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  • Departamento de Geografia da FCT/UNESP, Presidente Prudente, n. 14, v.1, janeiro a junho de 2014, p. 1-16.

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    ROTATIVIDADE EM ASSENTAMENTOS RURAIS NO MUNICPIO DE PADRE BERNARDO-GO

    ROTATIVITY IN RURAL SETTLEMENTS IN THE CITY OF PADRE BERNARDO GO

    Marcelo Leles Romarco de Oliveira1

    Resumo: Este estudo fruto de uma pesquisa conduzida em quatro assentamentos rurais localizados na regio P de Serra, municpio de Padre Bernardo, estado de Gois, regio do Entorno do Distrito Federal (DF), entre os anos de 2001 a 2007. Como objetivos gerais, o artigo apresenta a rotatividade em assentamentos rurais nessa regio. A metodologia utilizada foi o estudo de caso, a observao e anlise do dia a dia nos assentamentos, alm das entrevistas semiestruturadas, que permitiram entender a dinmica de rotatividade nos assentamentos pesquisados. Como resultados foi possvel concluir que aps a conquista da terra, outros desafios surgiram para o grupo, tais como: os desafios da falta de infraestrutura, de recursos, convivncia com pessoas de origem diferentes e os problemas relativos adaptao em um outro espao. Por causa desses elementos, muitos desistem e voltam para as cidades satlites do Entorno do DF. Nesse sentido, possvel concluir que o assentamento pode ser visto como um ponto final relativo para essas famlias, uma vez que ele pode ou no garantir alguma permanncia desses atores nesse espao. Palavras chaves: Distrito Federal; Assentamentos rurais e Rotatividade. Abstract: This study will focus on research conducted in four rural settlements in the region P de Serra, a municipality of Padre Bernardo, Gois State, the region surrounding the Federal District (DF) between the years 2001 to 2007. As general goals, the article will examine the rotativity in rural settlements in this region. The methodological approach used was a case study, observation and analysis of everyday life in the settlements, in addition to the interviews, allowed him to understand the dynamics of rotativity in the settlements surveyed. Throughout the work we concluded that after the conquest of land, other challenges emerge for the group, such as the challenges of lack of infrastructure, resources, interaction with people of different origin and the problems of adaptation in another space. Because of these factors, many give up and go to another space. Thus, it is possible to point out that the settlement can be seen as an end point relative to these families, since it may or may not guarantee any of these people stay in that space. Key-words: Federal District, Rural settlements and Rotativity.

    1 DSc. em Cincias, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Professor de Extenso Rural do

    Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viosa, MG (Brasil). E-mail: [email protected]

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    Introduo

    A rotatividade em assentamentos rurais uma questo polmica ao tratarmos do tema reforma agrria. possvel afirmar que, aps a luta por conquistar a terra, outros desafios surgem para as famlias. So eles: a luta para permanecer na terra, a falta de infraestrutura, e de recursos econmicos, a convivncia com pessoas de origem diferentes e os problemas relativos adaptao em um outro espao. Por causa desses elementos, muitos assentados desistem, vendem e partem para outro lugar havendo assim uma rotatividade nos assentamentos rurais.

    Nesse sentido, este artigo tem o objetivo de procurar descrever e analisar o fenmeno da rotatividade em quatro assentamentos da regio P de Serra no municpio de Padre Bernardo, estado de Gois, regio do Entorno do Distrito Federal (DF). Neste trabalho o termo rotatividade utilizado para se referir ao movimento de sada das famlias assentadas destes territrios, abarcando elementos tais como: evaso, venda, campo de possibilidades, entre outros.

    Ressalta-se que um dos principais desafios de se traar uma aproximao sobre a temtica da rotatividade nos assentamentos, est relacionado falta de um levantamento de dados precisos que apontem para essa situao. De acordo com tcnicos do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) lotados na Superintendncia do Distrito Federal e Entorno (SR-28), at o momento da finalizao da pesquisa (ano de 2007) no havia qualquer estatstica que pudesse apontar com preciso esse percentual de rotatividade no municpio de Padre Bernardo-GO. No entanto, ao percorrer os assentamentos como pesquisador que j conhecia a regio h alguns anos, pde-se perceber este fenmeno, sobretudo, pela presena de novos moradores e, pelo encontro de chcaras2 fechadas e/ ou a venda.

    Destaca-se que no pretendo fazer generalizaes dessa situao para as demais regies do Brasil e que sero apresentados alguns mecanismos de rotatividades nos assentamentos estudados no municpio de Padre Bernardo-GO. Metodologia

    Um dos caminhos escolhidos para a pesquisa foi a observao e anlise do dia a dia, alm das entrevistas semiestruturadas, que permitiram entender a dinmica da rotatividade nos assentamentos pesquisados. O perodo de coleta dos dados foi entre os anos de 2004 a 2006, tendo como recorte emprico da pesquisa quatro assentamentos rurais no municpio de Padre Bernardo, estado de Gois, a cerca de 100 km de Braslia, na mesorregio do leste goiano e na microrregio do entorno do Distrito Federal, como pode ser observado na Figura 1.

    2 O termo chcara utilizado pelos assentados da regio para definir a parcela de terra, maior que um lote e menor que uma fazenda. O suficiente para produzir para a famlia e vender o excedente. Essa classificao se deve influncia dos tempos em que moraram em Braslia, pois a maioria dos assentados da regio, antes de terem sido assentados nas reas, foram caseiros em chcaras de Braslia (OLIVEIRA, 2007).

