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1 Edward Palmer Thompson: deslocamentos conceituais para os estudos do lazer e formação profissional Rodrigo de Oliveira Gomes RESUMO Edward Palmer Thompson situado como um dos autores mais expressivos da historiografia recente estabelece diálogos importantes na reflexão de termos como cultura, classe, experiência e formação. Neste caminho evidenciamos sua leitura de forma analítica e reflexiva para entendimento do lazer em seus processos de formação e atuação profissional imbricados na prática cultural das diferentes camadas populares. Este estudo tem como objetivo revisar as obras de Edward Palmer Thompson deslocando conceitualmente termos como experiência e cultura para o âmbito do lazer e suas possibilidades de formação profissional. A pesquisa bibliográfica considerou como obras de análise, prioritariamente, “Costumes em comum” e “A miséria da teoria”, além de outros autores e textos que discutem Thompson relacionados ao lazer, à história e à educação. A formação profissional em lazer deve levar em conta perspectivas educacionais que rompam com um fazer meramente técnico e que promovam entendimentos amplos a respeito das pessoas, comunidades e suas manifestações. Palavras-chave: E. P. Thompson, Lazer e Formação Profissional. Introdução Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador de pensamento e ação. Marxista inglês foi um dos intelectuais mais atuantes no campo das ciências humanas. Nasceu em Oxford na Inglaterra, no dia 3 de fevereiro de 1924, mas instruiu-se em Cambridge. Aos dezoito anos ele já era filiado ao partido comunista da Grã-Bretanha. Na Universidade de Cambridge participa com destaque do movimento estudantil. Alista-se para a II Guerra Mundial nas frentes de combate na África. Seu

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Edward Palmer Thompson: deslocamentos conceituais para os estudos do lazer e formação profissional

Rodrigo de Oliveira Gomes

RESUMO

Edward Palmer Thompson situado como um dos autores mais expressivos da historiografia recente estabelece diálogos importantes na reflexão de termos como cultura, classe, experiência e formação. Neste caminho evidenciamos sua leitura de forma analítica e reflexiva para entendimento do lazer em seus processos de formação e atuação profissional imbricados na prática cultural das diferentes camadas populares. Este estudo tem como objetivo revisar as obras de Edward Palmer Thompson deslocando conceitualmente termos como experiência e cultura para o âmbito do lazer e suas possibilidades de formação profissional. A pesquisa bibliográfica considerou como obras de análise, prioritariamente, “Costumes em comum” e “A miséria da teoria”, além de outros autores e textos que discutem Thompson relacionados ao lazer, à história e à educação. A formação profissional em lazer deve levar em conta perspectivas educacionais que rompam com um fazer meramente técnico e que promovam entendimentos amplos a respeito das pessoas, comunidades e suas manifestações.

Palavras-chave: E. P. Thompson, Lazer e Formação Profissional.

Introdução

Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador de pensamento e

ação. Marxista inglês foi um dos intelectuais mais atuantes no campo das ciências

humanas. Nasceu em Oxford na Inglaterra, no dia 3 de fevereiro de 1924, mas

instruiu-se em Cambridge. Aos dezoito anos ele já era filiado ao partido comunista

da Grã-Bretanha. Na Universidade de Cambridge participa com destaque do

movimento estudantil. Alista-se para a II Guerra Mundial nas frentes de combate na

África. Seu irmão mais velho, Frank Thompson, era sua principal influência

ideológica na luta contra o fascismo. Seus pais eram missionários metodistas:

Edward John Thompson e Theodosia Thompson lutavam contra o imperialismo

britânico na Índia.

Encerrada guerra, Thompson retoma seus estudos universitários,

interrompidos em 1942, graduando-se em História no ano de 1946. Vai trabalhar no

Departamento de Cursos "extra-muros" da Universidade de Leeds, no norte da

Inglaterra, uma região de forte tradição operária. De acordo com Alvito (2012) "extra-

muros" deriva da Idade Média, onde as universidades eram enclaves protegidos

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transmitindo a ideia ainda dominante de uma academia fechada em si mesma,

avessa ao "mundo lá fora".

Os alunos de Thompson no curso noturno (Literatura e História) eram

pessoas das camadas populares: donas de casa, funcionários, sindicalistas,

professores de segundo grau. Alvito (2012) argumenta que “nem todos os

professores estavam de acordo com esta política de abertura dos portões da

academia”. Thompson alertava sobre uma perspectiva de educação ampla que o

motivava a formar pensantes e pessoas revolucionárias.

