razo porque as caravelas de Portugal que zarpavam para mares nunca dantes navegados, conduziam em suas brancas velas, de direito e de fato, a cruz da Ordem de Cristo, pintada de vermelho vivo, cor original da Entidade, cujas finalidades maiores eram a expanso do Imprio e a propagao da f-teolgica entre infiis. (apud MACEDO, 1994, p.55).
Quando Pedro lvares Cabral aportou na Ilha, logo batizada de Ilha de Vera Cruz
ordenou a celebrao, em 26 de abril de 1500, de uma missa como ato de posse da
21
nova terra. Esta missa foi oficiada por Frei Henrique Soares de Coimbra, superior
dos Franciscanos missionrios que compunham a frota Cabralina. Vale notar que
esses religiosos eram Capeles da Armada de Pedro lvares Cabral. Sendo assim,
o ato religioso da Primeira Missa pode ser considerado como o primeiro servio de
assistncia religiosa prestada a militares da Ordem de Cristo em nosso pas.
O servio religioso a militares no Brasil tem seu incio fundamentalmente no Exrcito
Brasileiro. Todavia, o Exrcito no a primeira das armas brasileiras. A Marinha do
Brasil a Fora Armada mais antiga, sendo procedida pelo Exrcito e, h pouco
mais de cinqenta anos, pela Fora Area Brasileira, tambm chamada de
Aeronutica, que a mais moderna das Foras Armadas do Brasil (FFAA). Ainda
existem as chamadas Foras Auxiliares, que so compostas pelas Polcias Militares
e Corpos de Bombeiros Militares dos diversos Estados da Federao. Muito embora
todas as FFAA e grande parte das Foras Auxiliares contem hoje com o servio de
assistncia Religiosa nos seus quadros, o precursor no trabalho de capelania foi o
Exrcito Brasileiro. Sua historiografia remonta ao perodo do Brasil colnia,
continuou a se expandir no Brasil independente at proclamao da Repblica,
aps o que, encontra respaldo na legislao brasileira e chega a seu estgio mais
estruturado como atualmente.
Em todos os episdios em que se envolveram militares e paramilitares, durante o
perodo colonial brasileiro, encontram-se sacerdotes com participao ativa nos
perodos de batalha. Eles tomaram parte das Entradas e Bandeiras e formaram,
junto a portugueses e ndios, as tropas para combater os invasores franceses e
holandeses no Rio de Janeiro e no Nordeste. Igualmente, adentraram o territrio na
catequese dos aborgines, prestando tambm ajuda aos lusitanos na fixao de
nossas fronteiras. Seu papel, dentre outros, era o de ajudar na construo de
escolas, fortes e fortalezas, os quais recebiam o nome de Jesus, de Maria
Santssima, de Santa Cruz ou de santos catlicos, cujas imagens eram logo
entronizadas, de forma muito solene. Esses nomes, ditos sagrados, e suas
entronizaes deram origem a nomes de inmeros lugarejos, que se transformaram
em Vilas e, depois, em grandiosas cidades. So Paulo de Piratininga, oriunda do
Colgio dos Jesutas, bem o exemplo dessas afirmaes.
22
O Aviso Rgio de 24 de maio de 1741 considerava os capeles que prestavam
servio s tropas, procos dos soldados. Esses procos, segundo o citado Aviso
Rgio, estavam sujeitos inspeo episcopal e seu ministrio se dedicava,
primordialmente, aos militares. Esta norma surgiu do envolvimento dos padres nos
episdios de que tomava parte o Exrcito Colonial. Depois deste perodo do Brasil-
colnia a assistncia religiosa aos militares no Brasil fez-se presente tambm aps a
independncia da Coroa Portuguesa. Neste perodo, devem-se destacar Trs
grandes momentos histricos documentados desta assistncia religiosa aos
militares.
Desde 1741, j existia, legalmente, um servio de assistncia religiosa no Brasil, por
fora do Aviso Rgio, como citado acima. Poucos anos aps a independncia, foi
exarado o Decreto Imperial de 7 de julho de 1825, que criou o cargo de Capelo-
Mor, prescrevendo-lhe as misses inerentes ao seu ofcio apostlico e prevendo-lhe
o uso de uniforme, assim como para os demais capeles. Estava, pois, estruturado o
servio religioso para militares. Vale lembrar que nesta poca ainda faltava uma
organizao oficial que regularizasse esse servio atravs de alguma legislao
especfica.
O segundo marco desta cronologia foi o Decreto Imperial n 743 de 24 de dezembro
de 1850, atravs do qual Dom Pedro II criou a Repartio Eclesistica do Exrcito,
aprovando-lhe o regulamento. Neste ponto eram especificados os direitos, as
atribuies e at mesmo a fisionomia dos capeles. A Repartio Eclesistica era
composta de quatro classes de capeles: os da ativa, os agregados, os avulsos e os
reformados: Tambm era prevista a contratao de mais sacerdotes para o
preenchimento de vagas em aberto, na terminologia militar denominadas de claros.
A previso era de 24 (vinte e quatro) padres para o Exrcito, assim distribudos:
quatro capeles, seis primeiros-tenentes e quatorze alferes, designao esta que no
Brasil, posteriormente, foi substituda por segundo-tenente.
Deve Repartio Eclesistica do Exrcito o crdito da sedimentao de todo o
trabalho de assistncia religiosa nos moldes em que ele se encontra hoje em dia.
Alm disso, ela existiu no perodo mais brilhante da histria militar do Brasil. De fato,
os capeles da Repartio Eclesistica vieram a tomar parte de trs importantes
campanhas externas daquele perodo: contra Rosas, da Argentina (1852), contra
23
Aguirre, do Uruguai (1864) e contra o ditador Solano Lpez, do Paraguai (1865-
1870). Em especial, durante a Guerra do Paraguai, houve a participao efetiva dos
abnegados e bravos capeles, em todas as aes de guerra. Esta informao
confirmada nos registros histricos de Tasso Fragoso, Baro do Rio Branco,
Visconde de Taunay e Dionsio Cerqueira, dentre outros (apud MACEDO, 1994).
A ao desses religiosos era incentivada pelo comandante e chefe das Foras
Brasileiras e posteriormente de toda a trplice aliana, o ento Marqus de Caxias,
atual dignssimo Patrono do Exrcito. Cristo de f robusta, no dizer de um de seus
bigrafos, o Padre Joaquim Pinto de Campos, Duque de Caxias, imitando o
Imperador Constantino, nas legies da Roma imperial, fazia conduzir o seu altar de
campanha para a celebrao de cultos litrgicos, antes e aps as batalhas, no
prprio campo de batalha, ou ainda nos locais de acampamento (apud MACEDO,
1994).
Daquela sangrenta guerra, nasceram grandes e belssimos fatos histricos para o
servio religioso militar brasileiro. Destacam-se os nomes de alguns daqueles
abnegados sacerdotes: Padre Carmo, capelo das foras em operao durante a
Retirada da Laguna, o qual lutou at cair ferido nas mos dos paraguaios, vindo a
falecer como prisioneiro de guerra em Concepcin (Paraguai). Tambm frei Salvador
de Npoles, o cnego Serafim Gonalves dos Passos Miranda, o padre Fortunato
Jos de Souza, o padre Antonio Eustquilo Alves da Silva. Alm destes, deve ser
lembrado o nome do frei Fidlis dvola, integrante do primeiro Corpo de Exrcito
que, aps a campanha,e sua promoo a coronel, foi nomeado Capelo-Mor. Ele foi
o chefe da Repartio Eclesistica do Exrcito, a qual durante quatro dcadas veio a
prestar os mais relevantes servios aos militares brasileiros, particularmente nas
cruentas guerras das quais o Brasil participou.
Ao final da Guerra do Paraguai, valendo-se da experincia que a Repartio
Eclesistica adquiriu durante o conflito, o governo imperial reformulou o servio
religioso. Em 27 de junho de 1874, foi criado o Corpo Eclesistico do Exrcito.
Assim, a assistncia religiosa foi ampliada e estabeleceu-se uma nova
regulamentao em aperfeioamento quela que anteriormente oferecera sua
contribuio.
24
A Constituio de 16 de julho de 1934, que foi a segunda carta magna desde a
proclamao da Repblica, permitiu a prestao do servio religioso durante as
expedies militares, sem nus para os cofres pblicos nem constrangimentos ou
coao dos assistidos. Este servio estava restrito aos sacerdotes brasileiros natos.
