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TRABALHO, FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMEM/MULHER REFLEXÕES A PARTIR DO CASO JAPONÊS Helena Hirata Introdução Uma problemática da divisão do trabalho, considerada sob o ângulo das relações sociais de sexo e classe, é convergente com uma abordagem da questão salarial: a que concebe o assalariamento no quadro da "articulação entre relações sociais fora do trabalho e processo de trabalho" (1), em ruptura, portanto, com as análises feitas tradicionalmente pela economia política. De fato, uma determinada corrente teórica na França considera cada vez mais indispensável a análise do trabalho doméstico, da família, do não-mercantil, para compreender ou mesmo definir a relação salarial. Esta contribuição pretende justamente questionar o estatuto do conceito de força de trabalho como mercadoria, mostrando que a aparência de trabalhadores livres e supostos iguais desmorona se tomarmos em consideração a existência ─ no terreno da exploração do trabalho ─ de relações de opressão ou de dominação em vigor na esfera não-mercantil.

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TRABALHO, FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMEM/MULHERREFLEXÕES A PARTIR DO CASO JAPONÊS  Helena Hirata   Introdução 

Uma problemática da divisão do trabalho, considerada sob o ângulo das relações sociais de sexo e classe, é convergente com uma abordagem da questão salarial: a que concebe o assalariamento no quadro da "articulação entre relações sociais fora do trabalho e processo de trabalho" (1), em ruptura, portanto, com as análises feitas tradicionalmente pela economia política.

De fato, uma determinada corrente teórica na França considera cada vez mais indispensável a análise do trabalho doméstico, da família, do não-mercantil, para compreender ou mesmo definir a relação salarial.

Esta contribuição pretende justamente questionar o estatuto do conceito de força de trabalho como mercadoria, mostrando que a aparência de trabalhadores livres e supostos iguais desmorona se tomarmos em consideração a existência ─ no terreno da exploração do trabalho ─ de relações de opressão ou de dominação em vigor na esfera não-mercantil.

Exemplos de reaparecimento, no domínio das relações de produção, dás relações sociais existentes fora da esfera produtiva, podem ser dados: é o caso das "cantadas" nas empresas, a respeito das quais várias pesquisas estão sendo iniciadas ─ impulsionadas pelos movimentos feministas ─ e que mostram a reiteração, no quadro da empresa, das relações de opressão e violência dos homens sobre as mulheres existentes na sociedade.

É também o caso do "paternalismo" ou do "familiarismo" nas empresas japonesas, onde as relações pai/filho, pai/filha são transpostas na esfera salarial, com tudo o que isso acarreta de disciplina, autoridade, afetividade e, portanto, de distante da imagem do assalariado enquanto "livre vendedor de sua força de trabalho" (estudaremos mais adiante o caso exemplar dos dormitórios industriais de mulheres no Japão contemporâneo).

Procuramos, neste -texto, estudar os modos de articulação entre os locais de reprodução (em especial a família) e o trabalho profissional, a partir de uma pesquisa

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comparativa entre os modelos dominantes das relações sociais de sexo e classe nas sociedades capitalistas ocidentais e no Japão.

Nossa abordagem consistiu em considerar conjuntamente os homens e as mulheres, as estruturas familiares e o sistema produtivo: não se tratava de tomar como objeto de estudo as mulheres ou o trabalho das mulheres na esfera assalariada ou doméstica, como tem feito a sociologia do trabalho ou a sociologia da família clássica (2). Não se trata tampouco de um trabalho sobre á família japonesa ou sobre as famílias ocidentais - a respeito das quais existem trabalhos especializados (3), na medida em que nossa reflexão diz respeito apenas à articulação entre o espaço familiar e o profissional.

A comparação com o Japão é, a nosso ver, particularmente esclarecedora na medida em que os limites de demarcação entre trabalho e força de trabalho são, nesse país, tão pouco definidos quanto os que separam o indivíduo do grupo ou as horas de trabalho das horas extratrabalho. Queremos aqui insistir sobre uma dimensão essencial, a nosso ver, da sociedade japonesa: o modo de articulação entre sistemas produtivos e estruturas familiares sob a forma de fronteiras pouco definidas entre público e privado, profissional e pessoal, trabalho e extratrabalho, empresa e sociedade: Este tipo de articulação é que possibilita uma política de gestão da mão-de-obra baseada mais sobre a pessoa do que sobre sua força de trabalho, sobretudo em se tratando de assalariados homens de grandes empresas. Há, na realidade, um distanciamento do assalariamento "clássico" ocidental, e do rapport capitalista em sua visão eurocentrista, tal como o expressa, por exemplo, Joaquim Hirsch: "Quanto mais a troca entre produtores privados se desenvolve, com a penetração da sociedade burguesa, mais o valor de troca está na origem da coesão social, e mais cedo desaparecem a possibilidade e a necessidade de instaurar a coesão da sociedade através das formas de dependência pessoal e de sujeição direta"(4).

Pois, se a partir do caso dos países ditos "subdesenvolvidos", por exemplo, a América Latina, foi possível demonstrar que não há um único capitalismo, um único modo de assalariamento, um único tipo de desenvolvimento, refere-se pouco ao caso do Japão para criticar pontos de vista de tipo eurocentrista.

O capitalismo japonês alimenta-se, justamente, dessas relações "de dependência pessoal e de sujeição direta". É, na realidade, esse tipo de laços que torna a hierarquia na esfera profissional tão eficaz quanto a que prevalece no âmbito da família. Ao mesmo tempo, ele organiza suas práticas de gestão baseando-se sobre o grupo familiar e sobre as relações de casal predominantes na sociedade japonesa. Vejamos assim as horas extras não remuneradas (5); as horas de lazer fora da empresa para cimentar a coesão do coletivo de trabalho, os círculos de controle de qualidade que servem para discutir e resolver os problemas do local de trabalho mas que, em 30 a 60% dos casos, de acordo com as diferentes fontes, reúnem-se fora das horas de trabalho, à noite, durante os fins de semana, e sem remuneração adicional.

É fácil perceber que essas horas extras, essas atividades de grupo, esses círculos de controle de qualidade, têm uma incidência direta sobre o tempo de laser e sobre o tempo de vida familiar Todas essas atividades, na realidade, só podem existir porque as mulheres, em seus lares, se encarregam da totalidade das tarefas domésticas e da educação dos filhos, e na medida em que o casal sacrifica seu tempo de lazer e até de coabitação (6).

 Família e mobilidade interna no Japão

Uma prática de gestão comum no Japão ─ a mobilidade intra-empresa ─ constitui um exemplo extremo desse sacrifício do tempo de coabitação pelo casal em proveito da empresa. Substituindo a mobilidade interempresa ─ fenômeno comum nos

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países ocidentais mas quase existente nas grandes empresas japonesas onde o recrutamento se dá na saída da escola e a carreira se desenvolve dentro de uma única empresa ─, uma das formas de mobilidade (7) consiste na transferên cia, de um estabelecimento para outro, dentro de uma mesmo grupo industrial.

Essas transferências atendem a objetivos múltiplos (promoção, formação profissional, necessidades de mão-de-obra experimentada nos momentos de reestruturação industrial e de mudança) (8), e mostram de forma exemplar como as estruturas familiares, a relação com os filhos e a relação homens/mulheres existentes na sociedade são aproveitadas pela empresa capitalista. Assim, o caso de um executivo entrevistado por nós, que foi transferido 14 vezes entre 9 diferentes unidades de produção entre 1943 e 1980. Casado em 1950 e pai de três filhos, ele coabitou apenas muito excepcionalmente com sua família durante esses anos de transferência.

Essas viagens sistemáticas, às vezes muito demoradas, dos maridos para outras regiões geográficas, levam geralmente as mulheres a assumirem a total responsabilidade do lar, e os homens a encarregarem-se das tarefas domésticas (limpeza, louça, roupa) nas casas colocadas à disposição pela empresa. Essa separação do marido do resto da família é motivada pelo cuidado em assegurar a continuidade na escolaridade das crianças (a freqüência dessas transferências, as dificuldades próprias ao sistema escolar japonês exigindo tal separação). Ela também pode ser de longa duração quando se trata de deslocamentos para o exterior para gerenciar a filial de uma firma multinacional (9).

A aceitação resignada dessas transferências tem sua explicação, a nosso ver, no interior mesmo do sistema de emprego que permite atribuir ao grupo e não ao indivíduo as responsabilidades e as tarefas produtivas. Esse sistema baseia-se num modo de remuneração ligado mais ao tempo de casa que ao posto de trabalho, num emprego muito estável e a longo prazo (para os trabalhadores homens, com estatuto regular, das grandes empresas) e numa valorização da atividade coletiva, eliminando tanto as responsabilidades quanto as performances estritamente individuais.

O tenkin só é possível, inclusive, na medida em que o sistema de salário e a organização de trabalho não se baseiam sobre o posto individual e a qualificação do trabalhador.

Por outro lado, as práticas de mobilidade interna são aceitas na medida em que sua recusa levaria à exclusão do grupo, à perda irremediável do salário e estatuto adquiridos na empresa. De fato a resistência sistemática à mobilidade pode ter conseqüências negativas sobre a promoção ou sobre a remuneração (sobre o "bônus", que constitui um elemento importante do salário). Ao mesmo tempo, essa mobilidade substitui ─ formando o empregado através de atividades e experiências novas a mobilidade interempresas tal como é praticada no mundo do trabalho ocidental.

Porém, pode ser levantado um segundo nível da explicação a respeito mais diretamente da relação homens/mulheres e das relações de casal predominantes na sociedade japonesa. Apresentou-se o indivíduo como uma categoria do capitalismo moderno e como base das relações amorosas no Ocidente (10). Porém, o indivíduo ─ cuja existência está na base da relação amorosa, relação esta que constitui o fundamento do casamento nas sociedades européias ─ é no Japão reprimido ou ausente, em todo caso, de pouco peso em relação ao grupo. Ainda hoje os casamentos arranjados constituem quase 40% do total de casamentos (11). A separação não pode ser recebida da mesma forma por casais que, sem se conhecer antes, casaram-se via apresentação de parentes ou conhecidos. Nos países ocidentais, onde o casamento baseia-se essencialmente na relação amorosa, portanto na existência de indivíduos, uma transferência dos maridos sem sua família durante meses, ou mesmo anos, não poderia ser aceita, e transferências até mais curtas ou ausências menos freqüentes poderiam

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facilmente constituir motivo de divórcio ou separação. Ademais, as mulheres casadas não exercendo geralmente, no Japão, atividades remuneradas, dependem financeiramente de seus maridos, o que torna o divórcio praticamente impossível (12).

 Salário, produtividade e esfera reprodutiva

Outro aspecto do capitalismo japonês deve ser lembrado. Trata-se da especificidade da remuneração do trabalho e das fontes -─ extra-empresas -─ de produtividade.

À pergunta sobre "o que paga o salário no Japão", pelo menos para os assalariados regulares de sexo masculino das grandes empresas, pode-se responder dizendo que o salário não paga a qualificação nem a experiência profissional na medida em que ele é um seikatsu-hi tingin (a remuneração para viver). Fundamentalmente determinado pelas necessidades de reprodução em cada etapa da vida do trabalhador, o salário é adaptado às características da pessoa: é um zoku jin kyu (salário personalizado) (13). Se ele paga a pessoa, a servidão, a lealdade, a polivalência, e a "dependência" no sentido próprio da palavra, ele não paga as horas extras -─ de mais de 6 horas por dia a partir do primeiro escalão hierárquico -─ nem as férias ─ as férias remuneradas existem legalmente mas são negadas na prática habitual das empresas japonesas ─, nem o trabalho das mulheres e da família em benefício da empresa. Nessa medida, só se pode pensar o salário no interior da articulação produção/reprodução, o que diz muito justamente Bernard Dingman, sem partir do caso japonês:

"A análise do salário é então inseparável da análise dos processos de produção/reprodução dessa mercadoria particular e, portanto, da especificidade desses processos que articulam e atravessam os espaços da produção e da circulação, da produção e da reprodução grifos nossos), mas também da reprodução das mercadorias e da reprodução social" (Dingman, p. 145) .

Essas características do salário são reforçadas pela importância que assumem os modos não-monetários de remuneração ─ as recompensas de ordem simbólica como, por exemplo, os almoços com os diretores da empresa, nas atividades dos "círculos de controle de qualidade" ─,que parecem indicar um grau de generalização da forma mercadoria muito diferente do fetichismo do capitalismo europeu. Tudo isso tem conseqüências sobre o enfoque da produtividade do trabalho no caso japonês.

Se Philippe Zarifian nota a importância do tempo de socialização sobre o nível de produtividade (Zarifian, 1985, p. 7), pensamos que é preciso ir além e analisar a natureza das relações sociais que torna possível a incorporação desse tempo na produção.

Se integrarmos os elementos indicados anteriormente, o problema econômico da produtividade muito elevada do trabalho deve ser considerado diferentemente e não apenas em termos de organização do trabalho assalariado. Essa produtividade, na realidade, baseia-se amplamente, na organização da vida familiar e no sacrifício da chamada "vida privada" em benefício da empresa (horas extras não remuneradas; atividades de círculo de controle de qualidade; supressão voluntária das férias; mobilidade geográfica do assalariado sem a sua família, na ocasião de uma nova implantação industrial etc.). Finalmente, um questionamento das estatísticas sobre a produtividade do trabalho, baseadas sobre as horas de trabalho declaradas pela empresa, revela-se assim absolutamente indispensável.

 Casamento e atividade profissional das mulheres

Se a organização da vida familiar é o fundamento da produtividade japonesa, é preciso interrogar-se sobre as razões da aceitação de um modelo original de inserção

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das mulheres nas fábricas japonesas; as operárias praticamente nunca têm mais de 24 anos. O casamento constitui o marco a partir do qual todo trabalho assalariado deve ser interrompido, pelo menos durante um longo período, o que não é ─ ou deixou de ser ─ o caso nos países ocidentais.

A maioria das mulheres deixa o mercada de trabalho para criar os filhos e só volta quando quinze anos de trabalho doméstico terminaram por inutilizar sua qualificação inicial. Se os dados numéricos estão próximos dos da França ─ eles mostram que as mulheres casadas constituem 57,6% da população assalariada feminina (Prime..., 1981) em 1980 e 64% do conjunto dás mulheres. na população feminina empregada em atividades não-agrícolas (Statistical..., 1981) em 1980 ─, eles ocultam realidades bastantes diversas: de fato, o aumento do número de mulheres casadas ativas nestes últimos anos deve-se fundamentalmente ao crescimento da participação de mulheres mais velhas que já criaram seus filhos; é preciso interpretar a alta porcentagem de mulheres casadas na população ativa feminina no Japão sabendo que 20% das mulheres em 1980 ─ segundo alguns, o dobro em 1983 ─ trabalha em tempo parcial, em condições muito precárias, sem garantias sociais e sem nenhum direito sindical (14).

Essa realidade pode ser explicada num primeiro momento pela estrutura e pelo tipo de emprego feminino no Japão ─ pouco interessante, mal remunerado, sem perspectiva de carreira. Porém, a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional e a falta de qualificação dos postos oferecidos às operárias não constituem uma realidade exclusivamente japonesa.

Pensamos, por isso, que uma melhor explicação pode ser encontrada na existência, absolutamente institucionalizada, de uma "filière" masculina e de uma "fitière"feminina no Japão, a filière masculina constituída pela carreira profissional e a feminina por progressões que podem ser realizadas nas artes domésticas japonesas, artes tipicamente femininas e praticadas em grande escala (15). Essas artes domésticas, entre as quais as mais representativas são o arranjo de flores (ikebana), a cerimônia do chá, a confecção do kimono (wassai), a música e a dança tradicionais, são coroadas por diplomas, o aperfeiçoamento podendo estender-se por dezenas de anos. A valorização social dessas filières tipicamente femininas tem como contrapartida uma exclusão sistemática das carreiras no mundo do trabalho assalariado. Essas filières paralelas e exclusivas de cada um dos sexos só podem ser reforçadas pelo fato de que a sociedade associa as mulheres à educação das crianças e à vida do lar, e os homens, à vida pública e à empresa. O Estado só encoraja essa divisão sexual, incentivando-a por uma total falta de participação de equipamentos sociais (inexistência de creches, as crianças permanecendo em geral com a mãe ou com a avó, obrigação de preparar marmitas por falta de restaurantes escolares etc.).

A ideologia em vigor apresenta também como extremamente positiva e importante a tomada das responsabilidades de gestão da economia doméstica pelas mulheres, que administram o orçamento familiar, permanecendo com o salário do marido, prática esta que parece não ser equivalente nos países ocidentais.

O fundamento material da reprodução deste modelo ─ onde o estatuto das mulheres na família é representado como uma fi- lière absolutamente distinta e em nada inferior ─ consiste na desigualdade dos salários masculinos e femininos ─ uma das mais acentuadas no mundo ─ que faz do casamento não apenas uma pré-condição para a integração social das mulheres, mas também uma alternativa ao trabalho profissional em termos de renda.

 Família e gestão da mão-de-obra

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Tratamos até aqui de um primeiro aspecto de articulação entre vida reprodutiva e produção: o trabalho profissional e as estruturas familiares. Trataremos agora de um segundo aspecto dessa articulação: o modelo familiar na gestão da mão-de-obra.

De fato, há reprodução, ou transferência/transposição na área do trabalho assalariado, e em especial nas relações hierárquicas dentro da empresa, das relações sociais existentes fora da relação salarial, e que supostamente não são constitutivas das relações entre trabalhadores "livres e iguais". Pensamos na transposição/transferência das relações homens/mulheres presentes na prática das "cantadas" e na transposição/transferência das relações pai-filho na prática do "paternalismo" ou do "familiarismo" na empresa japonesa moderna.

Na medida em que não temos elementos de pesquisa sobre as práticas de "cantadas" nas empresas no caso do Japão, limitar-nos-emos aqui ao estudo do modelo familiar na gestão da mão-de-obra.

O estudo das relações paternalistas de produção no Japão mostra até que ponto é discutível a definição comum do paternalismo pela existência de benefícios sociais diversos. Esse sentido, que define o paternalismo por seus atributos, termina indicando mais as conseqüências de uma política, e não diz nada sobre o que constitui sua essência: a superposição direta das relações de tipo salarial sobre as estruturas familiares e as relações de parentesco.

