Artigo Sobre Livro Geografia Da Fome (Importante)

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  • 8/19/2019 Artigo Sobre Livro Geografia Da Fome (Importante)

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    Josué de Castro e a Geografia da Fome  no Brasil

    Josué de Castro and The Geography of Hunger  in Brazil

    1 Centro de Ciências daSaúde, UniversidadeFederal de Santa Catarina,Florianópolis, Brasil.

    Correspondência

    F. A. G. Vasconcelos Departamento de Nutrição,Centro de Ciências da Saúde,Universidade Federal deSanta Catarina.Campus UniversitárioTrindade, Florianópolis, SC88040-970, Brasil. fguede s@flo ripa. com. br 

    Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos1

    Abstract

    The aim of this article is to reinterpret the clas-sic work Geografia da Fome [The Geography ofHunger], first published in 1946. The article pro-vides a summary of the five food area maps andthe main nutritional deficiencies in Brazil, basedon Josué de Castro’s original conception. Current-

    ly, the nutritional epidemiological profile identi- fied by Josué de Castro, characterized by nutri-tional deficiencies (malnutrition, vitamin defi-ciencies, endemic goiter, iron deficiency anemia,etc.), overlap with chronic non-communicablediseases (obesity, diabetes, dyslipidemias, etc.).However, the complex and paradoxical issue ofhunger is a persistently recurrent theme in Bra-zil. Given a series of current dilemmas, includ-ing the planet’s ecological sustainability and theneed to guarantee the human right to adequate,healthy nutrition, it is urgent to reawaken thestruggle led by Josué de Castro for the adoption of

    a sustainable economic development model anda society free of poverty and hunger.

    Hunger; Feeding Behavior; Nutritional Surveil-lance 

    Introdução

    Josué de Castro nasceu em 5 de setembro de1908, em Recife, Pernambuco, Brasil. Filho de umagricultor do Sertão Nordestino que em 1877, emfunção da seca, migrou para a capital, viveu suainfância e adolescência em um bairro pobre, àsmargens do rio Capibaribe 1,2,3. Em 1929, após

    concluir o Curso de Medicina da Universidade doBrasil, retornou ao Recife para dar início a umaconsagrada trajetória político-intelectual, dedi-cada, particularmente, à complexa e paradoxalproblemática da fome e suas formas de enfren-tamento 4. A sua vastíssima produção intelectu-al, de abrangência internacional, composta pormais de 200 títulos, tem sido objeto de estudo dedistintas investigações 3,4,5,6,7,8,9.

    O objetivo geral do presente artigo é realizaruma releitura do clássico Geografia da Fome , pu-blicado pela primeira vez em 1946 10. Como ob-

     jetivos específicos, em um primeiro momento,

    realiza-se uma síntese do mapa das cinco áreasalimentares do Brasil traçado em Geografia daFome , procurando identificar as principais ca-racterísticas dos seus regimes alimentares. Emum segundo momento, realiza-se uma síntese domapa das principais carências nutricionais exis-tentes no Brasil, de acordo com o delineamentode Josué de Castro 10.

    Em Geografia da Fome , Josué de Castro in-troduz os conceitos de áreas alimentares, áreasde fome endêmica, áreas de fome epidêmica,

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    áreas de subnutrição, mosaico alimentar brasi-leiro e, por conseqüência, traça o primeiro mapada fome no país. Por áreas alimentares , concebeuma determinada região geográfica que dispõede recursos típicos, dieta habitual baseada emdeterminados produtos regionais e com seus ha-bitantes refletindo, em suas características bio-lógicas e sócio-culturais, a influência marcanteda dieta. Por área de fome endêmica, concebeuma determinada área geográfica em que pelomenos metade da população apresenta nítidasmanifestações de carências nutricionais perma-nentes. Por áreas de fome epidêmica, concebeuma determinada área geográfica em que pelomenos metade da população apresenta nítidasmanifestações nutricionais transitórias. Por áre-as de subnutrição, concebe uma determinadaárea geográfica em que os desequilíbrios e as ca-rências alimentares, sejam em suas formas dis-cretas ou manifestas, atingem grupos reduzidosda população. E por mosaico alimentar brasilei-

    ro, concebe a diferenciação regional dos tiposde dieta existentes no país, oriundas das varia-das categorias de recursos naturais (alimentos)e das distintas etnias que constituíram a naçãobrasileira 9.

