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Artigo Revista Alpha SAULO

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Sobre artigo Saulo Brandao

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Do Modernismo ao Pós-Modernismo

Saulo Cunha de Serpa Brandão*

RESUMO: Neste trabalho pretendemos mostrar a fraqueza das fronteiras entre escolas literárias, em especial entre Modernismo e Pós-Modernismo, e analisar de forma mais proximamente o caso de Macunaíma que, embora tenha sido escrito por autor que pertencia ao Modernismo brasileiro, apresenta características inerentes ao Pós-Modernismo.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, tencionamos empreender uma pequena incursão nos meandros das artificiais

fronteiras temporais e estéticas impostas aos estudos literários. O caminho escolhido foi o de

mostrar algumas incoerências no modelo adotado, apoiados pelo pensamento de Ihab Hassan, e

mostrar o caso especial da falaciosa separação entre as “escolas” Modernistas e Pós-Modernistas. O

passo seguinte, em nossa jornada, será apreciar mais pormenorizadamente o caso de Macunaíma, de

Mário de Andrade. Em nossa perspectiva um caso clássico de uma obra gestada e produzida no

período Modernista do Brasil e por um artista que abraçou o movimento em toda sua plenitude,

mas, como veremos, passível de ser apreciada pelo viés pós-modernista.

Essas fronteiras têm suas origens marcadas, principalmente, pelo Evolucionismo darwiniano

e pelos primeiros estudiosos da ciência genética. Desde os primeiros passos, a ciência moderna vem

impondo ao conhecimento um procedimento cognitivo extremamente limitante. Desde muito cedo,

com Galileu, passando depois por Bacon, Newton, Mendel, Darwin, o pernicioso procedimento

cognitivo da taxonomia chega à atualidade. A prática, se aplicada de uma forma ampla não chega a

ter um efeito danoso, pelo contrário, trata-se de uma procedimento sadio, isto é, sistematizar o

conhecimento. O mal vem do exagero que vemos em nossos dias: o fenômeno novo é identificado e

equiparado a algum outro similar já conhecido e a partir daí o novo passa a ser tratado como se fora

o antigo. Os que não se enquadram são classificados como excepcionais e aleatórios, portanto não

sistemáticos e despojados de interesse pela ciência tradicional.

Uma maneira fácil de levar à ruína as fronteiras artificiais entre os “ismos” estéticos é tentar,

________________

* O autor é doutor em Letras e professor das Literaturas em Língua Inglesa e Teoria da Literatura na Universidade

Federal do Piauí

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por exemplo, enquadrar a ficção de realismo pujante de Rubens Fonseca em uma das possibilidades

estéticas possíveis pela cronologia da existência e de produção do autor. Teríamos que pensar em

um modernista tardio ou um pós-modernista. Mas a prosa do autor não se comporta de forma a

aceitar qualquer das duas possibilidades. Então, a saída honrosa dos defensores da taxonomia como

sistema de conhecimento é considerá-lo um neo-realista. O caso do ficcionista brasileiro é um

exemplo dentre dezenas que poderíamos perfilar, mas isso não acrescentaria muito, pois esse tipo de

produção deslocada é de conhecimento da maioria dos teóricos e críticos. Apenas como ilustração

pensem em autores de outra latitude como Saul Bellow e John Updike, que são prosadores

realistas viventes nos EUA em nosso tempo presente.

Ihab Hassan, em um artigo disponibilizado em sua página na rede mundial, tratando da

dificuldade de se classificar textos de acordo com a época em que eles foram produzidos, nos ensina

que

More importantly, postmodernism can not serve simply as a period, as a temporal, chronological, or diachronic construct; it must also function as a theoretical, phenomenological, or synchronic category. Older or dead writers, like Samuel Beckett or Jorge Luis Borges or Raymond Roussel or Vladimir Nabokov, can be postmodern, while younger ones, still alive like John Updike or Toni Morrison or V. S. Naipaul, may not be postmodern.( www.ihabhassan.com, acesso em 20/07/2003)

O teórico egípcio avança em sua formulação para demonstrar que um único autor pode ter

fases de produção completamente distintas e passíveis de diferenciação dentro de padrões estéticos

diversos. Ele nos convence de sua assertiva mostrando quantos James Joyces podem-se encontrar,

lendo-se, com cuidado, as obras do irlandês. Se não, vejamos: Dubliners (pré-moderno), Portrait of

the artist as a young man (moderno), Ulysses (moderno manchado de pós-moderno), Finnegans

wake (pós-moderno). O mesmo exercício ele elabora para Beckett e sua peça Murphy que, embora

tenha sido escrita em 1939, é considerada pelo pensador como uma obra pós-moderna inconteste.