De fato, a prática paternalista implica numa transposição da relação familiar nos locais de produção, constituindo assim uma outra modalidade de relações sociais: a análise dessas relações é, claramente, mais importante que a enumeração descritiva das vantagens que a empresa japonesa oferece hoje a seus assalariados. Estas não diferem dos privilégios de que se' beneficiam os assalariados de grandes empresas de países ocidentais. Pelo contrário, dada a especificidade da família japonesa e das relações homem/mulher existentes na sociedade, o paternalismo na indústria no Japão tem uma configuração única, revestindo aspectos extremamente originais em sua instalação e reprodução. Ele pode até ser considerado como uma dimensão essencial da política de gestão da mão-de-obra na empresa japonesa, valendo tanto para as fábricas de mulheres (têxtil e eletrônica), quanto para as fábricas de homens (petroquímica, siderúrgica, bens de capital etc.). A seguir, os casos analisados mostrarão até que ponto uma mesma política pode ter configurações diferentes e fundamentos opostos em se tratando de uma mão-de-obra masculina ou feminina.  O paternalismo como política de gestão do trabalho e do extratrabalho

O paternalismo transforma em princípio hierárquico a relação de lealdade que se deve aos mais velhos e que os filhos devem aos pais. Esse princípio se traduz, ao nível da gestão da empresa, por critérios de promoção as qualidades pessoais de fidelidade e obediência pesam tanto (ou mais) quanto a performance profissional; por modos de aprendizagem nos quais os velhos formam os mais novos; e por um sistema de salários no qual as necessidades familiares são levadas mais em conta que a performance profissional.

O sistema de liderança fica assim modelado por esse afrouxamento relativo dos limites entre empresa e família, as relações existentes dentro da unidade familiar podendo modelar a prática dos chefes. O chefe do grupo, o superior, o diretor da empresa, dispõem, de fato, do subordinado como um pai dispõe de seu filho: enquanto pessoa, e não apenas enquanto força de trabalho, controlando seu tempo de trabalho e seu tempo fora do trabalho. O chefe é, claramente, não apenas a autoridade, mas também o pai, o que implica em poder de comandar, educar, ordenar, com os corolários que isto supõe: ser obedecido, aceito em seu papel de educador pela boa vontade na

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aprendizagem por parte do subordinado. Essa regra geral é modulada segundo se trate de homens ou de mulheres: nas fábricas de mulheres, o paternalismo é o poder da chefia masculina sobre as operárias. Nesse caso, ele significa uma situação de inferioridade, de subordinação e obediência das mulheres, que rege as relações entre mão-de-obra feminina e masculina na empresa. A relação paternalista, em se tratando de mulheres, é freqüentemente sinônimo de infantilização, relação pai/criança mais que relação pai/ ,filho-filha.

A adoção dessa política paternalista de gestão da mão-de-obra é possibilitada por um sistema de emprego que assegura uma estabilidade muito grande aos assalariados homens (emprego chamado "vitalício", na realidade, a muito longo prazo) (16) e uma instabilidade fundamental às assalariadas mulheres (uma operária passa sua vida na fábrica dos 18 aos 24 anos, após os estudos secundários e antes do casamento). O tipo de política paternalista nas indústrias empregando mão-de-obra masculina é possibilitado por esse tipo de emprego, combinado à promoção por tempo de casa e à baixa taxa de desemprego. Esse tipo de política nas fábricas de mulheres só é possível por elas serem muito novas e solteiras e por estarem sob uma relação de assalariamento por muito pouco tempo. 1. O paternalismo numa empresa de mão-de-obra masculina

É essencialmente ao nível de seus critérios de promoção que o modelo paternalista e "familiar" é implementado nessa empresa. O diretor de pessoal (recursos humanos) do grupo. que conhece pelo nome seus 5.000 subordinados diretos, integra as qualidades vida "pessoal" e "privada" na avaliação dos indivíduos. As qualidades humanas são os critérios explicitamente evocados para a promoção dos assalariados: ter jimbo (estima, popularidade, prestígio), ou ninjo (sentimentos humanos, humanidade, piedade), aptidões humanas "essenciais para um bom chefe de família e para um bom líder".

A capacidade procurada consiste em fazer bem seu trabalho e, ao mesmo tempo, "cuidar do enterro de um parente próximo do trabalhador", "resolver um desentendimento: entre o trabalhador e sua esposa" etc. Inversamente, os "defeitos" ─ atitudes fora do trabalho, comportamento na família etc. ─ também pesam no julgamento das aptidões do trabalhador para uma promoção.

A adoção do modelo de relação familiar na empresa está também presente na definição dos escalões hierárquicos. De acordo com esse mesmo diretor de recursos humanos, o "líder do grupo (hancho) é a mãe, o contramestre (kocho) o pai", significando a proximidade do primeiro escalão hierárquico em relação ao grupo operário, e a autoridade do escalão superior de comando.  2. O paternalismo nas indústrias com mão-de-obra feminina

O exemplo mais claro das relações paternalistas nas fábricas femininas é, sem dúvida, o funcionamento dos dormitórios industriais de mulheres no Japão contemporâneo. Este regime de funcionamento, que apaga completamente o limite entre a vida produtiva e o "extratrabalho", era comum nas fábricas têxteis na Europa e nos Estados Unidos no século XIX (17), mas as mudanças sociais, a evolução das relações entre sexos, o desenvolvimento do trabalho assalariado tornaram progressivamente difícil a reprodução desse sistema nas empresas ocidentais que utilizam trabalho feminino. Esses dormitórios industriais abrigam a mão-de-obra feminina das fábricas do setor tradicional (têxtil), mas também das indústrias dinâmicas e "de ponta" (eletrônica) (80% dos efetivos femininos das fábricas pesquisadas em 1982 ali residia).

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Uma primeira característica da prática paternalista nesses dormitórios consiste no fato da indústria encarregar-se do alojamento e da educação das operárias.

O regime dos dormitórios transpõe a hierarquia familiar e, mais especificamente, o papel paterno, para gestão da mão-de-obra, criando uma relação de autoridade e, ao mesmo tempo, de proteção e educação das jovens operárias, cuja responsabilidade direta incumbe ao próprio diretor da fábrica, assimilado ao pai.

Esse sistema, combinado à educação escolar antes ou depois do trabalho em equipes, transfere para a empresa as tarefas dos pais: educação moral e social, aprendizagem das normas de comportamento e obrigações de uma mãe de família e dona-de-casa e ─ em contrapartida ─ a concessão de todos os direitos dos pais aos chefes de empresa: o de castigar, de expulsar e controlar cada momento da vida no trabalho e de lazer dai jovens operárias.

Os chefes de fábrica cuidam, de fato, de três aspectos importantes da vida de seus subordinados, que caracterizam amplamente a vida cotidiana dessas operárias e o sistema dos dormitórios em si. Em primeiro lugar, cuidam de sua formação: aprendizagem das formas elementares da economia doméstica (poupança, contabilidade), das regras da etiqueta feminina (reigi saho), dos métodos de limpeza, de arrumação. Em segundo lugar, de seus estudos: trabalhando em fábrica, elas estudam no secundário superior de 4 anos de duração, antes ou após o trabalho em turnos. Todos os estabelecimentos empregando mulheres têm, também, uma escola de nível secundário que ensina as "artes domésticas femininas": arranjo de flores, arte culinária, cerimônia do chá, corte e costura, dança e canto tradicionais etc. Em terceiro lugar, de sua moralidade: o desrespeito dos horários de volta ao dormitório à noite (mongen), geralmente às 18 horas no primeiro ano de contratação, e às 21 horas nos anos subseqüentes, leva à demissão por justa causa, sobretudo se esse atraso for conseqüência de encontros na cidade considerados pela "gerência" como "moralmente duvidosos". No caso de um estabelecimento industrial do ramo alimentar, a punição em caso de atraso é muito reveladora do estatuto de "menor" das mulheres no Japão e da possibilidade que têm as empresas japonesas de recorrer a métodos não admitidos em empresas industriais de países ocidentais: as operárias devem fazer a faxina do dormitório durante uma semana em caso de retorno após o horário-limite de 22 horas.

O sistema dos dormitórios, datando do fim do século XIX e início do século XX, permite, na realidade, hoje, o incremento da produtividade do trabalho. A disciplina imposta sobre as atividades extratrabalho permite, evidentemente, uma melhor organização do trabalho produtivo, através do controle do absenteísmo, dos pequenos atrasos, da prevenção de "acidentes" de saúde... As técnicas de motivação tais como as reuniões dos "círculos de controle de qualidade", realizadas fora das horas de expediente, são impostas ainda mais facilmente, já que as operárias praticamente nunca voltam para casa, e sim permanecem sempre dentro do campo de controle dos chefes. O comportamento moral, o comportamento no dormitório, podem também ser critérios essenciais para as promoções e demissões da mão-de-obra feminina.

Quanto à remuneração desse trabalho, as operárias alojadas, em aparência "livres vendedoras" de sua força de trabalho, não recebem a totalidade de seu salário, do qual são descontados as despesas de alojamento, estudos e uma poupança compulsória, feita pela empresa em nome da operária. A parte do salário recebida diretamente pela operária jamais ultrapassa 50% do montante mensal.  Conclusão: algumas propostas teóricas.

Essas análises, que deveriam permitir uma melhor apreensão da natureza contraditória do capital e de seus limites, nos conduzem a três propostas.

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Em primeiro lugar, se o capital não for uma soma de riquezas mas uma relação social de classe e de seio, as contradições do capital são mais importantes, e sua natureza mais diversa do que se supôs tradicionalmente nas análises marxistas.

A aparência de trabalhadores livres e supostamente iguais sobre a qual se baseia a dominação capitalista ─ é de fato desvendada pelo reaparecimento ─ esfera da exploração do trabalho─ de relações de opressão ou dominação em vigor na esfera não mercantil.

Em segundo lugar, uma crítica do capital enquanto relação social de classe e de sexo deveria necessariamente passar por uma análise das formas de desmascaramento da mercadoria força de trabalho (irrupção das relações de opressão homens/mulheres na esfera dos processos de trabalho), da mesma maneira que o estudo das crises econômicas ou dos golpes.de estado pode permitir desvendar a natureza do Estado enquanto unidade pretensamente neutra e situada acima das classes.

Em terceiro lugar, a força de trabalho não é uma categoria universal, quantificável e homogênea, mas concretamente, para os capitalistas, dentro do processo de produção: masculina ou feminina, jovem ou velha, casada ou solteira. No caso japonês, o capital aparece assim, por vezes, mais como exploração do trabalho (pessoa) do que de força de trabalho e, nessa medida, formas de desvendamento de "des-fetichização" múltiplas deveriam ser possíveis.

Levarem conta esses instantes de "des-fetichização" pode ser tornado possível, de um lado, através de estudos dos processos de trabalho concretos, e, de outro, através da comparação internacional.

É o que tentamos fazer e o que poderia também ser feito a partir de comparações com outras sociedades ditas "primitivas" (18).  Notas Biográficas 1 - Cf. apresentação no seminário de Amiens Carnets des Atiliers de Recherche, n° 5. Université de Picardie. 1985.  2 - A abordagem comparativa homens/mulheres, que está longe de ser uma abordagem dominante em sociologia, foi conceitualizada por Danièle Kergoat (1984).  3 - Pensamos nas pesquisas sobre a família no Brasil, realizadas pelo CEBRAP, sob a coordenação de Elza Berquó, pela Fundação Carlos Chagas, (cf. por exemplo Felicia Madeira); pela Universidade de São Paulo (cf. trabalho de Lia Fukui); para .um censo do estágio das pesquisas sobre a família na França, cf. as publicações resultantes do Colloque National "Recherches et Familles", organizado em janeiro de 1983 pelo Ministério da Indústria e da Pesquisa e pelo Secretariado de Estado sobre a Família; um certo número de obras tratando da família no Japão são citadas em Bellevaire & Trihn (1983).  4 - Hirsch, J. ."Eléments pour une théorie matérialiste de. l'État contemporain". In: Vincent, J. M. (ed) L'État contem-. porain et le marxisme. Paris, ed. Maspéro, 1975, p. 27, citado por Salama (1983, p. 20). Cf. também a nota da p. 73 desta obra sobre o caso japonês.  5 - Essas horas extras ultrapassam, às vezes, o máximo legal de 50 horas, cf. Kurumi Suguita, "Le groupe de travail au Japon", comunicação apresentada na "Journée sur Ia Societé Japonaise" da Societé Française de Sociologie,16 de novembro de 1984.

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 6 - Para um estudo sobre a contribuição das estruturas familiares durante a primeira socialização ─ essencial para a vida profissional posterior: cf G.A. de Vos (1981).  7 - Sobre as formas mais comuns de mobilidade interna, cf. contribuição de Nohara e Mac Maurice na "Journée sur Ia Sociologie Japonaise" citada, para uma discussão sobre os motivos do recurso à mobilidade interna, cf. a contribuição de Sylvaine Trihn no mesmo evento. Ciências Sociais do Japão Contemporâneo n° 7, editado pela "École des Hautes Études en Sciences Sociales (Centre de Recherches sur le Japon Contemporaih), março de 1985.  8 - Estudaremos o caso do grupo siderúrgico X, o primeiro produtor mundial de aço, que possui uma dezena de estabelecimentos no conjunto do território japonês. Para a criação de sua última unidade de fabricação no sul do país, 1972, não foi deito nenhum recrutamento na região próxima da área industrial. O conjunto dos efetivos regulares, 3.600 em 1982, foi objeto de um deslocamento definitivo de três outros estabelecimentos do grupo, entre os quais um situado a 2.000 km do novo local. Esses efetivos regulares chefiavam, por outro lado, os 5.000 operários temporários e de empreiteiras (mão-de-obra local). Os motivos apontados pela direção da empresa para explicar esse recurso à mobilidade intra-empresa em detrimento de um recrutamento no local estavam ligados à possibilidade de início imediato e eficiente, permitido pelo trabalho dos funcionários com uma experiência profissional anterior: "as pessoas da região não tinham experiência siderúrgica. Não era possível recrutar e dar um treinamento rápido. Não é como na eletrônica onde basta ter um supervisor homem e várias mulheres sem qualificação" (entrevista com um responsável do departamento de engenharia industrial, fevereiro de 1982). No caso citado, a transferência definitiva para uma região distante 2.000 km implica na mudança de toda a família do trabalhador, mas, mesmo neste caso, é preciso observar a preeminência, o poder da empresa que arranca o trabalhador do seu meio (parentes, vizinhos, família etc.).  8 - expatriados japoneses que deviam permanecer no Brasil durante 4 anos sem suas famílias. Uma única viagem era paga pela empresa durante esse período para permitir-lhes rever seus filhos e esposas.  9 - No caso de uma multinacional japonesa no ramo têxtil, a filial brasileira contava, entre seus dirigentes,  10 - Para uma apresentação do indivíduo como categoria do capitalismo moderno e base das relações amorosas no Ocidente, cf. Agnes Heller (1976).  11 - De acordo com as pesquisas feitas em lojas citadas por Juiti (1981).  12 - O divórcio é legal e comum, mas as estatísticas comparando a taxa de divórcio nos EUA e no Japão mostram uma taxa muito mais baixa neste último. Ademais, a maioria dos divórcios no Japão ocorre antes do fim do primeiro ano de casamento e parece ser conseqüência dos casamentos arranjados que não tiveram sucesso. Cf. Saito Juiti, (1981).  

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13 - Para a evolução desse sistema de emprego e remuneração, utilizamos os dados de uma entrevista com Mikio Sumiya, presidente do Japan Institute of Labor (fevereiro de 82). Cf. também Sumiya (1963). 14 - Se as estatísticas oficiais contavam 2.560000 assalariadas em tempo parcial em 1980, três anos depois a revista Economisto de Tóquio estimava em 5.000.000 o conjunto das assalariadas trabalhando em tempo parcial (Economisto, 1983, p. 106-111.  15 - Assim, segundo as estatísticas oficiais, a cerimônia do chá era praticada por 2.220.000 mulheres e o arranjo deflores por 5.930.000 em 1981; a população feminina entre 15 e 24 anos de idade era de 7.886.000 pessoas (Statistical handbook of Japan, 1981).  16 - A inexatidão do termo provém do fato de que a aposentadoria ocorria aos 55 anos até estes últimos anos; o assalariado devia passar mais ou menos 10 anos de sua vida ativa em uma oura empresa, em geral com uma remuneração menor.  17 - A situação dos dormitórios de mulheres nos EUA era muito similar a dos dormitórios contemporâneos no Japão: "In the mid-mineteenth century, when the majority of the labour force consisted of young, unmarried women from rural New England, the Company also regulated their behavior after working hours in order to reassure their parents. The boardinghouses were closed and locked at 10:00 LM, churc attendance was compulsory and alcohoil consumption was prohibited." (Hareven & Langenbach, 1978, p. 14.) Sobre a França, cf. Guilbert (1966, p. 37-45); Kergoat (1982, p. 45-46); "Les couvents soyeux" Les révoltes logiques n° 2, Ed. Solin, 1976, p. 19-39.  18 - Pode-se citar a compreensão dessas modalidades de exploração/dominação tornada possível por alguns estudos antropológicos: cf. a análise das técnicas masculinas e femininas (Chamoux, 1981a e 1981b). Cf. também a obra sobre a dominação masculina nos Baruya de Papuásia (Godelier, 1982) e os números da revista L'Homme dedicados ao tema da divisão sexual do trabalho. Cf. também Mathieu (1985).  Bibliografia BELLEVAIRE, Patrick & TRIHN, Sylvaine. "Bibüographie selective sur 1'évolution des relations sociales au Japon". Sciences Sociales du Japon Contemporain, n° 4, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Centre de Documentation Sciences Hunaines/CNRS, out. 1983.  CHAMOUX, M. N. "Les savoirs techniques et leur appropriation: les cas des Nahuas du Mexique". L'Homme, XXI, 3, 1981a.  ____. "La diuision sexuelle du travail chez les Indiens du Mexique: idéologie des rôles et rôles de 1'idéologie". Critiques de l'Économie Politique, n° 17, 1981b.  DINGMAN, Bernard. Le concept de rapport salarial: gènese, enjeux et perspecsines. Esthoque Formes de Mobilsation Salariale et théorie du Salariat, fascicule 2.  GODELIER, Maurice. La production des grands hommes. Fayard, 1982.  

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GUILBERT, Madeleine. Les fonctions des femmes dans l'industrie. La Haye, Ed. Mouton, 1966.  HAREVEN, Tamara K. & LANGENBACH, Randolph. Amoskeag. Life and work in an American Factory City. New York, Pantheon Books, 1978.  HELLER, Agnes. "The future of relations between the sexes". In: Humanisation of Socialism. Londres, Ed. Allison and Busby, 1976.  JUITI, Saito. "Nihon jin no isho". Tokyo, Society for the Teaching Japanese as a Foreighn Language, 1981.  KERGOAT, Danièle. Les ouvrières. Paris, Ed. Le Sycomore 1982.  ____. "Plaidoyer pour une sociologie des rapports sociaux". In: Le sexe du travail. Presses Universitaires de Grenoble, 1984. "LES couvents soyeux". Les révoltes logiques, n°. 2, Ed. Solin, 1976.  MATHIEU, N.C. (cood.). L'arraisonnement des femmes. 1985.  PRIME Minister's Office. "Labour Force Survey, 1980". In: Problems of working women. The Japan Institute of Labor, 1981.  SALAMA, Pierre (em col. com G. Mathias). L'État surdeveloppé. Ed. Découverte, 1983  STATISTICAL Handbook of Japan. Tokyo, Statistics Bureau, 1981.  SUMIYA, Mikio. Social impact of industrialization in Japan, Ed. Unesco, 1963.  VOS, G. A. de. "Apprenticeship and paternalism". In: Vogel, Ezra F. (ed.) Modern Japanese organization and decision-making. Ch. E. Tuttle Company, 1981.  ZARIFIAN, Philippe. "Hypothèses sur le rapport entre socialisation et productivité dons une approche intime de classes sociales, fascículo 1. Colloque Formes de Mobilsation Salariale et Théorie du Salamat. Carnets des Atelieus de Recherche, n° 5, 1985.  Texto recebido para publicação em fevereiro de 1986 Tradução do francês de Marie Agnes Chauvel.    