    De acordo com Castro 10, o método de inves-tigação que norteou a elaboração da Geografiada Fome  foi baseado nos princípios estabelecidospelos geógrafos alemães Carl Ritter (1779-1859) e

     Alexander von Humboldt (1769-1859), pelo geó-grafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918),entre outros. Para seu autor, o objetivo básico daGeografia da Fome consiste em “localizar com

    precisão, delimitar e correlacionar os fenômenosnaturais e culturais que ocorrem à superfície daterra” 10  (pp. 34-5). Assim sendo, afirma que opropósito do seu estudo foi realizar uma sonda-gem de natureza ecológica sobre o fenômeno dafome no Brasil, orientado pelos princípios geo-gráficos da localização, extensão, causalidade,correlação e unidade terrestre 10.

    Por outro lado, ao introduzir o uso dos termos fome endêmica e fome epidêmica, em nota expli-cativa, Castro faz alusão à adoção do conceito deepidemiologia da fome , explicitando a influênciaque sofreu do conceito de epidemiologia admi-

    tido por Wade Hampton Frost (1880-1938) e doconceito de epidemiologia do diabetes e do cân-cer  defendido por Wilson George Smillie (1886-1971). Sendo assim, embora explicitando suamaior identificação com o método geográfico,os aspectos biológicos, médicos e higiênicos dofenômeno da fome também são enfocados emseu ensaio ecológico.

    O mapa das áreas alimentares do Brasil

     A partir de Geografia da Fome , o país seria divi-dido em cinco diferentes áreas alimentares as-sim distribuídas: (1)  Área Amazônica – à época,abrangia os estados do Amazonas e Pará, partedos estados do Mato Grosso, Goiás e Maranhãoe os territórios do Amapá e Rio Branco; (2)  Nor-deste Açucareiro ou Zona da Mata Nordestina – àépoca, correspondia a todo o litoral nordestino,do Estado da Bahia ao Ceará, compreendendouma faixa territorial com largura média de 80km;(3) Sertão Nordestino – correspondendo, à época,às terras centrais dos estados do Piauí, Ceará, RioGrande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,Sergipe e Bahia; (4) Centro-Oeste  – compreendiaos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Gras-so; e (5) Extremo Sul  – que à época abrangia osestados da Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo,Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

    O regime alimentar da Área Amazônica

    De acordo com o mapa das áreas alimentares doBrasil (Figura 1), a Área Amazônica apresentavacomo dieta básica o consumo de farinha de man-dioca, associada ao feijão, peixe e rapadura. Emrelação aos fatores etno-culturais que influen-ciavam a constituição da dieta, Castro 10 apontaa predominância da cultura indígena sobre asculturas dos brancos portugueses e negros afri-canos. O alimento básico da dieta, a farinha demandioca, era consumido em diferentes prepa-rações sob a forma de farofas, mingaus, beijus

    e bebidas fermentadas, sendo misturado a ou-tros alimentos, oriundos da flora silvestre (frutos,sementes e ervas), da fauna aquática e terrestre(peixes, crustáceos, tartarugas, tracajás, jabutis,antas, macacos e patos), além da incipiente agri-cultura regional. Destaca o largo consumo de pi-mentas e outras ervas na preparação dos pratosregionais como uma importante contribuição dacultura indígena. Em relação aos frutos regionais,é interessante notar que, já àquela época, eleapontava algumas importantes característicasnutricionais do buriti e açaí (ricos em betacaro-teno ou vitamina A) e castanha-do-pará (proteí-

    nas completas e ácidos graxos). A conclusão doautor sobre a dieta amazônica foi que se tratavade uma alimentação pouco trabalhada e atraente  e que sua análise biológica e química revelavainúmeras deficiências nutritivas  10.