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    Figura 1. Localizao do municpio de Padre Bernardo Fonte: OLIVEIRA, 2007

    No municpio de Padre Bernardo, at o ano de 2007, existiam oito

    assentamentos, sendo quatro localizados na regio P de Serra: Vereda I, Vereda II, Boa Vista e gua Quente, onde ocorreu a coleta dos dados. Estes assentamentos, so frutos da luta pela terra na regio deflagrada no final do sculo XX. Nestes quatro assentamentos esto assentadas cerca de 450 famlias. No Quadro 1 logo abaixo so apresentados os assentamentos pesquisados.

    Quadro 1. Nmero de famlias e reas dos assentamentos no P de Serra

    Assentamentos Nmero aproximado de

    Famlias

    rea (ha) Tamanho mdio de cada chcara em ha

    Data da desapropriao

    gua Quente

    66 2829,3041 28 17/12/1998

    Boa Vista 145 4380,0339 15-17 17/12/1998

    Vereda I 70 2063,7800 20 21/12/1999

    Vereda II 163 3760,7900 12-15 23/08/2000

    Total 444 13033,91

    Fonte: Superintendncia do INCRA do entorno e DF (SR 28), 2006, elaborado por OLIVEIRA (2007).

    Como foi dito anteriormente as entrevistas semiestruturadas foram as principais formas de coleta de dados, por acreditar que seria possvel perceber as expresses, tenses e estratgias, bem como os mecanismos que orientam o comportamento dos atores nesses espaos. Para tanto, foram entrevistadas 20

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    famlias: sete no assentamento Vereda I, cinco no assentamento Vereda II, quatro no assentamento Boa vista e quatro no assentamento gua Quente. As perguntas versavam, principalmente, sobre o processo de negociao compra e venda das chcaras e a relao com os assentados que as compraram. importante destacar que alm das entrevistas o pesquisador participou dos espaos de convivncia - reunies, assembleias, cultos religiosos e festas - durante o perodo em que esteve presente nos assentamentos.

    Rotatividade pelo problema da falta de infraestrutura

    Na regio, aps meses e anos debaixo de lona, algumas famlias que

    conseguiram as chcaras, venderam-nas, e muitas voltaram para Braslia. Segundo narrativas dos entrevistados a venda e o abandono dessas chcaras ocorreram principalmente nos trs primeiros anos de formao dos assentamentos, sobretudo, logo aps a sada dos crditos de habitao e do crdito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar nas modalidades Pronaf A e Pronaf A/C3.

    No entanto, a falta de infraestrutura - gua, energia eltrica, estradas, entre outros - apontada como um dos principais motivos para as vendas das parcelas. Voc v a gente est aqui h quase seis anos e at hoje vivemos o problema de falta da gua, a terra no boa para produzir, e o que produz mal d para o gasto. Ento o sujeito que no muito animado faz o que? Vende e volta para a cidade (ASSENTADO, VEREDA I, 2006).

    Na fala do assentado possvel observar que o problema de falta de infraestrutura apontado como a maior causa de abandono. E entre as causas, tem-se a deficincia com o abastecimento de gua ou at mesmo sua escassez, sendo o problema mais difcil que os assentados enfrentam.

    Por ser um bem pblico, a gua de todos e deve ser utilizada de acordo com os interesses comuns da sociedade. Entretanto, a realidade encontrada na regio do estudo bastante diferente, ou seja, no h gua em quantidade e qualidade suficientes para suprir as necessidades bsicas locais.

    Com efeito, na regio, o problema da escassez de gua at para o consumo humano tornou-se um dos principais desafios das famlias ao serem assentadas. Por isso, o impedimento de se viver nos assentamentos creditado s dificuldades em conseguir que a gua chegue at as casas.

    Constatamos na pesquisa que os assentados que moram longe das fontes de guam precisavam andar distncias grandes para levar gua do chafariz at as casas, um servio penoso e s vezes caro. Em alguns casos, so pagos cerca de R$ 10,00 por dois tambores de 200 litros (valores do ano de 2007).

    Essa situao foi retratada durante a realizao do Plano de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDA) Vereda I e Vereda II, no incio dos assentamentos, em que os assentados colocavam que um dos principais desafios que enfrentavam era o problema referente dificuldade de viver num local com escassez de gua.

    Em fevereiro de 2006, em uma audincia pblica realizada na escola do assentamento Boa Vista, que trataria do Programa Luz Para Todos do Governo Federal, um dos principais questionamentos dos assentados aos tcnicos do Incra e

    3 Esses crditos esto inseridos nas modalidades do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar destinado a investimentos e estruturao de propriedades e beneficirios assentados da reforma agrria ou beneficiados pelo crdito fundirio (OLIVEIRA, 2007).

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    ao superintendente era justamente o problema referente gua que, mesmo depois de quase oito anos dos assentamentos criados, persistia.

    Os assentados acusavam as empresas que eram responsveis por fazer os poos artesianos que o trabalho no tinha sido feito direito, pois alguns poos tinham sido furados em declividades que no favoreciam a queda dgua at as casas. O superintendente rebateu que estava cuidando da situao, mas que os assentados deveriam ter a responsabilidade de acompanhar o servio das empreiteiras.

    Alm do problema da falta de gua para o consumo humano, um outro problema se refere prpria gua para plantio. De acordo com os entrevistados, os assentados acabam ficando merc do tempo, dependendo quase que exclusivamente do perodo das chuvas para os plantios.

    Outro problema relacionado com a questo da gua, antes da chegada da energia eltrica (em 2006), foi manuteno dos poos artesianos, cujas bombas eram movidas a diesel, e quase sempre paravam de funcionar por falta do combustvel. No assentamento Vereda I, os assentados resolveram organizar uma lista para contribuies que girava em torno de R$ 20,00 mensais (em 2004) para a compra do combustvel, no entanto, poucos pagavam.