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TAYLORISMO E FORDISMO NO TRABALHO BANCÁRIO: AGENTES E CENÁRIOS Roberto Grün  

Este texto refere-se a uma pesquisa de campo realizada durante três anos num banco multinacional, que tem seu centro de operações sediado em São Paulo. Numa primeira versão, a pesquisa gerou uma dissertação de mestrado (Grün, 1985), apresentada à PUC-SP no Programa de Ciências Sociais (orientada por Maria Andréia Loyola). Naquela análise, as questões de organização do trabalho estavam subsumidas na problemática geral da translação das classes médias para as grandes corporações. No texto que apresento agora, a questão da organização ocupa o centro da exposição.  A especificidade do banco multinacional

A organização estudada implantou-se no Brasil no pós-guerra, a partir da aquisição de uma casa bancária paulistana. Rapidamente transladou uma equipe dirigente originária da matriz e de outros países. Sendo a atividade bancária não produtiva (no sentido da economia política), a caracterização do status multinacional na atividade bancária pode ser assinalado a partir da constatação de que o banco estudado realiza uma efetiva divisão do trabalho ente e seus vários departamentos localizados nos diversos pontos do globo, na sua função de intermediação financeira (participo do conceito de multinacional de Clandler/Hymer). O volume proporcional de recursos externos postos à disposição de seus clientes, bem como a forma com que eles foram obtidos dão veracidade à constatação. Passando para um nível mais sensível de evidência fenomênica, o caráter multinacional do banco aparece em sua inserção no mercado financeiro nacional, onde ele atua como "banco de atacado", extraindo lucros fundamentalmente de grandes operações realizadas com clientes do segmento oligopolista e multinacional da economia. Este posicionamento lhe garante sobrelucros nas atividades financeiras, que viabilizam a possibilidade de distribuição de uma sobremassa salarial. Decorrem daí as particularidades de sua política de pessoal, que se distingue da média dos bancos nacionais por três pontos básicos:

1. a aplicação de médias salariais e uma política de benefícios não monetários superiores (Grün, 1985, p. 53 e s.);

2. um investimento proporcionalmente superior na qualificação de seu pessoal; 3. uma expectativa de permanência e de carreira ascendente também superior à

média do setor não estatal dos bancos.

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De uma forma geral, as considerações acima levam-nos a vislumbrar uma arena característica que performa os cenários estudados: trata-se, como que Fernandes (1975, p. 268-9), de um nicho privilegiado dentro da economia nacional, onde a gestão de mão-de-obra adquire características específicas, que a distinguem positivamente do ambiente exterior. Estas condições geram uma forma de anteparo que amortece a eclosão dos diversos fenômenos de agitação social/ sindical que poderiam tornar "quente" a imposição das reorganizações do trabalho, tornando o processo frio, aparentemente indolor. Veremos nos próximos segmentos que não é bem isso; trata-se efetivamente da imposição de um novo arbitrário simbólico que encontra na organização um caldo de cultura favorável para florescer.

Acredito que a tendência a imputar articulações da ,organização do trabalho a genéricas necessidades de valorização do capital, acabam transformando este conceito-chave na economia política materialista num ente metafísico, um demiurgo que paira sobre todos e explica tudo. E, é claro, ao satisfazer o investigador com certezas apriorísticas, interrompe decisivamente a marcha rumo ao conhecimento da realidade concreta. Desta forma, a empresa, uma unidade de centralização de capitais, não pode ser tratada como um monólito dirigido centralmente, a partir de uma genérica compulsão metafísica, ainda mais no estágio monopolista da sociedade, quando a identificação capital = capitalista = empresa torna-se uma abstração sem conexão maior com a realidade sensível. Incorporando em seu seio parcelas sucessivas das pequenas burguesias (e fazendo pequena parte da antiga burguesia), a empresa monopolista opera a translação de parcelas significativas da estrutura social para dentro da organização. Assim, a grande empresa torna-se uma arena onde os diversos segmentos da pequena burguesia incorporada irão travar um jogo pesado de reclassificação social. (Desrosières, Goy, Thevepot, 1983, p. 55-81). Acredito, portanto, que os diversos artefatos "ideológicos" ou "tecnológicos" utilizados pelas subclasses de agentes na pugna só adquirem sentido concreto quando referidos a seus utilizadores que, ao se apropriarem dos instrumentos, sempre operam uma importante retradução do seu conteúdo original, no que tange à aplicação efetiva do instrumento na prática da organização, seja o instrumento uma teoria de controle de qualidade, um computador ou mesmo um must da moda executiva.

Para mostrar a produção das reorganizações do trabalho, a arena toma a forma de 3 cenários sucessivos, onde aparecem como atores principais: 1°) os antigos agentes que articulam a primitiva configuração, organizada como um métier, gerido e transmitido de forma autodidata; 2°) um cenário intermediário, surgido da tensão produzida pelas lutas travadas entre os velhos atores, de um lado, e uma mescla produzida pela justaposição de um segmento reconvertido do pessoal antigo e um novo grupamento de agentes dotados de titulação universitária e forte competência social, de outro lado; e 3°) a tensão produzida pela diferenciação dos agentes do segundo lado de (2°), que os divide em "comerciais" e "informáticos".

A sucessão dos cenários não é necessariamente cronológica. Dependendo da contribuição de cada um dos setores da organização para a valorização do capital do conglomerado financeiro e das compulsões especificamente técnicas ou políticas, cada um dos cenários prepondera, ou mesmo aparece com exclusividade. Desta forma, dos vários setores pesquisados, pude extrair observações para compor os cenários e suas variantes.  O primeiro cenário: a organização tradicional

A pesquisa da origem social dos bancários que produziram a primeira configuração aponta para membros de uma franja da pequena burguesia urbana, que na

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geração anterior a dos nossos agentes inseriam-se no tecido social como pequenos comerciantes ou pequenos funcionários. No primeiro caso, a situação do pequeno negócio familiar era sempre vista como de sobrevivência problemática. A quase totalidade da amostra reivindica uma origem estrangeira e, assim fazendo, quer distinguir-se positivamente da massa proletária. O caráter não manual do trabalho bancário ─ explícito em fins da década de 50 e início da década de 60, época do engajamento dos agentes na organização ─ reforça a pretensão de "trabalhadores diferenciados" da amostra.

Não só a origem, mas também o comportamento dos agentes dentro da organização aponta o caráter pequeno-burguês da amostra. Os nossos indivíduos percorreram importantes carreiras ascendentes dentro do banco. Engajaram-se em posições subalternas, os pisos da profissão bancária, mas que não eram de acesso comum a toda a população que procurava emprego na época. Para isso, mobilizaram a sua rede de relações sociais, pessoal ou da família, que afiançava o reconhecimento social de sua boa origem, necessária para o engajamento numa empresa que tinha na fidelidade e confiança os principais requisitos de admissão.

A qualificação profissional adquirida nas trajetórias distingue-se da qualificação operária por não representar uma capacidade diferenciada de realizar um trabalho específico. Mais do que uma qualificação profissional propriamente dita, trata-se de um tipo de capital simbólico (Bourdieu, 1980) que os agentes acumulam no decorrer de sua "vida organizacional", que corresponde no caso específico da atividade bancária, a ser o agente um fiel depositário, cada vez mais confiável, da riqueza alheia que é gerida pelo banco. Chamei esse "capital" de "capital-confiança". A sua acumulação primitiva percorre duas fases: a primeira é a consciência performada pela socialização pequeno-burguesa, que irá fazer do indivíduo uma pessoa reconhecida como possível de se tornar um "igual" no meio bancário e portanto de conseguir o engajamento. A segunda fase é o reconhecimento prático da capacidade do agente em amoldar-se às compulsões do meio social e do processo de trabalho; agora trata-se de demonstrar á adesão aos critérios da empresa A realização cotidiana de serviços que se alongam além dos limites da jornada normal de trabalho e a não reivindicação de pagamento direto por essas "horas extras" num cálculo implícito que permite vislumbrar o lucro futuro desse diferimento de compensação, referenda o segundo estágio da acumulação primitiva (1). A remuneração do capital-confiança acumulado e a sua acumulação num nível mais elevado passam a ocorrer quando o indivíduo, já testado pela organização, passa a ocupar cargos considerados de confiança, que, na escala hierárquica da empresa, vão desde a função de caixa até os diversos níveis de chefia.

O aprendizado profissional neste estágio ancora-se na noção de métier. Representando um momento em que o conhecimento organizacional é disseminado por toda a organização e que ao mesmo tempo não tem nenhuma instância explícita de codificação ou de reprodução, o ato de aprender a profissão de bancário irá confundir-se inextrincavelmente com o ato de tornar-se um "homem de bem". O indivíduo aprende observando seus colegas mais adiantados e o conteúdo dos trabalhos concretos é apreendido no mesmo bloco que a assimilação dos comportamentos pessoais dos imitados (Grignon, 1971). Performa-se assim um habitus profissional, que tem tipicidade maior no artesanato tradicional.

O período do milagre econômico funcionou como um take-off no crescimento do banco multinacional. Acompanhando o crescimento geral da economia, o banco expandiu-se em flecha naquele período. E para ocupar os novos cargos de chefia envolvendo enquadramento de pessoal, funções administrativas em geral e as novas funções comerciais, os nossos agentes autodidatas serão os candidatos naturais. Afinal,

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numa organização como o banco, moldada pela metaquestão da segurança, os detentores do capital-confiança serão os maiores premiados pelo crescimento. Assim, a organização reconhece o direito de apropriação fundado na nossa subespécie de capital simbólico.

Mas o desenvolvimento do processo não é linear. Representando o coroamento das estratégias encetadas pelos agentes autodidatas, a promoção aos cargos de chefia irá reforçar ao máximo a inércia dos agentes em relação às novidades que estavam surgindo no panorama empresarial. Assim, seu habitus profissional sedimentou-se e a matriz de possibilidades de introjeção da realidade assim formada foi ineficaz para produzir um direcionamento na nova época que estava se abrindo, que resguardasse a posição relativa dos agentes autodidatas na organização.  O segundo cenário: a desvalorização do capital-confiança

A mudança de cenário na organização monopolista, que guarda feições de mercado de trabalho primário, é um processo que se assemelha, em escala micro, à Revolução Passiva gramsciana (Gramsci,1974, p. 142-3). É um processo realizado a frio, onde a configuração da empresa muda significativamente sem grandes abalos, o que permite-lhe funcionar normalmente enquanto processa as mudanças.

Os agentes ativos da transformação dividem-se em dois grupos: 1. um segmento reconvertido do antigo grupo autodidata ─ esses indivíduos representam uma pequena parcela daquele grupo, que consegue rearticular-se no novo tempo ─ para isso, realizam investimentos pessoais adquirindo titulação de grau superior em cursos de freqüência noturna, que se disseminam no nosso panorama escolar também na época do milagre. Eles interessam-se pelas novidades informáticas e adotam rapidamente o léxico da nova época, relativizando, em parte, os efeitos do habitus profissional em suas atitudes; 2. um novo grupo de agentes que se engaja na organização a partir das novas empresas financeiras que surgem com a conglomerização do banco. Esses agentes, que chamo de técnicos, entram na organização já dispondo de importantes títulos universitários que referendam uma qualificação genérica, imposta do exterior para a empresa. Isto representa uma novidade completa para os antigos padrões, onde o banco, seus critérios internos de avaliação, eram a medida para todas as coisas.

Juntos, os dois grupos atuam na empresa como agentes inovadores; os portadores em carne e osso do management moderno. A introdução dessa modernidade, que aliás parece ser a marca do período na maioria das empresas oligopolistas atuando no Brasil, faz-se evidentemente às custas dos nossos agentes passivos, os quadros autodidatas que não realizaram a reconversão e a massa subalterna que começava a percorrer na época uma trajetória que, pelo antigo padrão, deveria levá-la às boas colocações da organização. As antigas expectativas ─ realistas no período anterior ─ de rentabilidade do capital-confiança já acumulado, desvanecem-se. Na empresa moderna, os cargos importantes deverão ser preenchidos pelos agentes modernos. Por isso, chamei esse processo de desvalorização do capital-confiança.

A produção da passividade dos antigos agentes é um processo nuançado, com componentes internos e externos à organização entrelaçados. A disseminação, no imaginário social brasileiro, dos pré julgados da ideologia tecnocrática, age formando o caldo de cultura, o apriorismo básico que legitima desde a introdução das mudanças organizacionais fomentadas pelo computador até o preterimento de candidatos internos aos postos de prestígio da empresa, dando verossimilhança social aos veredictos exarados dos testes psicológicos (Verdès-Leroux, 1978). Internamente temos a ação de quatro mecanismos desencadeados pela organização, que, potenciados pelo fator

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externo, irão produzir a passividade e pavimentar o caminho para as reorganizações do trabalho.  A informática: expropriação do saber

No início da década de 70, o apogeu do milagre econômico, o computador irrompe na vida organizacional brasileira como o seu principal signo de modernidade. As organizações colocam o novo aparato "na vitrine". Embora precedido da introdução de aparelhos eletromecânicos já com alguns instrumentos de controle, tais como as máquinas de caixa Burroughs, a introdução do computador dará o pretexto para o processo sistemático de desapropriação do saber de métier por parte da direção do banco.

Preliminarmente, o novo demiurgo só ganha inteligibilidade quando colocado num momento histórico em que a explosão universitária começa a dar frutos, através da aparição, no mercado de trabalho, de um grande contingente de pessoal graduado em escolas superiores, já com algum preparo informático ou familiaridade com o assunto que permita a sua rápida assimilação. A introdução de matérias de informática e de Organização e Métodos (O & M) nas escolas superiores e a criação de escolas livres, comercializando esse novo saber, irão potenciar esse processo.

No banco, num primeiro momento, os manipuladores do novo aparato serão recrutados no interior da organização, seguindo um padrão que parece ter sido geral nas organizações já estruturadas que recebiam o computador (2). A maioria dos agentes que se engaja no trabalho informático do banco na época vem de setores atingidos pela modernização, os setores administrativos das agências, serviços de cobrança, de contabilidade. O fundamental da nova capacitação desses agentes será conseguido com o fornecimento dos "pacotes de treinamento", vendidos pelas fábricas de computadores juntamente com as máquinas propriamente ditas. No início do processo, o seu conhecimento prático das tarefas a serem introduzidas em ambiente informático será fundamental na organização da desapropriação. Gradativamente, esses autodidatas que se reconvertem através da informática vão sendo confinados à manutenção do sistema computadorizado já existente, via de regra, o serviço de que já eram conhecedores antes da introdução da nova tecnologia. Outra possibilidade bastante freqüente é o direcionamento dos autodidatas reconvertidos para os setores de operação do Centro de Processamento de Dados (CPD), que são produzidos na nova divisão técnica de trabalho realizada pela informática. Ali, os autodidatas ocuparão funções tipicamente de enquadramento de pessoal, no setor da organização burocrática que mais se parece com uma fábrica; encarregado da produção diária de listagens, digitação, expedição etc.

As reconversões mais bem sucedidas serão aquelas em que o indivíduo adquire os conhecimentos informáticos no trabalho, potencia/legitima o seu conhecimento através da obtenção de diploma em curso superior e, dentro da organização, transfere-se para os setores usuários da informática, onde o seu conhecimento tem alto valor distintivo. Normalmente esses setores localizam-se em departamentos distantes em termos geográficos da matriz, são as novas filiais recém-abertas e em estruturação.

Os grandes homens da nova era serão os "generalistas", os que "conseguirão entender a informática como parte da estratégia geral do conglomerado financeiro de modernização e de adequação à nova realidade". Esses novos agentes terão como pré-condição para o seu sucesso o desligamento de qualquer trabalho concreto pré-existente no banco, condição essa necessária para revolucionar os métodos de trabalho e, assim fazendo, impor uma nova correlação de forças na organização. Os bancários parcialmente reconvertidos, agarrados ainda a parcelas do conhecimento adquirido de forma iniciática, não conseguirão dar o salto completo que representa o

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abandono/relativização de seu conhecimento concreto adquirido na fase pré-informática, isto é, romper com as amarras da ideologia de métier.

Na morfologia da empresa, a introdução do computador vai significar, principalmente, o aparecimento de uma forte clivagem no trabalho administrativo. A maior parte do trabalho de concepção dos novos conhecimentos passará a ser realizada pelo pessoal informático. Esse processo aparece claro na configuração que. qualquer novo procedimento adquire quando vai ser estudado/implantado na organização. Após uma decisão tomada pela Diretoria da Empresa, seus superiores da matriz ou pelas autoridades monetárias, que inicia um projeto de desenvolvimento de sistema, os contornos do sistema são analisados pela alta gerência da área informática, que circunscreve o âmbito do novo procedimento, delimitando as diversas áreas de atuação dentro da empresa. O detalhamento da solução é realizado por uma equipe de analistas, nivelados hierarquicamente no quadro de pessoal do banco com os cargos de baixa gerência, que então submeterá o problema, já com uma solução delineada e com as portas fechadas para uma solução alternativa, aos setores operacionais envolvidos. Desta forma, o envolvimento desses últimos no trabalho de concepção será aparente, uma espécie de ritual homologatório.

A configuração acima, que hoje parece natural, é na verdade um resultado do processo de expropriação dos conhecimentos operacionais do métier de bancário, que é realizado pelos reconvertidos e novos agentes, com o beneplácito da alta direção. O principal vetor neste sentido é a elaboração dos manuais de organização. Em tese, esses manuais, herdeiros das ordens de serviço da burocracia tradicional brasileira, deveriam orientar a prática dos setores operacionais, indicando o caminho a ser seguido na solução dos problemas. Na prática, os setores confinados aos autodidatas, as áreas administrativas que deveriam ser seus maiores usuários, não os consultam por não terem acesso à linguagem informática em que os manuais são redigidos, a qual exige o conhecimento prévio de uma série de conceitos que não estão disseminados na organização, ordenados a partir de uma lógica ─ traduzida num encadeamento de tarefas ─ que não é a da prática dos setores autodidatas/usuários. Por outro lado, os manuais também se tornam um instrumento de transferência de responsabilidades pois qualquer instrução, exeqüível ou não, quando recebida pelo setor operacional responsável pela sua execução, passa a ter realização obrigatória.

