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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CARLOS ALBERTO MOREIRA DE ALMEIDA
Memória Coletiva do Regime Militar no Cinema Brasileiro da Retomada
CURITIBA
2008
ii
CARLOS ALBERTO MOREIRA DE ALMEIDA
Memória Coletiva do Regime Militar no Cinema Brasileiro da Retomada
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel no Curso de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª Dra. Miriam Adelman
CURITIBA 2008
iii
Agradecimentos
À minha orientadora Miriam Adelmam, tanto pela orientação sem a qual este
trabalho não teria se realizado, quanto pela compreensão e paciência que teve para
com minhas dificuldades que impediram este trabalho de ficar pronto antes.
Gostaria de agradecer à minha família, sempre meu porto seguro. Meus pais
Pedro e Dagmar, que me apoiaram desde sempre no desafio que é cursar uma
universidade para alguém de uma família sem grandes recursos financeiros. Meus
irmãos Jairo e Veridiana, que desde sempre me ajudaram, um com sua inteligência
e paixão pelo conhecimento que muito me influenciou, a outra com sua ternura e
bom humor que sempre tornou minha vida mais leve. Minha outra mãe Luzmar pelo
dom da vida, e minha avó Otina, esteja onde estiver, que apesar de analfabeta, me
ensinou a sabedoria da vida, que é a mais importante de todas.
Ao professor Alexandro Dantas por se dispor a participar de minha banca,
bem como pelo auxílio que me prestou na resolução de diversas questões
burocráticas, na qualidade de coordenador do curso de ciências sociais. Ao
professor Ângelo Silva pela participação na banca, e pelas conversas e sugestões
que muito contribuíram para esta monografia.
Aos amigos da academia e dos tempos da militância, que proporcionaram um
grande aprendizado e se tornaram parte integrante de minha vida: Carla Cobalchini,
Mabelle Bandoli, Thiago de Góes, Fabio Campinho, Simone Frigo, Prentici Rosa,
Bernardo Pilotto, Marcos Pedroso, André Ziegmam, Daniela Mussi, Andressa
Lewandovski, João Maurício, Luiz Felipe, Bruno Meirinho, Geraldo Staub, André
Castelo Branco, Ana Lúcia Canetti, Hugo Yamassaki, Douglas Pessanha, Julio
César, Julio Gouveia, Duda, Renato Gonçalves, Flávia Kremer, Marcelo Moreira,
Icaro, Rossana, Bruno Bologna, Paulo Arruda, Walker, Giovana, Nelson Bucker,
Fernanda Pismel, Paula Assis, Felipe Trovão, Edayane, Rodolfinho.
Sem minimizar a importância dos amigos já citados, aos mais que amigos,
verdadeiros irmãos: Luiz Domingos, Lucas Massimo, Affonso Cardoso, Luiz Belmiro,
Marcos Teixeira, Michelle Borsatto, Maurício Chinque e Isabel Cristina Sampaio.
De uma forma muito especial a Loriane, por existir e por ter entrado em minha vida.
iv
SUMÁRIO
Agradecimentos................................................................................................... iii
Sumário................................................................................................................. iv
Epígrafe.................................................................................................................. v
Resumo.................................................................................................................. vi
Introdução.............................................................................................................. 1
1-Estudos Culturais e Cultura Como Problema Sociológico............................ 5
1.2-Construção de Significados Através do Cinema......................................... 10
1.3-Metodologia de Análise................................................................................... 13
1.3.1- Por Que Cinema da Retomada.................................................................... 16
2-Construção da Memória Coletiva do Regime Militar....................................... 21
2.1- Questões Sobre o Regime............................................................................. 21
2.1.1- O golpe de 1964........................................................................................... 21
2.1.2 -O AI-5, Fechamento do Regime e Luta Armada........................................ 23
2.2 -Memória como Processo Coletivo................................................................. 24
2.3-A Disputa pela Memória da Ditadura.............................................................. 28
3- Análise Interpretativa ........................................................................................ 32
3.2- O que é isso companheiro? Uma visão Conciliada com o passado.......... 32
3.2- Ação entre amigos ou A Vingança da Memória........................................... 43
Conclusão............................................................................................................... 53
Referências............................................................................................................. 56
v
“O cinema é um modo divino de contar a vida” Federico Fellini
6
RESUMO O Regime Militar brasileiro (1964-1985) tem sido um tema recorrente na cinematografia do período conhecido como retomada do cinema nacional. A forma como o período é representado, especialmente na construção da figura do militante das organizações de esquerda que aderiram à luta armada em oposição ao regime, bem como a tortura utilizada como instrumento de repressão pela ditadura, e as contribuições dessa representação na construção do que se entende como memória coletiva do período constituem o objetivo do presente trabalho. A concepção de cultura como campo de poder e significação no processo social, e do cinema inserido nesta como construtor de significados e articulador de discursos advém de diversos autores vinculados à corrente estudos culturais. A contextualização histórica parte da análise de Boris Fausto sobre o regime. A conceituação de memória coletiva foi extraída da obra de Maurice Halbwachs, e a forma como a memória da ditadura é constituída conta ainda com a contribuição do historiador Daniel Aarão dos Reis Filho, e do sociólogo Angelo Silva. A metodologia de análise se baseia no levantamento de aspectos que evidenciam a disputa pela memória, bem como a forma como o atual contexto influencia na construção dessa memória. Os filmes escolhidos para análise são “O que é isso companheiro” e “Ação entre amigos” dirigidos por Bruno Barreto e Beto Brant respectivamente. A opção inconseqüente pela luta armada como forma de ação política, a tortura como instrumento de coerção que deixou profundos traumas, e a construção de uma memória conciliada com o passado em oposição a uma memória que busque a reparação dos que foram perseguidos, bem como a punição dos responsáveis pela tortura são os principais pontos levantados. Esta oposição entre “diferentes memórias” se insere num contexto de disputa pela memória coletiva do período, o que constitui o eixo central do trabalho aqui desenvolvido. Palavras-chave: estudos culturais; ditadura militar; memória coletiva.
7
INTRODUÇÃO
Um trabalho de conclusão de curso sempre nos coloca diante de difíceis
questões, como por exemplo, escolher um objeto de estudo que seja viável dentro
das inúmeras possibilidades e recortes das ciências sociais, como também, a
abordagem teórica mais acertada para tratar desse objeto, e ainda, obter o
instrumental metodológico mais apropriado para desenvolver melhor o estudo e
atender as necessidades colocadas para tal trabalho. Diante dessas questões, quero
deixar claro desde já que o trabalho aqui apresentado obviamente passou por esses
dilemas, logo vai apresentar alguns problemas tradicionais desse momento da
formação. Além disso, uma monografia é ainda um esboço inicial do que poderá vir
a ser um trabalho mais elaborado em uma etapa posterior da formação, como o
mestrado, por exemplo, e sendo assim naturalmente apresentará algumas
limitações.
Apesar dessas dificuldades, apresento aqui o tema que pretendo desenvolver
nesse trabalho de conclusão de curso que, penso eu, constitui um objeto viável
dentro de uma área das ciências sociais que vem ganhando cada vez mais espaço,
os estudos culturais. Esse campo teórico que se volta para análise das diferentes
formas e manifestações culturais e de comunicação modernas e para as formas de
produção de identidades, significados e subjetividades através dessas formas
culturais, buscando analisar os meios pelos quais os significados sociais são
gerados pela cultura (Turner, 1997), traz a meu ver, uma importante fundamentação
teórica para o objeto que pretendo estudar. Pretendo aqui trabalhar como tema uma
abordagem do discurso cinematográfico do cinema brasileiro em particular, tendo
como objeto a construção da memória coletiva do regime militar brasileiro (1964-
1985), e dentro dessa construção a representação da militância de esquerda, de
oposição ao regime. Principalmente a militância de guerrilha ou luta armada, como
também ficaram conhecidos os grupos que optaram por esse tipo de ação política.
Particularmente tenho grande fascínio pelo cinema como expressão artística
desde o início da adolescência. Num primeiro momento confesso que esse fascínio
se deu principalmente por ver no cinema a principal fonte lazer e entretenimento.
Com o passar dos anos esse interesse sobre cinema me levou a procurar
leituras de críticas de filmes de grande destaque. Essas leituras me ajudaram a
compreender de maneira um pouco mais substancial o “significado” e o discurso de
8
alguns filmes pelos quais me interessava (em especial os que abordavam temas
políticos). Porém só quando já estava na universidade tive contato com uma teoria
sociológica da cultura que me permitiu compreender de forma mais abrangente a
importância das manifestações culturais nas relações sociais, e que tratava o
cinema como sendo uma dessas manifestações de maior expressão e como um
meio que pode contribuir muito como ferramenta de análise de alguns processos
sociais. Foi central para essa minha percepção a disciplina de sociologia da cultura
ministrada pela professora Miriam Adelman, pois tal disciplina me colocou em
contato pela primeira vez com os chamados estudos culturais. Até então só ouvira
falar dessa abordagem teórica, sem saber ao certo quais seus objetivos,
metodologia e formas de análise.
No decorrer da disciplina, os autores Raymond Williams no livro “Cultura” e
Stuart Hall no ensaio “Da Diáspora - Identidades e Mediações Culturais”, expoentes
dos estudos culturais britânicos, me chamaram a atenção por trazerem à discussão
questões relativas aos processos culturais. Principalmente no que diz respeito a
algumas reflexões acerca dos limites da teoria marxista mais ortodoxa, que entende
a cultura na sua forma mais cotidiana, como reflexo das relações econômicas, que
seriam nessa perspectiva o fator determinante.
A opção teórica e metodológica de colocar a cultura como fenômeno central
da problemática sociológica, e não mais como um aspecto auxiliar, ou secundário
das formas de se entender a sociedade, foi a meu ver, fundamental para se
desenvolver uma nova forma de pensar sociologicamente, apesar da antropologia já
trabalhar com algumas formas de análise parecidas há bastante tempo. A cultura
passa ser então o objeto, e não mais um anexo; uma relação social fundamental e
não meramente auxiliar, o que nos faz perceber que se entendemos a cultura,
podemos então, entender a sociedade. Uma importância significativa dada à cultura
como meio de se entender a sociedade que eu anteriormente tinha visto apenas nas
abordagens de Gramsci e da Escola de Frankfurt.
O estudo que pretendo aqui desenvolver com esse instrumental teórico têm a
especificidade de trabalhar com a abordagem de um tema da história recente do
Brasil, e que no meu entender ainda não foi completamente analisado, seja pela
produção acadêmica, seja pela mídia. O regime militar brasileiro foi um período da
história, que deixou inúmeras feridas ainda não cicatrizadas, e sobre o qual ainda há
muito que se dizer.
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Acredito que a relevância de um trabalho como o aqui proposto se dá pelo
fato de que os processos culturais e os diferentes produtos1 da cultura são
fundamentais para se compreender o processo de produção de significados,
articulação de discursos, e construção de posições e opiniões sobre determinados
temas. Para entender os discursos, as convenções sociais, e a forma das relações
sociais hegemônicas na sociedade, é necessário entender como esses modos de
pensar e agir são reproduzidos. E o cinema, não só como meio de comunicação e
forma artística fundamental do século XX, (e que continua com tal importância no
século XXI), não só como sétima arte, mas também como documento histórico, se
mostra como instrumento de construção de discursos, modelador de práticas sociais,
tendências de comportamento e mesmo em alguns casos como inspirador de ação
política e social.
O cinema nacional me parece ter sido um meio que se debruçou com muito
interesse sobre esse período da história do Brasil, e que consegue ter maior êxito no
sentido de trazer para o presente esses acontecimentos do passado recente. Desse
modo a representação do regime militar através de um número razoável de filmes
produzidos no Brasil nos últimos treze anos se apresenta como um caminho
possível para se pensar essa época no imaginário brasileiro, e como se dá a
construção da memória histórica em relação ao regime.
O objetivo central deste trabalho consiste em realizar um exercício de
observação da noção de cinema como construtor de significados, símbolos e
posições políticas, e nesse sentido, a maneira como determinados filmes articulam
um discurso inserido num processo de constituição e disputa da memória coletiva de
um processo histórico recente no Brasil. Dentro dessas discussões, tenho em
perspectiva algumas questões centrais que pretendo desenvolver nessa monografia.
O principal esforço é o de tentar compreender e interpretar como os filmes da
produção cinematográfica brasileira pós-retomada sobre a ditadura analisados,
constroem representações sobre o Regime Militar (1964-1985), e a resistência
armada dos militantes de esquerda. Faz parte do trabalho ainda apontar quais os
principais aspectos dessa representação, e a partir disso, o que esses filmes nos
dizem sobre as formas de construção da nossa memória histórica e coletiva da
1 Produto da cultura é entendido aqui não só na acepção da palavra produto como mercadoria, mas também como todas as formas de manifestações artísticas e culturais que muitas vezes não são comercializáveis.
10
época, e como a construção dessa memória é objeto de disputa por parte de
diferentes grupos sociais e indivíduos envolvidos nos acontecimentos.
Para abordar as questões acima levantadas, irei levar em consideração a
representação que se faz, do que penso eu, sejam os principais sujeitos envolvidos
nos acontecimentos naquele momento específico da história brasileira. Quais sejam
esses sujeitos a repressão do regime, representada pela figura do torturador, e a
oposição ou resistência, objetivada na figura dos militantes dos grupos de esquerda.
Tenho ainda a intenção de discutir os possíveis papéis desses sujeitos nesse
processo, e o que podemos entender como uma tomada de posição em relação aos
fatos por parte dos filmes que serão analisados, e conseqüentemente o papel que
esses filmes cumprem num momento em ressurgem discussões em torno da revisão
da lei da anistia de 1979.
Para atingir o objetivo aqui proposto, irei me ater ao uso do referencial teórico
associado à análise dos filmes selecionados. Os filmes escolhidos para análise são
“O que é isso companheiro” de 1997, do diretor Bruno Barreto e “Ação entre amigos”
de 1998 do diretor Beto Brant. A escolha desses filmes entre tantos outros que
tratam da questão do Regime Militar, se deve ao fato de termos observado neles
alguns aspectos em comum, mas também alguns opostos na maneira como
representam os agentes envolvidos em fatos reais ou fictícios do período
(principalmente a figura do torturador e a do militante de esquerda envolvido na luta
armada). E dessa forma, penso que são os que de melhor maneira podem contribuir
como objeto de análise, o que ficará mais evidente no terceiro capítulo.
Esse trabalho está estruturado em três capítulos, além desta introdução e da
conclusão que são os seguintes:
1º Capítulo – Estudos culturais e cultura com problema sociológico, que
pretende apresentar a fundamentação teórica e metodológica, bem como justificar a
opção de análise por filmes feitos no contexto da retomada.
2º Capítulo – Questões sobre a ditadura, que levantará os pontos que
considero essenciais sobre o período, e levantará a discussão teórica sobre
memória coletiva, e memória coletiva do regime militar.
3º Capítulo – Análise dos filmes selecionados, em que buscarei desenvolver a
análise fílmica dos títulos selecionados, bem como identificar os pontos de
intersecção e divergência entre eles.
11
1- ESTUDOS CULTURAIS E CULTURA COMO PROBLEMA SOCIOLÓGICO
No início do livro “Cultura”, Raymond Williams desenvolve uma etimologia da
palavra que dá nome a essa obra. Para esse autor, a análise do desenvolvimento e
mudança de significado dessa palavra, pode contribuir para a compreensão do
sentido que dela temos atualmente, sendo termo cultura uma das palavras que têm
presença nas formas discursivas da modernidade.
Cultura que significava antes o cultivo de algum tipo de planta, ou a produção
agrícola de forma geral, no decorrer da evolução do termo começa a adquirir
também o sentido de cultivo da mente humana, a partir do século XVIII. Cultivo da
mente humana é entendido, para o autor, como elevação da capacidade mental de
cada ser humano. Nessa nova conotação, cultura conseqüentemente se entende por
aquilo que de mais sublime pode realizar a mente humana. Diferentes formas de
convergência dos diferentes interesses relacionados ao termo adquiriram duas
principais formas: “ênfase no espírito formador de um modo de vida global,
manifesto por todo o âmbito das atividades sociais, porém especificamente culturais
(uma certa linguagem, estilos de arte e tipos de trabalho intelectual)” (Williams,
1992: 11). Essa forma é entendida como idealista. A outra forma principal que é
definida pelo autor como materialista se caracteriza pela “ênfase em uma ordem
social global no seio da qual “uma cultura específica, quanto a estilos de arte e tipos
de trabalho intelectual, é considerada produto direto ou indireto de uma ordem
primordialmente constituída por outras atividades sociais” (Williams, 1992: 12).