Nesse período foi bastante influenciado por Christopher Hill1 e Maurice Dobb2,

com os quais construiu um núcleo de pensamento e estudos, denominado Marxistas

Humanistas, além de Thompson e Hill também integravam o grupo: Raymond

Williams, Raphael Samuel, John Saville, Eric Hobsbwam, Dorothy Thompson entre

outros. O primeiro livro de Thompson é uma análise do escritor, artista e socialista:

William Morris, do século XIX. Foi o primeiro trabalho importante, publicado em 1955

que trazia como objeto de reflexão a literatura.

Thompson leciona durante dezenove anos no curso noturno para

trabalhadores em Leeds. Essa experiência docente contribui de forma primaria na

elaboração de sua obra mais conhecida “A formação da classe operária Inglesa”.

Uma trilogia publicada em 1963 (Vol. I – A árvore da liberdade; Vol. II – A maldição

de Adão e Vol. III – A força dos trabalhadores) que trata de forma pontual a

constituição e articulação do pensamento da classe operária inglesa tecendo críticas

às teorias marxistas ortodoxas e as estruturas de poder que identificava na produção

industrial uma única forma de cultura e dominação material.

Em 1956 ele sai do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Tinha 42 anos. E sua

saída esteve intrinsecamente relacionada a aversão contra os crimes de Stalin. A

partir daí forma juntamente com companheiros a New Left ou Nova Esquerda

Britânica, origem da revista New Left Review3. Em 1965, com 41 anos, recebe o seu

primeiro convite para trabalhar "intramuros" na Universidade de Warwick, dirigindo

um centro de pesquisa voltado para a História Social. Em 1971 sai da universidade

depois que um grupo de alunos descobre que a direção pretendia expulsar um aluno

1John Edward Christopher Hill (1912 - 2003) historiador marxista britânico.2Maurice Herbert Dobb (1900 - 1976) economista marxista britânico3NLR foi fundada em 1960, a partir de uma fusão entre as revistas Left Review e The New Reasoner que surgiram fora das repercussões políticas da Suez e da Hungria em 1956, refletindo respectivas rejeições da ortodoxia "revisionista" dominante no Partido Trabalhista e do legado do stalinismo no Partido Comunista da Grã-Bretanha.

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por motivos políticos. Thompson pede demissão e publica ainda naquele ano o livro

Warwick University Limited, criticando a comercialização da universidade.

Na década de 70, Thompson trabalhou por breves períodos em universidades

norte-americanas e continuou sua atividade política fazendo críticas, sobretudo ao

desrespeito às liberdades civis. Em 1978 escreve “A miséria da teoria - ou um

planetário de erros”. Esta obra trás críticas ao marxismo estruturalista de Althusser

vigente na época. Ao fim da década de 80 volta a lecionar em universidades,

novamente nos Estados Unidos, mas também na Inglaterra (Manchester). Nos

últimos anos de vida, já doente, dedica o pouco tempo que lhe restava a preparar

publicações de textos escritos há muito tempo.

A obra “Costumes em comum” foi seu último legado que tinha como objetivo

central transmitir as formas do povo inglês do século XVIII de agir, negociar e fazer

escolhas autônomas, num contexto de resistências e acomodações das tradições

consuetudinárias e da emergência de mudanças comportamentais que vão

adquirindo consistência com a consolidação do capitalismo industrial na Inglaterra.

Thompson buscava entende as ações dos trabalhadores, artesãos e camponeses

evidenciando o seu protagonismo, enquanto sujeitos históricos, com motivações

racionais, autônomas e coerentes.

Para isso analisou determinados costumes emergentes das práticas, que

embora antigas, são constantemente repensadas e reformuladas a partir da

experiência em um senso de legitimidade, mesmo que entrando em confronto com

práticas pertinente ao universo das classes dominantes, buscando evidenciar uma

hegemonia de poder sempre vulnerável. Trata-se de uma análise sobre aspectos da

resistência e contra resistência nas relações entre classes.