A necessidade de elaboração de manuais, sentida e deflagrada a partir do esforço para homogeneizar os procedimentos das diversas seções dispersas na empresa, e para facilitar a introdução dos novos procedimentos necessários à computação eletrônica dos dados, acaba dando a oportunidade para a investigação exaustiva do conteúdo das tarefas que constituem o mister da atividade bancária e a sua retradução na linguagem informática, que assim se constitui numa tecnologia de despossessão/concentração de conhecimentos. A partir do enquadramento das tarefas nos instrumentos de trabalho próprios das novas funções ─ os fluxogramas, organogramas, checklists, quadros de distribuição de trabalho etc. ─, a despossessão operacionaliza-se, com a concentração "naturalizada" dos conhecimentos bancários em volumes compactos à disposição das cúpulas (3). Ora, sendo os informáticos as pessoas capazes de apropriar-se do conhecimento assim disposto, o resultado político dessa divisão técnica de trabalho fica claro, conformando-se assim a conceituação geral de que a evolução dos processos de trabalho em ambientes de alta tecnologia irá realizar a superqualificação de um lado (técnico, moderno, titulado...), e a desqualificação do outro (bancário, autodidata, operacional...).

Os ecos desse processo nas entrevistas com os autodidatas são bastantes escamoteados, difusos, como se o total devotamento à organização que lhes é peculiar

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impedisse a formulação da queixa. Assim, temos a situação traduzida em linguagem de nostalgia: "Antigamente, se tinha algum problema, qualquer novidade, a gente resolvia na própria agência, depois, se achava que tinha feito bem, comunicava pros colegas dos outros departamentos e todo mundo ficava sabendo. Agora não tem graça, já vem tudo pronto do Centro Administrativo. O máximo que o pessoal faz é ligar para a gente para dar uma sondada. Assim, a gente perde o estímulo...": Em um caso, entretanto, através da fala de um autodidata "desiludido", a trama fica explícita: "Os caras, esses engenheiros que nunca entraram numa agência a não ser para descontar cheque, pegam e inventam essas novidades como a cara deles. Daí, na hora de aplicar é com a gente. Se não dá certo, é a gente que é burro porque não entendeu. Você liga pro cara para pedir um esclarecimento, e o cidadão não só não te orienta, como te dá uma baita bronca; a bomba fica sempre na nossa mão...". E mais adiante, identificando o entrevistador como membro do pólo técnico da organização, temos: "Eu não tenho mais futuro aqui dentro, é só esperar a aposentadoria. Daqui para frente só vai dar vocês no banco...".

Paralelamente, o ambiente já computadorizado reduz drasticamente a necessidade de trabalhos extraordinários ─ os momentos fortes da acumulação inicial de capital-confiança, como se depreende da entrevista a seguir: "Antes do computador, das listagens de caixa, a gente tinha de preparar o conta-corrente todas as tardes, não era moleza. Bancário era bancário de verdade, tinha de mostrar valor, ficar até de madrugada se fosse preciso, mas no dia seguinte, tinha de estar tudo pronto Agora ficou moleza, o pessoal tem tudo fácil, não dá mais para o pessoal mostrar o seu valor, o computador faz tudo...".  A auditoria: expropriação da confiança

Os comentaristas que discorriam sobre a situação do mercado financeiro do Brasil anterior a 1964, insistiam na idéia de que tínhamos uma infinidade de bancos e de casas bancárias, mas que não tínhamos efetivamente um sistema bancário. Com isso, queriam dizer que, embora extenso, o mercado financeiro apresentava uma disparidade tal de procedimentos em cada um de seus agentes, que não podíamos falar na existência de uma rede de serviços financeiros minimamente eficientes.

O projeto de modernização conservadora que se seguiu ao golpe de 1964, passou pela elaboração e colocação em prática de uma política explícita de constituição de um sistema financeiro nacional. E, dentre as medidas necessárias para dar crédito público para o sistema, destaca-se a legislação e a sistematização dos processos de controle sobre a atividade bancária, realizados através da constituição do Banco Central do Brasil. A mesma legislação obriga os bancos a manterem o seu corpo particular de auditores e, na sua versão da época da pesquisa, determina a realização de duas inspeções internas em cada departamento do banco comercial. A obrigação legal, aliada às necessidades de controle da matriz sobre as atividades de sua filial brasileira, vão gerar um processo de sistematização das atividades de controle contábil outrora dispersas pela empresa, com a criação de um departamento próprio paia tais atividades dentro da organização.

Uma monografia descritiva e prescritiva sobre o setor bancário, publicada pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capital (IBMEC) em 1972, relata o que deve ser um departamento de auditoria, descrevendo uma situação que corresponde ao estado do departamento que observamos:

"Compõe-se o Departamento de Inspetoria e Auditoria de um quadro de funcionários denominados inspetores e auditores. Em síntese, a função destes é percorrer as diversas agências do banco a fim de exercer a fiscalização direta das atividades de cada uma. Faz-se mister que os inspetores e os auditores sejam

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selecionados dentre os funcionários mais dignos de confiança porque, na prática, eles representam a própria Alta Administração exercendo a supervisão de todo o estabelecimento. No rol das tarefas pertinentes à inspetoria e à auditoria destacam-se as seguintes: verificação do cumprimento dos regulamentos pelas agências, instruções etc.; analisar se os níveis de encaixe técnico das agências atendem às necessárias precauções de segurança; conferência do numerário e dos valores mantidos em tesouraria para confronto com os dados fornecidos pela contabilidade; controle também sobre o próprio gerente e sobre as diversas operações e serviços não só para verificar a sua qualidade como também para comprovar se os negócios estão gerando lucro ou prejuízo; controle da exatidão dos lançamentos e registros. Como se pode observar têm os inspetores e auditores uma relativa ascendência sobre os gerentes das agências, a quem controlam. Em qualquer caso, após todas as inspeções, a inspetoria e a auditoria devem enviar minuciosos relatórios à Diretoria" (Bancos..., 1972).

Esses "funcionários mais dignos de confiança" serão recrutados realmente entre os elementos da organização de confiança absoluta, mas também, e fundamentalmente, no interior deste universo, entre os indivíduos que foram colocados e colocaram-se diante da impossibilidade objetiva de seguir carreira ascensional no banco. Esse tipo de recrutamento interno vai produzir auditores que erigem a minúcia e o espírito investigativo na sua principal qualidade. Ora, sendo o pólo autodidata o que está sendo relativizado na atual conjuntura, é natural que forneça a quase totalidade de quadros para essa função. E assim, os conhecimentos de que esses auditores disporão para exercer o seu trabalho serão os conhecimentos de métier, de eficiência máxima para fiscalizar os seus pares, e pouco calibrados para as atividades dos técnicos.

A criação e aplicação desta nova tecnologia de controle será assim direcionada para a fiscalização das atividades exercidas preferencialmente pelos bancários autodidatas. A tentativa de ampliar o âmbito da sua atuação sobre a produção informatizada é reveladora do processo de transformações que a empresa está passando: o aumento das atividades submetidas à informática leva à necessidade de controle sobre a sua atuação. Por isso, a gerência de auditoria, subordinada ao máximo poder decisório existente no país, e com acesso direto à matriz, consegue a criação de um subdepartamento para Auditoria de Sistemas. No recrutamento interno do pessoal para o novo quadro surgem preferencialmente como candidatos os autodidatas reconvertidos que trabalham no CPD, uma vez que estes, dentro de seu quadro referencial particular, valorizam o prestígio que a nova função lhes atribui na empresa e também dispõem do capital-confiança acumulado para serem assimilados no ambiente. Já os técnicos desprezam essa oportunidade, que significa trabalhar num departamento com fama de atraso e policialesco. Assim, para as novas funções, são recrutados autodidatas que, enquanto informáticos, já tinham uma formação distorcida, com hipertrofia de conhecimentos de alguns sistemas particulares, e atrofia dos conhecimentos mais abstratos, de concepção e arquitetura de sistemas. No que tange aos trabalhos de auditoria de novos sistemas, a sua, atuação acaba sendo também homologatória, a exemplo dos setores autodidatas operacionais. No que tange à fiscalização dos sistemas mais antigos, serão mais críticos. Entretanto, vivemos na era da nova revolução informática, onde a importância dos antigos sistemas é pequena.

No processo geral que estamos descrevendo nessa seção ─ a relativização do capital-confiança ─ a auditoria terá a sua eficiência máxima. À medida que o exercício das funções de confiança passa a ser sistematicamente investigado, e com periodicidade tal que impede o encobrimento da maioria das fraudes possíveis ─ com a tecnologia de controle hoje existente ─ a "fraude" realizada com ordens de pagamento descrita no filme O Bom Burguês seria descoberta no dia seguinte à primeira tentativa. O capital-

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confiança acumulado nas trajetórias em que a confiança era o principal dos atributos, deprecia-se, pois a qualidade em que ele se encarna deixa de ser vital para a organização.  O treinamento: expropriação da autoconfiança

Na plena vigência do modo de dominação "antigo", a trajetória profissional típica dos autodidatas performava um critério de excelência profissional que legitimava as pretensões e o exercício das funções de chefia. O aparecimento do treinamento profissional como corpo autônomo vai aqui significar a criação de uma dinâmica que produz a invalidação daquele critério, retirando dos bancários as certezas que lhes infundiam autoconfiança. Primeiramente, há que se assinalar que o treinamento profissional vai ser objeto de incentivo governamental, a nível da criação de uma série de isenções fiscais e de uma estrutura de ensino governamental a ser utilizada pelas empresas, o que induz a pensar que a nova configuração do campo empresarial é um objetivo implícito da estratégia seguida pelo governo federal.

Na empresa, o treinamento aparece como o instrumento de expropriação mais opaco, pois confunde-se com a escola, a qual, na consciência dos pequeno-burgueses autodidatas que analisamos, é democrática, aberta aos que merecem. Assim, temos a apreciação modal: "Aqui ninguém tem a desculpa de que não teve chance. O banco dá oportunidade para todo mundo. Se o cara não aproveita, é porque ele é preguiçoso ou é burro. Então, o azar é dele...".

Acompanhamos na empresa a realização de três cursos de longa duração, o que significa dois a três meses de seções diárias de oito horas, além de vários cursos menores. Dos cursos longos, dois tiveram como público referencial os autodidatas e um os técnicos (sobre a especificidade das escolas de empresa ver Grignon, 1971, p. 143-8).

A estrutura dos cursos divide-os em dois grandes blocos, de matérias específicas da atividade bancária e de técnicas de comportamento. As primeiras são dosadas em função do cargo que os treinandos irão desempenhar, promovendo uma atualização de procedimentos, sempre de acordo com o seu conteúdo abstrato, retirado dos manuais de organização. O corpo docente para essas matérias compõem-se fundamentalmente de pessoal informático para a área administrativa e de especialistas em gestão comercial de produtos específicos para os cursos da área comercial. Nos cursos dados para público da área administrativa, em cuja atuação se supõe o exercício direto de funções de enquadramento, as matérias comportamentais são técnicas de chefia e gestão de pessoal. Nos cursos voltados para a área comercial, são técnicas de vendas.

Apesar de todas as manifestações de adesão à empresa que os autodidatas fazem cotidianamente, a percepção do caráter de violência simbólica do treinamento é bem delineado, como podemos depreender das manifestações abaixo descritas. Para as matérias consideradas típicas do métier de bancário, temos: "Isso que eles querem me ensinar, eu já sei, aprendi nos vinte anos que já estou no banco, eu acho que eles estão querendo é ensinar o Padre Nosso ao vigário..." Usualmente, essas matérias são ministradas em cursos que sacramentam a promoção de diversos funcionários para novos cargos, e as turmas heterogêneas acabam levando a curricula mal balanceados. De qualquer forma, os analistas de treinamento que organizam os cursos dizem que "sempre é bom dar um reforço de conhecimentos para o pessoal...". Quando se trata de treinamento visando a introdução de algum procedimento novo, entrando num universo em que os atores pisam com pouca firmeza, temos: "...Eles mudam toda a rotina do cheque sem consultar se a gente pode fazer como eles querem e forçam a gente a aprender em quatro horas. A bomba sempre cai nas mãos...". Ou ainda: "...Eles chamam a gente para vir de sábado, largar a família... dão umas aulas que eu não entendo nada e

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depois deixam o pepino na nossa mão. Quando você liga para perguntar qualquer dúvida, os caras te tratam mal. Não respeitam os anos que a gente tem de banco e ainda te chamam de burro...".

A linguagem utilizada pelos informáticos, o léxico universal desta profissão, é bastante diferente da linguagem dos bancários. Como esta falta de comunicação fica evidente, a empresa passa, num segundo momento, a encarregar os autodidatas reconvertidos da docência dos cursos. Daí a coisa fica picaresca, pois os treinadores mostram-se ansiosos para demonstrar a sua pertinência ao grupo dos informáticos e acabam utilizando-se da linguagem mais rebuscada possível, dentro do novo léxico. Mas, como eles são elementos de prestígio dentro do bloco autodidata, a sua atuação não é tão criticada: "O S. sabe tudo de banco, quando eu entrei aqui, ele já era chefe de expediente. Na aula dele, pelo menos a gente pode perguntar que ele entende a pergunta. Mas a gente entende tão pouco que às vezes nem dá para perguntar. É melhor você fazer cara de inteligente, para eles pensarem que você entendeu tudo, e depois se virar na Agência... ".

As matérias de comportamento, que trabalham mais diretamente a personalidade dos treinandos, oferecem um vasto campo para a análise. O choque entre o velho estilo de enquadramento, personificado nos treinamentos e o novo estilo, a ser definido pelos treinadores, revela os pontos basilares dos dois estilos de vida que se defrontam objetivamente. Em termos analíticos, aparece com transparência única a luta que fornece a chave para a dinâmica empresarial do "segundo tempo". Estaremos aqui diante do conflito entre os habitus ─ entendidos como estruturas de exteriorização e interiorização da realidade construídas nas trajetórias sociais típicas ─ cronologicamente sucessivos que se defrontam na organização.

O conteúdo dos cursos mescla elementos de dinâmica de grupos com formas "ecléticas" de sensibilização. Deve ser entendido no momento em que modernizar os estilos de chefia passa a ser um objetivo importante dentro do projeto estratégico da empresa. Neste tempo, os profissionais de relações humanas aplicam o essencial de sua atenção e da sua ação no esforço dirigido para as chefias intermediárias, desta forma, a sua estratégia particular de distinção dentro da empresa é a operacionalização das técnicas que têm a possibilidade de mudar as atitudes de enquadramento do pessoal subalterno, condição necessária para o sucesso dos projetos de renovação concebidos pela direção geral (Villete, 1976).

A modernização das técnicas de chefia é a essência mesma da grande modificação do modo de dominação que está se implantando. Trata-se de substituir os antigos estilos, tidos atualmente como autoritários, por métodos de manipulação doce, em que a compulsão para o enquadramento pareça uma necessidade vinda de dentro, interiorizada profundamente pelos membros da organização e tida assim como natural. As psicólogas da empresa, os agentes internos que manipulam com maior legitimidade e desenvoltura a nova linguagem ─ a versão cientificizada da moral capitalista ─, extrairão daí a sua força relativa. Os bancários autodidatas, colocados diante do novo método, que lhes aparece como um discurso articulado, manipulado por pessoas legítimas, que, além da organização, extraem sua legitimidade também do ambiente externo que promove a "psicologia científica", estarão simbolicamente desarmados.

Os cursos de técnicas de chefia são ministrados na organização em dois ou três dias ─ tempo integral. Compõem-se de três partes: a primeira é a apresentação pelo docente de casos aparentemente concretos, nos quais se induz os indivíduos a acreditar que o autoritarismo na chefia, ao excluir a participação dos subordinados na solução dos problemas, acaba limitando a qualidade das soluções e tornando os subordinados apáticos, isto é, pouco produtivos. Desta forma, o novo método aparece como a

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democracia lutando contra o autoritarismo. Mas, a todo momento os treinadores fazem presente que a democracia de que falam não tem nenhum sentido transcendente, ela é superior porque dá melhores resultados (4).

A segunda parte do curso consiste na simulação de problemas, que devem ser resolvidos primeiro individualmente e depois em grupo. O problema clássico apresentado no banco ê idêntico ao que já vimos em outros ciclos de treinamento. Trata-se da simulação de uma alunissagem, os seus preparativos e as manobras que devem ser tomadas posteriormente, já na superfície lunar. Juntando os conhecimentos esparsos que cada indivíduo tem das viagens espaciais, as soluções coletivas são mais eficientes do que as tomadas individualmente. A indução ao futurismo da simulação acaba por fazer passar a idéia de que os problemas complexos, sérios, modernos, devem ter solução coletiva, sendo irremediavelmente passadistas as soluções individuais.

Uma vez minadas as defesas dos agentes, chegamos à terceira e última parte do jogo. Agora os indivíduos deverão trazer casos concretos extraídos de sua vivência para a discussão em grupo. Aí, o autoritarismo com que o evento foi conduzido e a pouca eficácia da solução encontrada ficam sempre patentes. No caso dos autodidatas, é freqüente a apresentação de casos que têm como protagonista principal o próprio relator, e quando isso acontece, o curso passa a ser o palco de uma penosa mea culpa, ao estilo das sessões de confissão das Igrejas Evangélicas.

A partir da trajetória social e profissional dos bancários treinados, chega a parecer ingênuo que um curso de três dias, por mais dramático que tenha sido o seu conteúdo, por mais acuradas que sejam as técnicas de sensibilização, possa alterar fundamentalmente os estilos de chefia introjetados em toda a vida e dimensão fundamental do habitus dos bancários. Isso sem falar que os bancários impõem viva resistência às tentativas de conversão, sendo freqüentes os atritos entre o docente e os treinandos, de tal forma que muitas vezes tais cursos são acompanhados por uma autoridade superior do banco. Daí termos registrado impressões como: "Eu quero ver essa mulher chefiando uma seção, se ela deixa o pessoal solto, ninguém trabalha. Ela nunca foi chefe, nunca teve de dar produção, daí fica falando essas bobagens". Ou então: "Eu já sou chefe aqui há seis anos e sempre deu tudo certo na linha dura, o banco sempre funcionou assim. Se a gente fizer como eles querem, isso vira uma bagunça".