O nosso trabalho será o de mapear o romance Macunaíma de forma a demonstrar que

existem características nele, que nos permite dizer que uma leitura dele como obra pós-modernista é

perfeitamente factível e até enriquecedora; acrescenta possibilidades hermenêuticas improváveis

com a visada modernista.

UM CONCEITO OPERACIONALISTA

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Tratar de Pós-modernismo traz uma dificuldade inicial, aparentemente, por enquanto,

insuperável, que é determinar “um” ou “o” conceito para o termo: as propostas que estão colocadas

são ainda muito instáveis. Mas não pode ser pela falta de um conceito que, também, não devamos

refletir sobre o tema. Desta forma seguiremos a tática de muitos, e em especial de Domício Proença

Filho, em seu livro Pós-modernismo e Literatura (1988), de adotar um conceito operacional,

volúvel, infelizmente, mas que contemple as principais demandas dos teóricos. É importante notar

que o cuidado que teve o pensador brasileiro não foi o mesmo tomado por outros que

peremptoriamente tratam da proposta da nova estética como real e lhe impõem regras. É o caso, por

exemplo, de Ihab Hassan (1993). Para este, o conceito já está cristalizado e com características já

bem fundamentadas, apesar disso, ele mesmo não peca em criar fronteiras temporais para o novo

modelo. A posição do pensador egípcio é, também, contestada por muitos outros, um exemplo

notório é o e Hans Bertens (1993).

Não se pode tratar com simplicidade uma questão imensamente complexa: Joseph Natoli e

Linda Hutcheon colecionaram 30 artigos escritos pelos mais influentes pensadores do assunto, eles

foram reunidos em um livro de 584 páginas e que, após a longa leitura, chega-se a conclusão que

inexiste a menor possibilidade de se chegar a qualquer denominador comum sobre as características

gerais do Pós-modernismo ou sobre o espaço temporal abrangido pelo movimento. Pode-se, porém,

concluir que o debate vai se estender por muito tempo. Por isso, optamos pelo recurso usado por

Domício Proença Filho e delimitar o termo dentro de um conceito provisório e operacional, que nós

preferimos dizer tratar-se de um conceito “operacionalista” (do “operacionalismo” de Percy

Bridgman1).

O que propomos é que se reconheça que houve uma virada estética após a onda do

Modernismo, ou, mais provavelmente, ainda dentro do próprio movimento Modernista, que nos

levou a testemunhar o aparecimento de uma veia artística que, diante dos fatos a serem narrados,

opta por narrá-los independentemente do resultado ser algo que o conhecimento humano reconheça

como sendo a estória que deriva dos eventos originais, ou, talvez: não a melhor estória que se

poderia contar, mas a possível diante de nossas ferramentas lingüísticas e de nosso aparato

cognitivo (esta proposta é uma derivação da feita por Baumam (1993, p.16). Volek (1992, p.96) diz

1 Desta forma pretendemos desestabilizar um pouco o termo “operacional” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda,

significa “2. Que está pronto para funcionar.”. A acepção dicionarizada carrega um semantismo de uma coisa

terminada, concluída, e isso não é o que desejamos aqui. O termo proposto por Bridgman é relativista, e propõe que

“operacionalismo” é a condição possível para um conceito diante de nosso conhecimento (Heder, 1992).