Thompson morre aos 69 anos deixando uma bagagem teórica vasta. Além

das obras já citadas somam-se: Education and experience (1969); Senhores e

caçadores (1978); Tradición, revuelta y consciencia de clase (1979); As

peculiaridades dos ingleses e outros artigos (2001); Os românticos (2001). A

trajetória de Thompson confere significados importantes ao analisarmos suas teorias

demarcando os percursos e experiências; assim como ele mesmo diz: “as pessoas

não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do

pensamento e de seus procedimentos. Elas também experimentam sua experiência

como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura” (1981, p. 154).

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Entendendo as teorizações de E. P. Thompson.

Os escritos de Thompson centram-se na lógica da constituição da classe

trabalhadora inglesa do século XVIII. Podemos entender que a luta de Thompson

era estudar e dar compreensão ao processo de transformações que homens e

mulheres das camadas populares da época passavam. Thompson procura resgatar

a formação de ações coletivas originárias de movimentos sociais e populares

utilizando uma leitura crítica na análise de elementos da cultura popular. Segundo

Thompson (1998) compreender estes elementos de forma histórica preencheria um

vazio sentido na produção acadêmica marxista estruturalista inglesa, que

propositalmente despreza as manifestações culturais das classes baixas.

De acordo com Martins (2006) Thompson parte do princípio da dialética

marxista da historicidade e totalidade de todo fenômeno social. A história é

concebida como processo da vida real dos homens e das relações que estabelecem

entre si, entre si e a natureza, por meio do trabalho. Em todos os sentidos os

indivíduos foram afetados e produziram, em diferentes instâncias as transformações

que se deram pelo desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra. Assim como o

capitalismo; as instituições que surgiram com seu aparecimento, não se

arquitetaram num vazio histórico; relacionaram-se tensamente, com os costumes, os

sentimentos, as tradições, as capacidades, as categorias e modos de vida sociais já

existentes.

Melo (2001) atenta que Thompson esteve entre os primeiros a abrir dentro/a

partir do marxismo caminhos para a percepção da cultura como dimensão

fundamental de luta e tensão. Desta forma é entendível que sua intenção estava

longe de negar a importância dos fatores materiais. Thompson não acreditava em

uma relação hierárquica entre uma infra-estrutura (econômica) que determinaria

linearmente uma superestrutura (cultural). Com isso busca confrontar as teorias

conformistas marxistas tradicionais que refletiam apenas uma parte do todo

histórico.

Desta forma para Filho e Bertucci (2003, p.13) Thompson trata a “estrutura

(entendida não apenas como estrutura econômica, mas como os diferentes

elementos que organizados permitem a vida em sociedade) determina a ação e a

consciência humana”. Entendemos que a teoria de Thompson propõe uma história

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não linear. Uma história constituída pela articulação dos indivíduos na diferentes

posições sociais que ocupam em uma visão de processo e não de fim.

Sistematicamente podemos atentar que Thompson levanta críticas ao

determinismo e reducionismo economicista e ao racionalismo excessivos de

algumas interpretações marxistas. Ao mesmo tempo pretende resgatar costumes,

valores e relações negligenciados nas relações entre dominantes e dominados. De

forma pontual escreve por uma vertente do marxismo onde a compreensão estética,

pudesse ser ressaltada e resgatada nas relações do povo em resistir e contra resistir

ora acomodando-se ora contrapondo-se.

Considerações de E. P. Thompson sobre cultura e experiência.

Ao demarcar em suas investigações o século XVIII; os costumes e a classe

trabalhadora; Thompson precisou estabelecer as aproximações e confrontações

sobre uma cultura dita patrícia e outra intitulada plebéia. Neste termos o próprio

Thompson (1998) nos situa sobre a divisão em termos de classe ocorrida em tal

período. Havia a separação moral, ideal e material daqueles ditos de alta e os de

baixa posição social, entre pessoas ricas com bens independentes e o grupo dos

desagregados e desordeiros, entre os bem-nascidos e os sem berço.

Essa cultura popular costumeira, nutrida por experiências certamente diversas

daquelas da cultura de elite, legada por tradições orais, multiplicada pelo exemplo,

propagada pelo simbolismo e pelos rituais, encontrava-se distante e negligenciada

da cultura dos governantes da Inglaterra. É importante ressaltar que essa cultura

popular se constituía muitas vezes, relativamente independente, nem sempre ligada

à Igreja ou às autoridades, exibindo sua permanência em um campo de constantes

mudanças e disputas.