Para a sociologia da cultura atual, segundo Williams, uma formulação que
une elementos das duas diferentes formas citadas acima de se entender a cultura,
norteia as obras contemporâneas. Tal noção de cultura, em linhas gerais, se define
não só pela produção artística ou intelectual de determinada sociedade, mas
também por toda forma de costumes, práticas cotidianas e particularidades de tal
sociedade. Logo, cultura não é mais entendida como um patrimônio particular das
classes privilegiadas, mais sim como formas de relações particulares que permeiam
toda uma sociedade, e como “sistema de significações mediante o qual
necessariamente (se bem que entre outros meios) uma dada ordem social é
comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (Williams, 1992: 13).
Fundamentalmente baseada nesse conceito de cultura, se desenvolve na
Inglaterra a partir da década de 1970, a linha teórica denominada estudos culturais.
12
Essa linha lança novos olhares, nos estudos dos diferentes processos culturais e no
que se entende por sociologia da cultura.
A perspectiva dos estudos culturais é inovadora, pois passa a entender
cultura como processo produzido socialmente, e que no bojo das transformações
sociais decorrentes do advento da modernidade, se expressa numa multiplicidade
de formas, em que não é possível entendê-la através unicamente de uma “grande
narrativa”, ou buscar uma “teoria geral da cultura”. A abordagem de estudos culturais
vai além, entendendo a cultura como processos sociais que se dariam não só no
campo dos costumes cotidianos da produção artística, mas também em todas as
esferas da vida social. Desse modo cultura é entendida como a totalidade desses
processos que vai desde a ideologia, passando pelas formas tradicionais de cultura,
e chega até a ação política e as instituições. Nesta definição os estudos culturais
são orientações que versam sobre a diversidade e amplitude do que se entende
como processos sociais (Willians, 1992).
Essa nova forma de se entender a cultura, tem desdobramentos teóricos e
metodológicos que inicialmente podemos entender da seguinte forma:
Com a extensão do significado de cultura de textos e representações
para práticas vividas, considera-se em foco toda produção de sentido. O
ponto de partida é a atenção sobre as estruturas sociais (poder) ), e o
contexto histórico enquanto fatores essenciais para a compreensão da ação
dos meios massivos, assim como, o desprendimento do sentido de cultura da
sua tradição elitista para as práticas cotidianas. (Escosteguy, 1998:90).
Com esse foco na observação dos meios massivos, se faz necessária uma
discussão mais ampla acerca dos conceitos de cultura popular e cultura de massas.
Essas duas esferas não devem ser entendidas como estamos tradicionalmente
acostumados a vê-las em algumas abordagens do senso comum, e mesmo de
alguns trabalhos acadêmicos. A abordagem tradicional entende cultura popular
como algo que faz parte do universo unicamente das classes mais pobres (Hall,
2003), sendo que esta cultura popular estaria totalmente dissociada da alta cultura
que numa visão mais elitista deve inclusive ser “protegida” da cultura popular para
que não se perca. Uma distinção que se faz necessária aqui, é que no contexto dos
estudos culturais britânicos e norte-americanos, cultura popular, ou cultura pop, é
13
vista quase como um sinônimo de cultura de massas. Ao passo que no Brasil, o
conceito de cultura popular, está mais ligado a idéia de manifestações culturais
específicas de um povo, e como expressão da organização social do mesmo.
Porém uma forma de observar a cultura popular tanto no Brasil quanto no Reino
Unido é a idealizada por um pensamento mais militante. É aquela em que a cultura
popular é entendida como a manifestação em estado puro das sociabilidades da
classe trabalhadora, e em que existiria uma verdadeira e genuína cultura popular
que representaria a resistência à manipulação das consciências e em contraposição
com a cultura dominante ou a cultura burguesa. Já a cultura de massas é
comumente entendida como algo sem nenhum potencial artístico “real”, e que se
destina unicamente a “entreter” e alienar as massas, e a reproduzir ideologicamente
o modelo de sociedade dominante. Segundo Raymond Willians, sempre
entendemos as massas como o outro, ou a média geral da população, porém nos
esquecemos que os outros nos vêem igualmente assim, como desprovidos dos
devidos critérios para analisar “criticamente” a produção artística em geral.
Na visão dos estudos culturais, tanto as idéias de cultura popular, quanto de
cultura de massas apresentadas acima não dão conta de explicar os fenômenos
culturais de uma forma geral. O que podemos observar em relação à cultura são
processos de interação, em que uma cultura dita popular pode incorporar elementos
do que se considera alta cultura e vice-versa, um movimento em que uma sempre
surge e se relaciona com a outra. É claro que, o que comumente se entende por
“cultura burguesa”, tem mais facilidade de se fixar enquanto alta cultura, e de
expandir seus códigos e formas significativas para o restante das pessoas. Mas
mesmo essa “cultura burguesa” pode incorporar elementos da cultura popular. A
cultura de massas, por ter apelo em um grande número de pessoas, não deve ser
entendida com algo descartável a princípio, pois pode conter em si elementos tanto
da cultura popular quanto da alta cultura.
Para Stuart Hall, a cultura popular é o terreno onde as transformações
são operadas, onde se dão reformas no sentido de “reeducação” do povo. Mas essa
reeducação não se dá num nível em que a maior parte da população, ou o que é
entendido como povo tem um papel passivo. Claro que nesse campo de disputa e
poder que é a cultura, trava-se uma luta desigual por parte da cultura dominante, no
sentido de desorganizar e reorganizar a cultura popular. Mas o resultado desse
processo, não pode ser entendido com o de um lado vencedor, e um lado derrotado
14
simplesmente. Mesmo a cultura tida como dominante sai com marcas profundas
impressas pela resistência daquelas referências das quais pretende se afastar, e
acaba incorporando elementos daquilo que antes negava, fazendo assim
concessões. Ao passo que a cultura tida como dominada, absorve novas formas de
entendimento que não eram as suas, mas não sem antes obter ao menos em parte
uma contraposição. Ele afirma ainda que para se alcançar uma posição de
igualdade nas relações culturais, é preciso ter uma idéia de democracia nessa inter-
relação, permitindo a todos e a cada um, que se eleve às suas potencialidades
máximas, através da educação e do amplo acesso à cultura (Hall, 2003). Notamos
aqui novamente um retorno a uma idéia de cultura como elevação do espírito, porém
prescindindo da busca por uma relação de igualdade, diferentemente de uma visão
elitista dessa elevação do espírito.
Apesar dos apontamentos acima destacados tentarem dar uma idéia geral do
são e o que pretende os estudos culturais, esses são uma linha teórica em
permanentemente em construção, com muitos aspectos em que não é possível
definir um limite de desenvolvimento claro. Os estudos culturais são também de
certa forma uma proposta política, pois ao trazer para o centro da produção
intelectual acadêmica questões teóricas, e principalmente, sujeitos consideradas até
então de menor importância, eles representam uma forma destoante das
proposições teóricas do mainstream. Contudo não constituem uma proposta amorfa,
ou aberta a qualquer coisa que se pretenda teoria social da cultura, como bem
aponta Stuart Hall.
Apesar do projeto dos estudos culturais se caracterizar pela
abertura, não se pode reduzir a um pluralismo simplista. Sim, recusa-se a
ser uma grande narrativa ou meta-discurso de qualquer espécie. Sim,
consiste num projeto aberto ao desconhecido, ao que não se consegue
ainda nomear. Todavia, demonstra vontade em conectar-se, têm interesse
em suas escolhas. È importante chegar-se a uma definição dos estudos
culturais; não podem consistir apenas em qualquer reivindicação que
marcha sob uma bandeira particular. É uma iniciativa ou projeto sério, o que
se inscreve no aspecto “político” dos estudos culturais. (Hall, 2003: 201).
Entre as questões mais específicas que os estudos culturais desenvolvem, têm lugar
de destaque as manifestações dessa forma cultural descrita acima como cultura de
15
massas, mas que também dialoga com a idéia de cultura popular ou “cultura pop”. E
o cinema como uma das principais expressões da cultura de massas, tem lugar
central numa visão que por vezes desmerece a capacidade crítica do público, ou
seja, aquela visão de que se um filme é um grande sucesso de bilheteria, é por que
não tem qualidade, visto que nessa visão a “massa” é atraída unicamente pelo que é
descartável, desprovido de um sentido mais profundo (Kellner, 2001).
Tal visão é bastante influenciada pelo conceito de industria cultural
(Adorno,1999) em que a cultura de massas perde totalmente a essência da obra de
arte. Para Adorno e outros autores da escola de Frankfurt a obra de arte é algo
sublime em que o indivíduo atinge sua potencialidade máxima e sua condição mais
elevada. Com a propagação da cultura de massas e a reprodutibilidade técnica da
obra de arte (Benjamin, 1980), esta obra perde a sua unicidade, sua “aura”, e não
atende mais ao princípio sublime de “elevar o espírito”. Um filme pronto permite que
se faça quantas cópias se queiram através do original. Isso permite um alcance
infinito, e nunca antes experimentado da divulgação de uma determinada obra. Essa
possibilidade de levar um filme ao mesmo tempo para lugares os mais distantes e
variados possíveis, de onde ele foi produzido, faz do cinema uma das principais,
senão a principal expressão da cultura de massas. Contudo para Benjamim e para a
escola de Frankfurt, esse poder de propagação que o cinema tem, é visto como um
formidável instrumento de reprodução e legitimação da estrutura social vigente,
sendo que o cinema seria uma espécie de “válvula de escape” da realidade, onde os
indivíduos aliviariam suas tensões e frustrações decorrentes de sua condição social,
e teriam nesse “mundo mágico” e “ilusório” que aparece na grande tela, a realização
de suas aspirações, ainda que o sonho termine assim que a sessão acaba e a luz da
sala se acende, e o que os indivíduos sentem ao sair da sala na rua barulhenta é um
“choque” de volta a realidade (Turner, 2001).
Penso que essa visão contenha uma grande contribuição para se entender
grande parte da produção cinematográfica e seu discurso. Porém ela contém
implicitamente a idéia de que as “massas”, uma categoria amorfa identificada com a
grande maioria da população e que nunca inclui quem usa tal conceito, não tem
critérios “bons” ou suficientemente “refinados” para selecionar o que seria uma boa
cultura, do que seria uma cultura descartável. A esse respeito podemos observar a
construção dos receptores dessa cultura de massas como um agente totalmente
passivo. Uma visão mais recente percebe a figura do espectador / receptor não
16
como uma figura meramente passiva, mas sim como alguém que apesar de estar
suscetível às manipulações, que tem sim capacidade crítica podendo haver
resistência ao discurso que se pretende incutir, ou se mostrar como “verdadeiro”, se
os indivíduos não se identificarem com determinadas produções culturais (Kellner,
2001).
Dentre a vasta gama de diferentes produtos da cultura, o cinema a meu ver,
tem um papel destacado, por ser como meio de comunicação um dos principais
vinculadores de informação, não tanto quanto a televisão, mas com uma importância
inegável. Como manifestação artística o cinema é uma das que atinge maior
alcance. Penso que essas discussões podem contribuir para uma visão do cinema
como um instrumento formador de opinião, construtor de modas e tendências,
articulador de discursos, levando em conta que o cinema pode sim ser um
instrumento de manipulação, mas que não consegue fixar toda qualquer visão como
“verdade” a priori, dependendo de vários outros fatores, como contexto do filme,
nível de informação dos espectadores, e mesmo a linguagem que o filme se utiliza
pra abordar determinado tema. E ainda que um filme tenha um discurso
explicitamente parcial em relação a algum tema, essa absorção não é automática
por parte do receptor ou espectador, sendo a visão do espectador sobre tal tema
uma via de mão dupla, que se dá também a partir de seu conhecimento e
experiências pessoais sobre determinada temática e sua realidade social, em
contato com tal discurso (Kellner, 2001).
1.2 CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS POR MEIO DO CINEMA
O cinema, uma das principais expressões artísticas e de comunicação de
massas durante o século XX, e que permanece com tal importância no século XXI,
tem um aspecto de vantagem importante em relação às outras artes, por ser a que
mais causa impressão de realidade (Metz, 1977). Tal efeito se deve muito ao fato de
o cinema, como tecnologia, ter conseguido pela primeira vez na história reproduzir
imagem em movimento.
O cinema nasceu a partir de uma invenção dos irmãos Lumière, o
cinematógrafo, uma máquina que conseguia através da projeção de imagens
sucessivas de fotogramas, ou quadros, na velocidade de vinte e quatro quadros por
segundo, criar a impressão de movimento. Em 28 de dezembro de 1895, em Paris,
17
os Lumière realizaram a primeira exibição pública, em que foi cobrada entrada de
cinema. Nesse dia o público assistiu a uma série de dez filmes de quarenta a
cinqüenta segundos de duração, sendo os dois mais famosos dentre esses, “A saída
dos operários da fábrica Lumière” e “A chegada do trem à estação ciotat”2, cujos
conteúdos são exatamente o descrevem seus títulos. Inicialmente, seus inventores
tinham pretensões científicas com o cinematógrafo, que não foram adiante.
A reprodução da imagem, estática, pura e simplesmente, de um objeto real
ou pessoa, com maior grau de semelhança possível através da fotografia,
representou uma inovação fantástica para a primeira metade do século XIX. O
cinema ao conseguir reproduzir imagens em movimento, em fins do mesmo século
XIX abriu possibilidades gigantescas nas formas de percepção do mundo a nossa
volta, ou nas palavras de Ismail Xavier: “Se já um fato tradicional a celebração do
“realismo” da imagem fotográfica, tal celebração é muito mais intensa no caso do
cinema, dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, não
só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade
essencial á sua natureza – o movimento.” (Xavier, 1977:12).
A capacidade de narrativa do cinema, ou seja, a capacidade de contar
histórias através de imagens em movimento, cria a ilusão de que estamos diante dos
próprios fatos ocorridos. É como uma mágica que nos transporta através do tempo e
do espaço para lugares e épocas mais distintas possíveis e faz com quem o cinema
seja “fonte de prazer e significado para muita gente em nossa cultura” (Turner,
1997:49).
O cinema é capaz de construir significados, mas estes significados não se
impõem de uma maneira absoluta e automática por parte de seu público. A relação
que se constrói entre um filme e seu público pode ser mais complexa do que
comumente pensamos. Richard Jonhson afirma que uma limitação de abordagem
em que incorre a escola a escola de Frankfurt se dá justamente por se interpretar
igualmente “texto tal como escrito” e o “texto tal como lido” (JONHSON, 2000). Ou
seja, a análise dos Frankfurtianos parte da noção de que o autor do texto3 consegue
imprimir uma determinada mensagem ou significado da maneira que melhor lhe for 2 Conta-se que algumas pessoas presentes na sala de projeção, ao perceberem a aproximação do trem na tela, chegaram a pensar que seriam atropeladas pela locomotiva, e correram em direção as saídas do local. 3 O texto a que me refiro aqui não é o texto escrito. É a noção de texto como processo de significação presente em diversas formas discursivas, que podem ser as cinematográficas, ou a linguagem da televisão e da publicidade, por exemplo.
18
conveniente. Há que se pensar, no entanto, o expectador não como a parte
simplesmente passiva dessa relação.
O expectador não é puramente receptivo e imediatamente susceptível à
imagem e ao seu efeito de realidade (De Lauretis, 2003). Penso que essa noção do
espectador não passivo, mas também agente de um processo de mão dupla na
construção de significação através de filmes, ou como já abordado aqui a partir da
contribuição de outro autor, a figura do expectador / receptor (Kellner, 2001), está de
acordo com uma noção que entende o público do cinema com dotado de capacidade
crítica. Ou ainda, o cinema pode ser entendido dentro do contexto de disputa
simbólica que se desenvolve para Hall no campo da cultura (Hall, 2003). E o
intrínseco a essa disputa, não seria a sobreposição de uma cultura sobre a outra, ou
nesse caso, a sobreposição da visão do diretor e de outros membros da equipe de
uma produção, sobre os espectadores, mas sim a tensão entre essa duas posições,
a do diretor como agente que constrói a narrativa a partir de um ponto de vista da
intenção de “dizer algo” e a do expectador dessa narrativa, que também a submete
as suas formas de entender os fatos que estão se desenrolando na tela, e as suas
visões de mundo, podendo perceber de múltiplas formas esse “algo dito”. Assim o
que temos pode der visto não como disputa binária, mas sim como um movimento
contínuo dentro da idéia de cultura como campo de disputa de Stuart Hall, já
abordada anteriormente.