    No caso do assentamento Vereda I essa lista da compra do diesel ficava afixada em um bar do assentamento para que todos os assentados pudessem acompanhar quem fazia as doaes. Alm da vaquinha para a compra do combustvel, outra forma de conseguir diesel era em negociao com a prefeitura que s vezes fornecia o produto para a manuteno dos poos. Alm disso, a prefeitura passou a pagar um assentado para que ficasse responsvel pela manuteno das bombas dos poos artesianos. Rotatividade pela dificuldade de adaptao ao novo espao

    Alm da falta de infraestrutura, outro entrave foi o problema de adaptao na

    terra. Nesse sentido, os entrevistados relataram que no tinham experincia em cultivar terras do cerrado, pois vinham de diferentes regies do pas, como o Nordeste.

    Outra questo apontada pelos assentados para que algumas famlias desistissem das chcaras estaria relacionada dificuldade em viver num modelo de comunidade construdo com atores vindos de vrios lugares e com a imposio de regras. Isso tem provocado conflitos das mais diversas naturezas, o que tem servido de estmulo para a desistncia da chcara.

    Nesse sentido, Mello (2006), ao estudar a evaso em assentamentos do Rio Grande do Sul, conclui que a desagregao de laos sociais por conflitos se tornaria elemento essencial para entender o problema da venda e o abandono dos lotes em assentamentos rurais. Outros autores como Bruno (1998), Medeiros (1998) e Zimmermann (1989), tambm j haviam apontado os conflitos de cunho organizativo, de convivncia e at pessoal como elementos que podem estimular a evaso nos assentamentos rurais.

    J para autores como Marques et al. (2002), a sada ou abandono das parcelas ocorreria, principalmente, na fase de implantao dos assentamentos. Ou seja, ao trmino dos dois primeiros anos. Isso ocorreria por causa da falta de adaptao dos assentados parcela, alm da falta de experincia no trabalho agrcola e da dificuldade de adaptao no novo espao.

    Na regio de P de Serra, como a maioria dos assentados tinha passado uma parte de suas vidas na cidade (Braslia) e l tinham desenvolvido atividades

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    consideradas urbanas, portanto, havia muitos anos que no tinham contato com a terra, essa explicao pode ajudar a entender por que no estavam preparados para essa nova realidade de trabalho. No entanto, isso no quer dizer que eles no estivessem aprendendo e tocando suas chcaras.

    Alm da dificuldade de adaptao a um novo ecossistema, eles reconhecem que a experincia com a roa se deu principalmente na poca de infncia e de certa forma esse primeiro contato se restringiu a modelos de produo semimecanizados.

    Tambm o que pesa nessa anlise o desconhecimento da reforma agrria. Principalmente no que diz respeito a crditos, pagamentos e negociao das dvidas. Alm disso, a assistncia tcnica no foi adequada e no acompanhou os assentados durante a implantao de seus projetos, o que acabou dificultando as formas de produo pretendidas.

    Na viso dos assentados, outro elemento referente falta de experincia com a terra e com a reforma agrria diz respeito falta de compromisso do Incra ao assentar famlias em lugares imprprios para agricultura. Onde h escassez de gua ou que requeiram grandes investimentos.

    No entanto, os entrevistados reconhecem que acabou existindo ingenuidade por parte deles em aceitar essas terras ruins ou necessitadas de grandes investimentos para produzir.

    Sobre a questo da falta de compromisso do Incra, em julho de 2001, ouvi de um tcnico4 que o rgo central tinha estipulado metas para as superintendncias. Por conseguinte, no importavam a capacidade ou as condies das fazendas desapropriadas. A estratgia era assentar o maior nmero possvel de famlias sem que estes pontos fossem levados em considerao. Essa poltica do quanto mais melhor fez com que muitas chcaras fossem localizadas em ambientes imprprios para agricultura, por mais tecnificada que ela fosse sujeita.

    No assentamento Vereda II, chegou-se ao absurdo de chcaras serem formadas com grande parte de sua rea com grau de declividade maior que 90o, onde seria quase impossvel produzir qualquer cultura ou at mesmo criar algo. Como bem diz um assentado, na parcela dele no dava para criar nem Calango.

    importante ressaltar que antes de irem para o acampamento a maioria dos assentados no eram produtores. Muitos deles estavam desempregados e tinham o sonho de chegar ao assentamento e ganhar muito dinheiro com a terra. Hoje que estamos entendendo o que ser agricultor (ASSENTADO DO BOA VISTA, 2007).

    Contudo, a falta de experincia com a terra no desmotivou aqueles acampados em participar das ocupaes. Isso me faz refletir que a questo da reforma agrria surgiu para esses assentados como mais um campo de possibilidades dentro de um contexto de dificuldades em que se encontravam quando entraram na luta, independentemente da prtica de lidar com a terra.

    Por outro lado, morar no assentamento, mais do que ter um local para viver, significa ter um espao para viver e criar a famlia, objetivo que buscaram ao longo de suas vidas. Nesse caso, mais que um espao para morar, o assentamento surge como um espao em que podem deixar suas razes para as geraes futuras e at mesmo uma herana para os seus filhos.

    A vontade de construir um espao para viver, deixar de herana e nele produzir algo latente naqueles assentados que ainda esto nos assentamentos. Para eles, a chance de ter acesso terra possibilitou a realizao de aspiraes como sonhar com nossas criaezinhas, o que na cidade seria mais difcil por causa

    4 Por questes de sigilo de informao optei por omitir o nome do tcnico informante.

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    das condies financeiras em que viviam. Ou, at mesmo pela falta de escolaridade e idade avanada, o que dificultaria no momento de conseguir uma recolocao no mercado de trabalho. As chcaras dentro do mercado de terras do Distrito Federal

    Para entender a rotatividade nos assentamentos da regio, preciso

    perceber que, alm dos problemas referentes falta de infraestrutura nos assentamentos ou de adaptao do assentado ao novo ambiente, as vendas das chcaras podem estar relacionadas com um instrumento local que adentra o cotidiano da regio desde o perodo da construo de Braslia: as ocupaes de lotes em cidades satlites de Braslia e o mercado da grilagem de terras no DF.