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    Figura 1

    Mapa das áreas alimentares do Brasil.

     Áreas

    Amazônica

    Nordeste Açucareiro

    Sertão Nordestino

    Centro-Oeste

    Extremo Sul

    1

    2

    3

    4

    5

    Área de fome endêmica

    Área de epidemias de fome

    Área de subnutrição

    2   F  A   R   I   N   H

      A    D   E

       M  A   N   D   I  O

      C  A  F   

    E   I   J   Ã   O   

      C   H  A   R

      Q   U   EA  I   P   I   M   

    F   E   I   J   Ã   

    O   

       T  O   U  C

       I   N   H  O

    C   A  R   N   

    E   

       M   I   L   H  O

    4

       F  A   R   I   N   H  A

        D   E

       M  A   N   D   I  O

      C  A  F   E   I   J   Ã   

    O   

       R  A   P  A   D   U

       R  AP   E   I   X   E   

    P   Ã   O   

      C  A   R   N

       E

    A  R   R   O  

    Z      B  A   T  A   T  A

    5

    F   E   I   J   Ã   O   

       R  A   P  A   D   U

       R  AC   A  R   N   

    E   

       M   I   L   H  O

    3

    O regime alimentar do Nordeste Açucareiro

    No Nordeste Açucareiro a dieta básica era o con-sumo de farinha de mandioca, associada ao fei-

     jão, aipim e charque (Figura 1). De acordo comCastro 10, esse regime alimentar era produto dainter-relação das culturas alimentares dos indí-genas da região, dos colonizadores portuguesese dos negros africanos, tendo a cultura alimentardo negro africano uma influência mais expressi-va e valorizadora sobre os hábitos alimentares doque as demais.

    Ele aponta a existência de distintas subáreasalimentares nessa região nordestina. Inicialmen-

    te, faz distinção entre duas subáreas alimentares:a litorânea e a da mata ou da cana-de-açúcar.

     Ao longo da sua abordagem aparece referência a

    uma subárea alimentar do sururu no Estado de Alagoas e à especificidade da cozinha baiana. Aofinal, também descreve a área alimentar do cacauque, à época, se estendia do Recôncavo para o sulda Bahia até o Espírito Santo 10.

    Na descrição da área litorânea destaca a ri-queza de proteínas e sais minerais, oriundos dosalimentos marinhos (peixes, moluscos e crustá-ceos) e a participação de dois produtos vegetaisde alto valor nutritivo: o coco e o caju. O cococontribuía com o aporte de gordura, proteínas e

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    sais minerais da dieta, participando de uma in-finidade de preparações típicas: feijão de coco,peixe de coco, arroz de coco, vatapá, canjica, pa-monha, mungunzá, doce de coco, cocada, entreoutras. O caju, por sua vez, era rico em vitaminas(em ácido ascórbico) e em proteínas de alto valorbiológico contidas na castanha 10.

     Vale destacar a análise apresentada sobre ostabus alimentares da região, sobretudo em re-lação ao consumo de frutas como manga, jaca,abacaxi, melancia, abacate, laranja, entre outras.Para Castro 10, o grande número de superstiçõese restrições ao consumo de certos alimentos,sem nenhum fundamento biológico, decorria dasobrevivência cultural das interdições alimenta-res impostas por questões econômicas pelos se-nhores de engenho a seus escravos e moradores.Nesse aspecto, vale lembrar que grande parte dostabus alimentares identificados continua sua re-produção no imaginário alimentar da populaçãobrasileira 11,12,13.