Sendo assim, obviamente não ignoro aqui que o receptor do filme, muito
provavelmente, é influenciado por outras fontes discursivas sobre um determinado
tema. Em se tratando do tema aqui proposto para análise nos filmes, são inúmeras
as possibilidades: conteúdo das aulas de história do Brasil que abordam o regime
militar (para as gerações mais jovens), por exemplo, e as opiniões próprias ou
informações veiculas pela imprensa da época (no caso das pessoas mais velhas).
Deriva disso, que obviamente, não penso que o público dos filmes analisados os
receberam da maneira exata em que os analisarei aqui, e que também fizeram as
mesmas associações e tiveram a mesma percepção, e penso que nem poderiam,
pois os objetivos são diferentes. Tal incursão está situada dentro do campo de
estudos de recepção, o que foge do objetivo deste trabalho.
19
1.3 METODOLOGIA DE ANÁLISE
Para realizar a análise dos filmes proposta neste trabalho, pretendo trabalhar
dentro da perspectiva dos estudos culturais, entendendo cinema como um produto
cultural de seu meio e sua época. Mas especificamente na análise fílmica, irei me
valer tanto de autores que dialogam com os estudos culturais, especialmente
Graeme Turner, quanto das abordagens de críticos de cinema e estudiosos de
comunicação principalmente Ismail Xavier. Vou recorrer ainda, as elaborações de
Christian Metz acerca da linguagem cinematográfica, e dos sistemas e códigos que
a compõem, que parecem extremamente úteis para minha tarefa. Para Metz o
cinema ou o filme, “não é um objeto de conhecimento” (Metz, 1971:7), “mas um
sistema de significação”. A partir desse sistema, que abre várias possibilidades,
trabalha com diferentes códigos e sistemas que podem ser estudados de diferentes
óticas, enfim é “um conjunto multidimensional, mas que se tomado em conjunto,
não se presta a nenhum estudo rigoroso e unitário” (Metz, 1971:8). Nesse
movimento, o autor entende que seja um erro falar em “estudar filmes”, sem fazer
uma distinção no que ele entende que sejam as duas formas principais de fazê-lo.
Para Metz essa distinção se dá entre os que estudam a linguagem cinematográfica
(teóricos) e os que estudam os filmes (críticos).
Dentre a primeira conformação, estão os estudos dos códigos e “traços não
singulares” dos filmes, ou seja, os elementos que então presentes em um filme, mas
que são possíveis identificar em outros, mesmo que não tratem necessariamente da
mesma temática e também os “códigos não cinematográficos”, que são os sistemas
sociais de representação, que para serem identificados não se apegam a elementos
da parte técnica de um filme, pois “um filme não é apenas uma amostra de cinema,
mas também uma amostra de cultura” (Metz, 1971:86). Na segunda forma de se
estudar o filme, se prioriza o filme como realização única, distinto de outros filmes e
produtos culturais. Dá-se destaque para os traços singulares no filme singular ou
para “a combinação singular entre as diferentes escolhas singulares que este filme
realiza entre os recursos oferecidos por diversos sistemas não-singulares,
cinematográficos ou não” (Metz, 1971:87).
A princípio fica mais ou menos óbvio que a proposta de análise que
desenvolvo neste trabalho, tem muito mais intersecção com o primeiro dos caminhos
apresentados acima. Contudo, penso que seja possível em alguns momentos, fazer
20
uso das proposições da segunda alternativa, principalmente na referência a recursos
cinematográficos, o que para Metz não é um caminho impossível, apenas mais
difícil. Há que se ressaltar, decorrente disso, que se tratando da análise de filmes,
pretendo trabalhar não só com o “texto” dos filmes, ou seja, o roteiro, o desenrolar
do enredo, e os diálogos propriamente, mas também com a linguagem
cinematográfica. Ou seja, parto da premissa de que o discurso de um filme não se
constrói somente com os elementos acima citados, mas também fundamentalmente
com as maneiras como um personagem é enquadrado em determinada cena, os
movimentos de câmera, cenário, trilha sonora, figurino e demais artifícios que
ajudam a compor a linguagem cinematográfica. Aqui cabe a ressalva de que esse é
um campo me que tentarei fazer mais uso de técnicas de análise da crítica
cinematográfica especializada. Porém sem perder de vista o objeto sociológico que
pretendo abordar, e que se constrói em contextos sociais identificados e
representados através da linguagem cinematográfica de diretores específicos, em
um momento específico, no caso a retomada do cinema nacional.
Mais utilizado nos estudos de comunicação especificamente, Ismail Xavier,
tem grande colaboração para o objetivo deste trabalho. Esse autor, para quem as
posições entre discurso e realidade em um filme não são meramente teóricas, mas
sim fundamentadas em uma ideologia de base, tem importantes contribuições nas
formas de se compreender como se constrói a idéia de impressão de realidade, já
destacada anteriormente em (Metz, 1971), e amplamente difundida nos estudos que
se voltam sobre cinema. Para Xavier, o cinema consegue essa impressão de
realidade não só pelo movimento da imagem, mas também pela expressividade da
câmera, através dos movimentos desta e da multiplicidade de pontos de vista em
que é possível colocá-la, e assim criar a sensação de que o espectador está vendo o
acontecimento de dentro, diferente do que acontece no teatro, em que se vê os
desdobramentos narrativos a partir de um único ângulo de visão (Xavier, 1977).
Porém o corte da imagem pode ter como conseqüência uma quebra nessa
sensação, já que as imagens que nossos olhos percebem no cotidiano não se
apresentam descontínuas, e se modificam diante de nós a partir do momento em
que nós nos movimentamos, ou lançamos o olhar em diferentes direções.
O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituição
brusca por outra imagem, é um momento em que pode ser posta em xeque
21
a “semelhança” da representação frente ao mundo visível e , mais
decisivamente ainda, é o momento de colapso da “objetividade” contida na
indexalidade da imagem. Cada imagem em particular foi impressa na
película, como conseqüência de um processo físico “objetivo”, mas a
justaposição de duas imagens é fruto de uma intervenção inegavelmente
humana e, em princípio, não indicada nada senão o ato de manipulação.
(Xavier, 1977:17)
Apesar da dificuldade que o efeito do corte pode gerar na impressão de
realidade, as formas de construção narrativa do cinema convencional já estão
suficientemente difundidas para não gerar no expectador maior estranheza. Esse
efeito causado pelo corte pode ser pensado também a partir do que ele proporciona
de vantagem na narratividade, ou seja, que o corte pode não representar somente
uma passagem de uma ambiente para outro, mas principalmente de um dia para
outro, ou de uma época para outra. Pois precisamente essa passagem do tempo,
em que se narram muitas vezes acontecimentos que se sucederam através de
décadas em uma longa metragem, que no formato clássico tem em média cento e
vinte minutos, constitui talvez, uma das principais “mágicas” do cinema, um grande
artifício narrativo.
Também o fato de ser possível simular os acontecimentos do passado, a
“volta no tempo” que o cinema pode proporcionar constitui artifício igualmente
importante. Penso que as conseqüências para a impressão de realidade também
podem ser minimizadas pelo grau de difusão que o cinema alcançou já a partir da
primeira metade do século XX, e pela expectativa que as pessoas geralmente tem
ao entrar em uma sala de cinema. Quem vai ao cinema, vai geralmente para ver
uma determinada história ser contada, e já está razoavelmente familiarizado com os
códigos e artifícios narrativos de que se vale seu realizador.
Em se tratando de um fato histórico importante, num determinado contexto, e
dependendo da forma em que o filme que o aborda foi divulgado ou criticado, essa
expectativa assume um contorno ainda mais sensível no expectador de ver tal fato
apresentado, seja para confirmar noções, seja para discordar, seja para criticar o
filme.
Já foi dito aqui que a relação entre o realizador do filme e seu receptor, que
se dá através do filme não é isenta de nenhuma das partes, ou como apontou
Turner “tanto a produção, quanto à recepção do filme são envolvidos por interesses
22
ideológicos, não importa quão insistentemente isso possa ser negado” (Turner,
1997:143). A tentativa decorrente dessa percepção é a de buscar os elementos
ideológicos4 presentes no que concerne à parte do realizador.
1.3.1 POR QUE O CINEMA DA RETOMADA?
A retomada do cinema nacional é um processo iniciado a partir de 1995, em
que o cinema brasileiro ganhou novo fôlego, impulsionado pela lei do audiovisual5
em 1993, que recolocou o estado no papel de financiador do cinema. A partir desse
momento, houve um aumento significativo na produção nacional, que enfrentava
dificuldades desde 1990 com a extinção da Embrafilme pelo governo Collor. Os
filmes brasileiros reconquistaram nesse período, uma parcela razoável do mercado,
o apoio da crítica e conseguiram também reinserir o cinema brasileiro no panorama
internacional, conseguindo indicações naquela que é considerada a mais importante
premiação do cinema, o Oscar. Em 1995 o filme “O quatrilho” de Fábio Barreto, foi
indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 1998 o filme “O que é isso
companheiro” do diretor Bruno Barreto foi também indicado ao Oscar de melhor
filme estrangeiro. No ano seguinte “Central do Brasil” de Walter Salles foi indicado
ao Oscar de filme estrangeiro, e sua protagonista a atriz Fernanda Montenegro foi
indicada como melhor atriz. Em 2003 “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles foi
indicado a quatro categorias do prêmio, incluindo melhor direção. Apesar de
nenhum desses ter sido agraciado com a estatueta, as indicações dão uma idéia da
reinserção dos filmes nacionais no mercado internacional, visto que uma indicação
de filme brasileiro ao Oscar é algo que tinha acontecido até então apenas uma vez
na história do nosso cinema6.
4 Ideologia aqui é entendida não na acepção marxista clássica de “falsa consciência”, mas sim na linha proposta pelos estudos culturais, que vê a ideologia como uma forma de conhecimento e representação que cada grupo social tem do mundo em determinados contextos e épocas históricas específicos. 5 Essa lei, em seu artigo 1º permite que empresas e pessoas físicas financiem filmes através de desconto total em seu imposto de renda do valor investido, desde que não ultrapasse 3% do imposto devido no caso de pessoa jurídica e 6% no caso de pessoa física. Também permite em seu artigo 3º que empresas estrangeiras descontem 70% do imposto de renda pago sobre o crédito ou a remessa de rendimentos decorrentes da exploração de obras audiovisuais no mercado brasileiro desde que invista esse valor em obra audiovisual brasileira independente. Disponível em www.ancine.gov.br (acessado em 20/09/2008). 6 Em 1963 com “O pagador de Promessas” do diretor Anselmo Duarte. Lembro aqui a indicação de “O beijo da mulher aranha” do Diretor Argentino Radicado no Brasil Hector Babenco em 1985, em 4 categorias, inclusive melhor diretor, e melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga, e que teve o ator
23
O filme considerado marco inicial da retomada é “Carlota Joaquina, princesa
do Brasil”, produção lançada em 1995, da diretora Carla Camurati, por ser o primeiro
financiado a partir da lei do audiovisual a obter sucesso de público e crítica.
A opção foi por trabalhar com os filmes produzidos dentro do contexto da
retomada, pelo fato de que guardam uma distância temporal razoável dos fatos
históricos abordados, apesar do fim do regime ser relativamente recente, o que
penso, pode ajudar no objetivo do trabalho. Levei em conta o fato de que os filmes
brasileiros produzidos durante o período do regime, e que abordam ou mencionem o
próprio regime (que são poucos), têm a preocupação com a censura, e com
possíveis represálias, o que impede seus realizadores de abordarem o regime de
maneira mais livre7. Ao passo que os filmes produzidos durante a retomada, com o
país já redemocratizado, tem mais liberdade para abordarem tais temas. Observa-se
ainda, uma quantidade razoável de filmes produzidos sobre a temática da ditadura
militar, (tanto documentários, como ficcionais, ou que apresentam uma versão
ficcional de fatos reais) no período da retomada, e especialmente nos últimos três
anos, o que nos leva a pensar que esse é um tema de interesse não só de uma
parcela considerável dos principais cineastas brasileiros, mas também dos
espectadores, visto que alguns desses filmes tiveram uma boa aceitação do público,
e um sucesso razoável de bilheteria.
Nesse trabalho, vou me concentrar exclusivamente dois filmes considerados
de ficção, ou que têm uma visão ficcional de acontecimentos reais, não usando
como instrumento de pesquisa os documentários. Não que a diferença entre
documentário e ficção coloque as duas modalidades de filmes em campos opostos
ou concorrentes. Também não irei tão longe na proposição de Ismail Xavier, de que
o cinema a rigor é sempre ficcional, apesar de concordar com o autor no fato de que
o cinema é sempre um discurso produzido e controlado, independente de ser
documentário ou ficção. O problema do documentário aqui se dá pelo fato
estadunidense Willian Hurt vencedor na categoria melhor ator. Consta ainda a vitória da produção francesa rodada no Brasil “Orfeu Negro” do diretor francês Marcel Camus, na categoria de melhor filme estrangeiro. Porém esses dois filmes não podem ser considerados como filmes nacionais, pois apenas foram filmados aqui, sendo produzidos e financiados por outros paises. 7 É o caso, por exemplo, de “Pra Frente Brasil”, filme de Roberto Farias lançado em 1983, que conta a história de um homem que é preso por engano, e torturado. O filme tem cenas de tortura, porém, em nenhum momento fica claro no filme quem são aqueles homens que praticam tais atos, visto que se apresentam em trajes civis, não se identificam como policiais, e andam com carros descaracterizados. Há também o caso mais clássico do filme “Terra em Transe” de 1967 do principal expoente do cinema novo, Glauber Rocha, que tem como pano de fundo um golpe de estado em um país fictício na América Latina, em clara referência ao golpe de 1964 no Brasil.
24
justamente desse tipo de filme geralmente, e em especial em temas políticos, ter a
pretensão de ser um retrato “fiel” ao que “realmente aconteceu”, visto que são filmes
que normalmente se desenvolvem através de entrevistas, ou narrações de pessoas
que estiveram direta, ou indiretamente envolvidos nos fatos que se pretende contar,
e essas pessoas sempre falam situadas de alguma posição do contexto da época.
Já no caso dos filmes de ficção, ou que apresentam uma visão ficcional dos
acontecimentos, se está a meu ver, num segundo nível de elaboração, em que não
é necessário ter estado presente na história, mas conhecê-la, para que seja possível
construir os cenários, referências, figurinos, e tudo aquilo que é comumente
entendido como “clima da época”. É esse segundo nível de elaboração que se dá a
partir de outra época, o presente, e que seguramente tem uma maneira específica
de olhar para o passado, que é também produto desse presente, que me interessa
aqui. A maneira como o cinema nos conduz a lançarmos o olhar para essa passado,
tem nela impressa os traços do presente, ou seja, a posição de onde olhamos.
Um problema metodológico que deve ser pensado na análise dos filmes em
si, é que minhas opiniões pessoais, e posicionamentos sobre o regime militar, e a
luta armada não influenciem na análise do discurso que pretendo realizar dos filmes
que abordam o tema. Assim pretendo fazer uma análise dos filmes que interessam a
esse trabalho tentando ter o cuidado de não se fazer uma definição maniqueísta, e
influenciada pelas pré-noções (Durkheim, 2002) que tenho acerca desse período da
história recente do Brasil.
Cabe aqui também a ressalva de que não existe um cinema da retomada
uniforme. O que se tem visto nas produções na fase da retomada, são filmes que
abordam diversas questões do Brasil, ao que me parece, num movimento de vários
cineastas no sentido de tentar olhar para o país, seus problemas, sua história, sua
cultura e principalmente sua diversidade. Tratando da diversidade brasileira, os
filmes desse período têm um discurso, uma narrativa e uma estética também
bastante variada. Desse modo, não podemos falar de um “cinema da retomada”
simplesmente, achando que essa expressão consegue evidenciar uma idéia geral do
que foi a produção cinematográfica brasileira de 1995 até aqui, tão pouco podemos
afirmar que exista um discurso uniforme e estanque nos filmes da retomada sobre o
regime militar. O que me parece claro é o fato de que como o regime militar é um
processo relativamente recente da história brasileira, e com muitas questões
pendentes e mal resolvidas, é entendível a preocupação de vários cineastas em
25
realizarem filmes que abordam a ditadura, dentro do que, penso eu, seja esse
movimento de olhar para o Brasil. E essa abordagem do regime militar nos filmes, se
dá também de maneira diversa.