Neste tempo, apesar de j se encontrar consideravelmente evoludo e gozando dos
avanos proporcionados pela constituio de 1934, o servio ainda no contava com
qualquer respaldo jurdico. Tal legislao tornou-se propcia na ocasio da
constituio da gloriosa FEB, a Fora Expedicionria Brasileira, que atuou,
orgulhosamente defendendo os interesses de nossa nao, no teatro de operaes
europeu, na Segunda Guerra Mundial.
Com a finalidade de atender Primeira Diviso de Infantaria Expedicionria, foi
criado um Servio de Assistncia Religiosa (SAR/FEB), atravs do Decreto-Lei n
5.573 de 26 de maio de 1944. Observe-se o episdio inusitado a partir do qual isso
ocorreu. Em 1944, relatos orais do conta que aps o desfile dos expedicionrios
que partiriam para Itlia, o presidente Getlio Vargas perguntou ao cardeal do Rio de
Janeiro, dom Jaime de Barros Cmara, qual era a sua opinio sobre o desfile. O
cardeal respondeu que muito o apreciara, mas que faltava alguma coisa. O
Presidente indagou sobre o que estaria faltando, ao que o cardeal respondeu: Os
Capeles para dar a assistncia ao soldado no campo de batalha (apud MACEDO,
1994, p.57). Getlio Vargas se comprometeu, ali mesmo, a suprir tal deficincia e o
decreto-lei n. 5.573, anteriormente citado, foi editado dias depois.
Seguiram com a FEB para a Itlia, trinta padres catlicos e dois pastores
evanglicos. Dentre os quais, cumpre destaque ao monsenhor Joo Pheeny,
capelo-chefe do SAR das Foras Armadas, tendo tambm participado do ltimo
contingente do Batalho Suez, na Faixa de Gaza. Os dois primeiros capeles
militares evanglicos da histria do pas estiveram presentes nesta campanha.
Primeiro o pastor Joo Filson Soren, que tambm foi pastor da Primeira Igreja
Batista do Rio de Janeiro por cinqenta anos (1935-1985), tendo sido o capelo
militar do 1 RI, Regimento de Infantaria, denominado Regimento Sampaio, e que foi
o precursor da capelania evanglica. Tambm o pastor Juvenal Ernesto da Silva,
pastor metodista em So Paulo, que foi o capelo do 6 RI Regimento de Infantaria,
denominado Regimento Ipiranga.
25
Digno de primoroso registro histrico foi a figura do capito capelo frei Orlando
(nascido Antonio lvares da Silva). Mineiro de Abaet, vtima fatal de um tiro de fuzil,
disparado, acidentalmente, por um civil italiano que tentava retirar uma pedra
engastada na roda de um Jeep. Tal fato se deu em 20 de fevereiro de 1945, vspera
da batalha de Monte Castelo, quando o capelo se dirigia frente de combate para
assistir aos soldados do 11 RI. O Decreto n. 20.680, de 28 de janeiro de 1946,
concedeu a frei Orlando, o ttulo de Patrono do Servio de Assistncia Religiosa do
Exrcito, em virtude de sua morte em plena guerra.
O
Figura 1. Capelo catlico, patrono do SAREx. Fonte: Disponvel em: http://.www.aman.ensino.eb.br. Acesso em 02 Ago. 2006.
SAR/FEB foi extinto em fins de 1945, quando do regresso da Fora Expedicionria
Brasileira do campo de batalha. Esta extino j estava prevista nas normas
existentes. Todavia, a continuidade desse servio e a sua extenso s demais
Foras Armadas se faziam cada vez mais necessrias, o que veio a ocorrer atravs
do Decreto-Lei n. 8.921 de 26 de janeiro de 1946, regulamentado pelo tambm
26
Decreto-Lei n. 21.495 de 23 de julho de 1946, conforme relata Macedo (1994) em
seu apanhado histrico.
O servio de assistncia religiosa s Foras Armadas no Brasil encontrou sua
consistncia legal e definitiva na Constituio de 18 de setembro de 1946, que veio
consolidar, definitivamente, sua atuao em termos mais explcitos do que os da
Constituio de 1934. Atravs do pargrafo 9 do Art. 141 desta nova lei, a
assistncia religiosa deveria ser prestada s Foras Armadas, quando devidamente
solicitada pelas foras singulares (Marinha, Exrcito, Aeronutica) e executada por
sacerdotes ou ministros religiosos, de qualquer religio ou culto no atentatrio
disciplina, moral ou lei existente. O Regulamento de 1946, bastante amplo e
detalhado, previa a chefia nica para os capeles tanto da Marinha, quanto do
Exrcito ou da Aeronutica. Esta chefia centralizada seria subordinada inicialmente
ao Conselho de Segurana. Editou-se uma norma, atravs da qual, a maior
autoridade eclesistica da capital federal (Cardeal do Rio de Janeiro), era constituda
como Prelado dos Militares Catlicos.
Outro importante passo na evoluo histrica do servio de assistncia religiosa,
encontrou consistncia na Lei n. 5.711, de 8 de outubro de 1971 e respectivo
regulamento de 1972. A principal mudana que esses dispositivos legais provocaram
no servio de assistncia religiosa foi a descentralizao da chefia, cabendo uma
chefia prpria para cada fora singular. Assim surgiu o SAREx, que ficou
subordinado ao Departamento Geral do Pessoal do Ministrio de Exrcito. A seguir,
entrou em vigor a Lei n. 6.923, de 29 de junho de 1981, que criou o atual Quadro de
Capeles Militares para o Servio de Assistncia Religiosa das Foras Armadas
(SARFA). Ela assegurava direitos aos capeles, dentre outros o direito inatividade,
alm de especificar para cada fora singular, o nmero de vaga para capeles e
seus postos. Esta lei, em grande parte vigora nos dias atuais, respeitando as
portarias especficas de cada fora singular sobre a matria.
A citada Lei, posteriormente regulamentada, fixava os efetivos do SAREx, destinado
ao Exrcito um nmero de 50 Capeles Militares, distribudos desde o posto de
coronel a segundo tenente (este efetivo foi ampliado, atravs da Lei n. 7672, de 23
de setembro de 1988, para 67 capeles). O Ministrio do Exrcito, em face da lei
acima mencionada, baixou a Portaria n. 1.348, de 21 de dezembro de 1981:
27
Instrues gerais do servio de assistncia religiosa do exrcito (IG 10-50),
dispositivo legal, atualmente em vigor, que determina, dentre outras especificidades,
a instaurao de uma cria militar, a partir de uma Constituio Apostlica,
denominada Spirituali Militum Curae. 1
Em 1989, foi celebrado um acordo entre o Brasil e a Santa S, sendo constitudo um
Ordinariado Militar, para a promoo, de maneira estvel e conveniente, da
assistncia religiosa aos fiis catlicos, membros das Foras Armadas Brasileiras. O
Ordinrio Militar nomeado por Roma e sustentado pela Unio. A sede da
Arquidiocese e sua Cria localizam-se em Braslia-DF, numa repartio do Estado
Maior das Foras Armadas. O cargo ocupado por um arcebispo nomeado pelo
Papa e tem jurisdio sobre todo trabalho das capelanias militares em territrio
nacional, sejam das FFAA (Foras Armadas) ou da Foras Auxiliares, sejam de
capelanias catlicas ou evanglicas.
Desde a sua implantao atravs do acordo diplomtico, trs Arcebispos j se
sucederam no posto de maior autoridade eclesistica militar do nosso Pas. O atual
Ordinrio Militar dom Osvino Jos Both, que assumiu suas atribuies em agosto
de 2006. Alm do Ordinrio Militar, a arquidiocese militar conta ainda com a
presena de um bispo auxiliar para exercer suas funes episcopais em apoio ao
arcebispo nas suas obrigaes pastorais pelo Brasil afora.
Considerando-se os atuais efetivos das Foras Armadas, e Foras Auxiliares,
constata-se um grande percentual de catlicos e evanglicos (censo de 1990). Se
tambm forem considerados os familiares desses militares e os funcionrios civis
dos Ministrios, Policiais Militares Estaduais e Corpo de Bombeiros, chega-se ao
universo de cerca de trs milhes de pessoas (tabulao ainda do censo de 1990).
Estes fiis so atendidos por 172 (cento e setenta e duas) capelanias militares,
segundo dados de Macedo (1994).
Em sntese este o relato do Capito BM Josu Macedo sobre a historia da
assistncia religiosa aos militares no Brasil, desde a celebrao da primeira missa
por um sacerdote integrante de uma tropa militar at o que se conhece do SARFA
(Servio de Assistncia Religiosa das Foras Armadas) na atualidade.