Mas então, para que servem esses cursos? Tendo realizado um curso semelhante, e verificado o destino dos seus participantes após a conclusão, Villette (1976, p. 58-9) nota que o seu resultado é o conhecimento do vocabulário expressivo das novas maneiras e da nova moral. O reconhecimento da legitimidade dos preceitos ensinados durante o curso podem conduzir o agente a julgamentos de valor negativos em relação às formas de comportamento autoritárias que eram as suas, e a julgamentos muito positivos em relação às atitudes que lembram, de perto ou de longe, aquelas que lhe foram apresentadas no curso como as técnicas de relações sociais moralmente válidas e cientificamente fundadas. É sobretudo do ponto de vista do superior hierárquico que a eficiência dessa transformação de julgamentos de valor tem mais chance de parecer sensível, porque o agente se mostra ao mesmo tempo ansioso em aplicar as novas consignas - que lhe lembram aquelas dos jogos e exercícios dos seminários - e disposto a admirar os fundamentos do novo modo de dominação. Em suma, trata-se mais de desenvolver uma disposição a reconhecer o novo estilo de comportamento, do que de ensinar alguma técnica. E nesse sentido, o seminário priva os agentes de suas "defesas naturais" e coloca-os vulneráveis ao trabalho de moralização, de motivação, operado na empresa.

Em nosso caso, além dos superiores, em geral portadores de títulos universitários socializados ou reconvertidos à nova moral, também grande parte dos

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subordinados dos autodidatas participarão da nova socialização. Enquanto os bancários autodidatas encerram a sua escolaridade formal no segundo grau, é numeroso o pessoal subalterno cursando escolas superiores, foros privilegiados de inculcação da nova moral. As escolas que esses agentes freqüentam são de baixo prestígio no mercado de trabalho, insuficientes para candidatá-los a carreiras no pólo técnico da organização, mas suficientes para equipar os indivíduos de conceitos promotores de críticas deslegitimadoras do comportamento de seus chefes e potenciar alguma possibilidade de ascensão na empresa, "passando por cima" de seus chefes imediatos. Estes, aferrados aos velhos estilos do métier, tendem a desvalorizar as tentativas de escolarização superior de seus subordinados, escorados que estão em seu critério de excelência, o qual pressupõe o acúmulo de capital-confiança, produzido a partir das horas de trabalho extraordinárias, realizadas após o fim do expediente. Como os cursos possíveis de serem freqüentados pelos subalternos são noturnos, a continuidade do padrão autodidata os inviabilizaria. Mas, com a automação de um setor de gestão de pessoal na nova configuração da empresa, os chefes perdem a capacidade de gerir a carreira de seus subordinados, e a cada reconhecimento dado pela organização à nova trajetória ─ por exemplo, estimulando a freqüência aos cursos noturnos através do pagamento das mensalidades ─ o velho estilo também se desvaloriza. Desta forma, o humor antiautoritário dos subordinados é potencialmente perigoso para o chefe autodidata, despossuído agora do monopólio da violência simbólica.

Ao lado dos cursos de chefia, os programas de treinamento fornecem de maneira combinada um curso de "organização". Este último é ministrado por pessoal informático masculino, portanto de formação técnica, distinta da formação humanista das psicólogas, e claramente realizam o trabalho "sujo" da distribuição da autoconfiança dos bancários.

Participamos, como "meio aluno/meio instrutor" de um desses cursos, que foi a combinação de introdução às técnicas de Organização e Métodos (O & M) e de relativização dessas técnicas. Foi ensinada a elaboração de fluxogramas ─ a representação gráfica de uma atividade em vários estágios, a partir de uma simbologia reconhecida entre os profissionais de informática ─ e fornecido um gabarito com esses símbolos para cada um dos presentes. Com esses instrumentos, cada um dos treinandos fez um exercício prático do processo de administração da máquina fotocopiadora de um escritório. Após a crítica da solução apresentada por cada um dos participantes, seus erros de lógica eram comentados e o docente principal acabava a sessão dizendo que, para cada tipo de problema, muitas soluções eram possíveis. Ato contínuo, os gabaritos eram recolhidos, pois "custam caro e quem quiser que os compre, pois existem nas boas papelarias...".

No dia seguinte foram contadas duas histórias exemplares, as fábulas empresariais, destinadas à reflexão dos alunos dentro do "espírito da casa".

Depois das fábulas, o curso passa a demonstrar as virtudes da divisão racional do trabalho e a importância da boa chefia. Os alunos são convidados a fazer aviões de papel com diversas organizações. Primeiro sozinhos, depois em grupos aleatórios, depois em uma linha de produção sem chefia e finalmente numa linha de produção com chefia. Os resultados progressivamente maiores da produção em cada uma das fases "demonstra" sucessivamente a superioridade do trabalho em grupo sobre o trabalho individual, da linha de produção sobre o grupo indiferenciado e, finalmente, a superioridade da linha de produção com chefia sobre a linha de produção acéfala. Esta fase do curso transcorre num clima bastante amistoso, quase infantilizado, de brincadeiras e camaradagem, que não é conseguido ao acaso, mas trabalhado.

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A manutenção do clima é essencial para o suporte do módulo. Assim, o docente deve provocar simpatia através de piadas, brincadeiras e, porque não, numa turma composta exclusivamente de homens separados da família, a figura de uma auxiliar considerada formosa. Estabelece-se então o clima para a interiorização dos esquemas geradores das situações criadas. O engajamento nos jogos parece uma brincadeira, num ambiente descontraído em que as pessoas se jogam voluntariamente nos papéis que lhes pedem para exercer. De tudo isso, podemos dizer como Bourdieu que o ardil da razão pedagógica reside principalmente no fato de extorquir o essencial sob a aparência de exigir o insignificante, como o respeito às formas de respeito, que constituem a manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais natural de submissão à ordem estabelecida, ou as concessões de polidez, que sempre escondem as concessões políticas (Bourdieu, 1980, p. 117).

A articulação dos cursos de chefia com os de organização representam assim para os autodidatas a retirada do tapete. Na verdade, o que se contesta é todo o seu estilo de vida. O critério de excelência construído por eles é atacado sem mercê. O homem acabado, completo, não deve ser mais rigoroso, diligente e cauteloso, mas flexível, que até ontem para ele era sinônimo de esperto, oportunista, picareta e sabido. O mundo então se invérte, foge aos pés. Mas a organização lhes fornece, pelo menos todos assim acham, os instrumentos para se adaptar aos novos tempos. Eles não aproveitam a chance, assim, passam a achar-se ultrapassados, e daí aceitam o papel de pequeno intermediário. Os autodidatas já sabem que existem técnicas de organização e de chefia diferentes das suas, e científicas, aprendidas na escola. Eles as viram, mas não chegaram a aprender. Então, o problema é deles. Em suma, toda a organização acaba registrando o assinalamento dos autodidatas no papel típico de chefes subalternos e intermediários, os representantes do passado, um resíduo que deve ser progressivamente eliminado.  Puxaram o tapete...

A estratégia seguida pela rede bancária nacional, de concentrar a oferta de serviços de todo o conglomerado financeiro hegemonizado pelos bancos comerciais nas agências bancárias foi outro duro golpe sofrido pelos bancários de métier. Ao transformar as agências bancárias em "supermercados de serviços", este processo gerou o aprofundamento da especialização dos setores comerciais dos bancos.

Esse processo ocorre simultaneamente à introdução dos computadores centrais nas organizações. Essa coincidência vai ser prenhe de conseqüências, pois os novos produtos oferecidos já vão aparecer aos bancários na forma computadorizada. O trabalho referente a eles nos postos administrativos vai se restringir à preparação de dados abstratos para a introdução no computador. Assim, a via de acesso através da apropriação prática dos conhecimentos referentes a esses produtos através de sua manipulação administrativa vai ficar prejudicada. A coincidência não é fortuita, pois apenas a partir da economia de escala proporcionada pelo computador é que se torna uma alternativa razoável a concentração da oferta de serviços Os ecos do fenômeno na consciência dos bancários aparecem como uma forma de alienação: "Seguros, leasing, essas coisas todas, eu só tomo conhecimento quando estoura a conta do cliente (5), o resto eu não entendo e nem quero saber, é coisa da área comercial ou do computador...". Concretamente, a possibilidade de trajetórias profissionais que conduzam da área administrativa para a área comercial, das zonas de mais baixo prestígio e remuneração rumo à alta chefia, torna-se inviável no velho padrão em que a qualificação se conseguia através do conhecimento prático adquirido no trabalho. Enrijece-se a estratificação dentro da empresa. As perspectivas profissionais que em outros estágios do campo eram

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possibilidades razoáveis para um bancário aplicado, desvanecem-se na nova configuração (6).

Por outro lado, nos quadros da modernização à americana sofrida pelos bancos, temos a aparição dos cargos de gerente de operações nos departamentos. Tratam-se de indivíduos com atribuições exclusivamente, comerciais de elos de ligação entre a clientela e o banco, operando com uma carteira de clientes limitada, da qual devem acompanhar detidamente as necessidades e o desempenho. Essa nova função vai ser introduzida na hierarquia da empresa entre o responsável administrativo dos departamentos e o seu gerente geral. Esse último deixa assim de ter contato direto com. os clientes, acompanhando-os através da mediação dos gerentes de operações. Desta forma, a progressão das funções administrativas para as funções comerciais nas agencias vai encontrar um obstáculo fïsico.

O preenchimento dos novos cargos vai já representar, em si mesmo, uma quebra importante na tradição do banco. Não dispondo de pessoal interno apto a exercer as novas funções na quantidade requerida, a empresa recorrerá ao recrutamento externo. Os novos agentes serão treinados diretamente para as funções que irão exercer, a partir de um módulo de ensino preparado para introduzir pessoas "de alto potencial e formação universitária, mas sem conhecimentos de banco...". Estes serão engajados já em postos privilegiados da carreira. Esse fato vai representar um marco importante nas narrativas dos bancários. Não que não existisse recrutamento externo anteriormente, mas então, os recrutados eram elementos considerados semelhantes pelos bancários, ou porque vinham de outros bancos com carreira semelhante, ou porque percorriam trajetórias homólogas. Agora, pelo contrário, trata-se de: "...uma molecada nova, tudo gente metida que não conhece nada de banco e cai em cima da gente. Eles pegam o bem-bom e a gente que se esforça há tantos anos continua parado...".

A introdução da nova figura ocorre concomitantemente com ao auge do processo de oligopolização da economia industrial e comercial como um todo, que também irá significar a desnacionalização da economia. Esse processo cria uma série de postos especializados nas empresas oligopolistas, antes não existentes, ou de existência embrionária. Eles serão ocupados pelas novas gerações de pessoal saído das escolas superiores ─ o mesmo meio em que se recrutará os novos bancários do pólo técnico, e a partir de processos de diferenciação interna análogos aos descritos para o banco. Trata-se de um fenômeno importante e bem marcado nas empresas multinacionais - é o registro social da figura do "executivo" que está se formando ─ onde os novos cargos surgem já com as especificações para o seu preenchimento vindas da matriz, incluindo a titulação de grau superior para o quadro de executivos médios. No país subdesenvolvido em que a titulação de grau superior é menos freqüente do que no país de origem da multinacional, de onde origina-se a norma, esta última acaba tendo assim um efeito de super seleção (7).

Como a clientela preferencial do banco consiste justamente dessas empresas do setor oligopolístico e das multinacionais, os bancários do pólo técnico tendem a ser mais eficientes no trabalho de concentração das operações com os clientes, já que, portadores de habitus produzidos em condições semelhantes ─ quando não, como revelaram nossas observações, colegas de turmas de escola já previamente conhecidos ─ terão um espaço de valoração das vantagens e reciprocidades das nuances de cada operação comercial semelhante. Essa tendência também não pode ser dissociada do fato de que a cadeia de novos produtos financeiros oferecidos pelos bancos só é interessante para empresas com grau de organização avançado. Assim, as operações de leasing (arrendamento mercantil), por exemplo, só interessam às empresas que possuem uma contabilidade perfeita e um sistema de previsão econômica razoavelmente confiável, que permita uma

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expectativa realista de uma cifra de lucros, contra os quais as despesas contabilizadas através do leasing sejam efetivamente abatidas da carga de impostos.

Frente a esta situação, o antigo gerente formado nos moldes autodidatas tende a ficar marginalizado. Esta tendência é entretanto contrariada, no momento da pesquisa, pela situação de crise econômica. Neste momento as qualidades dos "antigos" são revalorizadas, quando surge no horizonte o espectro das concordatas e falências freqüentes. Agora, a empresa deve contemplar as virtudes de previsão por rumores. E nesse quadro, surgem valorizações como a seguinte: "Antigamente a coisa era mais fácil, a gente só fazia desconto de nota promissória ou de duplicata e via o saldo médio, daí calculava a taxa. Hoje tem impostos, seguros, leasing, tudo isso para calcular. O pessoal novo, que é bom de máquina, é que se dá bem. Mas em compensação, eles não sabem ver quando uma duplicata está cheirando fria, não sabem correr atrás de alguém e pressionar o cidadão até ele cumprir, ou então irem cima do fiador. E isso que eu quero ver a garotada fazer, é a prova de fogo...". No mesmo sentido temos ainda: "... Nas agências de bairro, antigamente, para saber se um cliente tava mal das pernas, você ficava sabendo pelo vizinho dele, no bar, na rua. Hoje, tem de ver balanço, jornal... Ficou complicado, diferente...".

Temos aqui um flagrante da nostalgia dos velhos tempos do capitalismo concorrencial de pequenas unidades isoladas, de onde os antigos gerentes extraíam a sua força relativa, o ambiente onde eles foram formados e de onde extraíram as suas percepções. Embora relativizado esse passado convive com os aspectos modernos do nosso tempo. É a realidade sensível nas praças menos dinâmicas, nas agências de bairros distantes, mas não gratifica seus operadores. Uma vez que o padrão dominante são os clientes do setor oligopolista da economia, as operações com clientes concorrenciais têm de ser encaixadas num sistema de controle ─ análises de balanço, situação patrimonial, perspectivas de mercado... ─ montado para avaliar as empresas monopolistas. Desta forma, a avaliação do acerto ou equívoco das operações é mensurada por controles insensíveis para acompanhai a marcha das empresas concorrenciais ou da economia marginal, onde a contabilidade é apenas uma exigência legal, realizada ex-post-factum, onde o patrimônio do proprietário confunde-se com o da empresa e as perspectivas de mercado não aparecem nas publicações especializadas. Dessa forma, fracassos em operações podem ser perfeitamente absorvidos pelo sistema em caso de empresas oligopolísticas, uma vez que as normas para a concessão de crédito foram obedecidas, mas quando as empresas são concorrenciais, os fracassos não são absorvidos, pois sempre as concessões partem da avaliação subjetiva do gerente (8).  A analogia com o taylorismo

Poderíamos chamai de taylorização da atividade bancária todo o processo de desencantamento do antigo métier, onde os quatro fatores acima descritos articulam-se produzindo uma certa transparência do processo de trabalho, a serviço das direções. Mas a analogia com o modo de organização industrial só é forte para as novas funções que já nascem desencantadas, como a digitação de dados que, afinal, não é específica do trabalho bancário. As funções bancárias mais típicas entretanto, realizadas nas agências, setores de contabilidade, compensação, expedição, custódia etc., são de deflagração independente de uma possível direção geral do banco, dependendo diretamente da presença aleatória da clientela. Assim, a sua dissecação em tempos elementares ou qualquer outra técnica de tempos e métodos não permite rearticulações do processo de trabalho com ganhos de produtividade significativos, nas configurações onde ainda não penetraram os sistema "on tine". O que vimos foram diversas tentativas que, num primeiro momento, serviam muito mais para projetar seus idealizadores como membros

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da comunidade moderna da organização do que para produzir resultados palpáveis. E nesse ponto fica claro o papel imprescindível dos agentes autodidatas reconvertidos na apropriação do saber autodidata, funcionando aí como verdadeiros "interfaces" entre as duas épocas.

Onde ser moderno? As estratégicas de distinção dos autodidatas reconvertidos, passando aqui fundamentalmente pela potenciação de uma competência específica, acaba levando-os naturalmente a serem os agentes da modernização do trabalho de métier. Essa situação na empresa aparece transparente: "Eu tinha vinte e dois anos de banco, e era gerente do CPD. Mas, meu chefe era insuportável, só mostrava serviço nas minhas costas. Depois de brigar muito com ele, eu resolvi falar direto com a diretoria. Ou eles me tiravam de lá ou eu começava a procurar emprego depois desse tempo todo de banco. Eu já tinha quase acertado uma proposta quando o SN me ligou, falando que tinha um lugar para mim na assistência administrativa. Bom, eu fui lá ver. Tava tudo desmoralizado. Daí, com a experiência que eu tinha do processamento de dados, fiz uma proposta para a diretoria de melhorar a produtividade das agências sob a minha supervisão. Eu já sabia que dava para realizar um bom trabalho aí, porque a gente via a desorganização deles pelo CPD. A diretoria gostou da proposta e eu toquei adiante. Fizemos um trabalho de levantamento das operações e montamos o manual do administrativo, com a descrição detalhada das operações das agências com o tempo padrão. Depois fizemos o mapa de produtividade e conseguimos implantar a nível Brasil. A diretoria gostou, a auditoria também. Agora, eu já levantei a Assistência Administrativa. Já está na hora de mudar de lugar. A única coisa que falta é fazer esses caras das agências trabalhar com as estatísticas. São uns cabeças-duras, eles não entendem a utilidade. Eles pararam no tempo" (autodidata reconvertido típico: entrou no banco como arquivista, cursou escola superior, pegou o primeiro bonde da automação, ocupando atualmente assessoria ligada à direção geral)

Assim, foi introduzido o aparato de análise e mensuração do trabalho na organização. Num primeiro momento, ele serviu apenas como estratégia de distinção, depois foi progressivamente sendo "lapidado" e utilizado na instalação de novos departamentos, julgamento da procedência de pedidos de aumento de pessoal, e de emulação entre as seções/departamentos/agências avaliadas. Introduzida na organização num. momento de conjuntura especialmente favorável à atividade bancária (final da década de 70), a taylorização; enquanto técnica poupadora de mão-de-obra, não vai ter a sua "validade" sentida pela direção da empresa. Afinal, os lucros compulsoriamente altos da atividade de empréstimos, num banco "de atacado" encobrem de longe a contenção de custos que a taylorização propicia. Na avaliação do próprio implantado: "Agora, com esse lucro estupidamente alto, ninguém olha para os custos. Mas, se a situação virar, vão perceber o trabalho que realizamos". Esse processo corre paralelo e é fecundado mutuamente com o trabalho de produção dos manuais de organização, sendo freqüente a consulta de um deles (manual do administrativo e de organização) pelos agentes de confecção do outro. É claro que ali também se estabelece uma concorrência surda entre as classes de agentes: uns valorizam a sua proximidade do CPD (pessoal de O & M), enquanto conhecedores dos ritmos das transformações que irão ocorrer, os outros valorizam a sua proximidade com as necessidades atuais dos departamentos usuários. Essa "dualidade de funções" aparece como "incoerente" num determinado estágio do processo em que os titulares de cada um dos órgãos estão em concorrência aberta, mas, num segundo momento, a massa de informações coligida de cada um dos lados vai ser consolidada, quando elementos dos dois órgãos passam a fazer parte do grupo de trabalho responsável pelo projeto que definirá a implantação do sistema informático descentralizado.