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que “La postmodenidad esta poniendo en tela de juicio la bifurcación hegeliana e kantiana e

también la supuesta necesidad de elección sólo entre estas dos posibilidad.”. Na busca por essa

brecha entre duas correntes tão fortes na filosofia ocidental, o escritor vai levar a linguagem a certos

extremos. Para conseguir a narração do possível, mesmo que cause um estranhamento limítrofe, o

escritor lançará mãos de recursos próprios da literatura, e da arte em geral, mas colocados em

contextos que antes não foram experimentados. Estamos falando de estratégias como: pastiche,

paródia, kitsch, palimpsesto. Anexadas a estas estratégias, a linguagem ganha características

próprias, passando a ser: anárquica, casual, antitética, dispersa, “idiolética”, mutante, irônica,

indeterminada (isso segundo Hassan), nós ainda acrescentaríamos que a linguagem na obra Pós-

modernista é cínica, no sentido de ser sarcástica e oportunista.

Duas advertências iniciais ainda nos sobra: primeiro, não buscamos aqui defender que o

livro de Mario de Andrade seja um peça plenamente Pós-modernista, mas que existem

características nele que já indicam algo de novo, que extrapola os limites do Modernismo. Segundo,

falaremos, mais adiante, que Macunaíma se transveste para alcançar seus objetivos. Um leitor mais

apressado pode contestar as afirmações que faremos, dizendo: “Mas o Gato de botas também o

faz!”. A nossa resposta óbvia é que este é um texto fabuloso (do Maravilhoso, da Teoria Literária) ,

insere-se em uma tradição literária completamente díspar da de Macunaíma. Naquele, a fábula cria

uma orbe antinômica, por completo, em relação ao que é concebido como mundo pelo senso

comum, enquanto este distorce a visão do mundo, mas deixa índices (ou “realemas” como quer

Sebastien Joachim2) que não nos permite descolar do mundo observável. A distopia, ou disjunção

(para os mais afeitos à Lógica), articulada em Macunaíma, nos leva a aproximá-la da tradição do

Realismo-Mágico. Esta tradição, por sua vez, é apresentada como uma estratégia narracional pós-

moderna e com bastante citações da vinculação. Emil Voleck (1990) faz essa ligação com muita

propriedade, mas também encontramos inferências dessa percepção quando teóricos da Pós-

modenidade citam as obras de Jorge Luiz Borges, Garcia Marques, Cotázar ( em especial El

hablador), Pynchon, Barth, Bourroughs como sendo autores de textos pós-modenistas. Podemos

nos deparar com citações dessa natureza nos textos de pensadores como Hassan, Baudrillard,

Malby, Porush.

Outro aspecto que devemos, de antemão, esclarecer é que, quase na totalidade, os teóricos da

literatura registravam uma mudança no paradigma estético ocorrido já há bastante tempo. Não

existe como estabelecer fronteiras temporais, mas as novas tendências eram notadas e recebiam

2 Sebastien Joachim fundou este termo justamente para dar conta de certos índices, com propõe Todorov, com peculiaridades especiais, dentre elas, a de não permitir que a orbe ficcional se descole completamente do mundo do senso comum. Ou seja, um índice com limitações.

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nomenclaturas diversas como: neomodernismo, neovanguardismo, neorealismo. O primeiro dos

termos foi utilizado por Alceu Amoroso Lima, já em 1956, falando dos novos horizontes que

despontavam na literatura nacional (em Proença Filho, 1988, p.12).

DAS POSSIBILIDADES ESTÉTICAS

Qualquer leitor de Macunaíma, por mais neófito ou pouco afeito às coisas da literatura, por

certo durante a empreitada há de se perguntar os motivos ou os significados dos feitos espetaculares

do herói, tais como: as coisificações (no sentido mais literal do termo), as rápidas viagens

transcontinentais, as metamorfoses sofridas e impostas. Mesmo aqueles bem informados se

desconfortam diante do texto, vejamos o que disse Andrade em carta a Manuel Bandeira, à época do

lançamento:

Mas o fato do livro não ter propriamente uma conexão lógica de psicologia não obriga propriamente ... Isto é, conexão lógica de psicologia ele tem, quem não tem é Macunaíma e é justo nisso que está a lógica de Macunaíma: em não ter lógica. Não imagine que estou sofismando não. È fácil provar que estabeleci bem dentro de todo o livro que Macunaíma é a contradição de si mesmo. O caráter que demonstra num capítulo ele desfaz noutro.” ( em Proença, 1978, p. 11)