De acordo com Melo (2001) tais mudanças e disputas estavam distantes de

práticas uniformes, homogêneas e consensuais, era um espaço de tensão, nos

quais interesses opostos articulavam posições heterogêneas e conflitantes. Essa

perspectiva deixa cair por terra à passividade, que para muitos autores marxistas

ortodoxos, demarcava o pensamento da classe trabalhadora. Thompson vem atentar

para uma nova ideia sobre o termo “classe”; que é formada pelos indivíduos em sua

prática cotidiana e não imposto automaticamente por uma estrutura fixa de

pensamento hegemônico.

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Este ideário Thompsiano, só é possível, por atentar-se a uma perspectiva

histórica de cultura buscando dar sentido a uma produção vazia e muitas vezes

ingênua de teorias marxistas ortodoxas. Desta forma, para Thompson (1998, p.17)

cultura:

é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos. E na verdade o próprio termo “cultura”, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.

Por essa premissa, cultura deve ser refletida como um campo de disputas,

confrontos, divergências e contradições; inclusive no terreno popular. O conceito

vazio torna-se generalização universal, só tendo algum significado quando inserido

num contexto histórico específico. De acordo com Thompson (1998) a cultura é um

termo emaranhado que reúne diversas atividades e atributos em um só feixe,

expressando os sistemas de poder, as relações de propriedade, as instituições

religiosas e não atentar para esses fatores simplesmente produz uma visão pouco

aprofundada do fenômeno e torna a análise superficial.

Taborda de Oliveira (2008) afirma que a cultura é encarada por Thompson

(1998) como lugar de conflito marcado por uma perspectiva de classe na produção,

reprodução, circulação e dominação cultural. Ou seja, é uma prática política

cotidiana construída nas relações humanas através da transmissão dos costumes,

da economia, dos ritos, dos padrões de vida, das relações de poder, dos modos

simbólicos, da hegemonia, entre outros. Este universo articulava-se em processos

simultâneos mesclados por repressões, negociações e concessões.

Domingues (2011) afirma que a “cultura plebeia” não se autodefinia, nem era

isenta de influências externas. Assumia sua forma numa condição defensiva,

contudo em rota de colisão aos limites e controles impostos pelos governantes

“patrícios”. Isto quer dizer que coexistia uma cultura vigorosa do povo que era muitas

vezes autônoma, ora insubordinando-se, através de suas manifestações próprias

criadas por suas tradições, ora acomodando-se diante das imposições de uma

classe hegemônica.

Nesta lógica Thompson (1981) propõe o termo experiência compreendendo

que tal situação envolve o diálogo existente entre ser social e consciência social a

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muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de

acontecimento. A noção de experiência torna-se, portanto, chave para superar a

contradição entre imposição e agir humano.

Estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa experiência. Por relações determinadas indicamos relações estruturadas em termos de classe, dentro de formações sociais particulares (THOMPSON, 1981, p.111)

Thompson (1981, p.17) critica as correntes estruturalistas do marxismo

justamente por negligenciarem o diálogo entre o ser social e a consciência social. De

modo evidente, esse diálogo se processa em ambas as direções. “Se o ser social

não é uma mesa inerte que não pode refutar o filósofo com suas pernas, tampouco a

consciência social é um recipiente passivo de 'reflexões' daquela mesa”. Sendo

assim, a consciência, seja como cultura não autoconsciente, ou como mito, ou como

ciência, ou lei, ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim

como o ser é pensado, também o pensamento é vivido. “As pessoas podem, dentro

de limites, viver as expectativas sociais ou sexuais que lhes são impostas pelas

categorias conceituais dominantes” (1981, p.17).

Os homens e as mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo [experiência] – não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em seguida (muitas vezes mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON, 1981, p.182)

O que Thompson efetivamente trás nesta categoria, experiência, é a

resultante das relações constituídas através dos modos de vida dos sujeitos das

camadas populares, que mesmo em situações de opressão ou severa dominação

política e ideológica, não deixam de produzir conhecimentos contextualizados com a

organização social em que vivem. É importante destacar que “a experiência surge

espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque

homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o que

acontece a eles e ao seu mundo” (THOMPSON, 1981, p.16).

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Filho e Bertucci (2003, p.14) afirmam que o estudo da experiência permite

relacionar estrutura e processo na história e que Thompson foi levado a reexaminar

todos esses sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar e

social é estruturada e a consciência social encontra realização e expressão:

parentesco, costumes, regras visíveis e invisíveis da regulação social, hegemonia e

deferência, formas simbólicas de dominação e de resistência, fé religiosa e impulsos

milenaristas, maneiras, leis, instituições e ideologias.