    Portanto, alm dos elementos que podem ser considerados mais tcnicos e de falta de infraestrutura, outros fatores podem ser apontados como condicionantes que levam os assentados a venderem suas chcaras. Estes seriam a especulao imobiliria e a grilagem de terras, comuns na regio do Distrito Federal. Esta ltima incentivada e acobertada por determinados governos locais.

    Para entender um pouco esses mecanismos, recorro aos estudos realizados por Borges (2004) e por intermdio de relatos dos assentados da regio, buscando entender como funciona esse mercado de venda de terras muito comum nos assentamentos da regio.

    Esse olhar sobre a negociao das chcaras se revelou uma estratgia adotada pelos assentados que foram ocupar terras na regio. O que significa que o trinmio ocupar - conseguir - vender era uma estratgia j bem conhecida, pois muitos j haviam participado de ocupaes de lotes no Distrito Federal em cidades satlites, como: Recanto das Emas, Samambaia, Brazilndia, entre outras. Nos relatos foi muito comum ouvir histrias de assentados que tinham conseguido o lote em uma dessas cidades e posteriormente vendido, procurando ocupar outro local.

    Nesse sentido, Borges (2004), em seu estudo na cidade satlite do Recanto das Emas, observou que essa prtica de ocupar e vender o lote fazia parte do cotidiano dessa regio. Assim, muitos, depois que conseguem o lote, vendem-no e voltam para baixo da ponte at ocupar outro lugar.

    Essa explicao ajuda a entender que essa prtica de certa forma faz parte de uma estratgia de sobrevivncia de muitas famlias que migraram para o entorno do Distrito Federal buscando em seu cotidiano conseguir uma moradia.

    Alm disso, a autora aponta que esse estratagema serve tambm para o interesse de polticos do Distrito Federal e entorno que ganham com essa expanso territorial e populacional, uma vez que essas famlias so obrigadas a transferir seus ttulos eleitorais para esses novos domiclios. Aquele que se interessasse em participar da corrida por um lote deveria ser eleitor do Distrito Federal, ou seja, possuir seu ttulo de eleitor na capital (BORGES, 2004, p. 32).

    Assim, a transferncia dos ttulos eleitorais seria um requisito (incluso nas entrelinhas) exigido pelas normas para contar o chamado Tempo de Braslia (BORGES, 2004).

    Os assentados entrevistados relataram que tinham vindo para Braslia porque se ganhava lotes do governo do DF em cidades satlites. No entanto, um dos requisitos para pleitear os lotes era que o candidato provasse que seu colgio eleitoral se localizava em Braslia. Por isso ainda hoje os assentados mantm seus ttulos eleitorais na capital federal.

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    Outrossim, recebem benefcios do governo do DF. Sabe, tem muita gente que ainda tem esses negcios de bolsa escola, alguma coisa, a no transfere porque se transferir vai perder o benefcio que a famlia ganha (ASSENTADA DO VEREDA I, 2004).

    Na percepo dos entrevistados, os lotes que o governo dava seriam uma ddiva que os governantes locais ofereciam. No entanto, presumiam que iriam pagar apenas uma parcela pequena.

    Era dado porque era muita gente querendo e s alguns ganhavam como um concurso, muitos se inscrevem e poucos passam. Aqui na terra [assentamento] tambm foi assim, tinha muita gente acampada e s esses que voc esta vendo que conseguiram (ASSENTADO DO VEREDA I, 2004).

    O significado de dado importante porque mostra a relao caracterstica

    entre governo e populao local, ou seja, uma relao de clientelismo baseada na troca de favores entre os assentados que recebiam os lotes com os polticos locais. Assim, o lote dado torna-se dvida de gratido para com o doador, mesmo que a pessoa que tenha ganhado o lote pague por ele. Para Borges (2004), essa relao entre o lote que ofertado para aquele que o deseja seria o que animaria a participao das pessoas na vida poltica da regio.

    Gouva (1998) chama ateno que a estratgia de distribuio de lotes nas cidades satlites do Distrito Federal, como o Programa Promorar, estava atrelada a interesses eleitoreiros e de desmobilizao de movimentos de trabalhadores que buscavam melhores condies de habitao.

    Com efeito, programas dessa natureza, que visavam suprir a escassez de habitao, tornaram-se um grande esquema eleitoral que estabeleceu uma relao entre polticos e moradores carentes, sendo visto como uma grande moeda eleitoral. Em 1989, um ano antes da primeira eleio direta para governador e Assembleia Distrital, a populao carente significava votos, e a terra pblica em mos do governo se tornara uma importante moeda eleitoral (PELUSO, 2003, p.18).

    Peluso (2003) aponta que a oferta de moradias nas cidades satlites do DF no final da dcada de 1970 e incio de 1980 foi um grande incentivo s migraes para Braslia. A cidade, prevista para abrigar 500 mil habitantes, chegou ao ano 2010 com cerca de mais de dois milhes e meio de habitantes. De acordo com o IBGE so 2.562.963 conforme os dados do Censo Demogrfico de 2010.

    Esse aumento da populao de forma desordenada favoreceu a favelizao no DF. Esse crescimento populacional tem provocado impactos na oferta de emprego, habitao, meio ambiente e na qualidade de vida da maioria das pessoas residentes na regio. Alm disso, essa situao contribui para o aumento das ocupaes, o que gerou disputas e conflitos de terras na regio.