1 Traduz-se por Cria da espiritualidade (capelania) militar.
28
1.2. A CAPELANIA EVANGLICA
Os primrdios do trabalho de capelania evanglica nas FFAA brasileiras remontam a
Segunda Grande Guerra. Os dois primeiros bravos guerreiros de Cristo se
apresentaram mediante uma convocao do Exrcito Brasileiro feita para padres e
pastores voluntrios que desejassem servir s tropas e que seguiriam para o conflito
na Itlia. Faz-se necessrio repetir seus nomes: Joo Filson Soren, pastor batista,
do Rio de Janeiro e Juvenal Ernesto da Silva, pastor metodista de S.Paulo. Ambos
se apresentaram no ano de 1944 como voluntrios ao Exrcito Brasileiro. Esses
capeles estavam se entregando sua ptria, para a realizao dos ofcios
religiosos em plena Guerra Mundial. Junto do oficio do Ministrio da Guerra foram
apresentados os seus currculos e todos os demais documentos previstos e
necessrios.
Figura 2. Pastor Joo Filson Soren, pioneiro da capelania militar evanglica. Fonte: Capela Evanglica da Vila Militar (2004). Disponvel em: http://www.CEVM - Capela
Evanglica da Vila Militar.htm. Acesso em 10 Jan. 2006.
Com muita coragem e convico, o pastor Joo Filson Soren, mestre em teologia
por uma faculdade teolgica nos EUA, apresentou-se para servir como capelo. Foi
designado para o 1 RI (Regimento Sampaio), ficando adido ao seu Estado-Maior. O
pastor Juvenal Ernesto da Silva incorporou no 6 RI (Regimento Ipiranga). O capelo
29
Soren destacou-se por sua camaradagem junto aos oficias e praas. Prestou
assistncia aos militares evanglicos e a todos os que, voluntariamente, se
apresentavam pedindo sua ajuda e apoio. Eram dias de crise, de muita angstia e
saudades da famlia. O capelo Soren realizou vrias palestras para levantar o moral
da tropa. Muitas vezes enfrentou o frio e neve das montanhas geladas da Itlia. Fez
trabalho conjunto com o pessoal da Cruz Vermelha, ajudou na preveno e combate
a doenas venreas. Realizou diversas instrues de educao moral e cvica para
a tropa. O pastor Soren realizou diversos cultos, reunies de orao na retaguarda
do seu regimento, o 1 RI, Regimento Sampaio. O servio de correspondncia deste
regimento ficou tambm entregue sua responsabilidade.
Quanto ao resgate das vtimas da guerra e o reconhecimento de seus corpos, o
capelo cumpriu tal tarefa com ousada determinao. Atravessou lugares de difcil
acesso a fim de levar a mensagem da f crist aos combatentes. Organizou o
primeiro coral evanglico dos combatentes da II Guerra Mundial. Ao final do mesmo
ano de 1944, o pastor Soren foi promovido ao posto de 1 Tenente Capelo do 1 RI
(Regimento Sampaio), por respaldo legal vindo do Ministrio da Guerra. Digno de
nota a estima e respeito que pastor Soren tinha junto a seu comandante, e dos
oficiais e praas do seu Regimento. Nos anexos a este trabalho esto as
publicaes originais dos elogios ao capelo militar, exarados pelo comandante
geral da Fora Expedicionria Brasileira (FEB) e pelo comandante do Regimento
Sampaio. No auxlio ao trabalho do Capelo Soren se destacou o soldado Joo
Lemos que tambm era pastor batista.
O capelo Soren redigiu o seu Dirio da Guerra e o livro de arrolamento de todo o
pessoal evanglico e dos demais, que, voluntariamente, preferiram ter assistncia
religiosa evanglica. Soren foi um dos oficiais mais galardoados com medalhas e
condecoraes pelos atos de bravura e bons servios prestados na guerra. Foi alvo
de elogios do Comando Aliado, quando recebeu a medalha Solver Star do Exrcito
dos Estados Unidos da Amrica. O soldado de Cristo conquistou muitas amizades
em todo o mundo, pelo seu exemplo e abnegao ao servio da ptria. Ele foi o
idealizador da insgnia do Servio de Assistncia Religiosa Evanglica do Exrcito
Brasileiro (SAREx), a qual oficialmente utilizada no uniforme militar daquela
corporao. Individualmente foi o precursor de todos os capeles militares
30
evanglicos, sendo um marco para este servio. Segue-se um apontamento dos
principais trechos da entrevista concedida pelo capelo Soren ao capito Josu
Campos Macedo:
Sobre o ingresso no Exrcito Brasileiro:
No ano de 1944 apresentei-me como voluntrio para exercer o cargo capelo de capelo junto as Tropas da Fora Expedicionria Brasileira. Neste mesmo ano o Ministro da Guerra, Marechal Eurico Gaspar Dutra nomeou-me para servir no 1 Regimento de Infantaria do Exrcito Brasileiro (Regimento Sampaio). Fiquei adido ao Estado Maior do Regimento, sob o comando do coronel Agnaldo Caiado de Castro. Meu ingresso deu-se atravs do ofcio com currculo enviado do Ministrio da Guerra, com sua devida aprovao. Nesta poca, por ordem do presidente da Repblica, o Exrcito Brasileiro convocou pastores e padres voluntrios para servirem junto s Foras Expedicionrias no front de batalhas.
Sntese da Atuao na II Guerra:
Realizei diversas misses junto s Foras Expedicionrias, dando assistncia aos oficiais e praas. Em sntese, posso descrever os seguintes trabalhos: celebrao de cultos, aconselhamentos pastorais, principalmente nos momentos mais crticos; reunio de orao em pequenos grupos; entrega de correspondncia dos militares; identificao das vtimas e reconhecimento dos corpos dos militares para o peloto de sepultamento; entrega de literatura para alento e conforto espiritual; realizao de palestras para o pessoal do batalho; celebrao da cerimnia fnebre. Atuei juntamente com a Cruz Vermelha internacional no resgate dos feridos, levando-lhes uma palavra de apoio espiritual para elevar-lhes o grau do moral.Tambm escrevi um dirio da guerra e arrolamento dos militares evanglicos, bem como a confeco do registro dos bitos. Muitas vezes atravessei montanhas com neve para dar assistncia s vtimas. Cruzei lugares de difcil acesso, penhascos e abismos a fim de levar socorro material e espiritual aos demais companheiros de farda, enfrentei o frio, o cansao e a fome. interessante que no batalho havia um soldado que tambm era pastor batista, seu nome Joo Lemos. Ele ajudou-me bastante na assistncia s praas e na ministrao dos servios religiosos e atendimento s vtimas da guerra. Os cultos no campo de batalha so realizados na retaguarda do batalho. Com boa assistncia por parte dos oficiais e praas, sempre realizados em momentos favorveis, e com permisso do comandante. Cooperamos com o Comando no combate s doenas venreas, indisciplina e visita aos feridos, quer na linha de frente, quer nos hospitais de guerra.
Sobre a efetivao no posto de Oficial Capelo:
31
O Ministro da Guerra ordenou ao Comando Geral do 5 Exrcito a atribuio de postos dos capeles. Estes j estavam no crculo dos oficiais, mas ainda no tinham patentes, apesar de ter honras de capito. O capelo mais antigo foi promovido ao posto de tenente-coronel. Para cada Regimento de Infantaria foram promovidos um capito e dois 1 tenentes. Sinto-me honrado em poder servir o meu pas e abrir espao aos pastores evanglicos vocacionados para a Capelania Militar nas Foras Militares. Sou grato ao eterno Deus por este grande privilgio. A importncia do trabalho de assistncia religiosa nas Foras Armadas se d no apenas do ponto de vista histrico e prtico.
O que se viu na entrevista do capelo Soren, falecido na noite de 2 de janeiro de
2002, aos 93 anos de idade, comprova a exeqibilidade deste trabalho. Mas, alm
de ser uma questo de fato, ela o tambm de direito. H uma vasta legislao
brasileira que instiui, regulamenta e acompanha o trabalho de capelania no Brasil.
Acompanhadas de suas ementas ou principais artigos, so elas:
Constituio Federal: Artigo 5 Item VI inviolvel a liberdade de
conscincia e de crena, sendo assegurado o livre exerccio dos cultos
religiosos e garantida, em forma da lei a proteo aos locais de culto e suas
liturgias.