Como bem destacou minha colega Maria Isabel Santana Gomes em seu
trabalho de conclusão de curso, o cinema da retomada é um cinema muito mais da
diversidade, e de múltiplos olhares, do que da construção de padrões homogêneos
ligados a uma idéia de um só Brasil, seja sobre o presente, seja sobre o passado.
O que se produziu na época da retomada é um cinema multifacetado,
menos crítico, comercial. Ao contrário do Cinema novo, a maioria dos filmes
desta fase não tem pretensões revolucionária ou contestatória. Ela mostra
as contradições sociais, proporciona representações da realidade social,
mas não com a finalidade de denunciar. Denunciar, neste caso, remete a
uma crítica mais explícita de se apropriar este espaço de produção
discursiva com a finalidade de obter mudanças sociais coletivas. Os filmes
da retomada, em sua maioria, mostram os conflitos, e a interpretação destes
pelos espectadores pode ser a mais diversa. Se a crítica está presente,
encontra-se mais diluída. (Gomes, 2005: 31).
Apesar disso, é possível identificar alguns traços de representação
comuns na abordagem, e intersecções importantes na maneira como alguns filmes
no contexto da retomada representam o regime militar, e as partes envolvidas na
disputa pelo poder. Dentre esses traços, a opção por mostrar dois esteriótipos que
tem um papel central no imaginário da época. Dentro do espectro da repressão do
regime, uma figura recorrente nesses filmes, e que salta aos olhos, é a do torturador,
e a ação da tortura, como um processo usado sistematicamente pelos órgãos de
repressão. A análise da representação também do torturador, se constitui em
interessante meio de se entender a análise mais geral da representação do regime,
pois esse se apresenta como a “face mais cruel da ditadura”. Do ponto de vista da
oposição à ditadura, a figura do militante de esquerda que optou pela ação política
armada através da guerrilha urbana, como os grupos que desenvolviam essas ações
também ficaram conhecidos, ou luta armada, e representam uma opção política
radical e desesperada, em um momento em que o estado de direito está suspenso,
e estes pensam ser esta a forma mais acertada de combater a ditadura e
26
conseqüentemente em sua visão, buscar a construção de um regime socialista no
Brasil.
27
2 - Construção da Memória Coletiva do Regime Militar
2.1 Questões acerca do Regime Militar
2.1.1 O golpe de 1964
Em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros, João Goulart assume a
presidência da república. Já num primeiro momento, essa mudança no principal
posto de comando político do Brasil, é objeto de várias tensões. João Goulart, filiado
ao PTB, e herdeiro político da tradição do populismo de
Getúlio Vargas, não era visto com bons olhos por vários setores da sociedade, entre
eles os militares. Tal desconfiança se fundamentava principalmente nas relações
políticas que o governo sustentava com sindicatos e setores radicais da sociedade
(apesar do Partido Comunista Brasileiro permanecer na ilegalidade durante seu
governo), e nos objetivos de seu plano de governo.
O eixo centra de seu programa de governo, eram as chamadas reformas de
base, um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um
desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a
democracia no país. Entre as principais reformas de base estavam as reformas da
educação, que previa o aumento do número de vagas no ensino superior bem como
a melhoria da qualidade de ensino nos demais níveis do sistema público de
educação, a reforma agrária que permitiria aos trabalhadores rurais o acesso a
propriedade da terra e a reforma urbana, que tinha como objetivo fazer com que
inquilinos se tornassem donos dos imóveis que habitavam,através de
financiamentos do governo federal.
Esses objetivos, principalmente a reforma agrária e urbana, encontraram
grande resistência de setores da sociedade. A primeira por ir contra os interesses
dos grandes proprietários rurais, e a segunda pelo medo da classe média de perder
seus imóveis para os inquilinos. Havia ainda, as pressões de setores que apoiavam
o governo Jango, mas que estavam descontentes com a demora nas mudanças
prometidas, especialmente os sindicatos das grandes cidades, e as chamadas Ligas
Camponesas, movimento de trabalhadores rurais que lutavam pela reforma agrária.
Conseqüentemente, a agitação política promovida por esses grupos, e que se
estendia inclusive aos militares de baixa patente8 não era bem vista pelo alto
8 Era crescente a mobilização desse setor, especialmente na Marinha através da Associação dos Marinheiros, por melhores rendimentos e a garantia dos direitos dos marinheiros. Tais mobilizações eram vistas como quebra da hierarquia militar pelas altas patentes.
28
comando das forças armadas, que temiam o perigo do comunismo, e não queriam
que o Brasil se tornasse “uma nova Cuba”. (Fausto, 2004).
Não conseguindo aprovar as reformas de base no congresso nacional, e
aconselhado por colaboradores próximos, Jango ainda tentou uma última alternativa,
que se mostrou inócua. Ele pretendia realizar grandes comícios para demonstrar o
apoio popular do qual pensava gozar, e implantar as reformas de base através de
decretos anunciados nesses comícios. Porém só um ato desses chegou a
acontecer no Rio de Janeiro, e apesar de ter tido um grande número de
participantes, ao invés de dar fôlego ao governo Jango, acabou por precipitar o
golpe. (Fausto, 2004).
A impossibilidade de sustentação política e social do governo de Jango, e a
pressão cada vez mais forte de setores descontentes da sociedade, especialmente o
grande empresariado, e os militares, como também amplos setores da classe média,
culminam no golpe de 31 de março de 1964. O presidente Jango foge para o
Uruguai, e algum dia depois, assume a presidência o general Humberto de Alencar
Castelo Branco.
Num primeiro momento, propagava-se a idéia (expressa pelo próprio Castelo
Branco) de que os militares ficariam no poder por um breve período de tempo,
apenas para “colocar ordem” no país, combater o “perigo vermelho” e a corrupção, e
assim que houvesse estabilidade, poderia se avançar para uma “democracia
restrita”. Contudo, em breve ficaria clara a intenção dos militares de permanecerem
no poder por um longo período de tempo.
Os militares nunca admitiram publicamente que o país vivia uma ditadura,
mas criaram vários mecanismos que centralizavam o poder no executivo e driblavam
o congresso em decisões de grande importância. Dentre esse mecanismo, estava a
aprovação de projetos de lei no congresso por “decurso de prazo”9, e principalmente
os atos institucionais. Estes últimos tinham força de lei, e eram justificados como
“exercício do poder constituinte inerente a todas as revoluções”. (Fausto, 2004).
O golpe e seus principais desdobramentos encontravam, na visão dos
militares, embasamento na doutrina de segurança nacional. Esta doutrina foi
elaborada no início dos anos 1960 por quadros da Escola Superior de Guerra (ESG),
instituição que tinha como principal técnico e organizador o general Golberi do Couto
9 Instrumento que considerava aprovados os projetos de lei enviados ao congresso, e não votados no prazo máximo de trinta dias.
29
e Silva, (figura que vai estar no círculo principal de poder até o final do regime),
colocava como principal papel das forças armadas o combate ao comunismo, e a
garantia de segurança e desenvolvimento da nação.
2.1.2 O AI-5, Fechamento do Regime e Luta Armada
A partir de 1966 e ao longo de 1967 alguns setores da sociedade passam a
se reorganizar com o objetivo de fazer oposição a ditadura. Especialmente os
estudantes, organizados em torno da União Nacional dos Estudantes (UNE), que se
encontrava na ilegalidade desde 1964, e setores da igreja católica que tinham com
principal expoente o arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara. Em 1968, a
oposição mobilizou também setores do movimento operário, tendo seu ápice nas
greves de Osasco e Contagem.
Também começaram a ganhar força nos meios mais radicais da esquerda, as
proposições da luta armada como instrumento político. Tal proposição se inspirava
principalmente na chamada teoria do foco Guerrilheiro do intelectual francês Régis
Debray. Essa teoria baseada na experiência de Debray junto com Che Guevara na
tentativa de implantar uma guerrilha na Bolívia, e no histórico então recente da
revolução cubana (1959), pregava a idéia de que eram necessários vários focos
guerrilheiros espalhados por um determinado país, para que a partir deles a
revolução se irradie. Em consonância com essas idéias, começam a se formar
pequenos grupos inicialmente na cidade, que ficaram conhecidos como guerrilha
urbana. Esses grupos empreenderam as primeiras ações a partir de 1968. Entre
essas ações estavam principalmente as “expropriações”10, e a partir de 1969
seqüestro de diplomatas estrangeiros com o objetivo de trocá-los por presos
políticos.
O ponto culminante da retomada das mobilizações dos setores oposição ao
governo na sociedade foi a marcha que ficou conhecida como Passeata dos Cem
Mil”, ocorrida em 26 de junho de 1968. Se sentindo ameaçado pelo crescimento da
oposição o governo vê a necessidade de fechamento do regime. A posição da linha
dura, que pregava ser necessário empreender o combate implacável à subversão,
10 Assaltos principalmente a bancos realizados com objetivo de conseguir recursos para financiar a guerrilha.
30
prevalece e, em 13 de dezembro de 1968, o governo decreta o ato institucional
número 5, o AI-5.
O AI-5 representou um golpe nas esperanças daqueles que vislumbravam
uma abertura do regime em curto prazo. Este instrumento suspendia garantias
constitucionais, dava ao presidente poder para fechar o congresso provisoriamente e
para intervir em estados e municípios e para cassar mandatos e direitos políticos,
bem como demitir servidores públicos. Ele ainda suspendia a garantia de hábeas
corpus aos acusados de crimes contra a segurança nacional. Na prática, conferia
poderes quase ilimitados aos militares e fechava de vez o regime, intensificando a
repressão, como demonstra Boris Fausto no livro História do Brasil.
A partir do AI-5, o núcleo militar do poder concentrou-se na chamada
comunidade de informações, isto é, naquelas figuras que estavam no
comando dos órgãos de vigilância e repressão. Abriu-se um novo ciclo de
cassação de mandatos, perda de direitos políticos e expurgos no
funcionalismo, abrangendo muitos professores universitários. Estabeleceu-
se na prática a censura aos meios de comunicação e a tortura passou a
fazer parte integrante dos métodos do governo. (Fausto 2004: 480).
A tortura como forma de coletar informações nos interrogatórios, que já vinha
sendo usada desde 1964, mas de forma difusa institucionalizou-se. Os órgãos de
segurança passam inclusive a promover cursos de métodos de interrogatório, em
que a tortura era ensinada.
Tais práticas repressivas que não davam espaço a críticas ao governo
combinadas com um bom momento econômico pelo qual o país passava no início da
década de 1970, que garantiu um considerável nível de satisfação da população
com o governo, deixaram este numa situação bastante confortável, e praticamente
sem obstáculos. A oposição estava bastante desarticulada, e sem base social de
apoio. Esse quadro só vai começar a mudar a partir da de 1975 por conta de uma
série de fatores.
2.2 Memória como Processo Coletivo
Em sua acepção mais ordinária, a memória é uma construção que através do
mecanismo da lembrança nos permite reconstruir fatos e acontecimentos do
31
passado, e torna possível através desse mecanismo, que recoloquemos de volta à
nossa perspectiva, e ao conhecimento dos outros esses fatos e acontecimentos.
Vista assim, a memória é entendida como um processo eminentemente individual,
que dependeria única e exclusivamente da capacidade mental do individuo que a
exerce. Esta visão, porém não se mostra suficiente para se entender a memória
como um processo social mais amplo.
A memória, como definiu Maurice Halbwachs é a construção de um processo
essencialmente coletivo e, portanto passível de modificações ao longo do tempo e
segundo o contexto em que se insere. De acordo com esse autor, para que nos
lembremos de algum acontecimento ou época específica, é necessário que
estejamos vinculados a um grupo ou coletivo, que partilhe das mesmas experiências
e momentos vividos. À medida que deixamos de fazer parte desse grupo, e
principalmente, que este deixa de ocupar um lugar importante em nossas vidas, às
lembranças relativas à época em que estivemos presentes nele, tendem a
enfraquecer e se apagar. Assim a memória é coletiva, porque ela prescinde de um
determinado grupo ou meio social do qual o indivíduo faça parte. Apesar de serem
os indivíduos que lembram de fato, o que é importante para ser lembrado, e a forma
como será lembrado, é determinado pelo grupo social a que eles pertencem ou
pertenceram, e a forma em que se constitui esses momentos importantes que
merecem destaque na lembrança, é uma forma de disputa, pois abrange diferentes
perspectivas. Assim a memória é construída a partir do indivíduo, mas sempre em
relação com os outros.
Desta forma, a maneira como elaboramos as lembranças não pode ser vista
somente como processo individual. Tampouco a descrição, ainda que minuciosa, de
fatos relativos ao nosso passado é capaz de sozinha trazer à superfície lembranças
submersas no esquecimento e conseqüentemente configurar um quadro fiel de
situações por nós vividas. Os elementos que são capazes de nos fazer rememorar
situações passadas de nossa vida, ou acontecimentos importantes da história de
nosso país têm de estar presentes tanto em nós, como nos outros com quem nos
relacionamos, como exposto no trecho a seguir.
Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um
acontecimento passado para obter uma lembrança. È preciso que esta
reconstrução funcione a partir de dados ou noções comuns que estejam
32
em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre
passando destes para aquele e vice-versa, o que será possível somente se
tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade,
de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída.
(Halbwachs, 2006: 39).
Nesse sentido, por se tratar de um discurso, a memória apresentará
transformações ao longo do tempo tendo por coletivos, os elementos que são
comuns aos vários discursos e que compõem uma idéia geral do se pretende
lembrar. Assim Halbwachs indica que não é possível uma memória do indivíduo visto
que os comportamentos pessoais são reflexos do meio que os produzem. A visão de
um acontecimento, portanto, não poderia ser tida como “pura”, uma vez que ela está
carregada de sinais que marcam o contexto em que foi produzida. Dessa forma,
cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, e a forma
como enxergamos os fatos está intimamente ligada à maneira como estamos ou
deixamos de estar presentes em algum grupo social.
A noção de memória histórica representa na visão de Halbwachs, quase uma
contradição em termos, pois a história se faz através da documentação dos fatos, e
tem um caráter de unicidade. Ainda que se tenham diferentes versões para um fato
histórico, há nele uma relação tempo espaço que não pode ser quebrada. Assim
como bem observou Eliska Altman em seu artigo “Imagens do Monumental”: “ao
definir a história enquanto uma construção objetiva, destacada da lembrança
pessoal, Halbwachs opõe a história escrita à memória vivida, por esta constituir um
quadro fluido e natural em que o pensamento pode se apoiar, no sentido de
reencontrar e conservar a imagem de seu passado” (Altman, 2004:9).
Para Maurice Halbwachs, a histórica começa, onde termina a tradição e a
memória. Se um período da história ou evento tem a necessidade de ser registrado,
é porque já não está mais presente na memória, ou pelo menos não amplamente.
Decorrente dessa abordagem podemos perceber uma divisão que se daria entre os
fatos da memória coletiva, que tendem a se perder naturalmente após um
determinado período, visto que a memória coletiva teria a duração média de uma
vida humana – e os fatos históricos, que são aqueles que uma sociedade sente a
necessidade de conservar, mesmo depois da morte daqueles que os
33
protagonizaram, ou dos que deles poderiam lembrar por serem testemunhas. Desse
modo, quando se tem a necessidade de fazer um registro documental de um
acontecimento ou período (seja esse documento de natureza escrita ou imagética),
é porque a lembrança dos fatos relacionados a esse período se apagaram, ou estão
em vias de se apagar da memória das pessoas (Halbwachs, 2006), ou ainda, por
que aqueles para os quais tais fatos são importantes, sentem a necessidade de
expor sua visão sobre esses fatos aos outros.