    Na poca de acampamento (em 1998), os assentados achavam que no caso da reforma agrria o processo seria o mesmo. Por isso entraram na ocupao achando que passariam por um processo semelhante ao executado no processo de seleo dos candidatos a um lote nas cidades satlites de Braslia. Em outras palavras, entraram na luta pensando que logo que tivessem conseguido a chcara, poderiam negoci-la como bem entendessem.

    Durante as entrevistas, foi possvel perceber que em diversas situaes os assentados no DF tinham utilizado a estratgia de tirar lotes em vrios lugares utilizando o nome de parentes prximos que tivessem mais tempo de Braslia.

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    No caso da concesso das chcaras, muitos usaram o nome de esposas ou de outro parente de confiana para que isso acontecesse, pois sabiam que poderiam ter algum problema caso o Incra investigasse as suas condies. Como, por exemplo, serem funcionrios pblicos, empresrios ou at mesmo terem passagem pela polcia. No trecho de uma entrevista, pode-se perceber a ideia com a qual ocupar e vender seria algo presente no cotidiano dos assentados, como podemos observar no trecho logo abaixo.

    Eu queria saber por que as pessoas venderam as chcaras? M: Eu acho que as pessoas que venderam porque vem pra c com esse plano, porque eles vm s para pegar o dinheiro e sair fora saiu os crditos ai voc j viu. N: igual muita gente faz na cidade, pega os lotes e vende. M: Tem gente que vem aqui pra sofrer no, pra pegar no cabo da enxada no, entendeu? Ento ele vem com aquele propsito, ele fala em pegar a terra, pegar um dinheirinho e depois sai fora, o cara fica com o nome sujo, mas ele no esta nem ai. Que dizer tem muita gente faz isso, N: o pessoal faz igual com carro, voc compra carro sem documento, depois voc passa pra frente e ai vai assim. Ento muitas vezes isso. K: engraado como tem gente que planeja isso n (ASSENTADO DO VEREDA I).

    A resposta do assentado sugere que muitos j tinham a inteno de participar das ocupaes com objetivo de vender as chcaras. Por isso, acredito que procurar entender como se d o processo de negociao das chcaras seria um elemento importante para entender essa dinmica na regio.

    Desta forma, sero apresentados alguns casos representativos para compor um painel da realidade dos assentamentos da regio no que diz respeito ao mercado de terras e prpria negociao como um campo de possibilidades dos assentados. Portanto, essa observao foi composta a partir de elementos que so compartilhados e que se repetem nos assentamentos da regio de P de Serra em Padre Bernardo (GO).

    De antemo, possvel colocar que, apesar das vendas das chcaras serem um negcio ilcito, como bem colocou um assentado, que seria como comprar um carro roubado, ter a chcara no significaria ingerncia sobre a mesma, no sendo legalmente possvel vender a chcara sem a documentao que os assentados ainda no possuem. Isso foi constatado no s pelos relatos feito por eles como tambm pelas denncias perpetradas na Superintendncia do Incra (SR-28), rgo responsvel pelos assentamentos da regio.

    Caso 1: De agregada assentada a moradora na periferia de Padre Bernardo:

    O primeiro caso se refere dona M, viva e agregada na fazenda Serra Feia

    h mais de 20 anos. Vivia plantando feijo, milho, mandioca e tomando conta da fazenda para o antigo proprietrio. Com a desapropriao da fazenda, a senhora M no recebeu indenizao por parte da proprietria. O nico privilgio que ela teve foi que, na hora do sorteio das chcaras, teve a prioridade de escolher em qual parcela queria morar no assentamento Vereda I.

    A chcara de dona M, como as outras, tinha 20 hectares, uma propriedade prxima beira do rio e com uma mina de gua em seu interior, ou seja, uma chcara privilegiada pela disponibilidade de gua potvel oriunda da mina.

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    Pelo fato da propriedade estar prxima ao rio Quente e com a mina de gua, ela passou a ser procurada por interessados em comprar sua chcara. importante ressaltar que, depois da constituio dos assentamentos, especuladores de terra da regio, sobretudo das cidades satlites de Braslia, passaram a frequentar os assentamentos tentando convencer os assentados a vender as chcaras. Em alguns casos, inclusive com a participao de funcionrios pblicos de ministrios de Braslia por ser a regio considerada privilegiada, pois est a pouco mais de 100 km de Braslia, fez com que a corrida por uma chcara de final de semana fosse intensa na regio.

    Cerca de quatro anos depois que o assentamento foi criado, com sua casa de alvenaria construda com a liberao dos crditos, dona M passou a sofrer presso de alguns interessados em comprar sua propriedade. Alm disso, seus filhos passaram a pression-la para que vendesse ou trocasse sua chcara por um negcio.

    Diante dessa situao, e sem a ajuda dos filhos para tocar a propriedade, dona M acabou cedendo e trocou sua chcara por um ferro velho na cidade de Padre Bernardo, dando a um dos seus filhos para tomar conta. Como de costume, a venda da chcara acaba sendo celebrada com um acordo de boca ou algum papel (um recibo de compra e venda, por exemplo) que garantiria a transao. No entanto, como foi abordado anteriormente, esse documento para o Incra no teria valor algum, pois o negcio, como diz um tcnico do Incra, seria ilegal.

    Em minha ltima ida a campo em 2006, a chcara da dona M j tinha sido negociada duas vezes e dona M j tinha perdido tudo o que tinha conseguido na troca da chcara. Segundo relatos, ela estava morando de favor e tinha ficado doente por causa do que tinha acontecido. Os seus filhos tinham perdido o ferro velho e dois deles acabaram trabalhando em fazendas do municpio e at mesmo para assentados da regio.

    Caso 2: Aqui mais da metade j vendeu!