A citação mostra o autor ensinando a um crítico os vieses de sua construção. Defendia sua obra,

buscando explicar o que para a época era de difícil compreensão. E mais, observe que as

justificativas são dadas a Bandeira, que um leitor muitíssimo especial. Sobre o gênero ao qual

pertence o texto de Andrade, Alceu Amoroso Lima disse:

“não é um romance, nem um poema, nem uma epopéia. Eu diria antes, um coquetel. Um sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos de básicos da nossa psichê, como dizem os sociólogos. É um desses retratos médios em que se superpõem várias fotografias diferentes e que acaba não se parecendo com ninguém.” (idem, p. 7)

O livro terminou ganhando um prêmio literário na categoria “romance” e assim ficou

definido. Ainda segundo Proença, a idéia de inscrevê-lo no concurso como romance não foi de

Mário de Andrade, mas ele não repudiou a definição e dessa forma foi absorvido pela historiografia

da literatura brasileira.

Em relação aos feitos espetaculares os críticos, ainda, têm dificuldade para classificar o

texto dentro das possibilidades estéticas propostas pela teoria da literatura, elas são: Literatura

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Maravilhosa, Fantástico Tradicional, Fantástico Moderno, Real Maravilhoso ou Realismo Mágico3.

O espaço deste paper não nos permite entrar em grandes detalhes sobre as diferenças entre as

possibilidades estéticas, mas mostraremos a característica mais forte de cada uma delas.

De Literatura Maravilhosa chama-se aquela em que se apresenta uma nova visão

ontológica4, criando um mundo ficcional com regras próprias, alheias a qualquer representação

realista (as fábulas, em geral). Os Fantásticos estão sempre aliados aos sentimentos de medo e/ou

asco, por parte dos personagens, do leitor, ou de ambos. Sendo que em sua vertente Tradicional

apresenta forte antinomia entre os planos narracionais (real/fantástico), e na Moderna estes se

entrelaçam. O termo Real Maravilhoso foi cunhado por Alejo Carpentier e, segundo o ficcionista,

aplica-se a parte da literatura caribenha que apresenta o arquipélago como um lugar povoado de

uma magia peculiar. No Realismo Mágico não existe qualquer sentimento de estranhamento, quer

por parte dos personagens ou do narrador, e a característica mais importante deste subgênero é uma

ideologia libertadora forte.

MACUNAÍMA

No rastro de uma ideologia libertadora, para classificar Macunaíma como um texto co

peculiaridades Mágico Realista foi que encontramos características no texto que ligam-no

irremediavelmente às teorias que estão no front das lutas por uma melhor compreensão dos textos

produzidos por minorias marginais, feministas e borderliners5 geográficos e/ou culturais. Essas

ligações fazem com que o texto marioandradino, como na década de 20, situe-se em uma vanguarda

experimentalista na virada do século XXI. A análise que fizemos levou-nos a perceber algumas

características que corroboram com nossa proposta de ré-leitura do herói brasileiro, a saber: a. O

fato de Macunaíma seguir os ditames do Realismo Mágico que é uma estratégia pós-estruturalista6;

b. Metáfora do contínuo movimento; c. Texto palimpsesto; e, d. Pastiche.

3 Sobre a Literatura Maravilhosa, o Fantástico Tradicional e o Moderno pode-se obter uma boa visão consultando o livro Introdução a Literatura Fantástica de Tzvetan Todorov. Os interessados no Real Maravilhoso podem ler o livro O Realismo Maravilhoso de Irlemar Chiampi ou o prólogo do livro El Reino de este Mundo de Alejo Carpentier. Para aspectos interessantes do Realismo Mágico consultem Magical Realism and the Fantastic de Beatrice Chanady.

4 Trato a palavra ontológica nos moldes de McHale, ou seja, “o caráter ontológico do romance pós-moderno é revelado em sua preocupação com a criação de mundos autônomos”. Este conceito aparece em Cultura Pós-Moderna de Steven Connor, p. 105.5"Borderlines" é assunto de todo um livro de Homi Bhabha intitulado The Location o Culture.6

?A ligação entre Pós-modernismo e Realismo Mágico pode ser encontrada nos artigos Realismo Mágico: entre la Modernidad y la Postmodernidad (1990) e El hablador de Vargas Llosa: Del realismo mágico a la postmodernidad (1992), ambos de Emil Volek.