Já para Jacques Le Goff, outro pensador que aborda a questão da memória
coletiva, a história seria uma espécie de extensão desta. A história, que é nessa
perspectiva a forma científica da memória coletiva, tem a função de sistematizar as
diferentes expressões ou memórias coletivas diversas, a fim de construir as
percepções do passado num movimento contínuo destas duas esferas como ele
descreve a seguir: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de
forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos
homens” (Lê Goff, 2003:415). A memória coletiva em Le Goff está também
associada ao registro documental dos fatos (principalmente escrito, mas também é
válido pensarmos em outras formas de registro) sendo estes registros, formas da
memória coletiva. (Le Goff, 2003).
Apesar de traçar um caminho diferente de Halbwachs no sentido de entender
a memória coletiva, Le Goff tem um ponto em comum com aquele, no que tange à
observação do campo de construção da memória coletiva como um espaço de
disputa. Le Goff observa, de uma perspectiva histórica, que a instituição do que deve
ser lembrado não se dá de forma pacífica ou imparcial. “Tornar-se senhores da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva” (Le Goff, 2003:422). Assim podemos observar
quem, ou que grupo consegue definir o que deve e como deve ser lembrado, e por
sua vez, este grupo está numa posição de poder em relação a quem é esquecido.
Levando em conta diferentes fundamentações dos conceitos de história e
memória, Le Goff, reconhece o importante papel da memória coletiva no processo
de construção da história das sociedades contemporâneas:
34
A evolução das sociedades na segunda metade do século XX clarifica
a importância do papel que a memória coletiva desempenha. Exorbitando
a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante
enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em
documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho
histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das
sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento,
das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo
poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção. (LE GOFF,
2003:475).
2.3 A Disputa pela Memória da Ditadura
A grande quantidade de livros, reportagens de jornal, revistas e filmes,
produzidos sobre a ditadura sugerem dois movimentos, da parte dos que se
empenharam em fazer oposição ao regime, que parecem complementares. A
intenção de um movimento inicial dessas diferentes histórias da ditadura, através
principalmente de relatos autobiográficos, parece ser a necessidade de “exorcizar” a
experiência da tortura de presos políticos principalmente da parte daqueles que
foram vítimas desta forma de repressão, mas também da parte dos que a reprovam.
Uma experiência traumática e dolorosa em todos os sentidos, que contada pode
cumprir a função de aliviar o trauma dos que a sofreram, já que não é possível a
punição legal para os torturadores11. Essa expressão tem ainda a função de
destacar que “não podemos esquecer o que aconteceu”, e também uma
demonstração do que “não se quer que aconteça mais”, no caso da tortura.
Um segundo movimento, mais amplo, e que vai além dos traumas pessoais
das vítimas da tortura, está inserido dentro da disputa pela memória desse período.
Desde o início da década de 1980 quando o regime abrandou a repressão e a
censura, e mais fortemente após o fim da ditadura em 1985, percebe-se uma
intenção de narrar os fatos ocorridos nesse período, tanto por parte dos diretamente
envolvidos, como da parte daqueles que observaram os desdobramentos políticos e
suas conseqüência mais de longe. A busca por manter presente a lembrança do
11 A lei da anistia de 1979 eximiu de responsabilidades perante a justiça, tanto os processados por envolvimento em diferentes movimentos de oposição aos governos militares, quanto os agentes dos órgãos de repressão responsáveis pela tortura.
35
período, está inserida num contexto mais amplo, na tentativa de se construir uma
memória coletiva da ditadura.
A investida no sentido de contar a história como ela “realmente aconteceu”,
não se dá somente da parte dos “vencidos” pelo regime, e seus simpatizantes.
Embora em menor quantidade numérica, existem vários livros12, e mais
recentemente sites e blogs na Internet13, que se propõem a narrar os fatos ocorridos
do ponto de vista dos defensores do regime, numa tentativa de contar a sua versão
da história.
A tentativa de afirmar uma “memória verídica” dos fatos ocorridos entre 1964
– 1985, e principalmente no que tange ao período mais repressivo compreendido
entre fim de 1968 e metade da década de 1970, constituiu de certa forma, um
campo de disputa entre os dois lados principais envolvidos nos fatos, as forças
armadas e seus colaboradores, e em oposição a estes, as organizações de
esquerda e seus simpatizantes, e também as divergências e diferenças de posição
dentro desses campos.
Entre alguns militantes de esquerda remanescentes do período observamos
muitas vezes nos relatos alguma amargura ou reprovação por alguma estratégia
política equivocada. Um olhar comumente lançado ao passado por ex-integrantes
dos grupos de oposição, tende a uma visão crítica acerca luta armada, seus limites,
e a iminência de seu fracasso como opção de ação política14. Por outro lado há
12 Como exemplo alguns volumes da “História oral do Exército – 1964 – 31 de março” lançados em 2006 pela Editora Biblioteca do Exército, trazem a história da ditadura contada a partir dos depoimentos de militares. Alguns depoimentos, como os do general Décio Barbosa Machado ex-chefe da 2ª Seção (informações) no III Exército, sustentam que os casos de tortura eram exceções, e aconteciam principalmente em resposta a violência dos grupos de esquerda e suas ações armadas.
13 É o caso, por exemplo, do site “Brasil acima de tudo”, que têm uma visão bastante peculiar de vários acontecimentos da história do país, e principalmente da ditadura, qualificando os opositores do regime como terroristas. Chama atenção ainda na apresentação deste site, o fato de estarem elencados objetivos como “Valorizar o civismo e a história isenta da ideologia, e Acompanhar e valorizar o Poder Militar como um dos elementos do Poder Nacional, sem sermos militaristas, mas de acordo com o destino das Forças Armadas que reza a Constituição da República Federativa do Brasil”. Outro site muito com conteúdo semelhante, é o do Grupo Inconfidência.
14 É o caso, por exemplo, dos depoimentos dos envolvidos no seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, apresentados no documentário “Hércules 56” de 2007 do diretor Silvio Da-Rin, em que alguns idealizadores da ação, especialmente Franklin Martins, discorrem sobre os limites da luta armada e enumera pontos que demonstram por que tais ações não se configuraram enquanto opção de ação política por muito tempo.
36
aqueles participantes dos fatos, que mesmo discordando hoje das formas adotadas
de ação na época, apontam seus próprios atos com uma certa glamourização15.
Em relação aos militares apesar de hoje existir um discurso quase unânime
entre os remanescentes das forças armadas da época, acerca das razões e
justificativas para o golpe e a conseqüente repressão, se faz presente em algumas
análises a divisão entre o que se entende por “linha dura” e os militares tidos como
“moderados”. Comumente enquadrado como principal figura entre os “moderados”,
está o primeiro general presidente Castelo Branco. Este representava a tese de que
a interrupção na ordem constitucional causada pela revolução de 1964 seria por um
breve período de tempo, até que se restabelecesse a ordem, e se garantisse a volta
à democracia com segurança. Já o General Emílio Garrastazu Médici, é visto como
o principal “linha dura”, pelo fato de ter presidido o país no período mais violento da
repressão, entre 1969 e 1974.
É interessante observar que apesar de os militares terem vencido a disputa
pela hegemonia e pelo poder no campo político, ainda que usando de violência e de
uma forma autoritária de governo, que driblava o congresso nacional, no que
concerne à disputa pela memória, percebe-se um certo predomínio dos vencidos.
Não raro, os militares manifestam seu descontentamento com o fato de terem
vencido o que denominam guerra aos subversivos, mas perdido acintosamente a
disputa pela história devido à incapacidade orgânica de elaborar sua visão como
vencedores de um passado paradoxalmente conhecido e ensinado através da ótica
dos vencidos.
Contudo, essa disputa pela memória, e o discurso dos campos antagônicos
com vistas a expressar a sua versão, são perceptíveis em várias formas de
rememoração dos eventos ocorridos durante os anos da ditadura. Não por acaso
alguns produtos culturais que tratam da ditadura, trazem em seus títulos expressões
15 Em recente depoimento numa comissão do senado, a ministra chefe da Casa Civil Dilma Roussef que fez parte de um grupo armado chamado VAR-Palmares, disse ter orgulho de suas ações durante a atuação na luta armada, e de ter mentido para seus torturadores, pois isso significava proteger a vida de seus companheiros de organização.
37
como “Lembrar é Resistir”16 ou “Direito a Memória e a Verdade”17, ou ainda
“Memória viva do regime militar”18.
O debate entre os setores que representam os “vencedores” e “vencidos”, se
dá ainda publicamente em relação às políticas de reparação do estado as vítimas da
tortura, e de outras formas de perseguição, como expurgos de cargos públicos e
exílio. Na visão dos militares remanescentes e seus colaboradores, os militantes dos
grupos de esquerda não teriam direito a reparações, pois as sanções que sofreram
seriam uma conseqüência “natural” da opção que fizeram pelo “terrorismo”. Assim a
decisão de indenizar a viúva e os filhos do capitão do exército que se transformou
em um dos principais guerrilheiro de oposição à ditadura, foi comemorada por
grupos que defendem os direitos humanos, e mesmo por setores da esquerda,
porém entre os militares, causou extrema revolta no alto comando das forças
armadas19. Essa revolta se expressou em declarações como a do general-de-
exército Luiz Cesário da Silveira Filho, comandante militar do Leste: “Tudo o que é
falta grave que pode ser cometida esse assassino cometeu. E está sendo premiado
aí! É lamentável, lamentável! Espero que não vá até o final esse processo. Pode
dizer: os generais de Exército, os generais da ativa do Alto Comando do Exército [15
generais quatro estrelas da Força mais dois do Ministério da Defesa] estão
indignados. Causou profunda indignação na Força” (Folha de São Paulo,
16/06/2007). Há ainda entre os militares remanescentes, o temor por aquilo que se
conhece como “revanchismo”. Tal expressão é normalmente usada para classificar
ações ou tentativas de se introduzir no debate público a intenção de responsabilizar
judicialmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a
ditadura. Ao contrário do que ocorreu em outros países da América Latina que
16 Expressão que entre outros usos dá nome a uma peça de teatro de Izaías Almada e Analy Alvarez que foi encenada na inauguração do memorial da liberdade, antigo prédio do DOPS em São Paulo. 17 Nome de uma recente exposição fotográfica sobre a ditadura, que passou por diversas capitais do país, organizada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal. 18 Livro de Ronaldo Costa Couto lançado em 1999, que traz uma compilação na íntegra, de 27 depoimentos concedidos tanto por figuras centrais da ditadura (os presidentes João Figueiredo e Ernesto Geisel e os ministros Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen, entre outros) quanto da oposição (como José Genoíno e Dom Luciano Mendes de Almeida). 19 Em 2007 a comissão de anistia do ministério da justiça concedeu uma indenização de 300 mil reais à Maria Pavan Lamarca, viúva do capitão do exército Carlos Lamarca, e seus dois filhos. Membro do grupo (Vanguarda Popular Revolucinária -VPR), Lamarca desertou passando à clandestinidade para combater a ditadura, sendo executado em 1971. A decisão da comissão prevê ainda uma pensão mensal vitalícia no valor de 11 mil reais para a viúva e os filhos, valor equivalente aos vencimentos de coronel do exército.
38
passaram por ditaduras militares20, no Brasil essa intenção está longe de ser levada
à frente, apesar de recentes declarações nesse sentido, do ministro da justiça Tarso
Genro, mas que tão logo foram percebidas pelos setores que poderiam ser
prejudicados, foram contornadas, e nada mais se disse sobre o fato.
20 O exemplo de maior destaque nesse “acerto de contas” com o passado é o caso do Chile. O General Augusto que presidiu o país de 1973 a 1990 foi julgado pela corte suprema, pelas violações dos direitos humanos, e permaneceu em prisão domiciliar até sua morte.
39
3- Análise Interpretativa
3.1 O que é isso companheiro? Uma visão conciliadora com o passado?
Primeiro filme a abordar a questão do regime militar que obteve ao mesmo
tempo destaque da crítica, e uma média razoável de público21, “O que é isso
companheiro?” filme lançado em 1997 do diretor Bruno Barreto, adaptação do livro
homônimo de Fernando Gabeira, conta a história de um episódio verídico do regime
militar, do qual o próprio Gabeira participou. Trata-se do seqüestro do embaixador
americano no Brasil Charles Burke Elbrick em setembro 1969, realizado pelas
organizações Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), e Aliança
Libertadora Nacional (ALN). O seqüestro tinha como objetivos principais, a libertação
de prisioneiros políticos, e a denúncia da repressão política e a censura do regime,
através da divulgação de um manifesto nas redes de rádio e TV criando com essa
divulgação um fato político. Essas foram as condições apresentadas pelos
seqüestradores para libertarem o embaixador vivo, e apesar de não terem
conseguido criar um fato político relevante que mobilizasse a população contra a
ditadura, ao menos obtiveram a soltura e deportação de quinze presos políticos e
também furaram o bloqueio da censura, obrigando com sua ação a divulgação de
um documento de denúncia das arbitrariedades do regime, o que causou grande
constrangimento entre as forças armadas.
O filme inicia com a exposição de uma seqüência de fotos de belas paisagens
do Rio de Janeiro como a praia de Copacabana, ao som instrumental de “Garota de
Ipanema”, fazendo uma menção ao “momento bossa nova” que o país vivia entre o
final da década de 1950 e início dos anos 1960. Em seguida a legenda relata
brevemente o golpe de estado que o Brasil sofreu em 1964, e seguem várias
imagens documentais da época em preto e branco, de passeatas e confrontos com
a polícia por parte de manifestantes, e em um recurso de montagem, os
protagonistas aparecem à frente de uma dessas passeatas no momento em que a
imagem se aproxima das pessoas. Esse uso de imagens documentais da época, e a
aparição dos personagens a partir destas, sugere uma tentativa conferir mais
veracidade à história que será contada, apesar de o diretor definir o filme como uma
21 Entre os 21 longas-metragens nacionais lançados em 1997, “O que é isso companheiro?” foi o quarto mais visto, atingindo um público total de 321.450 espectadores, considerado um bom número para os padrões atuais do cinema nacional.
40
ficção. Outro aspecto que contradiz a afirmação de Barreto, é o fato de o filme se
valer de locais e situações e alguns personagens homônimos aos envolvidos no
seqüestro.
Em seguida três amigos assistem pela tv em um apartamento a chegada dos
astronautas americanos à lua, e comentam entre eles o feito dos astronautas
americanos. Para César se trata de uma jogada de marketing hollywoodiano dos
americanos, Artur discorda dizendo que se fossem os soviéticos César estaria
“babando” 22 e Fernando concorda lembrando que quando o satélite Sputnik foi
lançado ele tomou um porre para comemorar, e outro porre ainda maior quando Yuri
Gagarin foi o primeiro homem a orbitar a terra. Num outro momento da conversa,
quando Artur comenta como o cosmonauta americano deve ter se sentido quando
pisou na lua, Fernando ressalta a importância dos astronautas terem vivido a
“grande aventura de suas vidas”, o que para ele seria a razão principal da existência.
Considerando que na seqüência os três personagens discutem a possibilidade de
entrar para a luta armada, já de início fica sugerida a opção por este tipo de ação
como uma aventura, das quais eles não medem as conseqüências.
Discutindo as possibilidades de ingressar na luta armada, Artur reflete sobre
os riscos, tentando dissuadir os outros dois amigos, que estão resolutos quanto a
essa empreitada. Para Artur, tal decisão é uma loucura suicida, e ele argumenta
para os amigos, a falta de preparo destes para qualquer tipo de ação armada: “Você
já pegou em uma arma alguma vez César? Já atirou, já matou algum passarinho na
vida? Você era seminarista, matar passarinho é pecado”, diz Artur tentando
demonstrar o despreparo de seus amigos. Mas para estes, o sonho revolucionário é
motivação suficiente, e o preparo necessário eles podem obter com treinamento.
Assim Fernando e César são recrutados pelo Movimento Revolucionário 8 de
outubro, o MR-8, grupo armado que desenvolveu diversas ações contra a ditadura.
Paulo é conduzido a um apartamento onde se encontram outros voluntários da luta
armada, entre eles César, mas quando questionados pelo líder Marcão se algum
deles se conhecia naquela sala, todos respondem que não. Marcão justifica que é 22 Tal afirmação se deve ao fato de a extinta União Soviética gozar nesse período de grande prestígio entre as esquerdas de todo o mundo, mesmo após a divulgação do Relatório Kruchev em 1953 que denunciou ao mundo os expurgos e perseguições do stalinismo. Ainda assim este país era tido como a contraposição ao imperialismo americano durante a guerra fria, e considerada a mais bem sucedida experiência do “socialismo real”. Outro filme sobre a luta armada, mas que não será objeto de análise aqui, “Lamarca” de 1994 do diretor Sérgio Rezende, tem uma cena parecida, que demonstra essa referência aos soviéticos. No momento em que o protagonista que dá nome ao filme assiste pela tv a chegada dos americanos à lua, faz desdém comentando: “Os Russos também vão lá em breve”.