    O regime alimentar do Sertão Nordestino

    O Sertão Nordestino tinha como dieta básica oconsumo de milho, associado ao feijão, carne(gado, carneiro e cabra) e rapadura (Figura 1).De acordo com Castro 10, esse regime alimentartinha predominância da influência cultural colo-nial (árabe-portuguesa), sendo o mais isento dasinfluências das culturas dos índios e negros.

    O milho foi considerado o alimento básicoda dieta, sendo consumido quase que pela tota-lidade da população em quantidades considera-

    das elevadas. Constituía a base calórica da dieta,sendo usado no preparo de vários pratos típicos:cuscuz, angu, pamonha e canjica. Segundo Cas-tro 10, seu consumo associado ao do leite resul-tava numa combinação nutricional muito feliz,uma vez que a proteína caseína do leite comple-tava as deficiências em aminoácidos da proteínazeína do milho.

    O leite e seus derivados como coalhada frescaou escorrida, queijo e manteiga eram consumi-dos em abundância, constituindo alimentos in-tegrantes da dieta do sertanejo nordestino. Paracompletar o aporte de proteínas de origem ani-

    mal, observava-se o consumo habitual de carne(boi, carneiro e cabra) em distintas preparações:carne com abóbora e leite; carne-de-sol; char-que; paçoca, buchada, panelada etc. 10.

    Completava o regime habitual do sertanejonordestino o consumo de feijão (principalmentedo tipo macassar ), farinha de mandioca, batata-doce, inhame, rapadura e café. O consumo ha-bitual de frutas e verduras era muito limitado,constituindo falha visível da alimentação do ser-tanejo. Sendo assim, ele identificava a ingestão

    limitada de frutas regionais como umbu, piqui,quibá, cajarana e quixaba. Identificava tambémo consumo limitado de verduras como abóbo-ra, maxixe, e cebolinha e coentro, usados comotemperos.

    Castro 10 concluiu que o regime alimentar ha-bitual da área do Sertão Nordestino apresentava-se quantitativa e qualitativamente equilibrado,atendendo sem déficits e sem excessos às neces-sidades nutricionais do sertanejo: “É esta mesmaparcimônia calórica, sem margens a luxo, que fazdo sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnesenxutas, sem arredondamentos de tecidos adipo-sos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, àobesidade e ao diabetes, doenças essas provocadas,muitas vezes, por excesso alimentar ” 10 (p. 207).

    Entretanto, esse equilíbrio nutricional esta-va sujeito às rupturas cíclicas dos períodos deseca, quando se desorganizava completamentea economia regional e instalava-se a fome epi-dêmica. Nesse sentido, Castro 10 relata que nos

    períodos de seca o sertanejo passava imediata-mente para um regime de subalimentação, limi-tando a quantidade e a variedade de alimentos,reduzindo a sua dieta ao consumo de um poucode milho, feijão e farinha de mandioca. Quandoa seca persistia e esses recursos alimentares seesgotavam, o sertanejo lançava mão de outrasestratégias de sobrevivência, passando a consu-mir as “iguarias bárbaras” do sertão: raízes, se-mentes, frutos e animais resistentes à seca. En-tre as “iguarias bárbaras” ele destaca: farinha demacambira, xique-xique, pereira brava, macaúbae mucunã, palmito de carnaúba, raízes de umbu-

    zeiro, pau-pedra, serrote e maniçoba, sementesde fava-brava, manjerioba, beijus de catolé, gra-vatá e macambira.

    Em relação ao consumo desses alimentosexóticos Castro 10 (p. 220-1) conclui: “Quando osertanejo lança mão destes alimentos exóticos éque o martírio da seca já vai longe e que sua misé-ria já atingiu os limites de sua resistência orgâni-ca. É a última etapa de sua permanência na terradesolada, antes de se fazer retirante e descer aosmagotes, em busca de outras terras menos casti-

     gadas pela inclemência do clima”.