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Passamos a uma breve análise para mostrar como vemos em Macunaíma uma ideologia

libertadora que justifique sua classificação dentro do Realismo Mágico. Para tanto resumiremos

alguns pontos de dois pensadores da atualidade, Jacques Derrida (1972) e Gayatri Spivak (1996). O

primeiro fez um exercício de sua idéia de desconstrução a partir de pares dicotômicos utilizando os

conceitos de “centro” e “margem” para chegar a uma proposta de descentralização da

estruturalidade da estrutura (structurality of structure). A crítica derridiana denuncia uma

acomodação por parte da lingüística saussuriana por aceitar que no centro da cadeia de referentes,

que consubstanciam o significado, esteja um signo e não o próprio objeto. Ele mostra que desta

forma não existe um ponto fixo para construção do discurso, ou como estabelecer fronteiras

metafísicas para o jogo dos significantes lingüísticos. Não haveria um ponto emissor de um

discurso, e sim um labirinto de discursos, um jogo livre (freeplay) que caracteriza a estruturalidade

da estrutura.

Gayatri Spivak se apropria das lições desconstrutivista de Derrida, aliadas a outras

metodologias críticas tais como feminismo, marxismo e psicanálise, para propor não um novo

método, mas uma mudança revolucionária no modo de pensar que subverta a apatia centralizada no

“EU” e no "elitismo fanático", transformando-os em uma prática coletiva. A pensadora mostra que

existindo um universo explicável e um sujeito explicador, este, em sua explicação, naturaliza

experiências e desejos pessoais em verdades universais. Ela trata essa construção como uma política

que está baseada nas práticas do capitalismo avançado. Uma prática que desconhece o outro ou

heterogeneidade. Spivak propõe que, através da desconstrução, possa-se praticar um “reversal-

displacement” minando a dicotomia entre margem e centro, permitindo visibilidade e audibilidade

às margens, e questionando qualquer tipo de explicação calçada em verdades absolutas.

Enfrentando e desmantelando o discurso "(fa)logocêntrico".

Macunaíma é uma grande obra desconstrutora e libertadora. Podemos citar, como exemplo

disso, a linguagem utilizada no texto: Mário de Andrade tinha como objetivo, declarado, promover

uma fusão das línguas faladas no Brasil. Não só desregionalizando o idioma a partir de uma fusão

da língua falada nas diversas partes do país (no sentido de permeabilizar a língua permitindo a

expressão das margens), mas, também, aproximar o falar dos extremos da pirâmide social, ou seja,

praticar uma amalgamação da língua tanto no sentido horizontal (desregionalizando) como na

vertical (deshierarquizando). Para conseguir o intento, cumpre-se lembrar a estratégia narracional

usada: um autor empírico culto (representando o centro e o ápice piramidal), um narrador neutro5,

que reconta a história tal como lhe foi contado por uma arara e um personagem central marginal, de

uma camada baixa da estrutura social. Utilizando este procedimento Mario de Andrade denuncia a

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dificuldade de em um país tão heterogêneo como o nosso a utilização de um discurso único, que

parta do centro para a periferia. Com a construção de um discurso mais heterogêneo que contemple

também as margens, o texto de Andrade exemplifica o que propõe Spivak.

Outras façanhas do herói que mostram a preocupação do autor com a construção de uma

margem participante, são suas viagens inter-regionais-imediatas. Deixa-nos a imagem do Brasil

como uma grande “salad bow” cultural, com o herói servindo como uma espátula que, em seu

movimento centrípeto, desloca as populações em um grande movimento migratório que tem como

cerne e alvo o enorme mosaico de culturas que é a cidade de São Paulo. Representando a migração

de populações periféricas com destino ao centro e passem a existir para o centro e passem a ser

visíveis e audíveis pelo centro.