41
necessária essa preocupação, pois todos ali foram militantes do movimento
estudantil, e poderiam ter se conhecido anteriormente. Essa menção ao movimento
estudantil ilustra o meio de que é oriunda a maior parte dos militantes da luta
armada, ou seja, estudantes universitários de classe média. Então demonstra a
preocupação com a identidade deles, e lhes dá novos nomes. Fernando passará a
ser chamado de Paulo e César de Osvaldo. Esse “novo batismo” representa
também um ritual de passagem, e demonstra que na vida clandestina esses jovens
vão perder o laço com a vida anterior.
Os problemas e contradições da opção pela luta armada começam a se
evidenciar quando os dois amigos já inseridos no grupo participam do primeiro
treinamento dado aos novos recrutados. Em uma instrução de tiro na praia, Oswaldo
reclamando para Paulo do autoritarismo da militante Maria que comanda o
treinamento diz: “isto está uma chatice, agora só falta a ordem unida e o toque de
recolher”. A crítica ao militarismo e a hierarquia das organizações que optaram pela
luta armada, bem como a monotonia e a frustração iniciais fica assim demonstrada,
e ela traz a tona à contradição dos recrutados que esperavam “viver a grande
aventura de suas vidas”. Outro aspecto que chama atenção nessa cena é o
ambiente em que acontece o treinamento, a praia. Ainda que esta esteja deserta,
não é o melhor dos lugares para um treinamento de tiros, mas é um belo cenário,
que sugere a inocência dos militantes, por escolherem tal local para o treinamento.
Passado esse treinamento inicial para os novos recrutados, eles participarão
de sua primeira ação armada, um assalto à banco, com o objetivo de obter recursos
para manter o aparelho23 e empreender as ações. Realizam então a expropriação
(como eram chamados os assaltos), ação que também é usada como momento de
propaganda contra a ditadura. Enquanto Marcão discursa para os clientes e
funcionários do banco sobre a repressão e a censura, os demais recolhem o
dinheiro da agência bancária. A ação é bem sucedida, mas o militante Osvaldo
“cai”24. O mais entusiasmado entre os novos recrutados é o primeiro a ter seu sonho
revolucionário desfeito, e logo conhecerá os porões da ditadura. A prisão de Osvaldo
traz à tona conflitos entre o grupo, pois parte dos integrantes afirmam que este não
resistirá às torturas e entregará a localização do aparelho. Quando Paulo comete o
23 Nome que os grupos armados davam aos imóveis que usavam como base para suas ações, bem como para esconderijo. 24 Na gíria da esquerda, significava que o militante tinha sido preso ou morto.
42
ato falho de chamar Osvaldo de César, revelando que na verdade o conhecia antes
de ingressarem no MR-8, o clima fica tenso, e Marcão tenta agredi-lo, no que é
impedido pelos os outros. No momento de raiva, Marcão diz a Paulo que este não
tem mais casa, não tem mais nome, e que sua vida antes da luta armada acabou,
enfatizando que se trata de uma opção sem volta.
Na seqüência os militantes do grupo discutem alguma ação que possa atingir
o regime, e que consiga denunciar para a população a situação repressiva por que
passa o país. Paulo sugere seqüestrar o embaixador americano. Seqüestrar o
embaixador para Paulo seria uma ação que obrigaria os militares a atender as
reinvidicações do grupo, dada a importância da figura em questão, atravessaria o
bloqueio da censura e, além disso, teria uma expressão simbólica, visto que os EUA
na visão da esquerda, era um dos responsáveis pela ditadura no Brasil e pela
repressão decorrente desta, pela sua influência no país no contexto de disputa da
guerra fria, e pelo treinamento e colaboração que ofereceram aos órgãos de
repressão brasileiros. Decidem então seqüestrar o embaixador americano.
Como conseqüência de sua prisão Osvaldo é torturado por dois agentes do
serviço de informações da marinha. Enquanto praticam o afogamento, os dois
conversam amenidades, o que num primeiro momento demonstra a banalidade da
tortura institucionalizada. Porém quando um dos agentes está afogando Osvaldo, o
outro, Henrique ordena-lhe que pare, pois não quer que o prisioneiro morra, o que
indica que Henrique deseja somente obter informações, mas não tem uma
inclinação ao sadismo. Osvaldo não resiste à tortura e passa informações aos
torturadores. O personagem Henrique merece destaque pela forma como encarna a
figura do torturador. Este se sente de certa forma culpado pelos atos que comete.
Num momento posterior quando essa culpa se manifesta causando problemas no
relacionamento com sua esposa, esta questiona o que está acontecendo e o que
está perturbando-o, desconfiada de que ele está envolvido na tortura. É quando ele
admite sua verdadeira função no órgão no qual trabalha. Apesar de visivelmente
abalado e não resoluto da necessidade de seus atos, Henrique justifica para sua
esposa que a tortura é necessária para garantir a segurança do país, e que é seu
trabalho e ele tem que cumpri-lo. Nesse momento, sua esposa o contradiz dizendo
que se ele só está cumprindo seu dever, e se não está errado, qual a razão de sua
insônia. Ele então admite que a maioria dos militantes são jovens cheios de sonhos,
mas para ele, manipulados por “uma escória muito perigosa, que caso consiga
43
chegar ao poder, empreenderá não só torturas, mas fuzilamentos sumários”. Aqui
fica expressa a ideologia da segurança nacional encarnada no agente dos órgãos
repressores, que justifica seus atos para os outros e para si mesmo pelo
cumprimento do dever.
Definida a ação, o MR-8 vai a busca da logística necessária para executá-la.
A personagem Renée, uma guerrilheira do grupo, se envolve com um funcionário da
segurança do embaixador, para obter as informações necessárias à ação, horários e
rotina do embaixador. Após passar a noite com este, Renée sente um profundo
vazio e vergonha de si mesma pelo que fez. Este é um momento em que o filme
demonstra a dúvida dos militantes em relação à nobreza da causa, e se é aceitável
fazer de tudo para se atingir o objetivo revolucionário. Ao ligar para seu pai, e sentir
o desprezo deste, Renée representa o estereótipo da jovem rebelde, que adere a
uma aventura pela incompletude de sua vida, e rejeição de sua família, e desse
ponto de vista, o seu principal objetivo seria na verdade chamar a atenção.
Entram em cena então outras duas figuras, os militantes da Aliança
Libertadora Nacional ALN Jonas e Toledo que chegam ao aparelho para ajudar na
ação. Toledo, já com mais idade que a maioria dos militantes, é apresentado ao
grupo com militante veterano de diversas causas libertárias, tendo inclusive
participado da Guerra Civil Espanhola. A Jonas é delegada a função de comando
da operação de seqüestro do embaixador. Esse último é uma figura central na forma
como o filme representa o pensamento de parte da esquerda no período. Jonas é a
face mais maniqueísta, insensível e pouco reflexiva da esquerda. Duro, frio e
autoritário, ele deixa claro desde o início que não irá tolerar questionamentos e que
matará sem titubear todos que se opuserem ao seu comando.
A partir da entrada de Jonas no circuito dos acontecimentos, vai se
desenvolver no filme uma oposição constante entre ele e Paulo. Este seria o lado
mais crítico e sensível, e também o principal articulador do grupo, enquanto Jonas é
apresentado como o esteriótipo clássico da esquerda stalinista.
Uma contribuição aqui é a análise de Angelo Silva sobre militantes e sobre o
militante comunista especificamente. Apesar desta análise ter como base a estrutura
clássica dos partidos comunistas do século XX, ela é válida para este trabalho, visto
que as organizações da luta armada não obstante serem pequenas mantinham
estruturas de funcionamento interno semelhantes aos partidos. Jonas é o
personagem que mais se aproxima de um perfil de militante comunista traçado na
44
análise. Esse perfil tem como uma característica fundamental a convicção cega nos
princípios revolucionários que lembram em muito a fé religiosa. Tal convicção
decorre da certeza de atingir o objetivo último, a revolução, independente de
elementos práticos da vida real que possam abalar essa certeza. Segundo Silva a
origem do termo militante, derivado de milite, que na idade média designava os
cavaleiros que uniam a prática militar com a propagação da fé religiosa, evidencia
essa relação com a religião e explicita outras características de um “tipo ideal” de
militante comunista como a disciplina, a obediência à hierarquia, e sobreposição do
partido sobre os anseios do indivíduo. (Silva, 2003).
Outros membros do grupo se assemelham a este tipo ideal, como Toledo, por
exemplo, um homem beirando os sessenta anos de idade, é mostrado como alguém
que dedicou sua vida à causa revolucionária. Júlio o mais jovem entre os
seqüestradores do grupo representa outro aspecto da análise de Silva: a satisfação
e status que pode ser alcançada dentro de uma organização de esquerda por um
jovem, e que dificilmente ele almejaria fora dela. Uma menção a esse aspecto se dá
na cena em que Julio conversa com Jonas, e este tece elogios aquele, dizendo que
é depositário de todo seu respeito e admiração, isso vindo do líder da ação, para um
jovem com menos de vinte anos. (Silva, 2003).
É importante ressaltar que em decorrência do filme ser uma adaptação do
livro de Fernando Gabeira (que tem no personagem Paulo seu equivalente), contém
muito do ponto de vista deste sobre os fatos, apesar de não se limitar a este ponto
de vista, o que fez com que o filme fosse objeto de controvérsia quando de seu
lançamento. A discordância sobre a veracidade do filme na época de seu
lançamento se deu por parte de outros envolvidos no seqüestro, principalmente do
jornalista Franklin Martins, e o historiador Daniel Aarão dos Reis Filho. O principal
questionamento sobre a forma como o filme conta a história, diz respeito à dúvida
quanto a importância central do personagem Paulo (Gabeira), no seqüestro.
Segundo o jornalista Franklin Martins, um dos participantes da ação, Gabeira teve
uma influência bem menor no seqüestro do que a demonstrada no filme, e mesmo o
documento que foi enviado à imprensa pelos seqüestradores, teria sido redigido por
Martins, e não por Gabeira como o filme mostra.
Outra controvérsia se dá em torno do personagem Jonas, que é representado
de forma muito diferente do que era realmente, segundo algumas pessoas que
45
conviveram com o verdadeiro Jonas25. Porém o que importa aqui mais do que as
contradições entre o Jonas real e o fictício, é o que o personagem representa. Uma
figura que apesar de estereotipada, tem um comportamento que encontra eco nas
formas de agir de muitos integrantes da esquerda revolucionária da época.
Entendemos essas discordâncias como um reflexo da disputa pela memória
do período, mesmo por parte daqueles que estavam de um mesmo lado. Para esse
momento, são importantes às contribuições do historiador Daniel Aarão dos Reis
Filho, um dos integrantes do MR-8 a época, para quem o filme de Barreto está
inserido no que ele chama de uma memória conciliadora com o passado da ditadura.
Reis Filho refere-se ao fato de que a memória da ditadura militar no Brasil vir sendo
construída através de uma ruptura entre o passado e o presente.
Segundo o autor, tal ruptura é expressa, sobretudo, numa negação da parte
daqueles que constroem esta memória em reconhecer os elos que ligam parcelas
significativas da sociedade civil e o governo militar que tomou o poder em 1964. O
que incomoda na construção da memória da ditadura, mais especificamente da
memória da luta armada, seria expresso na existência desta lacuna, desta carência
de sentido que estaria na base da promoção de uma memória marcada pela
conciliação. (Reis Filho, 2000).
Reis Filho destaca dois pontos fundamentais para falar da luta armada e dos
anos de ditadura, pontos que segundo ele, vem sendo esquecidos, silenciados e
desfigurados pela versão que vem hegemonizando o debate acerca deste tema
complexo de nossa história recente. A dificuldade em reconhecer as relações de
identidade, cumplicidade e apoio de parcela significativa da população com o projeto
político vitorioso em 1964, e a dificuldade em enfrentar a luta armada como uma
opção de partes das esquerdas, assim como de explicar o isolamento para o qual a
luta armada caminhou e foi derrotada.
Em consonância com estas versões conciliadoras, a luta armada seria um
movimento de resistência à ditadura, movimento que procurava restabelecer a
democracia finda em 1964. Uma característica marcante destas versões, é a
negação do projeto político socialista para o Brasil, que parte da oposição defendia
como alternativa ao regime militar. Desse modo, teria havido resistência por parte de
25 Segundo Franklin Martins, o filme promove a “segunda morte” de Jonas, pois este foi morto pela primeira vez pela repressão, e o retrato que o filme pinta dele promoveria sua “morte moral”. Martins também demonstrou desde sempre sua crítica a forma como os fatos são contados no livro de Gabeira, que para este é um livro “intelectualmente desonesto”.
46
todos e o isolamento da luta armada em relação à sociedade ocorreu não porque
esta não se identificava com o projeto daquela, mas porque à sociedade, submetida
à força da repressão, coube resistir dentro do possível, dentro de um certo limite que
não atingia as vias da luta armada.
No entanto, é difícil pensar as ações da luta armada como atos que
encontravam eco na maioria da população. Apesar de causarem alguma sensação
no calor dos acontecimentos, os grupos de esquerda que optaram por este caminho
acabaram eliminados politicamente na prática, e fisicamente em muitos casos.
Nesse sentido vários momentos do filme demonstram que a luta armada
suscitava na população muito mais medo do que simpatia. Figuras populares são
apresentadas sempre numa postura de denúncia para os órgãos policiais de
repressão, de situações suspeitas, que levem até os guerrilheiros. Com exceção do
taxista que guia Paulo, e diz admirar os seqüestradores, mas de uma forma
folclórica, assim como admira os astronautas.
Seguindo o plano traçado, o MR-8 e ALN conseguem seqüestrar o
embaixador, e levá-lo para o cativeiro. No tempo em que passam confinados,
instala-se um ambiente de tensão e pressão psicológica causada pela dúvida da
eficácia da ação. Mas já no primeiro dia, um sinal de êxito, pois o tele jornal divulga
que o embaixador foi seqüestrado, o que até dias atrás parecia impensável por
conta da censura à imprensa.
A partir desse ponto é interessante observar no filme as relações que vão se
desenvolvendo no ambiente do cativeiro, principalmente a proximidade entre Paulo e
o embaixador. Um dos elementos que ajudam a dar centralidade ao personagem
Paulo, é o fato dele ser o único entre os guerrilheiros a apresentar reflexão sobre os
acontecimentos, tanto os circunscritos ao núcleo dos acontecimentos, quanto ao
contexto da conjuntura internacional. Essa reflexão encontra no embaixador Elbrick
um interlocutor “à altura”, o que acaba por encerrar os demais militantes de certa
forma em tipos autômatos da ideologia. Nas conversas com Paulo também se
evidencia a humanização do personagem Elbrick. Visto a princípio como símbolo do
imperialismo americano, ele agora passa a imagem de um diplomata na melhor
acepção da palavra. Alguém que não é favorável a regimes autoritários, e que
enxerga com certa simpatia alguns de seus próprios algozes.
No momento em que escreve a carta à sua esposa como prova de que está
vivo, Elbrick desenvolve uma reflexão que no filme aparece com uma narração in off
47
sobre as motivações de seu seqüestro e dos que o realizaram. A visão negativa de
Elbrick recai sobre Julio que ele considera “menino fanático” ou “criança num jogo
perigoso”, Jonas que ele vê como uma “voz fria” e quase psicótica que ameaçou
torturá-lo, “subproduto da guerra fria”, e Toledo descrito por Elbrick (numa alusão ao
sonho que tivera na noite anterior ao seqüestro) como o “vampiro chefe” e alguém
que sem encontrar sentido para sua vida, esconde-se do mundo e de si mesmo
atrás do sonho revolucionário da juventude da época. A mudança do sentimento de
Elbrick, demonstrada pela trilha sonora, antes uma música tensa e agora uma
melodia suave, e pela vista do cristo redentor pela fresta da janela, simbolizando
alguma esperança, se dá quando ele fala de Renée que assim como Paulo é vista
com ternura por tê-lo ajudado com suas roupas e curativos, fazendo o embaixador
se perguntar “que triste destino levou essas mãos delicadas a segurar uma arma”.