    O regime alimentar do Centro-Oeste

    No Centro-Oeste a dieta básica era o consumode milho, associado ao feijão, carne e toucinho(Figura 1). O prato típico foi identificado como o“tutu de feijão mineiro”, preparado à base de fari-nha de milho, feijão, gordura, toucinho e lombode porco. Esse foi considerado por Castro comode “alto valor calórico”, mas qualitativamente devalor nutritivo inferior ao do “angu ou do cus-cuz de milho com leite” da área do Sertão Nor-

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    destino, principalmente por seu teor mais baixoem cálcio e vitaminas. Entretanto, salienta que adieta básica da região ganhava valor biológico apartir do consumo associado de vegetais verdes,principalmente couve mineira, outras hortaliçase frutas, principalmente laranja, mamão, bananae abacate. Com base na análise química do regi-me alimentar, afirma que não havia deficiênciacalórica na região, pelo contrário, deveria haverexcesso calórico. Concluiu sua análise de formaum tanto preconceituosa ao afirmar que esse pa-drão alimentar resultava em “maior incidênciada obesidade e do diabete, e na formação do tipobiológico dos mineiros lentos e pesados, conserva-dores e pachorrentos ” 10 (p. 267).

    O regime alimentar do Extremo Sul

    O Extremo Sul  consumia basicamente o arroz,pão, batata e carne (Figura 1). À época, por cons-tituir a área mais rica e de maior desenvolvimen-

    to, tanto agrícola como industrial, também foiconsiderada a região de maior variedade alimen-tar, de mais alto consumo de verduras e frutase, portanto, de mais elevado padrão alimentar.

     Além dos fatores econômicos e geográficos (cli-ma, solo, pluviosidade etc.), Castro 10 ressalta osdeterminantes etno-culturais que possibilitavamdiversificação e melhoria do padrão alimentar daregião. Assim, as distintas etnias que migrarampara a região, compostas por italianos, japone-ses, alemães, poloneses, lituanos, entre outros,em muito contribuíram para a constituição doseu diversificado mosaico alimentar. Ele desta-

    ca a presença de distintas subáreas alimentaresnessa região: (1) Subárea de influência italiana,caracterizada pelo largo consumo de trigo soba forma de macarrão, ravioli  e spaghetti ; (2) Su-bárea localizada no Rio Grande do Sul, caracte-rizada pelo complexo alimentar do churrasco edo mate-chimarrão; (3) Subárea de influência

     japonesa, localizada em torno da capital de SãoPaulo e outros centros urbanos, caracterizadapor abundante consumo de verduras; e (4) Su-bárea de influência germânica, caracterizada porum consumo mais freqüente de aveia, centeio,lentilhas, hortaliças, frutas, carne de porco (sal-

    sichas, bacon, presunto, defumados), pão preto,chucrute e cerveja.

    O mapa das carências nutricionaisdo Brasil

    As carências nutricionais da Amazônia

     A Região Amazônica, considerada uma das áreasde fome endêmica, caracterizava-se pela presen-

    ça de deficiências protéicas, vitamínicas e de saisminerais (Figura 2). À época, as carências nutri-cionais endêmicas eram: carências protéicas, devitamina B2 (arriboflavinose); de ferro (anemias)e de cloreto de sódio. As formas frustas ou subclí-nicas eram: carências protéicas; de vitaminas A,B1 e niacina (pelagra) e de cálcio (sem manifes-tação de raquitismo). A carência de vitamina B1(beribéri) aparecia em forma típica epidêmica.Em relação ao beribéri, vale ressaltar que ele des-taca o período de 1870 a 1910, conhecido comociclo econômico da borracha amazônica, comouma fase epidêmica desta carência nutricionalna região. Ressalta-se ainda a interessante aná-lise que ele faz sobre a associação entre a insufi-ciência alimentar quantitativa, caracterizada porum baixo consumo calórico, a adaptação orgâ-nica forçada a partir desta situação permanentee a apregoada preguiça dos povos dessa regiãoequatorial. Para Castro 10 (p. 76), “a preguiça dospovos equatoriais é um meio de defesa ou sobre-

    vivência, funcionando como um sinal de alarmenuma caldeira que diminui a intensidade de suascombustões, quando lhe falta o combustível ”.