Ainda na busca da ideologia libertadora da obra de Mario de Andrade, encontramos outra

façanha que, de novo, lança o texto no meio da ebulição teórica/crítica da Pós-modernidade. Desta

vez ligamo-lo às propostas de Luce Irigaray (1985) e Hélène Cixous (1976). As teóricas propõem

que as mulheres transvistam seus textos dando-lhes perfis do discurso "(fa)logocêntrico", mas que

carreguem consigo elementos subversivos capazes de minar a lógica dominante. Cixous afirma que

“...there is no room for her if she is not a he. If she is a he-she, it’s in order to smash everything...to

blow up the law, to break up the’ truth’ with laughter.” (Cixous, 1976, p. 888). O que nenhuma das

duas pensadoras contemplou foi a possibilidade do subversivo ser aliciado e cooptado pelo centro

dominador.

O verbo transvestir utilizado pelas pensadoras remete imediatamente para Macunaíma

transformado em francesa, tentando conseguir o amuleto que estava nas mãos do gigante, a partir do

estratagema da simulação. No jogo representativo, teríamos o herói no papel do marginalizado e o

gigante como o dominante opressor. Transformado em francesa, Macunaíma consegue se aproximar

do gigante; utilizando o discurso mascarado do opressor, ele alça-se a um novo patamar e se faz

ouvir e, após ser recebido no centro do poder, o marginalizado tenta matar seu adversário. Outra

façanha que segue a mesma linha interpretativa, dá-se quando o herói se fantasia de colonizador

com a Smith-Wesson, a gaiola como casal de Lagorne e o relógio Patek, na tentativa de se fazer

receber no castelo do gigante. Obviamente, a intenção do herói não era outra senão a de implodir o

império de seu antagonista, para tanto, lançou mão outra vez da simulação, como proposta por

Irigaray e Cixous.

Alguns outros achados no texto corroboram para uma leitura da obra como uma com

características do Pós-modernismo. Trataremos agora da metáfora do contínuo movimento. Susan

Bordo (1989) aponta para essa metáfora como sendo uma forte característica do texto pós-moderno.

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Ela descreve o corpo como fragmentado, mudando e convidando a uma “confusão de fronteiras”.

Ela questiona “... What sort of body is it that is free to change its shape and location at will, that

can become anyone and travel everywhere...” (Bordo, 1989, p.104), para depois afirmar que se o

corpo é uma metáfora de localização no espaço, então o corpo pós-moderno não é corpo

absolutamente.

Que outro texto serviria tão bem para exemplificar o que afirma Bordo quanto Macunaíma?

Quantas vezes o herói se metamorfoseia ou impõe metamorfoses a outros corpos (transformando-se

em príncipe ou em francesa; transformando os irmãos em telefone; sendo despedaçado para depois

ser remendado...)? As viagens espetaculares empreendidas pelos personagens? Essas características

de Macunaíma também têm marca da libertação, pois Bordo chega a suas reflexões quando

questionando o direito/saber que as pessoas têm sobre seu próprio corpo, quais os nossos limites

físicos e mostra a finitude de nossa percepção e conhecimento.

O texto de Mário de Andrade não foi bem recebido pelo público de seu tempo, o autor teve

que se defender diversas vezes da acusação de ao escrever Macunaíma ter cometido plágio7. A

originalidade da obra sempre foi questionada, mas a idéia sempre foi refutada pelo autor.

Macunaíma é um escrito pleno em intertextualidade: nota-se flagrantemente a ligação dele com

Iracema, por exemplo. Mas existe mais, vemos também uma intertextualidade intersemiótica: o

laço entre algumas Árias das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos, O Guarany de Carlos Gomes,

ou as cantigas folclóricas de Ernani Braga como Ogune e O’kinimba é inquestionável. E,

novamente, observamos a sofisticação do autor em fundir, em um mesmo meio, o clássico e o

popular. Na fusão, o autor cumpre seu propósito de criar um discurso que represente o Brasil, mas

sempre contemplando os extremos: margem e centro. Mas esse exercício intertextual e

intersemiótico é uma característica do modernismo. O nosso intuito neste texto é fazer uma releitura

e apresentar características que liguem a rapsódia marioandradino ao Pós-Modernismo. Para tanto

convidamos o texto História Palimpsesta de Christine Brooke-Rose (1993), nele a autora sugere

que uma das peculiaridades do texto pós-moderno é a possibilidade dele ser palimpsesto, ou seja,

um manuscrito sob cujo texto se descobre a escrita anterior. Ela exemplifica sua classificação

citando Umberto Eco (enquanto ficcionista), Salmon Rudshide e Thomas Pynchon.