Lei n. 6.923 de 29 de junho de 1981: rege o Servio de Assistncia Religiosa
das Foras Armadas, atualizada pela lei n. 7.672, de 23 de setembro de
1988. Dirio Oficial da Unio (DOU), de 26 de setembro de 1988.
Portaria do Ministrio do Estado do Exrcito Brasileiro n. 1348, de 21 de
dezembro de 1981: instrues Gerais para o funcionamento do Servio de
Assistncia Religiosa no Exrcito (IG 10-50). DOU de 23 de dezembro de
1981 Boletim do Exrcito (Bol EX) n. 1.
importante ressaltar que para o ingresso no Quadro de Capeles Militares nas
Foras Armadas, os itens VI e V do Art. 18, da Lei n. 6.923, de 29 de junho de 1981,
tm como uma das consideraes:
IV. Ter curso de formao teolgica regular de nvel universitrio, reconhecido
pela autoridade eclesistica de sua religio.
V. Possuir, pelo menos, 3 (trs) anos de atividades pastorais.
Segundo a Constituio do Estado do Rio de Janeiro:
32
Art. 22 - 1: inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo
assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, em forma da lei
a proteo aos locais de culto e suas liturgias.
Art. 22 - 12 Ser designado para as corporaes da Polcia Militar e do
Corpo de Bombeiros Militar um pastor evanglico que desempenhar a
funo de orientador religioso, em quartis, hospitais e presdios, com direito
a ingressar no Oficialato Capelo.
Alm destas leis ou decretos gerais, h ainda as legislaes especficas para cada
fora singular, quando da publicao de um edital de concurso pblico para a
contratao de capeles.
1.3. OS PRIMEIROS CAPELES EVANGLICOS NA FAB
A citada Lei n. 6.923, de 29 de junho de 1981, prev a contratao de pastores
evanglicos, cuja formao de nvel superior em seminrios reconhecidos por sua
instituio eclesistica, e sua incluso no quadro de capeles da Marinha, Exrcito e
Aeronutica, conforme a necessidade e a possibilidade de cada Fora. O nmero de
militares evanglicos no efetivo da fora singular o que determina a necessidade
de contratao e a alocao do capelo evanglico.
Desde a criao da Lei, o Exrcito, aps efetivar os dois capeles voluntrios,
contratou novos capeles e os incluiu no seu QCM (Quadro de Capeles Militares),
juntamente com os capeles de confisso Catlica Apostlica Romana j existentes.
Treze anos depois, em 1984, foi a vez da Marinha do Brasil contratar capeles
evanglicos. Os primeiros capeles foram contratados como oficiais temporrios e
depois foram efetivados e includos no quadro de capeles militares. A peculiaridade
da Marinha est em que em algumas contrataes ela abriu vaga para um pastor
batista e um da Assemblia de Deus. Tudo isso justificado pelo nmero de militares
em seu efetivo que pertenciam a estas denominaes. Em 2003, o Exrcito contava
com oito capeles evanglicos de carreira, um capelo temporrio contratado e a
Marinha contava com sete capeles evanglicos em seu quadro de capeles.
33
Naquele mesmo ano, a Fora Area Brasileira abriu trs vagas no QCOA (Quadro
Complementar de Oficiais da Aeronutica) para a especialidade pastor. As
exigncias para o ingresso neste quadro foram as mesmas que constam na lei 6.923
e da legislao especfica do edital do concurso em nvel nacional. O ingresso seria
naquele ano e, por ser temporrio, seria renovado a cada ano at o limite de oito
anos. Os trs pastores que ingressaram na Fora Area Brasileira so das seguintes
denominaes: Conveno Batista Brasileira (CBB), Igreja Evanglica Luterana do
Brasil (IELB) e Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Foram alocados em regies sob a
jurisdio e subordinao dos Comandos Areos Regionais (COMAR), no Rio de
Janeiro (COMAR 3), em Braslia (COMAR 6) e em So Paulo (COMAR 4),
respectivamente.
A regio onde o capelo-pastor autor deste projeto atua e em que esta pesquisa foi
realizada a do COMAR 4, que abrange as organizaes militares da Fora Area
Brasileira nas cidades de So Paulo, Guarulhos, Santos, So Jos do Campos,
Guaratinguet e Pirassununga, todas no Estado de So Paulo, incluindo-se a cidade
de Campo Grande, no Estado de Mato Grosso do Sul.
Figura 4. Fotos de culto promovido pela capelania militar evanglica. Fotos do autor (2006).
Captulo 2
A QUESTO RELIGIOSA NA CASERNA
A partir da anlise da psicologia da religio de Gustav Carl Jung2, este captulo
apresenta dados sobre a influencia da religiosidade na moral e tica dos militares.
Por conseqncia, esta influncia deve atingir os valores sociais e familiares, a
hierarquia militar e a viso de mundo adquirida por uma pessoa ao integrar as fileiras
de uma carreira militar.
Jung considera a religio uma estrutura psicolgica da personalidade humana.
Portanto, a religio ocupa lugar importante na experincia humana e, por
conseguinte, esta importncia no menor no ambiente militar. Tal olhar sobre as
crenas religiosas pode consolidar-se como factvel contribuio ao trabalho dos
capeles militares. Sobretudo, porque o papel do capelo militar traduz-se no papel
do guia espiritual. Este adjetivo apresentado na obra Psicoterapia e direo
espiritual (1995), na qual Jung entende o homem passvel de necessidades
espirituais que s podem ser supridas por sua experincia de encontro com o
numinoso. O facilitador deste encontro o guia espiritual que, segundo Jung,
deveria ser procurado pelas pessoas que sofrem, assim como quando esto doentes
fisicamente, elas procuram por um mdico.
A escolha de uma compreenso psicolgica das crenas religiosas parte do
compartilhamento do autor deste trabalho com outros autores que defendem a
espiritualidade como parte constituinte do ser-humano. O homem um ser
irremediavelmente religioso e, sendo a espiritualidade parte da constituio humana,
o autor deste trabalho aponta um caminho para compreender o fenmeno religioso,
dentro ou fora da caserna, o caminho da psicologia. Ou, no dizer do prprio Jung:
2 Carl Gustav Jung nasceu em Kesswil, canto da Turgvia, regio s margens do lago Constana, Sua, no dia 26 de julho de 1875. Filho de Johann Paul Jung, pastor protestante da igreja reformada e de Emile Preiswerk. Sua me era uma dona de casa instruda e culta que o incentivou leitura do Fausto (de Goethe) na adolescncia. Idealizador da psicologia analtica, considerado um dos mais importantes pensadores do sculo XX.
35
[...] para compreender as coisas religiosas acho que no h, no presente, outro caminho a no ser o da psicologia. Da o meu empenho em dissolver as formas de pensar, historicamente petrificadas e transform-las em concepes da experincia imediata. (JUNG, 1988, p.56)
Como capelo militar, o autor deste trabalho tem a oportunidade de observar
peculiaridades da carreira militar em diversos aspectos, sobretudo no tocante s
crenas religiosas. Dos estudos da psicologia parte a convico de que a religio
tambm constituinte da formao da personalidade humana. E observa-se que a
religiosidade provavelmente contribui e influencia fortemente na formao do carter
e da cosmoviso da pessoa que vive no quartel.
Caserna palavra de origem francesa, caserne, do Francs provenal, e significa
habitao de soldados, dentro de um quartel ou praa fortificada. Tambm em
Francs, a palavra quartel deriva de quartier, significando o edifcio onde se alojam
tropas, aquartelamento, habitao, moradia, abrigo. (AURLIO, verbetes). E a vida
no interior da caserna adquire sentido prprio. Ou seja, h aspectos culturais,
linguagem, gestos e atitudes que so dotados de sentido apenas dentro do contexto
do quartel. No dizer de Goffmann (1974) trata-se da cultura adquirida em uma
instituio total. H uma expresso corriqueira nos quartis segundo a qual a vida na
bolha diferente. Entenda-se por bolha o interior de uma organizao militar. O
soldado vive grande parte do seu tempo dentro de um quartel. Em tempos de guerra
ou de iminncia de guerra este tempo passa a ser integral.
Portanto, a caserna o local onde a pessoa militar trabalha, pratica esportes,
alimenta-se, relaciona-se socialmente, diverte-se, dorme, acorda e comea tudo
novamente. No sem razo que dentro de uma organizao militar trabalhem
militares tambm voltados para as cincias mdicas, sociais e humanas. neste
contexto que encontramos militares da rea da sade, do campo religioso e outros.