    As carências nutricionais doNordeste Açucareiro

    O Nordeste Açucareiro, considerado uma área defome endêmica, apresentava como manifesta-ções diretas da deficiência do regime alimentar:carências calóricas, protéicas, de vitaminas e mi-nerais. As formas endêmicas das carências nutri-cionais identificadas foram: carências protéicas,

    de vitaminas A, B1 e B2 e dos minerais ferro ecloreto de sódio. As manifestações subclínicasidentificadas foram: carências protéicas; de vi-taminas B1, C (escorbuto) e niacina e do mineralcálcio (Figura 2) 10.

    Castro destaca que em conseqüência da de-ficiência calórica da dieta, decorria a reduzidacapacidade de trabalho do nordestino da Zonada Mata, em relação aos trabalhadores mais bemalimentados de outras regiões do país. Chama aatenção para uma possível associação entre a de-ficiência permanente de proteínas da dieta e osíndices de baixa estatura dos habitantes do bre-

     jo nordestino, os trabalhadores dos engenhos eusinas de açúcar. Como confronto, também cha-ma a atenção para uma possível associação en-tre a dieta rica em proteínas e sais minerais e osíndices de estatura elevada dos habitantes do li-toral, as populações costeiras de pescadores.

     Ao descrever o mapa das carências de vitami-nas A, B1, B2, C e niacina, relativiza a magnitudee a gravidade do quadro, ressaltando que estascarências não eram tão abundantes como deve-ria se esperar. Como exceção, destaca a carência

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    é referido, segundo o qual 40% dos escolares dacidade de Salvador (Bahia) apresentavam baixastaxas de hemoglobina 10.

    Ressalta-se ainda a importante análise rea-lizada a respeito das conseqüências do consu-mo alimentar excessivo ou desequilibrado ve-rificado entre os habitantes mais abastados, ossenhores de engenhos e suas famílias. De acordocom Castro 10, a dieta com excesso de carboidra-tos, sobretudo, com excesso de açúcar e falta defrutas, apresentava como conseqüência a gran-de incidência de diabetes e avitaminoses B emcertas famílias de senhores de engenhos. Nesseaspecto, faz uso de uma brilhante metáfora: “Oaçúcar em excesso de sua dieta desequilibrandoas trocas metabólicas, como a cana desequilibroude maneira tão nociva o metabolismo econômicoda região. É como se a terra se vingasse do homem,

     fazendo-o sofrer de uma doença semelhante àsua – o organismo todo saturado de açúcar ” 10 (pp. 155-6).

    As carências nutricionais doSertão Nordestino

    De acordo com Castro 10, a área do Sertão do Nor-deste caracterizava-se pela atuação de um tipode fome diferente, aquela que se apresentava emsurtos epidêmicos ou agudos nos períodos de se-ca ou estiagem. Eram epidemias de fome globalquantitativa e qualitativa que afetavam de formabastante violenta e sem discriminação todos oshabitantes da região. Apresentava como formasendêmicas: carências protéicas, de vitaminas A,

    B1, B2, C e niacina e dos minerais cálcio, ferro ecloreto de sódio. A carência de iodo (bócio) apre-sentava-se em sua forma subclínica (Figura 2).

    As carências nutricionais do Centro-Oeste

     A área do Centro-Oeste foi considerada comouma “área de subnutrição, de desequilíbrio e decarências parciais, restritas a determinados gru-pos ou classes sociais ” 10  (p. 265). A única formaendêmica descrita foi a carência de iodo (bócioendêmico). As carências de proteínas, de vita-mina B1, de ferro e de cloreto de sódio foram

    identificadas como formas típicas esporádicas. As carências de vitaminas A, B1, B2, C e niacinae de cálcio foram identificadas em suas formasfrustas (Figura 2) 10.