Paulo é o que mais desperta sua curiosidade, também o mais bem instruído, apesar
de acreditar em coisas muito ingênuas, como superdimensionar a importância dos
panteras negras. Para Elbrick, por alguma razão, Paulo precisa do seu respeito, e
por isso não usa capuz, prefere que Elbrick use os óculos para que não o identifique.
Aqui fica novamente evidente uma intencionalidade do filme em mostrar Paulo como
a imagem do bom senso, em meio a uma aventura suicida. O fato deste não usar
capuz, e o seu desejo de não ser visto como terrorista, serve como metáfora para
dizer que Paulo “sabe quem é” e não precisa de máscaras.
Mais do que a própria noção que o embaixador tem de seus seqüestradores,
essas reflexões representam alguns tipos ideais da esquerda da época. Dessa
forma filme olha o passado com o olhar de alguns remanescentes da época, como o
próprio Gabeira, e de como esses remanescentes enxergam o passado, ajudando a
moldar o imaginário atual sobre a época e a luta armada.
Com a aproximação do prazo estipulado pelos seqüestradores, e a incerteza
sobre a aceitação das exigências pelo governo, a tensão aumenta. Em uma reunião
para decidir quem executará o embaixador caso o plano falhe, fica decidido que será
quem estiver no plantão na guarda do quarto, ou seja, Paulo. Porém a casualidade
não foi o que realmente definiu quem cumpriria a tarefa. Em uma seqüência anterior
Jonas havia confidenciado a Júlio que já havia escolhido Paulo para efetuar a
execução. A decisão proposital de Jonas fica clara quando Maria percebe
conversando com Paulo que Jonas havia mudado as escalas de guarda com o
objetivo de obrigar Paulo a executar o embaixador. Tal expediente revela uma faceta
48
de setores da esquerda stalinista, do qual Jonas é um arquétipo, em que
manipulações e trapaças seriam justificáveis pela revolução, ou nesse caso para
testar a firmeza de propósito de Paulo.
Na mesma conversa Maria expressa seu medo de morrer e revela a Paulo
que já tinha visto-o antes da luta armada e que sabe que seu verdadeiro nome é
Fernando. Em um impulso em que parece por instantes querer recuperar sua vida
anterior à luta armada e negar o peso do dever revolucionário, ela afirma reiteradas
vezes que seu nome verdadeiro é Andréia, como se a afirmação de seu nome real
pudesse lhe devolver sua vida pregressa. A convicção de tudo fazer pela revolução,
entregando inclusive sua própria vida é novamente posta em dúvida pelo filme.
Chega a noite do dia 7 de setembro e com ela a hora decisiva. Paulo assume
seu posto de guarda, e pela primeira vez coloca o capuz. Elbrick que já o aguardava
de óculos fica surpreso e temeroso quando aquele lhe diz que pode tirar os óculos
se quiser. A simbologia do capuz se faz presente agora em sentido contrário. Paulo
precisa usar a máscara, pois ainda que tenha que matar o embaixador ele não é um
assassino, o verdadeiro Paulo não usa máscaras. Na hora limite estipulada para a
execução, Paulo sem saber ao certo como agir, acaba por tirar o capuz e vira o rosto
no momento de atirar, mas é detido pelo aviso que vem do corredor, na voz de Maria
de que suas exigências foram aceitas.
No dia seguinte a libertação dos prisioneiros exigida pela guerrilha, o grupo
precisa libertar o embaixador de maneira que evitem serem pegos pela polícia. A
polícia já havia identificado a casa, mas não tinha invadido por temer que Elbrick
fosse assassinado, contudo se mantém à espreita. Ao saírem da casa são seguidos
por um grupo de agentes descontentes com a junta militar que havia aceitado as
exigências, mas esse grupo é impedido por seus superiores de agir. Aqui o filme
demonstra outro aspecto importante do regime concernente à repressão. O fato de
alguns órgãos e agentes agirem muitas vezes a revelia dos comandos superiores.
Contudo isso não atenua a responsabilidade do governo e do alto comando das
forças armadas sobre a tortura e execução, pois esta era uma prática
institucionalizada e conhecida dos altos escalões.
Os guerrilheiros conseguem deixar o embaixador na saída do estádio
Maracanã, e fogem sem serem presos. Alguns dias depois, o agente Henrique
encontra os jornais com os classificados usados pelo grupo para encontrar novos
aparelhos, um erro primário que custará a liberdade de alguns e vida de outros.
49
Esse tipo de erro já havia ocorrido quando Julio despertou a atenção do padeiro ao
mostrar uma montanha de dinheiro quando fora comprar comida em uma padaria,
demonstrando ingenuidade.
Quando vai visitar Maria, atitude também irresponsável do ponto de vista da
segurança do grupo, Paulo e ela travam uma conversa melancólica. Já não há o
fervor e o entusiasmo iniciais. Maria que não apresenta convicção no que diz,
comenta que no último disco de Gilberto Gil, se ouvido de trás para frente, pode-se
ouvir a palavra Marighela26. Em contraposição, Paulo diz que não acha aquilo
importante e que ninguém “ouve música de trás pra frente”. Na verdade o que ele
parece querer dizer, é que ninguém mais além deles vê o mundo da trás para frente,
percebendo o quanto estão isolados. Ele ainda acrescenta que “foi um sonho que
não deu certo” e que estão “falando para o nada”. As reflexões de Paulo,
improváveis na forma como são apresentadas no calor dos acontecimentos, dizem
muito mais respeito a um pensamento de setores da esquerda que olham para o
passado com melancolia, e refletem sobre os erros com certa amargura.
O crepúsculo do sonho se dá totalmente com a prisão e posterior tortura de
Paulo, agora chamado por seu nome real pelo torturador. Este cinicamente diz que
Fernando deveria tê-lo convidado para almoçar, em alusão a um momento em que
investigando, batera a porta do aparelho se fazendo passar por alguém que fora
convidado para um almoço naquele endereço. No pau-de-arara Fernando ouve de
seu algoz que o “o mundo virou de ponta cabeça”, e uma câmera subjetiva de
Fernando de ponta cabeça mostra a imagem de Henrique. Este agora não apresenta
culpa por torturar o prisioneiro, e esboça um certo ar de vingança, pela humilhação
causada pelo êxito do seqüestro. A figura do torturador não está mais escondida
atrás do cumprimento do dever, e do peso na consciência.
O filme de Barreto foi criticado por muitos por não assumir uma denúncia
explícita da tortura. No lugar disso, apresenta o torturador como uma figura
contraditória, mas que por fim, ainda que não de maneira tão evidente, deixa claro
quem é. Já com relação aos militantes, o filme apresenta alguns personagens, reais
ou fictícios, que dão um panorama razoável das formas de agir da esquerda na
época. Apesar de engrandecer excessivamente Paulo / Fernando, a forma como
este é apresentado, encontra de certa forma, uma correspondência em muitos dos
26 Nome do líder do grupo ALN, que foi morto pela polícia em 1969.
50
participantes da luta armada. O próprio Franklin Martins, apesar de crítico ferrenho
do filme, e do livro em que é inspirado, na atualidade, está muito longe das posturas
políticas que tinha a época, o que mostra também a mudança de paradigmas da
maioria da esquerda.
Ainda que reforçando alguns esteriótipos do senso comum, o filme trouxe
novamente o tema da ditadura ao debate público, representando um pontapé inicial
do que seria alguns anos depois, um processo amplo de rememoração do regime
militar através do cinema, que ainda está em curso. Essa dissonância entre o que o
filme apresenta, e a forma como alguns participantes dos eventos da época
gostariam que ele apresentasse, parece o efeito de uma característica dos dias
atuais. Um momento em que de certa forma, as grandes ideologias que se
pretendiam redentoras, e o comunismo como a principal delas, perderam muito de
sua força e sentido.
3.2 Ação entre amigos ou A Vingança da Memória
Produção lançada no ano seguinte ao filme de Barreto, mas bem menos
conhecida e comentada que este, “Ação entre amigos” do diretor Beto Brant é o que
se poderia chamar de um thriller político27. O filme não guarda relação com nenhum
acontecimento verídico específico, mas apresenta vários aspectos relativos ao
período da ditadura, principalmente às conseqüências da luta armada, e aos
traumas da tortura, que merecem destaque.
A trama se desenvolve na atualidade, meados da década de 1990, em torno
de quatro amigos, Miguel, Paulo, Osvaldo e Elói, todos ex-guerrilheiros no período
do regime, e que mantém a amizade até o presente, se encontrando regularmente
para pescar. Porém na pescaria que farão desta vez, algo que Miguel descobriu vai
levá-los a um encontro traumático com o passado da luta armada, em que as
conseqüências são trágicas.
Na primeira cena, um helicóptero sobrevoa o mar, paralelamente aparecem
imagens escuras com silhuetas de pessoas no que parece ser um assalto à banco, e
depois dois homens numa cela aparentemente muito machucados. Um homem é
27
Gênero literário e cinematográfico que tem como característica a denúncia de uma situação política irregular, e que normalmente é objeto de investigação em um ambiente de tensão e pressão psicológica. O principal expoente desta vertente no cinema é o diretor grego naturalizado francês Costa-Gavras, que tem em sua obra “Z” de 1969 um clássico do gênero.
51
lançado do helicóptero com as mãos amarradas dentro da água e se afoga. Esse
era um dos métodos de execução de prisioneiros, utilizados pelos órgãos de
repressão. Essa cena na verdade está acontecendo no pesadelo do personagem
Osvaldo, que é mostrado acordando em seguida, sugerindo desde o início o trauma
não superado dos que foram vítimas da perseguição política e da tortura. Outro dos
quatro amigos, Paulo é mostrado dentro de um carro parado no semáforo
conversando com uma mulher, enquanto um adolescente assalta um carro parado à
frente com um revólver. Ao perceber o assalto, Paulo busina para chamar a atenção
e tentar impedir o assalto, e comenta com a mulher a impotência diante de uma
situação dessas. Ironicamente ele próprio já fora assaltante de banco, mas isso era
justificado dentro de sua lógica, pelos objetivos da causa revolucionária. Em seguida
é apresentado Miguel, ao que tudo indica o único que ainda é envolvido com política,
aparece num comitê de campanha dando os parabéns a um deputado eleito, do qual
ele aparentemente foi assessor de campanha. Elói, o quarto, é mostrado no jóquei
clube apostando em cavalos, e pede a um conhecido que faça sua aposta no
domingo, pois ele estará viajando.
Logo estão os quatro amigos em uma caminhonete na estrada, rumo a sua
pescaria, num clima descontraído de viagem. Porém quando estão jantando no
hotel, Miguel revela qual o seu verdadeiro objetivo com a viagem. Ele mostra uma
foto que encontrou no comitê de campanha aos outros três amigos, em que percebe
estar ao fundo o delegado Correia, que os prendeu e torturou em 1971, após uma
tentativa frustrada de assaltar um banco.
Os outros contestam dizendo que Miguel deve estar enganado, pois Correia
teria morrido num desastre de avião que foi inclusive noticiado pela televisão, mas
Miguel tem certeza de que é ele, e afirma que o fato de a televisão ter anunciado a
morte de Correia não prova que este esteja morto, visto que era fácil plantar notícias
falsas28 na época do regime militar. Aqui cabe destaque para o personagem
Correia29, que segundo Paulo, pode ter sido morto pelos próprios militares, visto que
28 Com esta afirmação Miguel demonstra a colaboração de grande parta da imprensa na época, com o regime militar. 29 Esse personagem é uma clara referência ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS de São Paulo, tido como um dos maiores torturadores da ditadura. Fleury era um anticomunista tão fanático que costumava dizer que se algum dia o Brasil se tornasse um país comunista, ele seria um subversivo muito mais eficiente que os da esquerda. Morreu em um acidente ao cair de um barco em 1979, que suscita até hoje versões e teorias das mais diversas. Alguns acreditam que ele tenha sido assassinado pelos próprios militares por ter conhecimento de um grande número de informações
52
ele sabia uma quantidade razoável de informações e comandou “todo o serviço sujo
em São Paulo”. Correia vai se mostrar como a face da repressão, e justificar a
tortura como sendo o método legítimo, pois o Brasil estaria passando por uma
guerra, e para cumprir o dever com a nação, tudo seria justificável.
A negativa dos amigos em querer acreditar que correia possa estar vivo,
demonstra uma tentativa de enterrar o passado, de esquecer a experiência
traumática da tortura, pois procurar Correia poderia trazê-los de volta ao inferno que
viveram na prisão, e que tentam apagar, porém involuntariamente essa memória
parece insistir em atormentá-los, como no pesadelo de Osvaldo. Enquanto discutem
se Correia realmente está vivo e se devem procurá-lo, na cena em que aguardam o
conserto do carro, Elói ressalta para Miguel que apesar deste ainda estar envolvido
com política, a luta dele hoje não é a mesma que foi no passado.
Paulo tenta dissuadir Miguel da idéia de procurar Correia, ressaltando para
Miguel as mudanças que ocorreram em suas vidas: “agente tinha vinte anos cara,
agente viveu mais de lá pra cá, do que antes disso”. Aqui se demonstra um olhar
sobre o passado que caracteriza os sonhos e a inconseqüência dos jovens que
optaram pela luta armada.
Quando Elói diz não acreditar que Correia está vivo, Miguel diz que não é ele
que quer Correia vivo, e sim Elói que deseja que ele esteja morto, o que poderia
assim colocar a lápide sobre o passado que Miguel reavivou. Miguel insiste que
lembra da tortura todos os dias, no que Paulo o repreende: “Pra que ficar lembrando
de tudo aquilo?”, e que está fazendo isso não só por ele, mas por todos os seus
companheiros, que dizem não querer que ele faça nada para vingá-los. Mas Miguel
está decidido a encontrar Correia para se vingar.
Assim se desenvolve toda a narrativa baseada na tensão entre memória e
esquecimento dos quatro amigos, que contém apontamentos mais amplos sobre
questões pendentes relativas à ditadura. O eixo central desses apontamentos que o
filme sugere é de certa forma uma interrogação sobre a lei da anistia, ou ainda se
devemos ignorar o que aconteceu, a violação dos direitos humanos por uma
ditadura extremamente repressiva, garantindo um presente pacífico e conciliado, e
um passado esquecido? Ou devemos trazer a tona os crimes e punir seus
respectivos responsáveis, buscando acertar as contas com o passado, dando assim
secretas. Por ser um dos maiores símbolos da repressão, Fleury já foi personagem de dois outros filmes sobre o regime militar “Lamarca”, e “Batismo de Sangue”.
53
dignidade ao presente? Em outros termos, como se daria o equilíbrio entre memória
e esquecimento após a ditadura? O filme não dá as repostas prontas para estas
perguntas, mas demonstra que se o estado de direito nega seu papel de mediador
dos conflitos sendo estes uma dívida histórica, e reparador de violências cometidas
por esse próprio estado, os indivíduos na busca por resolver tais conflitos por si,
fecham uma ferida abrindo outra, como fica demonstrado no decorrer do filme.
Quando estão em uma oficina, Paulo propõe que se Correia realmente estiver
vivo, eles devem entregá-lo para a justiça, “fazer barulho”, no que Miguel discorda
dizendo que fazer barulho no Brasil não adianta, e seria uma punição mínima por
tudo que Correia fez30. Os ânimos se acirram na discussão na oficina, e Miguel e
Paulo quase se agridem, sendo impedidos pelos outros dois amigos. Enquanto se
acalma, Miguel lembra da namorada Lúcia, que um dia antes do assalto em que eles
foram presos, contou que estava grávida e sugeriu que eles deixassem a luta
armada. Essa lembrança que se dá na forma de flash back, mostra a incerteza da
opção pela guerrilha, e o medo da morte. Lúcia argumenta para Miguel que a luta
está sendo em vão, mas Miguel diz que não podem desistir, pois assumiram um
compromisso. Lúcia insiste que esse compromisso não é o suficiente para
colocarem a vida em risco, pois o povo não sabe o que está acontecendo, e para o
povo eles não passam de terroristas. Essa lembrança faz um apontamento sobre a
desilusão de não conseguir transformar sua ação em uma luta da maioria, das
massas. Mas o filme também demonstra a firmeza de propósitos dos militantes.