Mas, qual lugar ocupa a religio no imaginrio do militar? Ele uma pessoa que ao
adentrar na carreira militar ir adquirir uma nova forma de ver o mundo,
principalmente o mundo dentro da caserna. Seria ento a espiritualidade no quartel
apenas algo rotineiro dentro da sua nova vida, ou algo realmente significativo para
construo desta cosmoviso militar? Ou ainda, o militar pautaria a sua vida e seus
valores levando em conta os valores religiosos recebidos e previstos no trabalho de
36
assistncia religiosa no quartel? Ou esta assistncia religiosa em nada influencia sua
vida?
Jung (1988) observou que a religio est presente no tempo mais primitivo da vida
humana e da constituio do mundo. Considera a religio uma estrutura psicolgica
da personalidade humana. Mesmo aqueles que no professam uma confisso
religiosa, tm por influncia dos arqutipos, alguma conexo com o simbolismo
religioso no seu inconsciente. Os contedos simblicos da religio so parte do que
ele chamou de inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo, dotado de propsito ou
intencionalidade, cuja fora energtica repousa em elementos primordiais ou
arcaicos denominados arqutipos, determinante dos fatos psquicos. Para Jung,
toda religio constitui a manifestao espontnea de certo estado psquico.
H alguns exemplos destes estados psquicos que podem ser confirmados pela
experincia religiosa. Eles so simblicos e aparecem ou se expressam atravs de
sonhos, da sincronicidade de eventos, do pressentimento de que algo dever
acontecer e, mormente, da independncia da alma humana que, segundo Jung,
busca por si mesma uma relao com o sagrado e com o desconhecido religioso.
Descobre-se, ento, que da alma humana que parte a necessidade da relao
com um deus. Por isso para Jung, como se pode constatar na obra Psicologia da
religio oriental e ocidental (1988), o ser humano um ser religioso em essncia.
O trabalho de capelania numa organizao militar um trabalho de assistncia
religiosa. Portanto, no pode estar relacionado apenas a uma confisso de f ou
opo religiosa que se privilegie em detrimento de outras. Jung (1988) afirma que o
psiclogo no pode considerar a pretenso que tem todo credo religioso: a de ser
nico dono da verdade. O estudioso da religio concentra sua ateno no aspecto
humano do problema religioso, abstraindo o que as confisses religiosas fizeram
com ele. nesta mesma perspectiva que aqui se disserta sobre a questo religiosa
na caserna. Ou seja, uma proposta que considera a religio como crenas religiosas
e no como uma confisso de determinado credo.
Portanto, para elaborar tratativas sobre a questo religiosa na caserna, h neste
captulo pesquisas bibliogrficas, tanto no campo das Cincias da Religio, quanto
da Psicologia. Espera-se construir uma ponte entre as duas cincias. No como um
37
uso instrumental de uma por outra. Mas na interseco que h nos dois
conhecimentos humanos, conforme a abordagem de Josias Pereira, em sua
dissertao F como um fenmeno psicolgico (1998).
Em outro texto Psicoterapia e direo espiritual (1995), Jung afirma que o homem
tem necessidades espirituais. E a questo que se deseja responder se estas
necessidades esto ou no esto sendo tangenciadas ou supridas no trabalho de
capelania militar. Esta questo deve permear todo o trabalho, portanto, o problema
norteador da dissertao. Mas, no aderindo ao pragmatismo que tudo mede por
seus resultados, aqui se procura, todavia, estabelecer uma relao bastante honesta
do que o trabalho de assistncia religiosa militar contribui efetivamente para atender
o homem em suas reais necessidades.
2.1. A QUESTO RELIGIOSA O HOMEM
Desejo conhecer a Deus e a alma humana. Nada mais? Absolutamente nada
(SANTO AGOSTINHO, 1998, p. 21). Mas, o que o homem? Os diferentes ramos
da cincia se prestam a ocupar boa parte de seus intentos nesta questo. Defini-lo e
conhec-lo, do ponto de vista da religio, o que prope esta seo. Isto porque
este ser humano o alvo do trabalho de assistncia religiosa na caserna.
Santo Agostinho (354430 d.C.) ao tratar sobre o problema do mal defende que
Deus a fonte de tudo o que bom, no podendo ser ele o autor do mal. Todavia,
sendo um dos atributos de Deus a justia, ele deve retribuir com recompensas aos
bons e com castigos aos maus (1995, p. 25). Ora, o homem recebe recompensas e
castigos, vivencia tanto o bem quanto o mal. Desta forma, ele ao mesmo tempo
sujeito executor do mal, e tambm est sujeito ao mal, uma vez que o prova na sua
experincia. Isso traz excelente contribuio na tarefa de conhecer o homem
medida que se examina a teologia agostiniana da fonte do mal.
O homem um ser sujeito s suas paixes e, segundo Agostinho, pelo domnio
das paixes que o homem levado prtica do mal (1995, p. 29). O pecado fruto
da paixo. Embora existam males cuja motivao no seja a paixo, o que leva ao
questionamento se de fato pode aquele ato ser chamado de mal. Agostinho utiliza-
38
se do exemplo do soldado quando mata um inimigo que, ao puxar o gatilho, o faz
como ele mesmo, ministro da lei e, portanto, no est sujeito a nenhuma paixo.
neste aspecto que h o questionamento se esse homicdio pode ser chamado de
mal, uma vez que no tenha sido motivado pela paixo.
Para conhecer o homem sob o ponto de vista da religio necessrio que se
examine o conceito de pecado. Segundo Joo Calvino (1509-1564), pecado a
transgresso da lei de Deus. Toda e qualquer repugnncia contra a lei de Deus
pecado, ou ainda a prpria oposio justia tambm pecado. Os homens so
ordenados a amar a Deus de todo o corao, com todas as foras e com todo o
entendimento. Um dos pilares da doutrina calvinista a total depravao do homem.
Nela, o homem compreendido como algum absolutamente incapaz de escolher o
bem e pratic-lo por si s, pois todo o seu ser est deteriorado pela herana maldita
de Ado que, ao desobedecer a Deus, condenou toda a raa humana a viver sob o
domnio do pecado. O homem , portanto, impossibilitado de cumprir a lei de Deus.
certo que esta lei no mesmo cumprida. Isso se nota, por exemplo, com a
mnima inclinao da mente humana de abandonar o amor de Deus em troca da
vaidade. Portanto, aquele que nega que qualquer concupiscncia da carne pecado
deve, por conseguinte, negar que o pecado transgresso da lei. No se trata,
segundo Calvino, de qualquer desejo primrio da natureza humana, trata-se,
todavia, daquelas paixes desenfreadas que so opostas aos mandamentos e
instituies de Deus (apud WILES, 1966, p. 203).
Ao refutar uma doutrina anabatista de seu tempo, segundo a qual o homem podia
tornar-se inteiramente puro aps sua converso, Calvino reafirmou que o homem
continua sujeito ao pecado. Todavia, obedecendo lei de Deus ele no est mais
sujeito ao domnio e culpa do pecado. O poder do Esprito (lei de Deus) liberta o
homem do domnio do pecado. H exemplos do que Calvino chama de pecado e de
qual a funo do Esprito na regenerao do homem:
O Esprito de Deus no cmplice de homicdio, fornicao, bebedeira, orgulho, contenda, avareza e engano; autor de amor, castidade, sobriedade, modstia, paz, moderao e verdade. Aprendemos das Escrituras que o Esprito nos dado a fim de que Ele nos santifique e nos leve a obedecer justia de Deus. (apud WILES, 1966, p. 224).
39
A teologia crist entende o pecado como uma hereditariedade, desde Ado a todo e
qualquer ser humano que viesse a existir (todo homem), e a todas as partes deste
homem (homem todo). Este o pecado original. Para os pais da igreja, o pecado
original a depravao da natureza humana que era originalmente boa e pura.
Calvino desenvolveu seu prprio conceito de pecado original:
[...] depravao hereditria e corrupo da nossa natureza, o qual se estende a todas as partes da alma, tornando-nos, em primeiro lugar merecedores da ira de Deus e, em segundo lugar, produtores daquelas obras que as Escrituras chamam de obras da carne. O pecado, portanto, faz do homem escravo de suas paixes. (apud WILES, 1966, p. 219).
Todavia a razo, e no a paixo, que faz do homem um ser diferenciado. A razo
o atributo humano que o diferencia qualitativamente dos demais seres viventes.
ela que o sobrepe, por exemplo, aos animais. Segundo Agostinho, o homem se
distingue dos demais seres vivos, sendo o nico que tem conscincia que est vivo.