    Em relação ao bócio endêmico, relata que es-ta deficiência nutricional grassava no país desdeos tempos coloniais, apresentando maior inci-dência nos estados de Minas Gerais, São Paulo,Rio de Janeiro, Paraná, Goiás e Mato Grosso. Deacordo com Castro 10, à época, estudos realiza-dos com escolares de Minas Gerais e São Paulo

    verificaram incidências de 44% e 60% de bócioendêmico, respectivamente.

    As carências nutricionais do Extremo Sul

    O Extremo Sul também foi considerado uma áreade deficiências alimentares discretas e menosgeneralizadas, apresentando “carências parciais,restritas a determinados grupos ou classes sociais ” 10 (p. 265) Era a região que tinha o melhor perfilepidemiológico nutricional. As carências de vita-minas A, B2, C e niacina, de cálcio e de ferro apa-reciam em suas formas subclínicas. A carênciade vitamina D (raquitismo) aparecia sob formatípica esporádica. A carência de iodo manifesta-va-se de forma endêmica (Figura 2). Entretanto,ao concluir sua análise ele faz um alerta sobre oaumento da incidência da carência de proteínas,que se manifestava em quadros típicos de kwa-shiorkor , entre crianças das classes pobres e pro-letárias dos grandes centros urbanos da região,

    principalmente Rio de Janeiro e São Paulo 10.

    Considerações finais

     A releitura de Geografia da Fome  evidencia quãoviva, polêmica e sedutora permanece esta obrasexagenária. Nos dias atuais, ao perfil epidemio-lógico nutricional traçado por Josué de Castro,caracterizado pelas carências nutricionais (des-nutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico, ane-mia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doençascrônicas não-transmissíveis (obesidade, diabe-

    tes, dislipidemias etc.). Nesse aspecto, tanto omapa das cinco áreas alimentares como o dasprincipais carências nutricionais existentes noBrasil traçados em Geografia da Fome   precisamser redesenhados em função deste novo per-fil epidemiológico nutricional brasileiro. Tarefaimprescindível, mas que ainda está por vir. Aquestão da complexa e paradoxal problemáticada fome, entretanto, permanece como uma te-mática recorrente no Brasil. Portanto, diante dealguns dilemas da atualidade, tais como aquelesque dizem respeito à sustentabilidade ecológicado planeta e à garantia do direito humano à ali-

    mentação, torna-se imperante reacender a lutadefendida por Josué de Castro pela adoção de ummodelo de desenvolvimento econômico susten-tável e uma sociedade sem miséria e sem fome.

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    Resumo

    O objetivo deste artigo é realizar uma releitura do clás-sico Geografia da Fome, publicado pela primeira vezem 1946. Realiza-se uma síntese dos mapas das cincoáreas alimentares e das principais carências nutricio-nais existentes no Brasil, de acordo com o delineamen-to realizado por Josué de Castro. Nos dias atuais, aoperfil epidemiológico nutricional desenhado por Jo-sué de Castro, caracterizado pelas carências nutricio-nais (desnutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico,anemia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doençascrônicas não-transmissíveis (obesidade, diabetes, dis-lipidemias etc.). Entretanto, a questão da complexae paradoxal problemática da fome permanece comouma temática recorrente no Brasil. Diante de algunsdilemas da atualidade, tais como aqueles que dizemrespeito à sustentabilidade ecológica do planeta e à

     garan tia do direito human o à alimenta ção, torna-seimperante reacender a luta defendida por Josué deCastro pela adoção de um modelo de desenvolvimentoeconômico sustentável e uma sociedade sem miséria esem fome.

    Fome; Comportamento Alimentar; Vigilância Nutri-cional 

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    Recebido em 04/Jul/2008 Versão final reapresentada em 27/Ago/2008 Aprovado em 04/Set/2008