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Por outro lado, a implantação do taylorismo está sempre associada à necessidade de enquadramento de um novo pessoal bancário, que se engaja na organização com um sistema de percepções da realidade completamente diferentes da geração que os precedeu. Estamos agora diante do bancário de O provisório definitivo ─ trabalho e aspirações de bancários em São Paulo, descrito por Romanelli que vê no banco não mais uma instituição total, à qual ele adere para toda a vida, mas apenas como um emprego provisório que potencia um projeto de ascensão que passa fundamentalmente pela obtenção de um diploma de curso superior noturno, tornado possível pelas facilidades e salário relativamente alto que esse emprego proporciona, quando comparado com as demais possibilidades que lhes aparecem. São os "cabeludos que trabalham nos bancos" aos quais os antigos bancários recusam-se a considerar iguais. Esses novos agentes (Bourdieu, 1980, p. 11), com baixa identificação com os valores da instituição, deverão ser colocados em funções explicitamente delimitadas e já descritas, as mais próximas possíveis do "trabalho abstrato" descrito por Braverman.  O terceiro cenário: o "fordismo"e a empresa moderna

Este cenário ainda está sendo montado. O seu demiurgo tecnológico é a automação periférica, a criação dos bancos "eletrônicos". A nova configuração produzirá na organização burocrática o mesmo efeito que a esteira rolante produziu nas linhas de montagens industriais.

A especialidade do trabalho nos bancos, em que transitam papéis portadores de informações em um fluxo descontínuo, gerado por fontes externas (a clientela) faz com que as possibilidades de aplicação do conceito de fordismo a partir da tecnologia eletromecânica fique prejudicado, restrito a poucas aplicações marginais, tais como os dutos pneumáticos (observáveis em São Paulo no Centro Empresarial da Marginal Pinheiros, e em "Tempos Modernos"...). Na nova conformação informática, em que as informações são trocadas e consolidadas, para a maioria dos efeitos, através de terminais ligados aos computadores centrais das organizações, no momento mesmo em que são produzidas, a criação do autômato ganha realidade. Cessa assim a ociosidade da informação, matéria-prima do banco, e nesse processo agrava-se qualitativamente a desqualificação do bancário. No sistema anterior, o essencial do trabalho nos setores usuários da computação era organizado segundo a sua lógica interna concreta, da qual o bancário de métier extraía a sua maestria; agora, a razão informática penetra a fundo a própria lógica do processo de trabalho interno aos setores usuários e vai encarnar-se no sistema de máquinas. A inteligibilidade do processo passa assim a deixar de ser atributo dos seus executores. Agora, os novos aparelhos, que possuem uma unidade lógica, programada para dar conta de um elenco de possibilidades extraído da análise das situações preexistentes e interconectadas entre si e com a unidade central de processamento, produzem a consolidação das informações e conseqüentemente do processo produtivo.

Essa seleção prévia de possibilidades acaba eliminando cirurgicamente as situações particulares, não previstas nas normas, nas quais os funcionários afirmavam a irredutibilidade do seu saber. Essas situações, que surgiam nos interstícios do processo produtivo, no estágio anterior da divisão do trabalho, possibilitavam uma acumulação de conhecimentos e de méritos (9). Agora, com a estandardização dos serviços, desaparece essa possibilidade. O significado do novo fenômeno para a reedificação da estrutura das organizações é auto-evidente: passamos de um estágio em que a mobilidade ascensional era uma expectativa razoável, para outro estágio em que se tornou uma expectativa marginal, pouco provável, e estamos entrando numa fase em que a mobilidade ascensional passa a ser quimérica.

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Na produção do terceiro cenário, os agentes dividem-se em "informáticos" e "comerciais", de acordo com a posição que ocupam na organização. Os informáticos hegemonizam o antigo setor administrativo, agora chamado de informático, e os comerciais mantêm as posições financeiras e de contato com a clientela. Os agentes comerciais são os primeiros indivíduos titulados que entraram na empresa e continuam detendo uma certa preponderância no conjunto. A criação dessa hegemonia passou fundamentalmente pela imposição da primazia dos conhecimentos financeiros sobre os conhecimentos contábeis como o must da atividade da empresa, a essência mesma da moderna técnica bancária Os agentes técnicos no setor informático chegaram na organização sobrepondo-se aos autodidatas reconvertidos, num momento posterior à entrada dos técnicos comerciais e aproveitando-se do arbitrário cultural já criado.

Deste sistema de forças com vetores não coincidentes, abrem-se duas possibilidades ideais: de um lado, a hegemonização completa das funções de intermediação financeira do banco, com a . potenciação máxima da estrutura de capital dos agentes comerciais, tornando-os pólo dominante inconteste do novo campo; do outro lado, a transformação do banco numa empresa mais especializada na prestação dos serviços comerciais que complementam a atividade bancária, o que significaria a hegemonia absoluta dos informáticos. Considerando-se a atual estrutura de forças internas, em que a posição privilegiada no campo dos agentes comerciais autóctones é contrabalançada pelas necessidades de controle dos agentes "super poderosos" estrangeiros que representam os interesses da matriz, a resultante do sistema de forças acaba sendo um meio termo (10).

Apesar do desenvolvimento ainda incipiente do nosso terceiro cenário, já podemos notar claramente uma faceta importante da ação dos agentes no processo de transformação da empresa: uma análise tecnicista consideraria que o processo de informatização, o demiurgo tecnológico do ambiente estudado, levaria à desqualificação dos agentes comerciais a partir da implantação de sistemas de controle da atividade comercial, que terminaria por impor rígido controle sobre a atividade de seus agentes. Mas não foi isso que verifiquei. Ao contrário, nota-se claramente a hegemonia da lógica social sobre a lógica mais explicitamente tecnológica. Em relação aos novos agentes comerciais, não se processou nenhum fenômeno de deslegitimação social análogo à "desvalorização do capital-confiança". E essa passagem não só é uma mediação essencial do processo, como não é um processo orquestrado conscientemente por uma pretensa direção da sociedade. Os processos de deslegitimação social dependem de uma articulação fina de múltiplas determinações que podem ou não ser possíveis nas sociedades, ou microssociedades. Não é demais lembrar aqui que a capacidade de resistência do operariado tradicional britânico foi capaz de barrar a taylorização de seu trabalho apesar de todas as compulsões das necessidades de "valorização do capital" e dos exemplos "positivos" de todo o restante do universo capitalista desenvolvido.

A relação dos nossos agentes comerciais diante da informática não é parecida com a ação da cavalaria polonesa diante dos Panzer nazistas Eles irão recalibrar seus instrumentos e, ao invés de luddistas extemporâneos, tentarão recontextualizar a ação da informática, lutando para direcionar os planos informáticos da organização no sentido de aumentar as possibilidades de manipulação dos minicomputadores a serem colocados nos diversos departamentos da empresa. Além disso, tentarão criar sistemas informáticos paralelos aos centrais, controlados pelos usuários diretos. Para isso, irão mobilizar a memória coletiva sobre todos os problemas pretéritos causados pelos sistemas já implantados e sobrecarregar os setores informáticos de demandas, de forma a assinalar a sua incapacidade de atender as demandas comerciais prementes. Desta forma, abre-se a possibilidade da criação de subpólos informáticos sob o controle direto

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do pólo comercial. Face a esta tendência, de um lado os agentes informáticos irão tentar impugnar as pretensões dos comerciais apontando para os custos elevados da configuração pretendida e atentar para os problemas potenciais decorrentes da manipulação não especializada dos sistemas informáticos. O conteúdo social da trama é explicito. Estamos diante de uma luta bem definida, onde os agentes comerciais procuram manter a sua hegemonia no campo, estendendo a sua qualificação financeira para subordinar os conhecimentos informáticos e seus portadores. Por sua vez, os agentes informáticos lutam por subordinar os conhecimentos financeiros à programação informática.

As primeiras manifestações concretas desta oposição do campo, coletadas em 1981 e 1984, mostraram a enorme capacidade de articulação do pólo comercial. Uma primeira tentativa de enquadramento das relações com os clientes a partir do controle das reciprocidades financeiras.foi invalidada por múltiplas impugnações sobre pequenos defeitos marginais do sistema, dos quais os agentes comerciais exploraram todas as possibilidades negativas, nos momentos quentes das tentativas de implantação. Tal situação gerou uma forte inibição do setor informático, atingido gravemente por críticas cortantes. Ressalta-se do exemplo a capacidade dos agentes comerciais em criar um ambiente de desmoralização dos informáticos e explorar a situação até o nocaute de seus oponentes. Criada a situação de defensiva dos informáticos, os agentes mantêm a pressão, impugnando desenvolvimentos que nada têm a ver com o exemplo, mas tornados vulneráveis pela difusão da "incapacidade" dos informáticos em todas as instâncias da organização (11).

Este é o cenário onde a empresa irá implantar os sistemas de automação periféricos, o nosso fordismo. As potencialidades da atual revolução microeletrônica, introduzindo o conceito de flexibilidade nos ambientes de trabalho de uma forma explícita, apontam para a impossibilidade de se prever tendência clara para a hegemonia de qualquer dos pólos no campo. De um lado temos a possibilidade de centralização total do processo decisório e portanto da qualificação profissional, tornada possível pela nova capacidade de manipulação e transmissão de informações posta a serviço das empresas e, de forma oposta, temos a possibilidade da "informática sem informáticos", a potenciação das possibilidades de manipulação dos novos equipamentos informáticos através de linguagens não estruturadas, que formalmente não necessitam de grande qualificação específica. É assim que verifiquei na démarche empírica que a adoção do mesmo equipamento na organização estudada e em um banco nacional "de varejo" levaram a resultados bem distintos. No lado do banco nacional, a atividade comercial foi sumariamente desvalorizada, com a adoção de controles análogos aos acima descritos. No ambiente criado pela empresa multinacional vimos os resultados concretos. Assim, a única conclusão é: quem "viver, verá...".  Notas Biográficas 1 - Para uma comparação com a vivência mais tipicamente operária sobre a questão, o fetichismo do salário-hora, ver Leite Lopes (1976). 2 - Indagamos a respeito em uma grande empresa prestadora de serviços públicos e num banco privado nacional e recebemos impressões semelhantes.  3 - Em termos práticos, esses instrumentos cumprem no escritório as funções da análise de tempos e movimentos na fábrica.  

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4 - Fica nas entrelinhas a idéia de que uma chefia onisciente poderia ser autoritária, o que deve resguardar o espaço para a alta cúpula da empresa não se chocar com a direção intermediária. É útil ver aqui o confronto entre as concepções democrático-sociais e liberal-constitucionais de democracia (cf. Cerroni, 1972, p. 182-236).  5 - Isto é, quando em função dos débitos produzidos pela cobrança daqueles serviços excedem o saldo disponível em conta corrente do cliente. 6 - Embora o Brasil siga um padrão de organização bancária mais próximo dos EUA, o processo aqui seguido leva alguma analogia com a França. Ver a respeito Verdier ( 1980a, p. 6-10) 7 - Sobre as estratégias desenvolvidas pelas firmas multinacionais de origem norte-americana na organização de filiais em outros países, o tipo de recrutamento, a formação de quadros locais e a gestão de pessoal qualificado, ver Brooke e Remmers (1973, p. 203 e 371-3).  8 - Sobre os mecanismos que regem essa avaliação, que sempre passa pela honorabilidade do cliente, a sua acumulação de capital simbólico, ver 8ourdieu (1980, p. 203-4). Mas, num ambiente dominado pela "modernidade" que descrevemos, aquela percepção aparece como atraso de formação ou "incapacidade de avaliar a saúde das empresas:..".  9 - Essa,situação é descrita para o setor de seguros, que guarda analogia com o setor bancário, por Verdier (1980b, p. 11-30, particularmente, p. 15-6).  10 - Exploro as articulações dos agentes autóctones com os representantes da matriz internacional em Grün (1985, caps. 6 e 7).  11 - Insisto na não-orquestração das ações. Não se trata de uma estratégia urdida por algum gênio maquiavélico. Na falta de termo melhor para essa manifestação de feeling dos agentes, considero suas reações como manifestação duma "força social" exercida por quem tem plena confiança na justiça de sua posição na hierarquia social e técnica, os membros de pleno direito da sociedade moderna, os portadores de todos os atributos de excelência do momento. Para uma aproximação ao tema ver Bourdieu (1980, p. 99, nº 1l).  Bibliografia BANCOS Comerciais do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. IBMEC, 1972.  BOURDIEU, P. Le seres pratique. Paris, Ed. de Minuit, 1980.  BROOKE, M. Z. & REMMERS, H. L. La stratégie de 1'entreprise multinationale. Paris, Ed. Sirey, 1973.  CERRONI, C. La libertad de los modernos. Barcelona, Ed. Martinez Roca, 1972.  DESROSIÈRES, A.; GOY, A. & THEVENOT, L. "L'identité sociale dares le travail statistique". Economie et statistique, n° 195, fev 1983.

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 FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1975.  GRAMSCI, A. El "Risorgimento".Buenos Aires, Ed. Granica, 1974.  GRIGNON, C. L'ordre des choses - les fonctions de l'enseignement technique. Paris, Ed. de Minuit, 1971.  GRÜN, Roberto. A produção de uma empresa moderna ─ Os bancários e a automação. Dissertação de mestrado, PUC/SP, 1985.  LEITE LOPES, J. S. O vapor do Diabo. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1976  ROMANELLI, G. O provisório definitivo ─ trabalho e aspirações de bancários em São Paulo. Dissertação de Mestrado apresentada à FFCHL-USP em 1978.  VERDIER, E. "Traits spécifiques de l'informatisation du travail bancaire". Critiques de l'économie politique, n° 12, jul-set. 1980a.  ____. "Informatisation et évolution de la division du travail dans le secteur des assurances". Critiques de l'économie politique, n° 12, jul-set. 1980b. VERDÈSLEROUX, J. Le travail social. Paris, Ed. de Minuit,1978.  VILLETTE, M. "Psychosociologie de entreprise et rééducation morale". Actes de la Recherche em Sciences Sociales, n° 4, 1976.  Texto recebido para publicação em outubro de 1985.   

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PARA ONDE VAI A CHINA?  

Hélgio Trindade   

"A 3.° sessão plenária do Comitê Central do XI Congresso do Partido Comunista Chinês, realizada em fins de 1978, transferiu o eixo da atividade de toda a nação em direção à modernização socialista do país e, ao mesmo tempo, abandonou o slogan ‘fazer da luta de classes o centro’. (...)  

Onde irá a China? Esta mudança significa um processo de desmaoização? Irá a China abandonar

seu espírito revolucionário para se voltar ao capitalismo? Poderá assegurar a continuidade da política em vigor? Resistirá em se proteger contra ‘a poluição espiritual’ do Ocidente?"  (BU, Fa Wen. La modernisation à la chinoise. Beijing Information, 1983).   

"Hoje, a China parece ter sucumbido, da cúpula até à base, aos encantos da nova revolução técnica e sonhando em seguida ligar seu desenvolvimento ao conjunto do planeta. Que mudança de atitude e de mentalidade! Mas tudo isto não ocorre sem dificuldades. Velha nação trabalhada pelas dores do parto de uma grande nação moderna, velha nação agitada por todas as efervescências que se prepara a renascer de suas próprias cinzas, a China tornou-se de dois anos para cá, a sede de uma experiência sem precedentes de autometamorfose."

 (YINGXIANG, Cheng. Estratégie Chinoise ou la mue du dragon. Paris, Autrement, 1986). As recentes manifestações de estudantes chineses, ocorridas em várias universidades do país, tiveram como momento culminante a queima simbólica, em janeiro, do jornal Quotidiano do Povo, do Partido Comunista, como protesto às informações distorcidas sobre o movimento veiculadas por aquele órgão oficial. O ato de desagravo ocorreu no centro de Pekin, em plena Praça Tian'anmen, defronte ao Memorial do Presidente Mao Tse Tung, numa mobilização de cerca de 3 mil universitários que percorreram de madrugada, com as ruas cobertas de neve, a distância de 15 km entre a universidade e o local do protesto. Era o último gesto de impacto internacional de uma série de manifestações em onze universidades que iniciou em dezembro na Universidade Politécnica de Hefei, a mais moderna da China, destinada à formação de pesquisadores de alto nível nas áreas de ciência e tecnologia, fundada em 1956, sob os auspícios da Academia de Ciências. Tudo originou-se porque, segundo fontes idôneas da imprensa internacional, um estudante, buscando desafiar as regras do jogo dominante na China,

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num período de reformas visando "a modernização da sociedade", decidiu concorrer às eleições locais sem o aval do Partido. Sua candidatura tendo sido recusada, provocou a reação dos estudantes e engendrou, associada a fatores locais, protestos encadeados, cujo slogan principal cobrava dos dirigentes políticos chineses: "Senhores reformistas, cumpram suas promessas". Este foi o significado profundo das mobilizações estudantis chinesas que se tornaram politicamente importantes não apenas pelo fato de tratar-se de um evento forte num país socialista, mas, sobretudo, pelas conseqüências imediatas no âmbito da própria estrutura do poder.

Embora não exista nenhum indício mais explícito de que a política de abertura para o exterior e de modernização à chinesa, conduzida pela liderança de Deng Xiaoping, esteja correndo um sério risco, não se pode deixar de constatar que o líder chinês foi obrigado a sacrificar alguns de seus aliados reformistas para enfrentar a pressão dos setores conservadores do Partido. O preço pago foi alto: o afastamento do secretariado geral do Partido, Hu Yaobang; dos Presidente e Vice-Presidente da Academia de Ciências, Lu Jaxi e Yan Dougshen; e do responsável pela propaganda oficial, Zhu Houze. Qualquer tentativa de compreender, porém, as conseqüencias a médio prazo do movimento dos estudantes e suas implicações sobre uma eventual mudança de política global na China, supõe uma análise retrospectiva das relações entre universidade e sociedade no processo de transição da sociedade tradicional para as diversas políticas de modernização no passado e no presente, no contexto do processo de "modernização" desencadeado nos últimos dez anos, após a tormenta da Revolução Cultural.

Os acontecimentos da China parecem demonstrar (tanto quanto nas manifestações estudantis francesas de fins de 86 que obrigou o governo a retirar seu projeto de reforma educacional) o quanto a universidade é uma instituição sensível às mudanças da sociedade. Estes fatos ocorridos num país socialista, certamente dissociados da onda de mobilizações na Europa, especialmente na França e Espanha, parecem reforçar a hipótese proposta sobre as relações entre Universidade e Sociedade (Trindade, 1987), buscando enfatizar a importância da interação entre mudanças na sociedade e mudanças na universidade. Na ocasião destacava que "a história da Universidade tem demonstrado que os grandes momentos de reforma resultam, de forma direta ou indireta, de períodos cruciais na evolução política, econômica ou cultural das sociedades. A própria sobrevivência da Universidade, desde a Idade Média, somente se explica por um duplo movimento: de um lado, a mudança contínua de seu modelo organizacional (medieval, renascentista, bonapartista ou estatal, alemão ou anglo-saxão etc.) resultante de decisões em geral, externas a Universidade; de outro, a sua capacidade adaptativa às mutações societais através de um processo de natureza interna." No caso da China, a hipótese mantém sua validade, embora dentro do contexto histórico de uma sociedade milenar e com uma tradição universitária nascida em fins do século XIX.