Para ele, melhor do que viver poder se dar conta de que se vive. Isso comprova a
existncia da razo humana. Ela, por sua vez, o instrumento com o qual o homem
exerce o domnio sobre todos os outros seres vivos e sobre si mesmo. Agostinho
defende que o homem sbio, que se afasta do mal, aquele que vive submisso
razo. Quando a mente domina a paixo, o homem consegue controlar-se da
vulnerabilidade ao mal (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 48). Nota-se aqui o critrio
do homem racional, portanto que controla suas paixes e por isso torna-se um
homem melhor, ou justo no dizer de Agostinho (p. 48).
Esta qualificao humana, a razo, tem especial importncia quando se tenta
descrever o sujeito religioso imerso na realidade da caserna. A disciplina e a
hierarquia, bases do fundamento da vida militar, esto fincadas puramente na razo.
H de se ter fora de mente e muito condicionamento mental para se reproduzir os
ganhos da doutrina militar. Nota-se, de igual forma, que o exerccio da religio na
caserna possui estas facetas da razo e da reflexo, que so facilmente
identificveis na prtica diria. Muito do que se produz em termos de trabalho
religioso est substancialmente associado a todo o modus vivendi da caserna. fcil
notar, por exemplo, o predomnio da razo sobre a emoo em quase todas as
cerimnias religiosas no meio militar. Todavia, mesmo o uso da razo nas prticas
religiosas sempre utilizado para o bem-estar do militar e de seus familiares. Este
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o sentido do que diz Joo Calvino sobre o conhecimento de Deus. Segundo ele,
todo conhecimento concedido por Deus ao homem tem o objetivo maior de que o
homem O conhea, para o seu prprio bem (apud WILES, 1966, p. 49). Este
tambm um objetivo programado do trabalho de assistncia religiosa na caserna.
Observe-se o que diz uma portaria do Exrcito Brasileiro, quanto finalidade do
trabalho de capelania:
A assistncia religiosa tem por objetivo a elevao do moral individual dos integrantes do Exrcito e um convvio fraternal e harmonioso do homem, tanto em sua organizao militar como em seu ambiente familiar e comunitrio. (PORTARIA n. 115 1). DGP, 10 de junho de 2003.
A necessidade de meios ou situaes que promovam melhoria no homem, sendo a
religio um destes, aponta para o fato de que este ser humano um ser em
aperfeioamento, precisa do bem, pois ele mesmo mal. O mal est no homem e
este no mal. Ou nas palavras de Agostinho: Confessa que tudo quanto tens de bom
em ti mesmo vem de Deus; tudo quanto de mal, de ti mesmo. Nada nosso, seno
o pecado (1995, p. 234). Parece ser este um retrato por demais pessimista do
homem. Mas este o resultado, segundo Calvino, de uma anlise honesta e sria
das Escrituras Sagradas. Todavia, indo adiante, a viso crist sobre o homem
carece ainda de outras contribuies.
Percorrido este caminho, chega-se teoria do aniquilamento desenvolvida por
Rudolf Otto (1869-1927). Segundo este autor (1985) o contato com o numinoso (o
sagrado) 3, leva o homem a perceber o seu estado de criatura. Isto , a sua abismal
distncia qualitativa do sagrado, mediante a descoberta e o encontro com o ser
totalmente outro, poderoso, terrvel e inefvel. O homem se v como mera criatura
diante do Criador. Quanto maior a busca pelo numinoso, maior o convencimento de
seu estado de aniquilamento e de dependncia do sagrado. Neste sentido, Otto
explora o conceito de Schleiermacher de sentimento do estado de criatura. Diz ele:
Dependncia, no sentido do que disse Schleiermacher: sentimento do estado de criatura. O sentimento da criatura que se abisma no seu prprio nada e desaparece perante o que est acima de toda a criatura. (OTTO, 1985, p.19).
3 Segundo o dicionrio Aurlio: Numinoso, nume a divindade, o sentimento nico vivido na experincia religiosa, a experincia do sagrado, em que se confundem a fascinao, o terror e o aniquilamento.
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Tambm Otto fala da pequenez do homem ressaltada na grandeza de Deus. O
resultado o reconhecimento de sua nulidade.
Este sentimento [sentimento de criatura] numinoso [poder, majestas, zelo e ira de Deus] forma, por assim dizer, a matria da humildade religiosa. (Ibid., p. 30)
Ou ainda:
Mas que sou eu? Que uma coisa? Sou realmente, e toda a coisa realmente? Que este eu? Que este tudo? Ns s somos, porque tu s e queres que sejamos. Pobres pequenas essncias que, comparadas contigo e perante a tua essncia, devem-se chamar figuras (esquemas), sombras e no essncias. (Ibid., p. 33).
O homem, a partir desta perspectiva niilista, no sentido filosfico que significa
reduo de si mesmo a nada, v brotar deste auto-aniquilamento, outro conceito
fundamental: a sua dependncia e necessidade de contato e do encontro com o
sagrado. Caminha-se, assim, na compreenso religiosa do homem, que qualquer ser
humano um ser que precisa relacionar-se com o numinoso. Esta necessidade de
um deus faz do homem um ser irremediavelmente religioso. O religare (significado
latino da palavra religio) encontra neste ponto sua total aplicao. Pois, o homem
um ser que precisa se religar ao de que se desligou em algum momento. neste
ponto que Otto enxerga a ligao humana com o numinoso como uma ligao
implcita, pr-existente. Ele compara este encontro com o fascnio da alma musical
que sem conhecer uma categoria de msica, ao ouvi-la como se j a conhecesse,
dada a facilidade e a fluncia no aprendizado.
Tal qual existe a alma musical, que d conta de que povos de outras culturas conheam gostem e toquem com avidez nossas msicas, isto porque existe dentro deles uma tendncia para a msica. Dessa mesma forma o homem se identifica com o numinoso apresentado a ele. Mesmo que leia o relato da ira e do terror de Jav em Ex 4.26 (Ibid., p. 86).
Pode-se, a partir destas afirmaes, definir o homem como um ser religioso. Se h
uma identificao to clara, uma confluncia to explcita, segue-se que no
possvel definir o ser humano sem que o faamos a partir da contribuio da religio.
V-se, nesta citao, que a religio algo implcito na alma humana:
[...] torna-se clara uma tendncia genuinamente una, estranha e poderosa, para um bem que s a religio conhece e que no , de
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modo algum, racional. A alma est nele. Procura-o pela intuio e reconhece-o por detrs das expresses simblicas obscuras e insuficientes (Ibid., p. 56).
O homem como um ser religioso. Esta tese defendida e apresentada
comunidade cientfica com excepcional maestria por Jung. Ele desenvolveu sua
psicologia analtica concedendo especial ateno ao estudo das religies. Para
Jung, o homem um ser religioso em essncia. Ele considera a religio uma
estrutura psicolgica da personalidade humana. Portanto, na sua viso de cincia, a
religio ocupa lugar de fundamental importncia (1988).
Para Jung, a religio algo inerente ao ser humano. No apenas a este, mas a toda
a histria da humanidade. A religio uma representao arquetpica 4, tanto no
homem (inconsciente pessoal) quanto em toda a humanidade (inconsciente
coletivo)5. Sendo assim, como ele postula na obra Psicologia da religio oriental e
ocidental (1988), a religio uma atitude do esprito humano, pois designa a ao
particular de uma conscincia transformada pela experincia do numinoso. Ora, se a
religio no homem uma atitude, segue-se que ela uma entidade com ao
prpria. Isso mesmo. Para Jung, o homem mais vtima da religio do que sujeito.
No possvel a nenhum homem falar sobre qualquer experincia religiosa sem ter
sido ele mesmo tomado ou possudo por esta experincia. Sem que fale de sua
prpria experincia do numinoso, no possvel falar sobre religio.
Enquanto Agostinho ressalta o domnio da razo sobre as paixes, Jung defende o
domnio da alma sobre a razo. Segundo ele, em matria de assuntos espirituais,
tais como crenas religiosas, ritos sagrados, leitura da Bblia etc., a alma tem total
domnio sobre a razo e sobre o homem. A alma autnoma (JUNG, 1988, p. 5).
Toma suas prprias razes e tem os seus prprios motivos. hierarquicamente
superior razo. A razo somente questiona fatos que a alma autoriza a questionar.