    Essa frase aqui mais da metade j vendeu foi muito comum de ser ouvida ao indagar como andava a rotatividade nos assentamentos. Essa associao era atribuda ao sofrimento passado desde a poca de acampamento com a falta de gua e at mesmo o fracasso em utilizar os recursos conseguidos atravs de financiamentos que fizeram com que muitos assentados vendessem suas chcaras e voltassem para Braslia. Pude constatar que depois da sada dos assentamentos houve indivduos que foram participar das ocupaes urbanas no DF e, o principal destino foram as ocupaes da Itapo e da Estrutural, uma rea surgida em meados da dcada de 1990, prxima a uma rea nobre de Braslia, que despontava como um dos principais focos de ocupao urbana do DF no final do sculo XX.

    Atrelada a esses elementos vem a especulao imobiliria nos assentamentos da regio que nos ltimos anos vem sendo alvo de interesses de compradores de terras da regio e at mesmo de funcionrios pblicos de Braslia. importante ressaltar que, como oficialmente a terra no pode ser vendida, os valores pagos acabam sendo insignificantes, pois para quem vende um bem que no pode ser vendido o risco de perder fica com o comprador.

    Para ilustrar essa situao de venda, ser apresentado o caso do senhor X, que participou da ocupao da regio desde o incio em 1998 e como foi persistente, conseguiu tirar uma chcara em um dos assentamentos. J na fase de acampamento, conheceu uma acampada que passou a ser sua companheira e que

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    tambm conseguiu uma chcara no mesmo assentamento onde o senhor X foi assentado.

    Senhor X e a sua companheira construram uma casa, cada um em sua chcara. O romance, segundo ele, tinha que ser mantido em segredo porque se o Incra descobrisse, um dos dois teria que entregar a chcara. Isso fazia com que eles vivessem um amor clandestino.

    Segundo um tcnico do Incra, no era permitido entregar duas parcelas a pessoas que viviam juntos, por isso um dos dois teria que renunciar parcela e caso o romance fosse descoberto e confirmado os dois perderiam o direito terra. Por isso, foi comum ouvir casos de assentados que tinham um romance, mas no assumiam. importante ressaltar que isso s acontecia quando os dois estavam com a propriedade em seus nomes.

    Pouco antes de receber os crditos do Pronaf A, o senhor X passou a receber propostas de pessoas de Braslia para vender sua chcara. No primeiro momento, ele disse que recusou, mas, com o passar do tempo, comeou a perceber que no levava jeito para trabalhar como produtor, pois tinha passado a vida quase toda trabalhando na cidade, e sua companheira tambm seguia o mesmo caminho. Com a liberao dos crditos, uma das primeiras aes do casal foi comprar um carro. Para isso, foi necessrio simular a compra falsa de gado, pois s assim o banco liberaria o recurso que foi desviado para a compra do veculo.

    Mesmo antes de gastar todo o dinheiro do Pronaf A e com medo que o Incra descobrisse sua situao com a parceira, aceitou a proposta, e os dois venderam suas chcaras indo morar na casa de parentes em uma cidade satlite de Braslia. Casos como o do senhor X e sua parceira foram muito comuns na regio, principalmente aps a liberao dos crditos, situao que procurarei retratar no caso trs. Caso 3: Os crditos saram num dia e na semana seguinte venderam e foram embora

    Na ida a campo em 2004, passados mais de dois anos do meu ltimo contato na regio, um fato que me chamou ateno entre as novidades percebidas foi o grande nmero de pessoas que conheci nas visitas anteriores ausentes nos assentamentos ou de casas fechadas. Ao comear a vasculhar sobre o tema, foi possvel descobrir que algumas chcaras estavam abandonadas, pois seus donos estavam morando na cidade. Ou ainda algumas tinham sido negociadas depois que os crditos haviam sado principalmente o crdito do Pronaf A.

    Como a questo dos crditos me interessava, passei a procurar entender o porqu da relao rotatividade nos assentamentos sada dos crditos, pois, na lgica, a sada dos crditos era o que possibilitaria aos assentados comear a produzir e construir suas casas.

    Em diversas entrevistas realizadas que frisavam essa questo, a que mais me chamou ateno foi a de um funcionrio da Escola do Assentamento Boa Vista. Segundo o seu relato, ele comeou a perceber que muitas crianas estavam faltando s aulas sem uma explicao muito plausvel. Quando resolveu investigar o que estava acontecendo, descobriu que essas crianas tinham voltado para Braslia, pois as suas famlias haviam vendido as chcaras, arrumado tudo e ido embora. Isso ocorreu, segundo ele, com bastante frequncia, logo aps a liberao dos crditos do Pronaf A.

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    Essa percepo da relao das vendas das chcaras com a sada dos crditos compartilhada tambm por outros assentados. Segundo alguns relatos, mesmo aqueles que no venderam as chcaras foram embora para cidade logo em seguida que os crditos saram. Foram utilizar o dinheiro do crdito em negcios na cidade como oficinas, bares e outros pequenos estabelecimentos, ou at mesmo na compra de carros de aluguel. (...) Pois , voc lembra do senhor Y? que consertava geladeira e ar condicionado, ele pegou o dinheiro do PRONAF A e investiu tudo na oficina dele l na Ceilndia (ASSENTADO DO VEREDA II, 2004).

    Diferentemente da questo da especulao imobiliria, uma anlise possvel de fazer nessas situaes que a reforma agrria surgiu para esses assentados que utilizaram os crditos para outra finalidade, como um campo de possibilidades de conseguir acesso a crditos que dificilmente conseguiriam nas condies em que se encontravam.