A interação entre universidade e sociedade permanece, pois, irrelevante ao longo da história chinesa pela origem relativamente recente da instituição acadêmica, que data, a mais antiga, de 1896. Este fato não impediu, todavia, o desenvolvimento de uma civilização singular na Ásia Oriental que manteve sua originalidade através dos tempos e que a partir do século VII, inventou a prensa, para a impressão de livros, a pólvora para canhão e, três séculos mais tarde, a porcelana, a bússola, o papel-moeda e os caracteres móveis de chumbo para a imprensa O que parece significativo, também, pela ausência de instituição universitária, é o fato de que os chineses introduziram, antes que a Europa (sendo imitado séculos depois pela Inglaterra), o sistema de concursos para a escolha de funcionários, dando origem à casta dos mandarins cujo prestígio será enorme

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numa sociedade que atribuía aos letrados, a ordem de maior prestígio na hierarquia social. A compreensão deste processo histórico, porém, supõe uma breve incursão na formação da sociedade chinesa tradicional até o advento dos tempos modernos, associados ao advento da república em cuja transição nasce a universidade.

A China - autodenominada tradicionalmente Império do Meio e percebida como Extremo-Oriente na visão europeocêntrica - foi se constituindo, através dos séculos, numa das mais originais civilizações da humanidade. Esta originalidade, quase intacta até os nossos dias, preservou-se, em grande medida, pelo isolamento de seu território. Incrustada em vasto espaço da Ásia Oriental, protegeu-se de seus vizinhos ao norte pela Sibéria (e desta pela Grande Muralha de 2.200km), ao noroeste pelo deserto de Gobi e ao sudoeste pelas montanhas do Tibet e do Himalaia. Com uma história de quarenta séculos, a civilização chinesa se distingue de outras porque, apesar das mudanças dinásticas, invasões e guerras civis, manteve sua identidade própria ao longo do tempo.

No continente asiático, a China sempre conseguiu manter sua superioridade tanto em relação aos invasores vindos do norte (mongóis e mandchurianos) quanto aos vizinhos do leste (coreanos e japoneses) ou do sul (vietnamitas), assimilando os primeiros e influenciando os segundos. O instrumento principal de sua hegemonia civilizatória foi a escrita ideográfica que, com pronúncias diferenciadas, permitia aos povos vizinhos ler os seus textos, o que conferiu à língua chinesa uma importância comparável ao latim na Europa. Em termos mundiais, a China desempenhou durante séculos um papel muito mais central do que a própria Europa: manteve no campo da ciência sua superioridade certamente até fins do século XV, embora tenha perdido essa posição com o desenvolvimento da revolução científica e industrial européia do fim do Renascimento.

As condições que viabilizaram a preservação da civilização chinesa não foram concedidas nem à Grecia, nem à índia, muito mais expostas aos contatos com outros povos e culturas; "esta originalidade poderia, como para as civilizações pré-colombianas ou negras" observa Renê Grousset, "dar origem a concepções praticamente fechadas. Ora, o fato é que o espírito chinês, como o espírito grego ou latino, possuía uma predisposição para as idéias gerais, e, como Grécia e Roma, a China pensa em termos universais". Em conseqüência, conclui: "para a Indochina oriental, a Coréia e uma parte ao menos da Ásia do norte, a China, por seus letrados e seus legionários foi, ao mesmo tempo, Grécia e Roma."

O apogeu da China ocorrerá, em meados do século XVII, sob a dinastia sino-mandchuriana que assume o poder em 1644 e o território chinês será mais vasto do que o atual da República Popular, ocupando mais da metade do continente e tendo o Nepal, a Birmânia, o Vietnam e a Coréia como estados vassalos do imperador de Pekin.  O império chinês, sua crise e o advento de universidade  A partir de 1840, começa o fim do isolamento da China provocado pelas duas Guerras do ópio vencidas pela Inglaterra entre 1842 e 1858, o que obrigou o governo a fazer concessões no comércio do chá e da seda através da abertura de inúmeros portos e da concessão da ilha de HongKong. As vantagens que as potências ocidentais (Inglaterra, França e Alemanha), obtiveram em decorrência das duas guerras, teve como contrapartida a assistência militar ao exército imperial chinês para enfrentar as insurreições camponesas dos Taiping e do Nian. Na segunda metade do século XIX, no período da menoridade de dois imperadores, o governo de Pekin será dirigido por estadistas experientes que irão tentar, pela primeira vez, introduzir uma modernização no estilo ocidental (o iangwu), sob o impacto da nova situação internacional e das

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reformas no Japão de Meiji. A experiência redundará num fracasso porque o peso das forças conservadoras na China era muito forte e o programa de reformas limitado para enfrentar a complexidade dos problemas ligados à modernização do país. Além do mais, o conflito franco-chinês, provocado pela intervenção francesa em Tonkin, deixou claro que a hipótese, suposta pela China, de uma cooperação das potências ocidentais, era muito precária.

Se a experiência serviu para que a China repensasse suas relações com o mundo exterior, enviando diplomatas e intelectuais à descoberta do Ocidente, foi à derrota da China frente ao Japão em 1895 que despertou a consciência do atraso tecnológico de um com relação ao outro, com a destruição da frota chinesa e a perda do território ao inimigo hereditário. A reação do lado chinês deu origem ao movimento de 1898 que reunia um grupo de jovens intelectuais convencionados da necessidade de reformas mais radicais. Coube a Kang Youwei, influenciado pelos aspectos não conformistas do pensamento de Confúcio, ao ser chamado ao poder pelo imperador Guangxu, tentar a implantação com a colaboração de um grupo de intelectuais renovadores, de um amplo programa de reformas. Infelizmente a experiência dos "cem dias" foi interrompida por uma intervenção militar, resultante da convergência política entre os conservadores e os reformadores moderados.

A vitória japonesa, por outro lado, aguça as ambições imperialistas das potências européias que obrigam a China a aceitar empréstimos financeiros com taxas de juros elevados e a fazer concessões para exploração de minas e construções de estradas de ferro. Esta penetração ocidental acabará provocando uma violenta reação popular, de origem camponesa novamente, através das "milícias secretas da justiça e da concórdia, (Boxers) cuja derrota, após obrigar a corte deslocar-se de Pekin, foi obra de um exército internacional sob o comando de um oficial alemão".

A situação de dependência financeira da China com relação às potências ocidentais obriga o governo imperial a tirar as lições da crise, inspirando-se no programa de reformas de 1898. A nova política institui um sistema moderno de escolas e universidades, reorganizando o exército e adotando uma reforma constitucional à la japonesa, que previa assembléias provinciais eleitas pelo sufrágio restrito, cujos delegados formariam uma assembléia nacional de tipo consultivo. Todas essas medidas, porém, vieram muito tarde: nem os reformadores de 98, nem as milícias camponesas conseguiram atingir seus objetivos, uns porque tinham um programa progressista mas sem apoio popular, outros porque estavam ligados ao povo mas tinham propostas reacionárias. Somente com o advento do movimento republicano sob a liderança de Sun Yatsen que esta contradição buscará ser ultrapassada, estabelecendo uma ponte entre o apoio popular e a causa do progresso político e social.

A experiência republicana, apesar de ter derrubado a secular monarquia chinesa, foi efêmera. O novo governo que se instala em Nankin em outubro de 1911, com a rápida adesão do exército, das autoridades locais e das assembléias provinciais, com uma constituição baseada no sistema americano, não conseguirá solapar a base social do ancien regime. E a breve república democrática terá seu fim dramático quando o Partido Nacional do Povo obtém ampla maioria no Parlamento, o seu líder é assassinado e dissolvido o legislativo, obrigando os novos dirigentes republicanos a buscar o caminho do exílio, após uma breve resistência de três províncias do sul. Estava instituída a segunda república em novas bases, tendo como novo presidente Yuan Shiaki que, com o apoio dos conservadores provinciais, retornarão à velha política mandchuriana com relação às potências ocidentais.

A situação de interferência externa atinge o seu apogeu: além da manutenção dos antigos privilégios, os europeus gerem a alfândega e os correios, estabelecendo um

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sistema de quase protetorado. Os investimentos estrangeiros serão importantes nos setores de minas, indústria leve, estradas de ferro e equipamentos urbanos, sendo igualmente significativa a influência cultural e religiosa. Os novos dirigentes do país são militares ligados ao Presidente da República, também militar, e que disputam entre si o controle dos diversos centros de poder, provocando a instabilidade política, a corrupção generalizada e o recurso à violência. Em suma, a república afunda-se na desordem sob o arbítrio dos "senhores da guerra".

Apesar dos percalços da república chinesa, a sociedade começa a transformar-se em função das mudanças econômicas, alterando sua hierarquia tradicional. A nova burguesia capitalista não aceita mais estar na escala mais baixa das quatro ordens (letrados, camponeses, artesãos e comerciantes) e um proletariado surge da indústria moderna nacional e estrangeira, engendrando uma nova dinâmica social.

Neste contexto é que surge a universidade na China em fins do século XIX num período, pois, de transição da sociedade, decorrente da crise do sistema monárquico, da penetração estrangeira após as duas Guerras do ópio em meados do século passado e da conseqüente ruptura com o isolamento secular. A Universidade de Pekin foi fundada em 1898 sob o nome de Escola Superior da Capital, mudando de denominação para a atual em 1912, sendo que a segunda Universidade tradicional é a Fudan, criada no início do século (1905) em Shanghai. Ambas as Universidades estruturam-se de forma clássica em faculdades de letras e ciências. Uma terceira instituição de ensino ligada a Escola Superior da Capital e destinada à formação de professores, com a implantação da República, em 1911, transforma-se em Universidade Normal de Pekin. A mais antiga do país surge, em Shanghai, em 1896, na área de ciência e tecnologia, transferindo-se mais tarde para Xi'an com o nome de Universidade das Comunicações, embora uma das mais importantes no campo científico e tecnológico seja a Universidade de Quinghua, situada em instalações modernas no subúrbio de Pekin. Fundada em 1911 talvez esteja atualmente suplantada pela Universidade de Hefei de organização mais recente. A maioria das Universidades chinesas, porém, foram organizadas entre as décadas de 10 e 30, o que mostra que a China somente começará a atribuir importância a instituição universitária num período de crise institucional e social em que se produz uma forte efervecência intelectual na sociedade tradicional em função de uma interação mais intensa com as ideologias e o desenvolvimento científico e técnico das potências ocidentais.

Com a queda do Império Chinês, encerrando o ciclo de quase três séculos da dinastia mandchuriana, e o surgimento da Universidade, criam-se as condições para a emergência de novos grupos ideológicos, tornando-se popular entre os jovens intelectuais o anarquismo, a democracia liberal e o socialismo em sua forma ainda vaga. Na nova cultura política chinesa a categoria "povo" entra na linguagem dos círculos intelectuais e políticos, criando as condições de surgimento de novos movimentos políticos e culturais. Nessa atmosfera intelectual emerge, em 1919, sob a inspiração de um grupo de professores de Pekin (que havia criado, em 1915, a revista "Nova Juventude"), o Movimento de 4 de maio. Buscando no imediato protestar contra o tratado de Versalhes que atribuía ao Japão as possessões e bens alemães de Shandong, trazia em seu bojo a articulação das forças sociais modernas: intelectuais, operários e burguesia. Movimento político e cultural urbano, punha em acusação a ideologia e a sociedade antigas, rompendo com a tradição confuciana baseada na sabedoria dos velhos e no valor exemplar do passado. Estimula a utilização pelos escritores da língua popular e não a língua morta dos clássicos, defende a emancipação da mulher e a ciência moderna. A busca de inspiração na literatura estrangeira conduz os intelectuais chineses a Russel, a Dewey e a Marx. Se as utopias socialistas japonesas e o anarquismo

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ocidental os atraem, a vitória bolchevista recente dava ao marxismo um prestígio particular.

Dois líderes intelectuais do 4 de maio, Li Dazhao e Chen Duxiu, aderem ao marxismo em 1919 e 1920, rompendo com a ala direita do movimento. A evolução se acelera quando os "círculos de estudo do socialismo" radicalizam e se transformam em 1920 em células comunistas, estimulados pelo enviado do Komintern na China, Voitinski. A nova conjuntura viabilizará, em julho de 1921, a fundação em Shanghai do Partido Comunista Chinês. Esta a marca de origem do comunismo na China: fundado por jovens intelectuais, num contexto de luta de "salvação nacional" mais do que de conflitos sociais, o que levará a adotar, desde o início a linha leninista sem ter passado pelo estágio social-democrata das experiências européias. A ausência de qualquer tradição socialista anterior, levou o novo partido a seguir uma estratégia inspirada no modelo soviético, colocando, apesar do limitado desenvolvimento da classe operária, no primeiro plano a ação revolucionária. O batismo de fogo se deu, em fevereiro de 1923, na greve geral dos ferroviários de Pekin, em que a repressão dos "senhores da guerra" produzindo quarenta mortos e a intervenção em vários sindicatos e greves em toda a China, mostrou o quanto o governo controlava a situação e que os comunistas, ainda frágeis, precisavam de novos aliados.

Diante da situação interna e das novas diretivas do Komintern de aliança de classe, os comunistas buscam aproximar-se dos nacionalistas de Sun Yat-sen na luta contra os imperialistas e os militares. A cooperação entre comunistas e nacionalistas se efetiva, em janeiro de 1924, por ocasião do Congresso de Reorganização do Guo-mindag (Partido Nacional do Povo) quando estes acolhem comunistas (dentre os quais Mao) no seu Comitê Central que aceita, oficialmente apoiar o movimento operário e camponês. Em conseqüência, o governo nacionalista do Cantão se aproxima de Moscou que lhe envia uma missão diplomática, tornando-se internamente uma autêntica base revolucionária, com amplo apoio da opinião pública chinesa. A experiência irá fracassar quando as incursões militares, com o apoio dos comunistas, ao norte da China, dirigidas pelo general Tchiang Kai-chek (cunhado do líder republicano Sun Yat-sen), acabam transformando-se em "guerras revolucionárias". A ruptura torna-se inevitável e ocorre em Shanghai: a ala direita dos nacionalistas, dirigida pelo referido general, liquida as milícias operárias que o apoiaram na ocupação da cidade, obrigando os comunistas buscarem novos caminhos. É nesta conjuntura que sob a inspiração de Mao, o centro da ação dos comunistas desloca-se das cidades para o campo, mais adaptado à organização de "bases revolucionárias". É o início da chamada via revolucionária chinesa. A citação de uma frase de Mao na revista Le Communisme de 1939 mostra claramente o sentido da nova estratégia do partido: "Fora da luta armada, fora da luta de guerrilha, é impossível compreender nossa luta política e, por conseqüência, impossível compreender como construiu-se nosso Partido. Nós sabemos que na China, não poderá haver nenhum papel para o proletariado, nenhum lugar para o povo, e nenhuma vitória para a revolução, sem luta armada. (...) Sem luta armada, sem guerrilha, não haveria jamais um partido comunista tal como ele existe hoje." (Schram, 1973) A via chinesa, pois, baseia-se na articulação pelo partido de três elementos: mobilização do campesinato pobre, luta de guerrilha e papel central do exército popular de libertação.

A nova estratégia implica em reconhecer no campesinato e não mais no proletariado a classe principal na condução do processo revolucionário e será contestada pela maioria do Comitê Central apoiado por Moscou. De 1927 a 1935 estabelecera-se nas províncias do sul vários focos de guerrilha, apoiados no campesinato pobre, beneficiado, nos territórios liberados, por uma reforma agrária radical, com expropriação de terras sem indenização. A cisão entre os comunistas, facilitará a ação

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militar contra os sovietes chineses pelo exército nacionalista, obrigando, após um último cerco no verão de 1934, os 90 mil sobreviventes a lançarem-se na Longa Marcha. Somente a partir desta nova etapa de luta revolucionária na China que Mao assume a presidência do Partido (janeiro 1935) e consegue ver reconhecida a justeza de sua linha política.

Durante a marcha de Mao, eclode a guerra sino-japonesa com a invasão da Mandchúria em 1931, sem que o governo ofereça uma verdadeira resistência. Quando em 1933 a invasão penetra a China do Norte (Mongólia interior), os comunistas segundo as diretivas do VII Congresso do Komintern (1935) buscam com dificuldade através da estratégia de frente-populares, reaproximarem-se dos nacionalistas na luta contra o inimigo externo. A resistência dos nacionalistas em engajarem-se de forma mais agressiva contra os japoneses, reforçará a identificação do Exército Nacional de Libertação com a causa nacional, que será um fator importante na ampliação da legitimidade política dos comunistas no após-guerra. O fracasso da tentativa de instalar um "governo de coalizão", mediado pelos americanos, no final da Segunda Guerra, conduziu novamente ao confronto armado entre nacionalistas e comunistas. O resultado, ainda que inicialmente favorável aos nacionalistas (sobretudo com o apoio da aviação americana no deslocamento de tropas), beneficia os comunistas dada a erosão inflacionária da economia, a corrupção em alta escala em todos os escalões do governo e a eficiência da reforma agrária, promovida pelos comunistas de liberação. A Longa Marcha percorrendo cerca de 9 mil quilômetros, consegue entre 1948 e 1949 cercar e tomar as grandes cidades da China - Moukden, Pekin, Nankin e Shanghai - o que viabilizará, em 1 ° de outubro de 1949, numa Conferência política popular, com a participação de comunistas, centristas e organizações populares, a proclamação do nascimento da República Popular da China.  A República Popular, a utopia maoísta e a universidade em crise  Conquistado o poder, o processo de transformação da China num país socialista passou por duas etapas que são cruciais para o entendimento da atual "política de modernização" pós-maoísta em fase de implementação desde 1976. A primeira, corresponde ao período da instalação no poder e do primeiro plano qüinqüenal (1949-1957); a segunda, estende-se por quase duas décadas de maoísmo (1958-1976). Esta fase em que se configura a utopia maoísta desdobra-se em três fases diferentes: a do "grande salto para a frente de produção", substituindo o planismo econômico pelo voluntarismo político (1958-1961); a partir de 1962, com o fracasso do projeto econômico anterior e o início dos desentendimentos com a URSS, desencadeia-se os primórdios da Revolução Cultural, que dura três anos (1965-1968); finalmente, a última fase de liderança de Mao (1968-1976), em que a preocupação é a da reconstrução do Partido desmantelado pela Revolução Cultural, em que ocorre a tensa transição entre a hegemonia política do exército politizado de Liu Piao e ascensão ao controle do poder de Chou-En-Lai que termina em 1976, com a morte do líder máximo da revolução chinesa. A partir de 1976, com o desaparecimento do Grande Timoneiro, começa a etapa atual de modernização à la chinesa em que a prioridade torna-se o desenvolvimento da economia, ainda que em novas bases como na década de 50.