As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos. Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas (THOMPSON, 1981, p. 189)

São essas pessoas que vivem a experiência da exploração, dos conflitos e

das lutas inerentes às relações de produção que trabalham isso em sua consciência.

Os valores não surgem diretamente do Estado, impostos e perpetuados, mas sim

são transmitidos e cotidianamente impregnados por homens e mulheres em seus

enfrentamentos domésticos, na rua, no trabalho, na escola, no lazer. Neste sentido,

Martins (2006) esclarece que a categoria experiência se impõe como necessária

para ajudar a evidenciar a capacidade de homens e mulheres romperem com

condições impostas.

Entretanto, Thompson tomou o cuidado de situá-la como possibilidade, e não

como um a priori dissociado de concretude histórica. “A experiência é válida e

efetiva, mas dentro de determinados limites: o agricultor 'conhece' suas estações, o

marinheiro 'conhece' seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relação

à monarquia e à cosmologia” (THOMPSON, 1981, p.16). É por isso que o

componente histórico, tão acionando por Thompson se revela primordial. Thompson

(1981) nos lembra que a história não é predeterminada e que é a ação criativa dos

homens e mulheres que fazem história, ou seja, que em última instância o que

importa ao historiador é entender o processo histórico.

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Pensando sobre Lazer e formação profissional através de E. P. Thompson.

De acordo com Melo (2001) as propostas e o pensamento de Thompson são

bastante interessantes para ampliar nossas compreensões sobre o lazer.

Principalmente ao analisarmos os divertimentos, as tabernas e os costumes dos

trabalhadores do século XVIII, tratados por Thompson e discutidos por Melo (2001)

em textos específicos4.

Nossa intenção, aqui, é dialogar sobre as possibilidades de formação de

sujeitos para atuarem no âmbito do lazer, concatenados com perspectivas como

cultura e experiência. Parafraseando Thompson, penso na tensão que sinaliza as

manifestações do lazer que estão marcadas culturalmente nos diferentes espaços,

modos, costumes, sentimentos e manifestações dos brasileiros que vivem

“experiências” resistindo e contra resistindo dentro de uma sociedade cada vez mais

urbana e consumista.

De acordo com Melo (2001), o que Thompson nos chama a atenção é para

que possamos perceber melhor como no cotidiano se estabelecem importantes

formas de resistência, muitas vezes manifestas como desordem, deficiência,

indisciplina. O lazer pode também ser encarado sob esta mesma óptica. Na atual

sociedade, que ainda vive da assertiva “tempo é dinheiro”, os momentos de lazer

ficam cada vez mais escassos e as obrigações (trabalho, escola, família) antepõem

qualquer lógica de descanso, divertimento ou desenvolvimento pessoal.

Entender os processos de formação e atuação profissional no âmbito do

Lazer pode contribuir na intervenção, análise e qualificação do campo. Formar

sujeitos para o mercado de trabalho é algo provido de vários aspectos que vai

depender dos processos de formação adquiridos, das consequências assumidas por

tais profissionais em suas práticas no mercado e do envolvimento reflexivo e crítico

na mediação dos conhecimentos.

Segundo Isayama (2004) a formação profissional em Lazer aponta um desafio

no contexto da atual sociedade que seria agregar esforços para uma formação

capaz de construir coletivamente ações teórico-práticas significativas que não

4 Ver Melo (2001) - Lazer e camadas populares: reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Melo (2010) e Lazer, modernidade, capitalismo: um olhar a partir da obra de Edward Palmer Thompson.

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mascarem ou atenuem os problemas sociais que surgem nas relações dos

indivíduos. As intervenções não devem supervalorizar ou minimizar as injustiças

sociais presentes em nossa sociedade. O papel deste sujeito é justamente propor e

organizar ações para garantir que o lazer se fortaleça enquanto um direito social,

não sendo protocolado na perspectiva “pão e circo"5

Neste entendimento percebemos como é importante fecundar possibilidades

de reflexões nos sujeitos que pretendem atuar com lazer, pois, ao adentrar no

mercado e nele interferir, várias consequências surgirão nas relações humanas.