Miguel questiona Lúcia se esta não estaria fraquejando, no que ela repreende essa
acusação de Miguel. Ele repensa e propõe a Lúcia que esta não se exponha na
ação do dia seguinte. Miguel também reflete sobre os riscos, diz que às vezes pensa
que eles irão acabar mal mais cedo ou mais tarde, mas diz que lembra dos
companheiros presos e mortos, e isso lhe dá forças para continuar. Ao fim dessa
cena, ambos decidem que Lúcia participará da ação do banco como uma
“despedida” e depois ficará na retaguarda da organização. O compromisso com os
demais companheiros e com a causa se sobrepõe aos anseios individuais, numa
construção um tanto heróica dos militantes.
30 Mesmo que o denunciassem a identidade falsa, pouco poderiam fazer contra Correia, visto que a lei da anistia como já foi dito, isentava de responsabilidade judicial tanto os opositores do regime, quanto seus agentes repressores.
54
Já no hotel Paulo vai ao quarto de Miguel para dirimir o conflito. Na conversa
entre os dois, fica clara a amargura de Miguel com o passado, quando ele diz: ”Eu
só tenho a minha raiva, sem ela não me resta nada”. Paulo lembra da tortura, que é
demonstrada através de flash backs dele sendo colocado na cela nu, por dois
policiais. Paulo diz que Correia o ensinou que quando se é torturado, é possível
“morrer todo dia”, em uma referência ao trauma psíquico, a “morte psicológica” que a
tortura causa.
Apesar de contrariarem Miguel na sua proposta de vingança, e de dizerem a
ele que está obcecado por isso, os outros três amigos acabam seguindo-o na
investigação para encontrar Correia, o que parece deixar claro que não estão tão
seguros de sua decisão de esquecer o passado. Assim acompanham Miguel até o
cemitério onde estaria enterrada a mulher de Correia, e obtendo a confirmação da
transferência dos restos mortais, concluem que Correia está vivo, pois ele seria o
maior interessado em efetuar a transferência.
Diante disso passam então a procurar Correia, baseados na pista de que ele
gostava de todo tipo de jogo. Primeiro num bar onde se joga sinuca, mas não
conseguem encontrá-lo. Guiados então por um morador local vão até a uma rinha de
galos próxima da pequena cidade onde estão. Alguns instantes após chegarem na
rinha, enxergam de longe Correia a beira da arena onde os galos duelam. Os flash
backs são usados pelo diretor como a lembrança terrível da tortura e da prisão. Ao
rever Correia Osvaldo se mostra muito abalado, e têm um misto de lembrança e
delírio diante do passado assombroso, nas imagens do assalto ao banco, da tortura
e do “vôo da morte” sobre o mar. Miguel relembra através também do flash back de
Correia, ao final de uma sessão de tortura, dizendo a ele que sua namorada está
morta, e que se Miguel não colaborar poderá ter o mesmo fim. Correia justifica suas
atitudes dizendo que estão vivendo uma guerra. Essa é uma justificativa recorrente
por agentes da repressão, para as violações dos direitos humanos, pois estes
estariam defendendo o país do comunismo, que seria um perigo iminente.
Um elemento que contribui para a rememoração da tortura é o entusiasmo
que Correia tem em torcer por seu galo na briga. O gosto por tal atividade
representa de certa forma o sadismo do torturador. Apesar de justificar seus atos
pelo cumprimento do dever, e pelo país estar passando por uma guerra, o gosto de
Correia evidencia um prazer pela violência, pela destruição do outro.
55
Os quatro amigos prosseguem no seu caminho tortuoso rumo ao encontro
incerto com o passado. Seguem Correia quando este vai embora da rinha, e
descobrem o sítio onde ele vive. Á beira da estrada de chão, começam a discutir o
que fazer, agora que têm a certeza de que ele está vivo, e sabem onde encontrá-lo.
Quando questionado sobre o que pretende fazer com seu antigo algoz, Miguel diz
planejar matá-lo. Dá-se então entre os quatro amigos uma discussão sobra a
legitimidade ou não de tal atitude, que culmina com a desistência de Osvaldo. Este
que parece desde o começo o mais perturbado com as lembranças da tortura se
nega a impetrar a vingança. Argumenta que Correia assim como ele e os demais
foram anistiados, para ele o passado estava resolvido. Miguel insiste que de sua
parte Correia não está anistiado, outra referência direta ao fato de a lei da anistia
não ser suficientemente satisfatória para quem sofreu nos porões do regime.
A essa altura se faz necessária uma reflexão sobre as motivações específicas
de Miguel. Suas atitudes demonstram um tipo de “revanchismo”, expressão já citada
anteriormente que qualifica aqueles que buscariam não justiça, mas vingança
simplesmente. Isso fica ainda mais evidente quando ele diz que o que está fazendo
não tem nada haver com política, e se trata de uma vingança pessoal sua, e que
pensou que tivesse relação com seus amigos que sofreram a mesma dor.
Contudo a expressão revanchismo é mais comumente usada numa tentativa
de esquecer essa memória incômoda (Reis Filho, 2000) dos que praticaram tortura e
dos que colaboraram com regime de alguma forma. A expressão evidencia ainda
uma aversão total ao debate relativo ao período, bem como uma aversão ao direito
de reparação dos que tiveram suas vidas prejudicadas. E destaca muito mais o
temor da responsabilização perante a justiça dos torturadores e colaboradores, do
que o medo que atitudes como as de Miguel se tornem reais. Na verdade o que o
filme demonstra é que a atitude de Miguel é motivada justamente pela falta do acerto
de contas com o passado como uma política de estado. Não basta que as vítimas da
tortura, ou seus familiares no caso dos que morreram, tenham recebido valores
razoáveis em indenizações pelos danos causados. Isto não parece um mea culpa
suficiente por parte do estado, quando se teve a vida tirada, ou se originaram
traumas físicos e psicológicos que perduram pelo resto da vida. O que pretende o
filme de certa forma é cobrar não só a responsabilidade do estado como instituição,
mas cobrar principalmente a responsabilidade daqueles que praticaram a violência
como instrumento político em nome desse estado.
56
Chega um momento crucial na história do quatro amigos. Diante da
desistência de Osvaldo, Miguel sabatina os amigos com a condição de que quem
seguir com a vingança não poderá desistir depois. Será um caminho sem volta,
como o que eles tomaram quando optaram pela luta armada. Eles seguem para a
rodoviária onde deixam Osvaldo. Em derradeiro ultimato Miguel diz a Osvaldo que
este desistiu não pela sua consciência, mas por estar com medo.
O grupo de amigos, agora três, partem para execução de seu plano de
vingança. Simulam um problema mecânico no carro para atrair Correia que passava
com sua caminhonete. Ao parar para ajudá-los, Correia é rendido e levado para o
meio do mato pelos três. Miguel diz a Correia que sabe quem ele realmente é e
porque eles estão ali. Primeiramente, Correia nega insistentemente seu passado,
dizendo que os três estão enganados.
Abre-se então um ciclo de violência ilimitada quando Miguel dá um tiro em
Correia para forçá-lo admitir seu passado. A violência da qual os quatro foram
vítimas, agora é usada para obter a confissão de seu algoz e conseqüentemente a
vingança. Correia então confessa seu passado de torturador, se justificando com o
já conhecido argumento de que suas atitudes no passado estavam inseridas no
contexto da guerra que o país vivia, e que o lado da oposição havia perdido tal
guerra. Correia revela então para surpresa dos três que só conseguiu prendê-los
graças à colaboração de um deles, e como prova do que está dizendo, lembra-os
que eles chegaram com uma hora de atraso no assalto. Miguel insiste para que ele
conte quem foi o “traidor”, mas Correia nega-se, dizendo-lhe que isto Miguel terá de
descobrir sozinho.
Terminada a vingança contra Correia quando Miguel dispara pela segunda
vez matando-o, o objetivo de Miguel passa a ser descobrir quem foi o traidor. Aponta
arma para Elói e para Paulo que negam saber do que Correia estava falando. Miguel
então conclui que o traidor é Osvaldo, pois se lembra que o grupo se atrasou para o
assalto por estar esperando Osvaldo. Além disso, Osvaldo foi o que mais refutou a
vingança desde o início. Miguel então pega o carro e vai em direção a rodoviária.
Elói e Paulo pegam a caminhonete de Correia e seguem Miguel para tentar
impedi-lo de se vingar de Osvaldo também. Na caminhonete Elói confessa que foi
ele quem os entregou, pois Correia havia seqüestrado seu pai, e ele ficou sem
escolha (situação que já havia sido demonstrada em flash back). Ao saber da traição
de Elói, Paulo reprova sua atitude e cobra o dever moral com os companheiros que
57
Elói transgrediu. O rancor de Paulo se dá ainda pela percepção de que Elói
provavelmente não foi torturado por ter colaborado com Correia: “todo mundo se
fudeu, menos você”.
Aqui o filme se vale de um código de representação clássico da violência no
cinema holywodiano31. Tal código supõe que quando alguém inicia um ciclo de
violência para atingir um objetivo qualquer que pode ser a vingança, a violência foge
ao controle de seu causador inicial, e se finda com desdobramentos trágicos e
residuais para todos os envolvidos nesse ciclo. Assim no nervosismo da discussão
entre Paulo e Elói, o primeiro perde o controle da caminhonete que cai em um
abismo. Paulo fica desacordado, e parece estar morto. Elói está consciente e
consegue sair da caminhonete e chegar até a estrada. Lá ele rouba o carro de um
motorista que havia parado para socorrê-los e segue para a rodoviária na tentativa
de impedir que Miguel cometa a injustiça de matar Osvaldo.
Ao chegar a rodoviária Elói percebe que é tarde, pois Miguel já matou
Osvaldo e está sendo algemado por policiais. O olhar de resignação de Miguel para
Elói sem saber que este era quem na verdade havia entregado o grupo para Correia,
causa a suposição de que Miguel está conformado, pois conseguiu obter sua
vingança, ou como ele mesmo disse, “terminou o que havia começado a vinte e
cinco anos atrás”.
O acerto de contas com o passado, e o confronto com a memória se encerra
da pior maneira possível, com Osvaldo e Paulo mortos, Miguel preso e Elói com a
culpa de ser o responsável em grande medida por tudo aquilo que aconteceu, como
se já não bastasse a culpa por ter entregado seus amigos vinte e cinco anos atrás.
A vingança que Miguel pensava ser a única maneira de pacificar sua memória
e voltar a viver plenamente, fecha o ciclo em que joga a todos em um abismo. A
violência aqui que é o instrumento da vingança, ao invés de obter a justiça, como
pensava Miguel, causa a injustiça da morte de um inocente, já bastante penalizado
por tudo que viveu no passado da tortura.
A falta do estado como mediador do conflito e reparador de um passado mal
resolvido, do qual este estado é responsável, é a grande questão sucitada pelo filme
de Brant. Fica demonstrada pelo filme que se faz necessária uma reparação do
31 Um exemplo de filme nessa linha é “Um dia de fúria” de 1993 do diretor Joel Schumacher, mas há elementos desse tipo de representação da violência em outras obras do próprio Beto Brant como no filme “O invasor” de 2001 ou “Os Matadores” de 1997.
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ponto de vista da justiça legal no estado de direito, que perpasse pela revisão da lei
da anistia. Não pelo risco improvável de alguma vítima da tortura converter-se em
justiceiro. Mas principalmente porque esta reparação pode resolver esta dívida
histórica, e trazer alento aos muitos que ainda “morrem todos os dias” vítimas do
trauma da tortura, como disse o personagem Paulo.
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Conclusão
A ditadura militar no Brasil de forma geral é um tema que ainda têm a
necessidade de análise para ser mais bem compreendido. Muitas são as produções
acadêmicas que se deram a esse objetivo com grande competência. Também o
cinema foi um meio que buscou a sua maneira trazer de volta esse passado recente.
A intenção deste trabalho foi observar alguns aspectos presentes nesse olhar
do cinema nacional recente sobre o período, e conseqüentemente compreender a
forma que a ditadura vem sendo representada em um meio de comunicação de
massas com amplas possibilidades de influenciar o debate sobre o assunto.
Foram analisados dois filmes que a nosso ver, representam importantes
aspectos relativos ao período e as suas conseqüências, bem como o peso do
presente na maneira como estes lançam olhar ao passado.
O filme de Bruno Barreto narra um fato verídico de uma forma bastante
crítica às posturas dos grupos de esquerda da época. Motivo de controvérsia
quando de seu lançamento por trazer uma visão que seria conciliadora com o
passado, o filme faz um esforço no sentido de entender as motivações de dois pólos
envolvidos na disputa política, através de seus extremos, o governo através dos
agentes da repressão, e a oposição através dos militantes da luta armada. Mais do
que as razões políticas que ficam como pano de fundo, o filme centra sua
abordagem nos dilemas e contradições pessoais dos personagens envolvidos,
opção que de certa forma decorre de paradigmas atuais de entendimento que tem
como uma marca a perca da força de grandes ideologias políticas coletivas e
redentoras. A visão conciliadora se faz presente em muitos aspectos como, por
exemplo, os momentos em que o torturados tem crises de consciência pelos atos
cometidos, atos que ele justifica pelo cumprimento do dever, e pelo medo do
comunismo, o que pode sugerir uma idéia de que ele é também uma vítima das
circunstâncias. Porém não entendemos que a conciliação seja a única lógica que se
possa extrair do filme, visto que este demonstra as violências cometidas pela tortura,
principalmente na cena final em que ficamos sabendo que dois dos militantes do
grupo foram mortos e uma aparece de cadeira de rodas. Também a construção um
tanto glamourizada de alguns militantes, podem contribuir para uma representação
destes como heróis do passado recente.
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Outro ponto digno de nota nesse aspecto é o fato de o filme, na época de seu
lançamento, ter sido muito criticado também por remanescentes das forças armadas,
especialmente no que estes setores qualificam como “transformação de terroristas
em heróis”, o que demonstra que ainda que o filme tenha um tom conciliatório,
desagrada também a setores que poderiam ser favorecidos com essa conciliação.
O segundo filme analisado, do diretor Beto Brant aponta a nosso ver, numa
questão mais espinhosa, mas que tem ganhado força recentemente no debate
político nacional. A possível revisão da lei da anistia de 1979, que recentemente foi
objeto de discussões apaixonadas de ambos os lados envolvidos nas contendas do
regime militar. Ao contar a história de um grupo de amigos ex-guerrilheiros que se
reúnem para perpetrar vingança contra seu antigo torturador, o filme sugere que a lei
da anistia não conseguiu fechar a ferida aberta pelas torturas, prisões e execuções
durante os anos de chumbo. Pode-se destacar que a lei da anistia foi instrumento
encontrado para isentar todos que cometeram atos de violência como instrumento
da política, fossem da parte do governo ou da oposição. Porém esse argumento
perde muito da força, ao lembrarmos que enquanto alguns militantes morreram, ou
ficaram traumatizados pelo resto de suas vidas, os torturadores em sua maioria
tiveram uma aposentadoria tranqüila garantida pelos “bons serviços prestados a
nação”. Outra questão que não pode passar despercebida é a de que a violência e a
tortura não foram empregadas somente contra os militantes da luta armada, mas
contra todas as pessoas que por algum tipo de oposição ao governo, se tornaram
alvo da repressão.
Dito isto, a saída ocasionada pela anistia, nos parece muito mais
conseqüência de uma abertura política controlada pelos próprios militares, e que
impuseram a esta a velocidade e as condições que lhe eram convenientes.
O fato de estarmos a uma distância temporal relativamente pequena do fim da
ditadura, é uma das razões que tem influenciado as análises e posicionamentos
sobre o regime. Muitos dos agentes envolvidos no processo político (1964-1985)
ainda fazem parte da cena política nacional. Decorre disso que estes tem uma
influência decisiva no que se refere tanto à disputa pela memória do período, quanto
a possíveis ações de reparação por parte do Estado, pela violência usada como
instrumento da política por esse, pois essa disputa pela memória pode ressaltar
questões ainda não resolvidas, e influir decisivamente no debate relativo a elas.
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Alguns pontos pendentes em relação principalmente à reparação do estado
pelos crimes cometidos em nome da segurança nacional, bem como a reflexão de
setores que optaram por um tipo de ação política radical, em um contexto de grande
popularidade das ideologias socialistas. Ainda dentre da idéia de reparação, a
questão dos desaparecidos políticos, sua localização e o reconhecimento da
responsabilidade do poder público por suas mortes, é outro ponto espinhoso, que
ainda há que ser solucionado.
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