    Nesse sentido, os entrevistados me confessaram que participaram das ocupaes j sabendo que, assim que os crditos sassem, eles venderiam tudo e iriam embora e que ali estaria uma oportunidade para conseguir dinheiro para algum empreendimento na cidade. Relatos daqueles que utilizaram os crditos para diversas finalidades demonstram, tambm, essa face que as ocupaes de terras tiveram na regio. Caso 4: Chcaras de final de semana

    Mais uma questo que favorece a transao das parcelas na regio so as

    chcaras de final de semana. Essas chcaras so formadas por assentados com mais condies materiais que estavam interessados em participar das ocupaes para conseguir um lugar para a famlia passar o final de semana. Como foi dito anteriormente os assentamentos da regio esto a pouco mais de 100 km de Braslia, o que seria ideal para construir uma rea de lazer.

    Aqueles que no participaram das ocupaes geralmente compraram suas chcaras depois da criao dos assentamentos, estando entre aqueles que passaram a rondar os assentamentos e a comprar terras dos assentados. Nesse bojo, possvel encontrar uma infinidade de pessoas, de empresrios a funcionrios pblicos, que vem a chcara como uma rea de lazer para passar o final de semana com a famlia.

    Em determinada situao, ao comprar a chcara, o proprietrio coloca logo um caseiro para que a casa no fique abandonada e alguma plantao para constar que o proprietrio daquele imvel mora ali. Isso porque, segundo os assentados, ter roa na propriedade, para o Incra, significaria que a propriedade no est abandonada, que ali teria gente trabalhando.

    Na anlise dos assentados, os proprietrios dessas chcaras de final de semana acabam prejudicando o assentamento, porque na hora das decises coletivas, pois nas assembleias eles tm direito a voz e voto, eles influenciam muito nas decises que lhes melhor convm.

    Num caso interessante narrado por um tcnico do Incra, ele descobriu, por meio de denncias, que, em um dos assentamentos da regio, cerca de cinco propriedades contguas tinham sido adquiridas por uma s pessoa. Um empresrio em Braslia que teria utilizado nomes de parentes para driblar a fiscalizao. Segundo o tcnico, estavam fazendo um latifndio dentro do assentamento.

    O que mais me chamou ateno que na hora da transao da terra as pessoas utilizam de vrios recursos para realizao do negcio, como a chamada

  • Departamento de Geografia da FCT/UNESP, Presidente Prudente, n. 14, v.1, janeiro a junho de 2014, p. 1-16.

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    gambira ou troca. Nesse bojo, entram carro velho, moto, lote na cidade e uma parcela em dinheiro.

    Os valores so os mais variados. Houve o caso de um assentado que estava endividado e aceitou cerca de R$ 2.000,00 por sua parcela. Posteriormente se sentiu envergonhado pelo que tinha feito, pois tinha passado tanto sofrimento para depois jogar fora. Segundo ele, no conseguia olhar mais na cara de seus companheiros por causa da vergonha. Alm disso, se sentia enganado pelo seu comprador que aproveitou um momento em que ele estava bbado para fazer o negcio. Histrias dessa natureza, por mais estranhas que paream, estiveram presentes em outras situaes nesse jogo de venda das chcaras na regio.

    Ao tentar entender por que as pessoas estavam vendendo suas chcaras por preos to mdicos, possvel elencar uma srie de variveis, entre elas, as dificuldades financeiras que o indivduo passava no momento que resolveu vender, a falta de adaptao ao local pelos assentados e as excessivas presses exercidas pelos compradores de terras, os quais mesmo antes de fecharem negcios, procuravam saber quem estava desanimado ou quem estava com dificuldades financeiras, pois assim facilitaria a transao no momento de persuadir o assentado a vender sua chcara. A relao entre os compradores e os assentados

    A relao de negociao com as chcaras traz outro elemento para os

    assentamentos da regio, que a relao entre os assentados que ficaram nos assentamentos e aquelas pessoas que compraram a terra. Se uma pessoa desavisada visitar a regio, num primeiro plano no perceber diferenas ou conflitos entre esses dois grupos de assentados.

    No entanto, ao conviver na regio, passa-se a perceber que esses assentados de certa forma formariam dois grupos distintos, ou seja, os que compraram as chcaras e os moradores mais antigos dos assentamentos. Essa discriminao no chega a ser velada, mas, ao conviver nos assentamentos e a conversar com os assentados, conclui-se que ela existe, pois a maioria dos compradores classificaria os assentados que esto desde o incio na regio de sem-terras, preguiosos e pobres, que no teriam condies de sobreviver sozinhos nos assentamentos, ou seja, sem ajuda de parentes que moram na cidade.

    J para os assentados, os compradores seriam individualistas, metidos e que participariam das decises coletivas apenas para decidir ou influenciar em questes que dizem respeito a seus prprios interesses. Alm disso, no respeitariam a histria poltica deles de ocupao da regio.

    Durante o trabalho de campo, inicialmente, ao indagar sobre aquela circulao de pessoas novas morando ou adquirindo chcaras nos assentamentos, o que se percebia era que os assentados acabaram aceitando essa rotatividade por perceberem que aqueles novos moradores poderiam ser uma fonte de renda, uma vez que, como foi abordado, seriam essas pessoas que tinham condies de pagar um dia de servio. O pessoal que chegou agora geralmente tem dinheiro para pagar um dia de servio, e algumas pessoas antigas do assentamento ficam procurando eles puxando o saco para ganhar um dia de servio (ASSENTADO DO VEREDA I, 2006).

    Sobre a percepo de reforma agrria, ao entrevistar quatro compradores, eles achavam que os assentamentos tinham uma similaridade com a poltica do Banco da Terra. importante ressaltar que, na regio, em 2002, foi constitudo um

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    assentamento pelos moldes do Banco da Terra, por isso algumas pessoas que se inscreveram nesse programa e no foram contempladas acabaram comprando chcaras nos assentamentos da regio.

    Ao tentar, entender a percepo desses compradores sobre as famlias que estavam assentadas antes deles, eles diziam que eram pessoas que precisariam ter dinheiro para investir na terra, porque como ali era uma terra nua, ela precisaria de grandes investimentos e quem poderia trabalhar nela seria quem tivesse condies para investir.