Da o fato de que em algumas crenas os indivduos crem independente de sua
4 Arqutipo: Jung define como imagens psquicas do inconsciente coletivo que so elementos primordiais ou arcaicos, patrimnio comum a toda humanidade em todos os tempos e eras. Os arqutipos so determinantes dos fatos psquicos. 5 Para melhor compreenso destes termos prprios da teoria junguiana, observe-se o que diz J.J. Clarke: O inconsciente coletivo, dotado de propsito ou intencionalidade, cuja fora energtica repousa em elementos primordiais ou arcaicos denominados arqutipos, determinante dos fatos psquicos. Jung considera que a psique coletiva, no seu embate com o ambiente externo e suas exigncias, que gera o que ele denominou de inconsciente pessoal, e no as vicissitudes da pulso como postula a teoria freudiana (1993, p. 45).
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inteligncia e capacidade de questionar a realidade. Neste ponto, Jung evoca o
parecer de Tertuliano quando fala do testemunho da alma.
A mestra a natureza a discpula a alma. O mestre supremo Deus. Tudo quanto a mestra ensinou e a alma aprendeu foi concedido por Deus preceptor da mestra. Est em ti, a partir da alma que h dentro de ti julgar o quanto a alma pode receber do supremo mestre. (JUNG, 1988, p. 9).
No pode haver dvida quando se fala de um testemunho pessoal de uma
experincia religiosa. Isto porque foi a experincia de algum. Uma pessoa pode
no ver determinado fato religioso. Mas, ela no pode provar a no existncia deste
fato. Jung ressalta que as afirmaes das Sagradas Escrituras so afirmaes da
alma. E as afirmaes da alma so transcendentes aos homens. Diz ele: procura
sentir dentro de ti a presena daquela de onde provm as tuas sensaes (1988, p.
37). Reconhecer uma verdade espiritual submeter-se ao domnio da Alma sobre a
razo. A alma soberana (p. 38).
Agostinho diz que o domnio da razo torna o homem justo, afasto-o do mal. Em
Jung a proximidade com a prpria alma, atravs da religio que trar o bem para
este homem. Todo problema ou doena humana tem uma s causa: a falta de
sentido. Uma neurose, por exemplo, segundo ele um mal ou uma doena religiosa,
pois o homem no supre suas necessidades bsicas de sobrevivncia e ento
adoece. O homem, para Jung, tem necessidades espirituais: [...] a psiconeurose,
em ltima instncia, o sofrimento de uma alma que no encontrou o seu sentido
(JUNG, 1998, p. 52).
do sofrimento da alma que brota toda criao espiritual e nasce todo homem
enquanto esprito. Ora, o motivo do sofrimento a estagnao da vida espiritual, a
esterilidade da alma. Tais pessoas deveriam procurar telogos ou filsofos ao invs
de mdicos. Pois, suas doenas so invariavelmente da seguinte ordem: carncia de
amor, falta de f, receio da prpria cegueira, vida sem esperana. Pessoas assim, e
elas so em grande nmero, atravessam a existncia mergulhado na ignorncia,
porque no souberam perceber sua prpria significao, seu sentido. Do que elas
precisam ento? Jung relembra neste ponto a indissociao que h entre o cientista
e seu objeto de estudo neste caso. Segundo ele o telogo no apenas algum que
sabe algo sobre Deus, mas que vive esta experincia. No apenas conhece algo
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sobre amor, esperana e f, mas que as possui todas. Por esta razo que
deveriam ser procurados. O paciente precisa, ento, buscar em quem conhece e
tem o que Jung (1998) chamou de os quatro grandes carismas: amor, esperana
crena e conhecimento.
O capelo deve ser este guia espiritual a quem Jung atribui o papel de sujeito
facilitador do encontro do homem com sua dimenso espiritual. Alm do uso da
razo, as necessidades espirituais da pessoa militar sero supridas medida que,
no prprio ambiente da caserna, ela tenha espao para acessar o sagrado. O
trabalho religioso no quartel deve proporcionar este espao. E, nesta busca, o
homem parte ao encontro do seu prprio sentido de existncia.
Victor Franklin, idealizador da logoterapia6, fundamenta sua teoria pautada nesta
mesma viso (apud LUCAS, 2003). Todo ser humano est em busca de sentido. A
cura de suas neuroses e seus sofrimentos s possvel se o homem atentar para
um objetivo maior: a razo de sua prpria existncia, a busca pelo sentido da vida.
Muito embora a abordagem de Franklin esteja estritamente aplicada ao uso clnico,
suas descobertas lanam muitas contribuies para compreenso prtica do que
Jung chamou de guia espiritual. Pode-se inferir que o homem na caserna, apesar
das contingncias a que est sujeito, por viver em uma cultura com sentido prprio
(este conceito ser explorado mais detalhadamente na prxima seo), tambm
um ser nesta mesma busca por sentido. Cabe ao servio de assistncia religiosa
proporcionar meios de acessar o sagrado para facilitar tal encontro.
H, portanto, o encontro deste homem com o numinoso. Para Agostinho, o homem
apenas encontra satisfao em Deus. Nas suas Confisses (1987), ele defende
peremptoriamente que jamais o homem encontrar sentido se no voltar para Deus.
Feciste nos ad Te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te (Tu nos
criaste para ti mesmo e nosso corao jamais encontrar repouso at que voltemos
para Ti). Tudo aquilo que o homem necessita, de fato, deste encontro ou re-
encontro com o sagrado. A satisfao plena do homem est em Deus. Em uma de
suas oraes, Agostinho diz: d-me a Ti mesmo, pois ainda que me desses tudo o
6 a busca por sentido na vida. Elizabeth Lucas faz um estudo das implicaes da logoterapia de Franklin e sua aplicao prtica na obra Psicologia espiritual (2003).
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que criaste, ainda me faltaria algo, fonte de todo bem. (CONFISSES, 1987, p.
46).
Este encontro, alm de uma necessidade como salienta Agostinho, algo inerente
ao homem. Ou seja, ao ser humano no cabe, em certo sentido aceitar ou rejeitar tal
encontro. No dizer de Jung, a experincia religiosa antes de tudo uma afetao da
qual o homem torna-se vtima. Ele diz que no contato em que alma humana recebe a
Deus, o homem tem poucas escolhas. Pois, ocorre o impacto ou a afetao do
encontro, ao escrever a obra Resposta a J (1989), Jung fala no apenas de
conceitos, mas de sua prpria experincia. No incio da obra ele fala deste enorme
desafio que falar, por um lado de seu entendimento, e por outro dos seus prprios
sentimentos em relao matria tratada. O homem deve ser afetado para que a
paixo da ao de Deus chegue a ele (1989, p.14). Ao relatar o drama humano de
J e sua experincia, tanto de presena quanto de ausncia de Deus, Jung faz uma
escolha fenomenolgica. Sua abordagem a de quem procura analisar quais as
circunstncias em que ocorre a experincia do homem com Deus. Analisa o prprio
encontro. Em outra obra ele apresenta esta mesma realidade em outras palavras.
Religio vem do latim Religare uma acurada e conscienciosa observao do [...] numinoso, isto uma existncia ou um efeito dinmico no causado por um ato arbitrrio. Pelo contrrio, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vtima do que seu criador... o numinoso constitui uma condio do indivduo, e independente da sua vontade [...] uma causa externa ao indivduo. (JUNG, 1998, 62)
A partir da contribuio junguiana, pode-se reafirmar a importncia do trabalho de
assistncia religiosa em um ambiente institucional. Como Jung diz que as prticas e
rituais religiosos so realizados com a finalidade de provocar o efeito do numinoso,
ao promover os encontros religiosos, o capelo promove o espao e cria o ambiente
no qual esta necessidade humana encontra a possibilidade de expressar-se e de ser
suprida. O encontro humano com o divino, visto na perspectiva de uma necessidade
extrema do homem e tambm da impossibilidade humana de controlar ou dirigi-lo,
tambm defendido por Otto (1985). Ele fala deste encontro comparando-o a um
prodgio, uma quimera. Segundo ele, o totalmente outro, algo que no entra na
nossa esfera de realidade, mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente
oposta, que provoca na alma um interesse que no se pode dominar (1985, p. 41).
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Tratou-se, anteriormente, da importncia das crenas religiosas e de seu papel de
aperfeioamento no homem. Pois, o encontro aqui tratado se torna um precioso
instrumento para este aperfeioamento. Otto defende que a influncia do numinoso
manifesta-se como tendncia genuinamente una, estranha e poderosa, visando a
um bem to especial e caro ao homem, que sem o auxlio da prpria religio, o
homem sequer capaz de compreender sua importncia. Isto porque no se trata
de uma compreenso racional, mas experiencial (fenomenolgica). A alma est
nele. Procura-o pela intuio e reconhece-o por detrs das expresses simblicas
obscuras e insuficientes (p. 56). Portanto, cabe perguntar: quo bom ou que bem
faz ao homem este encontro? Este encontro humano com o sagrado, no qual a
existncia humana encontra o seu sentido, traz alguma influncia na conduta moral
e tica deste homem afetado em sua alma pelo totalmente outro?