Essa característica justifica as várias tentativas de macular a obra julgando-a uma cópia.

Mário de Andrade montou a história de seu herói sobre diversos textos, tais como, Avatara de

Théophile Gautier e Vom Roroima zum Orinoco de Theodor Koch-Grümberg. Este último é um

levantamento das origens dos mitos latino americanos, sobre este Andrade montou sua rapsódia 7 Detalhes sobre o assunto podem ser encontrado no artigo Macunaíma: Apropriação e Originalidade de Raúl Antelo.

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distorcendo e recriando a gênese da mitologia brasileira. Chegando a ponto de críticos

comparatistas8 determinarem que capítulo no original de Koch-Grümberg aparecia ré-trabalhado

artisticamente em Macunaíma. O trabalho do autor brasileiro esta longe de ser um plágio, mesmo

por que são gêneros diferentes: uma obra ficcional/artística e o outro um manual. Mas o certo é que

Mario de Andrade extrapolou, mais uma vez, o vanguardismo de sua época para se tornar

vanguarda em nossa atualidade pós-moderna.

O ponto que levantamos agora está de alguma maneira ligado ao parágrafo anterior. No

processo de recriar a partir de uma obra existente, mas distorcendo-a de forma cômica/anárquica,

M. de Andrade abria mais um vínculo com a prática artística da nossa atualidade. Ele lançou mão

sem economia da paródia: quer criticando as campanhas de vacinação do governo; quer caçoando

de poetas representantes dos moldes antigos etc. Mas aqui, novamente, ele alcança outros ares. Na

distorção cômica que o autor pratica na construção da gênese da mitologia indígena, não é possível

vislumbrar o que está sendo caricaturado. É divertida a genialidade da explicação do aparecimento

de determinados agentes/seres/astros na natureza, mas não tem como se identificar o que está sendo

ridicularizado/criticado pois já não lembramos, ou sequer conhecemos, a forma correta da genética

desses mitos como era concebida pelos índios. Esta falta de referência para paródia torna-a vazia,

ou seja: um pastiche9.

Jameson (1990) é quem conceitua o pastiche dessa forma e ensina que a paródia está para o

modernismo, assim como o pastiche está para o pós-modernismo. Citamos um exemplo de pastiche

na obra, mas mais espaço eu tivéssemos, mais exemplos traríamos.

CONCLUSÃO

Findamos com a esperança de ter convencido nosso leitor da impossibilidade de se delimitar

cronologicamente qualquer corrente estética, bem como de ter mostrado que certos autores, como

vimos com M. de Andrade, não se comportam como, às vezes, críticos e teóricos esperam dele. O

espírito inovador do artista o impele a experimentar o novo incessantemente. A crítica não consegue

andar no mesmo ritmo e, geralmente, termina por sendo injusta com alguns. Macunaíma também

recebeu críticas negativas e foi devidamente apreciado por poucos, em sua época. Mas mostra, hoje,

8 Um excelente trabalho comparatista pode ser encontrada na Edição Crítica de Macunaíma organizado por Telê Porto Ancona Lopez.

9 A relação entre pastiche e Pós-Modernismo encontramos no texto de Frederic Jameson: O Pós-Modernismo e a Sociedade de Consumo (1994).

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o vigor de sua qualidade por se manter entre os livros mais importantes produzidos em língua

portuguesa no século XX. E prometendo manter sua saúde dentro, já do século XXI.

Mário de Andrade conseguiu um fato raro: Macunaíma desagradou a quase todos os críticos

de sua época, modernistas ou não. Continua, ainda hoje, a ser um texto antipático para a maioria

das pessoas. Mas é uma fonte inesgotável para formulações críticas. O texto invade e recepciona

críticos das mais diversas vertentes das Humanidades, sem lhes permitir decepções, tal a riqueza de

perspectivas a serem exploradas. Um livro fundamental.

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