    Ainda para os compradores, h assentados que seriam preguiosos e esto ali porque no querem trabalhar duro ou porque tm uma segunda fonte de renda que lhes garantem condies de se manter no local. Esse discurso apontado por alguns compradores procura mostrar que os assentados que vendem suas terras seriam incapazes de se manter no local, caracterizando uma viso preconceituosa daqueles que lutaram para conquistar aqueles assentamentos.

    No entanto, existem outros que compraram terras ali e reconhecem que as condies em que o Incra assentou as famlias seriam desumanas e que no deveriam ser assentadas famlias em reas sem infraestrutura, em terra de baixa qualidade. Sobre o que achavam da compra de uma terra que no podia ser negociada, os entrevistados responderam que na viso deles depois que o Incra repassou a terra para os assentados eles teriam o direito de fazer com ela o que bem entendesse. Assim, para estes compradores a transao com a terra seria uma negociao normal e que o Incra deveria aceitar esse tipo de negociao. Alm disso, eles acreditam que para ficar na terra seria necessrio ter condies de produzir e gerar renda.

    Consideraes finais

    Por meio deste texto, procurou-se apresentar algumas reflexes sobre a

    rotatividade ou o abandono das chcaras na regio de P de Serra, no municpio de Padre Bernardo-GO. Para isso, foi necessrio recorrer a um breve resgate histrico dessa prtica na regio do Distrito Federal, local de onde a maioria dos assentados veio e j conheciam ou haviam praticado o trinmio ocupar conseguir - vender.

    Alm disso, os quatro casos expostos procuram apontar algumas reflexes que permitem entender, atravs do material emprico, por que esses atores tomaram a deciso de se desfazer de suas chcaras. Com os dados obtidos, possvel formular algumas questes importantes que ajudam a entender essa dinmica na regio:

    1) Pelo fato de os assentamentos se localizarem numa rea bem prxima da Capital Federal, o processo de transao de terra s seria possvel por dois motivos principais. O primeiro seria a ideia que j est estabelecida na regio desde a construo da capital Federal que seria o trinmio j apontado ao longo do texto: ocupar conseguir - vender. O outro, pela ao de grileiros e mercadores de terras que atuam nas reas do entorno, que estimulam essa prtica; em alguns casos, por interesses eleitoreiros, como podemos ver no caso do ttulo de eleitor como condicionante para conseguir um lote em qualquer cidade satlite de Braslia.

    2) Apesar de ser considerado um negcio ilegal, a transao da terra aconteceria pela falta de acompanhamento do Incra na regio. No entanto, importante frisar que essa falta de fiscalizao ou at mesmo de acompanhamento por parte do rgo estaria relacionada com a falta de recursos e de pessoal que o rgo enfrenta.

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    3) Outro elemento, como a falta de infraestrutura, no pode ser desconsiderado. Pois, como foi apresentada no texto, a falta de gua, de estrada e at mesmo de condies de escoar a produo faz com que os assentados se sintam desestimulados a continuar na terra e acabam cedendo s presses das pessoas interessadas em comprar suas chcaras.

    4) Outra questo norteadora nas observaes em campo foi a falta de aptido para lidar com a terra. Frases do tipo s agora que eu sei o que ser agricultor eram recorrentes durante as entrevistas. Atrelada a essa questo, est dificuldade de uma assistncia tcnica sria que orientasse os assentados. Essas condicionantes contriburam para que os assentados se desestimulassem e vendessem as propriedades.

    Todavia importante ressaltar que mesmo com esses desafios todos e as presses exercidas sobre eles, muitos assentados acreditaram e ficaram esperando construir ali um espao que pudesse deixar para as suas geraes futuras. E o prprio acesso chcara talvez possa constituir parte de uma estratgia de mobilidade socioeconmica.

    5) Por fim, preciso ressaltar que o assentamento pode ser um ponto final relativo para essas famlias, uma vez que ele pode ou no garantir alguma permanncia desses atores. A ideia do assentamento como um ponto final relativo me conduz a refletir que as experincias vivenciadas nos assentamentos podem servir de subsdios necessrios para que as pessoas migrem para outro lugar, ou seja, preciso aceitar que as pessoas podem sair do assentamento, que ali pode no ser um ponto final para algumas famlias. E que aquele assentado que vendeu sua chcara ou utilizou os crditos para outra finalidade pode ter visto neste ato uma possibilidade de um salto para outro degrau socioeconmico.

    Assim, essa reflexo do ponto final relativo nos conduz a questionar tambm a ideia de fixao ou de plantar as pessoas no assentamento, da forma como os gestores de polticas pblicas constroem sobre os assentamentos rurais. Pois, para garantir a permanncia das pessoas no assentamento, necessrio que se crie uma srie de condies (infraestruturas, crditos, assistncia tcnica de qualidade, etc.) que permitam que as pessoas de fato possam escolher ficar na terra, alm de se considerarem as particularidades de cada assentamento.

    Nesse sentido, possvel especular que essa situao possa ser um indicador para explicar a evaso e a rotatividade nos assentados rurais. S para efeito de reflexo, a fala de um assentado do Vereda I ajuda a ilustrar tal situao: Eu nunca desanimei da vida. A gente sempre tem que t correndo atrs, se no est bom aqui pode estar em outro lugar (ASSENTADO, DO VEREDA II, 2007).

    Portanto, pela convivncia com os assentados da regio, foi possvel perceber que todo esse mecanismo de ocuparconseguirvender, os crditos como um campo de possibilidade e a falta de uma poltica de reforma agrria que no se resumisse basicamente distribuio de terras tm sido vetores que contribuem para a rotatividade nos assentamentos da regio.

    Referencias bibliogrficas

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