Em Agostinho, constata-se que Deus a representao do prprio bem em todas as
fases da vida humana. Ele diz que os homens so vidos e perversos em se
esquecer disso. O que o homem possui apenas o mal, conforme j visto. Portanto,
a conseqncia da volta do homem para Deus voltar-se, de igual forma, para o
bem. Ou ainda abandonar o mal ou suas ms aes ou pensamentos. O mal moral
realizado contra si mesmo, contra o prximo e contra Deus. incoerente pensar em
uma vida humana que se rende ao seu encontro com o sagrado e no passe a
vivenciar mudanas significativas em sua conduta moral e tica. A viso de
Agostinho extrapola at mesmo o aspecto do encontro em si. Em suas Confisses
ele relata que o bem de Deus sobre ele, bem como a repulso ao mal que Deus
gerava nele, j se manifestava em sua vida mesmo antes de sua converso.
Relembrando uma fase de sua vida, quando vivera escravo dos prazeres lascivos,
Agostinho ora a Deus e o agradece da seguinte forma: [...] mesmo l Tu estavas,
jogando fel nos meus prazeres, oh! Fonte de todo bem (1987, p. 57).
Jesus foi o homem-Deus que restituiu humanidade os dons sobrenaturais e a
possibilidade do bem moral. Para Agostinho, o mal est no homem e o bem supremo
est em Deus. O homem jamais encontrar o bem a no ser naquele que a fonte
do bem. Rudolf Otto defende que houve uma moralizao no mundo a partir da
interveno divina. Ele apela para o uso racional do contato com o numinoso.
Segundo ele o sagrado, no sentido mais completo da palavra, s expresso e
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vivenciado quando o homem se d conta deste processo de moralizao que
comeou com Moiss. Desde ento se afirmou com uma fora sempre freqente e
recorrente tanto na pregao proftica como na mensagem do Evangelho.
Nota-se, portanto, que os autores clssicos apresentam um ser humano
irremediavelmente associado religio. E que esta no v outra possibilidade de
vida plena de sentido a qualquer ser humano, a no ser que ele volte-se para sua
necessidade extrema e primitiva de religar-se com o numinoso. Sendo o homem
incompleto e mal, e sendo Deus a prpria expresso do bem, ao constatar-se este
encontro, a conseqncia deve ser a de um homem que se apropria do bem moral
que h em Deus. A religio, ou os ritos das crenas religiosas, proporciona o
ambiente necessrio para que este encontro acontea.
Na questo religiosa na caserna no pode ser diferente. A misso do religioso
dentro do ambiente militar deve ser dia-a-dia levado de volta em termos de reflexo
a esta funo primordial de seu trabalho. A pessoa do capelo o princpio
norteador de sua misso. Ele prprio deve ser o primeiro a vivenciar o encontro.
Deve ser afetado em sua alma, para que a ao de Deus se manifeste nele e
atravs dele. A pessoa do capelo deve ser, como prevem todas diretrizes de
normatizao do trabalho de Assistncia Religiosa, padro de conduta e exemplo de
moralidade e tica para todos os que convivem ao seu redor. Isto por si s j mostra
a estreita relao que h entre a religio na caserna e a conduta moral do militar. No
prximo tpico analisado o ambiente em que o trabalho religioso militar acontece.
2.2. A QUESTO INSTITUCIONAL - A CASERNA
A caserna um local, ao mesmo tempo, de trabalho e de moradia, em muitos casos.
Alm disso, nota-se que em quartis maiores muitas providncias podem ser
tomadas sem que o militar ou seus familiares tenha que transpor os portes do
quartel para fora. o caso de instituies que possuem em um mesmo espao
fsico, alm de seu local de trabalho, sua moradia familiar, hospital, supermercados,
bancos, farmcia, restaurantes, local para a prtica de lazer, esporte e outros. A
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impresso que se tem de que se vive em um outro mundo, ou um mundo
parte daquele que os outros seres humanos vivem.
Como j abordado anteriormente, pejorativamente h uma expresso utilizada pelo
militar para se referir a este mundo prprio, ele compara o ambiente intramuros
com uma bolha. O aluno, quando de seu ingresso na vida militar, para assimilar o
peso dos conceitos novos e a urgncia da assimilao, ouve vrias vezes frases
como estas: a vida civil acabou!; a vida na bolha assim; aqui na bolha voc tem
que ser assim. E como se pode conceber uma cultura religiosa dentro da bolha? A
questo religiosa na caserna assume especial significado quando se atenta para as
peculiaridades to extremadas que se encontram neste tipo de instituio,
denominadas instituio total.
2.2.1. Conhecendo uma instituio total
Tecnicamente aqui se est muito prximo do conceito que Irwin Goffmann defendeu
em seu estudo sobre Manicmios, conventos e prises (1974). Goffman define estas
e outras instituies como instituies totais. Muitos conceitos exarados por Goffman
aplicam-se, indubitavelmente, cultura da caserna. Alm do que, o prprio autor
vale-se de exemplos tirados de escolas militares e de quartis da Marinha ou do
Exrcito dos Estados Unidos.
Uma instituio total pode ser definida como um local de residncia e trabalho onde
um grande nmero de indivduos com situao semelhante, [...] separados da
sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo, levam uma vida fechada
e formalmente administrada (1974, p. 11). Esta vida fechada pode ser
compreendida, no caso da caserna, tanto quanto se referindo ao mundo fsico, ou
social quanto ao mundo individual, ou psquico. certo que os quartis se encaixam
neste conceito de Goffman, todavia faz-se necessrio notar as contingncias
especficas que permeiam o entendimento da caserna como uma instituio total. O
prprio Goffman orienta quanto a este entendimento, quando afirma que os quartis
se encaixam na caracterizao de uma instituio total, no grupo daquelas [...]
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instituies estabelecidas com a inteno de realizar de modo mais adequado
alguma tarefa de trabalho e que se justificam apenas atravs de tais fundamentos
instrumentais (p. 17).
No se deve esquecer que o militar treinado para a guerra. Sendo assim, este
treinamento contempla uma realidade na qual o militar ter que se entregar por
completo, inclusive ao preo da prpria vida, para o cumprimento de sua misso.
Uma das conseqncias desta entrega , justamente, preparar-se para viver por
longos dias, at mesmo anos e anos dentro de um quartel. A vida na caserna uma
vida controlada em todos os sentidos que esta palavra encerra. Tudo regulado por
normas e/ou sanes. As prprias necessidades bsicas do militar esto todas
previstas para serem supridas cabalmente. Segundo Goffmann, este um fator
bsico de todas as instituies totais: no apenas suprir tais necessidades, mas,
antes de tudo, control-las.
As necessidades perdem o aspecto pessoal e passam a ser encaradas pela
instituio como necessidades coletivas. Ou seja, os grupos devem ser alimentados,
vestidos, treinados e assim por diante. Perde-se o sentido de individuo e assume-se
a noo literal de coletividade. Dizem na caserna: se no tem para um no tem para
cem. Nas grandes corporaes militares, este controle das necessidades grupais
fica anda mais generalizado, e dificilmente h a possibilidade de se tratar de alguma
necessidade pessoal, seja de ordem de sade fsica, mental/emocional, ou at
mesmo espiritual.
Certo militar, ex-aluno, recm sado da academia, relata que diante da morte
acidental de algum cadete, eles, alunos, ficavam muito tempo sem saber o que
estava acontecendo e, quando os oficiais lhes davam a notcia, falavam de forma fria
e extremamente abreviada. Em um caso de acidente que resultou na morte de dois
cadetes, o instrutor, aps dar a notcia, em seguida, no mesmo auditrio, comeou
imediatamente a sua aula. Portanto, nota-se que em um ambiente de oitocentos
alunos no h espao para se ater ao que cada um sente ou como cada um reage
morte de um companheiro. O que tem que ser feito, assimilado e tratado ser feito
apenas no mbito coletivo.
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Devido a isso, a questo religiosa na caserna pode apresentar-se para o militar
como uma alternativa ao controle institucional e impessoal do quartel. Atravs do
aconselhamento, o militar encontra na pessoa do capelo um espelho de si mesmo.
Ento, pode se descobrir novamente uma pessoa e atentar para suas emoes,
pensamentos e vida prpria. O capelo deve no apenas suprir as demandas
religiosas, ele de