Quando Thompson nos alerta sobre a constituição de uma classe trabalhadora

inglesa que não se condiciona aos equipamentos coercitivos do Estado

unilateralmente, compreendemos que da mesma forma os sujeitos participantes de

ações de lazer, em qualquer realidade sociocultural, também não se acomodarão

diante de ações elitizadas.

Daí tratar os indivíduos em suas potencialidades culturais (interesses,

peculiaridades, identidades, modos de vida) é indispensável ao animador cultural6

que pretende trabalhar no âmbito do lazer. É da experiência das pessoas que

podem surgir pontes eficazes de criatividade, emancipação e participação ativa nas

comunidades. Por isso Melo (2001, p.19) afirma que a “atividade de lazer é uma

experiência cultural que não é somente determinada mecanicamente pela base

econômica, nem tampouco é livre e idealizada. É fruto de expressão ativa de

relações sociais e das lutas que se estabelecem no cotidiano das camadas

populares”.

Consciente disso e partilhando das ideias de Isayama (2004) penso na

necessidade de formação de profissionais para o campo do Lazer pautado em

estudos aprofundados sobre as relações mais amplas no conjunto das vivências

lúdicas, o que pode levar a uma maior compreensão do cotidiano, considerando os

diferentes pontos de vista, interesses e conhecimentos que engloba. Marcellino

(2000) evidenciou que existe muito a se fazer na área do Lazer e as principais

5 De acordo com Marcellino (1996) a palavra lazer, com frequência é associada com experiências individuais vivenciadas dentro de um contexto mais abrangente que caracteriza a sociedade de consumo, o que, muitas vezes, implica a redução do conceito a visões parciais, contribuindo assim para o mascaramento das condições de dominação nas relações de classe, mantendo viva a expressão “Pão e circo”. Esta expressão, no antigo Império Romano,consistia em uma política de oferta de alimentos e diversão para alienar as massas e mantê-la passiva ao processo de dominação política. 6 Ver mais em MELO, Victor Andrade de. Animação cultural: conceitos e propostas. Campinas: São Paulo: Papirus, 2006.

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medidas se mostram primordialmente na formação profissional para que o mercado

de trabalho receba sujeitos com intervenção de qualidade e consequentemente

abordagens que levem desenvolvimento social.

Em fim, a formação profissional em lazer deve levar em conta perspectivas

educacionais que rompam com um fazer meramente técnico e que promovam

entendimentos amplos a respeito das pessoas, comunidades e suas manifestações.

Ao deslocarmos Thompson para nossas indagações reforçamos o comprometimento

com estudos interdisciplinares sobre experiência e cultura, o que garante esforços

de gestão e atuação em lazer empenhados na valorização dos sujeitos e suas

singularidades.

Referências

ALVITO, Marcus. Edward Palmer Thompson: uma vida extra-muros. Campos Elíseos/SP: SOCIEDADE EDITORIAL BRASIL DE FATO; 2012 abr 02 [acesso em 2012 Mai 28]; Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/content/edward-palmer-thompson-uma-vida-extra-muros

DOMINGUES, Petrônio. Cultura popular: as construções de um conceito na produção historiográfica. História (São Paulo) v.30, n.2, p. 401-419, ago/dez 2011 ISSN 1980-4369

ISAYAMA, Hélder Ferreira. Formação Profissional In: GOMES, Christianne Luce (Org.). O dicionário crítico do Lazer. Belo Horizonte: Autêntica. 2004.

FILHO, Luciano Mendes de Faria; BERTUCCI, Liane Maria. Experiência e cultura: contribuições de E. P. Thompson para uma história social da escolarização. Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp.10-24, Jan/Jun 2009.

MARCELLINO, Nelson Carvalho. O lazer na atualidade brasileira: perspectivas na formação/atuação profissional. Licere. Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p125-133, 2000. MARTINS, Suely Aparecida. As contribuições teórico-metodológicas de E. P. Thompson: experiência e cultura Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC Vol. 2 nº 2 (4), agosto-dezembro/2006, p. 113-126 www.emtese.ufsc.br MELO, V. A. Lazer e camadas populares: reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 7, n. 14, p. 9-19, 2001.

TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus A. O pensamento de Edward Palmer Thompson como programa para a pesquisa histórica em educação. Revista Brasileira de História da Educação / SBHENº 16 - Jan./Abril 2008

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______. A formação da classe trabalhadora inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3v.

______. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. UNICAMP, 2001.