Na primeira etapa dos anos 50, sob a influência direta da experiência soviética, aplica-se os grandes princípios do modelo stalinista adaptado às condições da China. Tratava-se de construir o socialismo a partir da vitória militar, tirando partido do consenso que dispunha o novo regime. As reformas sociais profundas derrubam a antiga ordem: reforma agrária, planificação centralizada, reforma do casamento, concessão de

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direitos aos sindicatos operários e eliminação da classe dirigente tradicional. O traço principal, é que a China, influenciada pelo modelo soviético, adota a industrialização planificada e os dirigentes do PCC aceitam que a construção econômica é uma condição prévia a uma transformação significativa das "relações de produção", sobretudo no setor rural dominante (Domenach, 1985).

Na primeira etapa o controle totalitário sobre a sociedade ainda não se implantara, permitindo que a Universidade, o exército e a justiça dispunham de um "mínimo de autonomia técnica". A este modelo planista se oporá a utopia maoísta expressa na estratégia do "Grande passo para frente" e, mais tarde, da Revolução Cultural. E a ruptura com o modelo soviético obriga Mao a ampliar o seu poder para fazer face aos setores do Partido que contestavam a nova linha, desencadeando o processo de totalitarização do poder e de culto da personalidade.

A característica principal do maoísmo, porém, será "a descoberta utópica por Mao TseTung que a criação da sociedade comunista não depende de um desenvolvimento econômico prévio, mas da vontade dos homens e que esta pode acelerá-la de forma decisiva" (Hu, 1975). Em conseqüência "a ordem de prioridades entre transformação econômica e política é invertida, mas o otimismo político condiciona o otimismo econômico" (Domenach, 1985).

Na etapa planista três quartos dos investimentos públicos são destinados à indústria e menos de 10% para a agricultura. A reforma agrária, ainda basicamente distributivista, não conseguirá organizar a produção, gerando uma crise social no campo. Os camponeses pobres começam a vender as terras aos melhores afortunados e a agricultura mantém-se quase estagnada. Diante do desafio agrário, surge o debate sobre a coletivização da agricultura. Embora setores do Partido propugnem pela mecanização prévia, a orientação de Mao prepondera e conduz a um ambicioso plano de desenvolvimento agrícola. A partir de 1956, o novo plano conduz a implantação das "comunas populares" que pretendiam, utopicamente, superar em poucos anos a produção da Grã-Bretanha e depois a dos Estados Unidos. A China cobre-se de comunas em todas as regiões, descentralizando a economia através de unidades políticas, administrativas, econômicas, sociais, autônomas. O projeto maoísta conduz ao igualitarismo heróico, mobilizando milhões de camponeses: "todo membro da comuna, independente da mão-de-obra de que dispõe sua família, será gratuitamente abastecido de cereais". O objetivo é diminuir a distância entre a cidade e o campo, aproximando os quadros do partido do trabalho manual. Esta fase corresponde, no plano externo, a uma postura da China como líder intransigente da revolução mundial que recusa qualquer compromisso com o imperialismo e exalta a guerra popular, apresentando a experiência chinesa como exemplar para os países subdesenvolvidos. Esta nova atitude se explicita a partir da Conferência dos Partidos Comunistas, realizada em 1960, na capital soviética.

O "grande passo para frente da produção" fracassa, mas só é reconhecido por Mao quando a situação se torna catastrófica com a fome no campo e o racionamento nas cidades dos anos difíceis de 1959 e 1961. Entretanto, Mao aceita um recuo tático para a recuperação da crise, embora considere que a linha era justa e que os erros só poderiam ser dos que se afastaram dela ou "traíram". A partir de 1962, Mao lança-se em luta contra a dupla traição: a externa da União Soviética, provocando as graves tensões do conflito sino-soviético; e a interna contra o aparelho revisionista utilizando-se da Revolução Cultural.

Foi na 10.ª Sessão do Comitê Central, em setembro de 1962, que Mao parte para o contra-ataque, lançando a famosa frase "camaradas, não esqueçam a luta de classes". Era a advertência de que o partido devia enfrentar o inimigo evitando o risco de

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degenerar num "partido revisionista" e retomar a indispensável educação socialista. Estavam lançadas as bases teóricas do que seria, a partir de 1965, a denominada Revolução Cultural. Tornava-se imperioso consolidar as comunas populares e desenvolver a produção segundo a receita de Mao: "gestão honesta e eficaz, detectar as sabotagens do inimigo de classe e mobilizando os manos" (Roux, 1976). Partindo do pressuposto de que reanimando as associações de camponeses das camadas mais baixas para que estes conduzam a crítica dos quadros do partido, Mao considera que a luta de classe subsiste sob o socialismo e se o Partido não enfrentar o problema corre o risco de degenerescência revisionista ou até fascista (Devillers, 1967). Estas orientações transformam-se, em 1963, nos diretivos do Secretário Geral do PCC, Deng Xiaoping, de que "equipes de trabalho" visitem os primeiros para investigar os abusos dos militantes e expurgar as bases corrompidas ou burocratizadas. Este trabalho desenvolveu-se nas entressafras de 1963 e 1964 sem maiores alardes.

Entretanto, com o prosseguimento das dificuldades econômicas e, sobretudo, com o início dos bombardeios americanos no norte do Vietnam, cria-se um clima de risco iminente de guerra com a China, estimulando uma intensa mobilização a nível nacional para uma resistência de massa. Nesse contexto, começa um processo de expurgo mais violento, endurecendo os diretivos anteriores, atingindo entre 1,5 e 2 milhões de quadros partidários (5 a 10 % dos militantes). A limitabilidade do expurgo obrigará Mao a intervir, em inícios de 1965, propondo novas diretrizes e definindo que o verdadeiro debate é a luta entre capitalismo e socialismo na China. Em conseqüência, o problema é de lutar "contra os gênios no Partido detentores de autoridade que tomam a via capitalista". A palavra de ordem é "tomar o poder pela luta" onde os responsáveis do partido tornaram-se "restauradores do capitalismo" (Roux, 1976). Agora, com a definição operacional de Mao sobre seus objetivos, instala-se a fase da Revolução Cultural propriamente dita, configurando a luta radical e violenta para fazer triunfar a linha proletária do Partido. Os riscos de um controle possível do aparelho de Estado pela burguesia estaria a exigir, na visão maoísta, uma nova revolução dentro da revolução.

Esse dramático período da história chinesa que atravessará vários momentos de radicalização crescente, sobretudo com a participação dos jovens estudantes secundaristas e universitários (os Guardas Vermelhos colocados em férias coletivas para atacar os dirigentes mais altos na hierarquia do PCC), operados pelo Exército Vermelho, produzirá, no final do processo de expurgos, uma situação nova para um país socialista. O paradoxo encontra-se no desmantelamento do Partido Comunista Chinês como instituição e na hegemonia política, desativados os Guardas Vermelhos, do Exército Vermelho politizado.

A desarticulação do PCC resulta da combinação entre um expurgo amplo tanto na cúpula dirigente (três quartos dos membros do Bureau político; metade do Comitê Central e a quase totalidade dos primeiros e segundos secretários provinciais) quanto nas bases e o surgimento de um poder político paralelo descentralizado dos "comitês revolucionários", que reúnem, sob a hegemonia dos militares, "representantes das massas revolucionárias" (Guardas Vermelhos) e antigos militantes.

Durante a Revolução Cultural a estrutura do ensino secundário e universitário entra em colapso com a mobilização dos Guardas Vermelhos que se reúnem pela primeira vez, em 1966, numa concentração em Pekin, mais de 1 milhão de jovens vindos de toda a China. As férias prolongadas - de agosto de 1966 a outubro de 1967 - são incorporadas no processo de endurecimento da Revolução Cultural cerca de 11 milhões de estudantes organizados (colocando 50 milhões em efervescência política), abalam as instituições políticas e administrativas, incluindo a Universidade

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Esta transformação é alvo de um questionamento do conteúdo do ensino, de sua relevância para a revolução chinesa e, sobretudo, de caça às bruxas dos desvios ideológicos. Suas dependências tornaram-se centros de arregimentação e de irradiação da nova educação socialista baseada no Livro Vermelho de Mao, além de palco em seus estádios de esporte de autocríticas públicas para humilhar e destituir dirigentes do PCC, acusados de "revisionismo capitalista".

A Universidade como instituição cultural por excelência sofria, ainda que transformada desde 1949 pela nova ordem socialista, uma nova e traumática metamorfose. Sob a acusação de desvios ideológicos de todo o tipo, seus presidentes, diretores, professores e estudantes foram enviados a reeducação na zona rural, asfixiando a mínima autonomia necessária ao funcionamento da instituição. A jovem universidade chinesa, ainda em fase de consolidação e expansão, vive a chamada transformação da sociedade na qual se encontra integrada, formada por duas mutações sucessivas: primeiro, ajustando-se à construção da sociedade socialista e, com a eclosão da Revolução Cultural, desagregando-se totalmente na busca de uma utopia que fracassa a curto prazo.

Durante a violência ascendente de alguns setores ligados a Revolução Cultural, Mao resolve, em setembro de 1967, pôr um ponto final no movimento que ameaçou degenerar-se em anarquia. O líder máximo adverte que no "interior da classe operária não há conflito fundamental" e Chou-En-Lai explicita o sentido concreto da idéia ao afirmar que "o exército deve servir a esquerda e não a facções particulares" (Roux, 1976). Em outubro, com a retomada dos cursos nas universidades e estabelecimentos secundários, desmobilizam-se os Guardas Vermelhos, esvaziando-se o grande instrumento de ação da Revolução Cultural.

A principal tarefa é restabelecer o papel dirigente do Partido, absorvendo as lideranças emergentes nascidas do movimento e que expressam uma nova relação de forças na evolução da via chinesa para o socialismo. Como observa um especialista "sabe-se logo que a Revolução Cultural não foi somente a da eliminação dos dirigentes que discordavam de Mao, mas a da traição concreta das ‘massas’ as quais ela apelou: ao fim de alguns meses, apesar das manifestações dos serviços de segurança, a insurreição estudantil e operária afundou a China numa desordem que ameaçava os fundamentos do regime. Após ter novamente esperado demais, Mao é obrigado a interromper o movimento utópico e compor com uma parte restrita da oposição, ou seja, os partidários de Chou-En-Lai" (Domenach, 1985).

O IX Congresso, reunido em agosto de 1969, procura encerrar, formalmente, a fase caótica da Revolução Cultural e retomar a unidade partidária perdida. A nova composição do Comitê Central expressa a tríplice aliança que se implantou no país: 45 % dos membros são militares, 25% de quadros revolucionários e 27% de representantes dos "meios revolucionários". Na cúpula do PCC, estabelece-se um compromisso político entre a ala esquerda da Revolução Cultural, a ala dos realistas que controla o aparelho de Estado (ministros e técnicos ligados a Chou-En-Lai) e a ala dos oficiais superiores do Exército Vermelho (reunidos em torno de Liu Piao) que dispõe da metade das posições no Comitê Central (Roux, 1976).

A partir do IX Congresso e da reunião do novo Comitê Central, em abril de 1969, reinicia a confrontação entre as alas de Chou-En-Lai e Liu Piao na medida em que a reconquista do papel dirigente do Partido, implicará na despolitização do exército que tinha o controle dos "comitês revolucionários". A estratégia de Liu Piao, que colhera os benefícios políticos da Revolução Cultural como chefe do Exército Vermelho, era prevenir a hegemonia deste na condução do partido. Na reunião do Comitê Central, em

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setembro de 1970, em seu discurso ele coloca Mao num pedestal tão alto e irreal que o poder efetivo ficaria em suas mãos, cabendo a Mao deliciar-se no reino da utopia.

O projeto fracassa e o próprio Mao, com o apoio de Chou-En-Lai, começa a desmontar a estrutura de poder de Liu Piao, com a inclusão de oficiais de sua confiança no Comitê de Assuntos Militares e no comando da região militar de Pekin e, mais tarde, nas regiões militares das províncias da China. A única saída que lhe restou foi esboçar em desespero de causa, a articulação de um golpe militar que não chegou a efetivar-se. O desenlace foi dramático: em setembro de 1971, o avião em que fugia com a família para a União Soviética cai na estepe mongol. Sua morte trágica cria as condições para um grande expurgo de seus adeptos: são eliminados mais de 100 generais, 35 secretários provinciais do Partido e 40 membros do Comitê Central. O balanço da situação permite constatar que não se tratará apenas de uma mudança superficial de orientação. Estava porém em curso a transição para uma nova etapa inspirada no realismo político de Chou-En-Lai, que, sem romper totalmente com a herança da Revolução Cultural (comitês revolucionários sob a tutela do exército) desvincula-se do voluntarismo político da utopia de Mao na condução dos problemas econômicos. Algumas conquistas do movimento são recuperadas pelo hábil dirigente chinês: os médicos descalços, a abertura da universidade aos trabalhadores das cidades e dos campos, o envio dos jovens estudantes ao trabalho rural e dos quadros urbanos aos pequenos vilarejos. Seu objetivo era fazer com que a Revolução Cultural que se tornara um gigantesco esforço de "revolução na superestrutura", cedesse lugar a uma política de retorno ao primado do econômico. As condições estão estabelecidas para que, com a morte de Mao Tse-Tung e de Chou-En-Lai em 1976, abra-se uma nova etapa na evolução do socialismo chinês.  A China pós-Mao, a política de modernização e a nova universidade A compreensão da etapa atual na evolução da sociedade chinesa, iniciada em 1976 sob a condução do líder máximo Deng Xiaoping, tem desafiado a argúcia dos especialistas. Qual o significado da experiência em curso de "modernização à la chinesa?"

A pluralidade de significados do termo "modernização", sobretudo a partir do modismo que lhe atribuiu as ciências sociais americanas, não facilita a compreensão do problema. Nos documentos oficiais e na linguagem utilizada pela classe política que ascendeu ao poder, a nova política busca realizar as "quatro modernizações": da indústria; da agricultura; das ciências e técnicas; da defesa.

As interpretações da imprensa internacional sobre a "nova China", especialmente, a partir da abertura para o Ocidente num contexto de conflito sino-soviético, são no sentido de que estaria em curso um processo de ruptura com o socialismo e de inserção gradual da China na via capitalista. Estas interpretações baseiam-se em vários fatos tais como: a ascensão ao poder de Deng expurgado pela Revolução Cultural por seu "revisionismo capitalista"; a política de aproximação crescente com os Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental; a abertura das cidades costeiras, transformadas em zonas -francas, para os investimentos estrangeiros; as declarações críticas de certos intelectuais contra o regime e a favor de um processo de democratizacão etc.

Na realidade, a situação é bem mais complexa. Embora se deva reconhecer que uma política de abertura está sendo implementada com relação ao passado, na tentativa de superar a longa etapa maoísta, seu conteúdo e alcance precisam ser analisados.

Não visando, o presente ensaio, realizar uma análise profunda da última década, pretende-se tão-somente apresentar uma hipótese exploratória sobre as principais

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tendências observadas in loco e na literatura recente, reconhecendo que, mesmo os especialistas, são muito prudentes ao decifrar o dragão chinês.

Ainda que os fatos mencionados pelos observadores sejam verdadeiros, não se pode inferir que se trate necessariamente de uma dinâmica de restauração capitalista. Nossa hipótese, ao contrário, tende a sustentar que o movimento vai na direção inversa, ou seja, de restauração do marxismo-leninismo adaptados aos desafios tecnológicos do mundo contemporâneo. A consciência do atraso na China, face às sociedades industriais, capitalistas ou socialistas, nos domínios industrial, agrícola, científico-tecnológico e militar, impulsionou seus dirigentes atuais a uma recuperação do tempo perdido. O nacionalismo tradicional dos chineses - o mesmo que no Império inspirara, na segunda metade do século XIX, o processo de ocidentalização e, no início do século XX, os jovens intelectuais do Movimento 4 de Maio - associado a um pragmatismo que separa o ideológico do político, estão presentes na atual etapa de mudanças na sociedade chinesa. A ruptura fundamental não é com o socialismo, mas com a utopia maoísta que, com seu voluntarismo político, acabou por afastar-se do marxismo-leninismo. Entretanto, não se trata de um simples retorno aos anos 50 no plano qüinqüenal de inspiração soviética, embora a primazia do econômico seja o traço comum entre ambos os períodos. Como salienta um especialista, "talvez certos colegas de Deng Xiaoping, formados nos altos escalões do governo nos anos cinqüenta, tenham desejado limitar-se a uma marcha à ré simples e segura. Deng Xiaoping parece que jamais nutriu ilusões a este respeito. (...) Desde antes da morte de Mao, ele tinha tomado posição por uma política de recuperação econômica e demonstrado estar consciente do fato que os erros econômicos, as desordens políticas e o crescimento demográfico da China tinham dramaticamente aumentado seu atraso com relação às grandes potências e mesmo sobre seus pequenos vizinhos. Para salvar o regime e desenvolver o país não bastava apenas retornar a articulação clássica entre construção econômica e construção do socialismo. Era preciso atribuir prioridade à primeira" (Domenach, 1985).

A nova estratégia adotada por Deng Xiaoping, ao contrapor-se ao passado maoísta (aliás, a crítica explícita a Mao refere-se sobretudo às manipulações que ele teria sido vítima na sua velhice, ainda que se preserve a admiração ao revolucionário e ao grande líder), enfatiza dois pontos fundamentais: primeiro, a recuperação da autoridade política do Partido, rompida sob Mao, objetivando sua reunificação; segundo, a implementação de um ambicioso programa de expansão econômica através da política das "quatro modernizações".

O esforço de reafirmação do papel do Partido parece convergir com a hipótese de um realinhamento marxista-leninista. Em termos ideológicos, o Partido torna-se ao mesmo tempo o intérprete e o executor coletivos: os excessos de Mao são denunciados e Deng, apesar de sua evidente proeminência, zela para exercer o papel de uma espécie de conselheiro do regime. O PCC organiza-se de forma articulada e retoma seus monopólios da coerção, da comunicação e da organização econômica. Em conseqüência, como foi observado para os anos 50, se restabelece a autonomia técnica das organizações-chave, restabelecendo um papel próprio às instituições universitárias, administrativas, militares e mesmo judiciárias (Domenach, 1985).

No campo da modernização, a nova política persegue objetivos claros com relação aos quatro setores referidos: agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia. Os dados não oficiais sobre o desenvolvimento da economia chinesa confirmam seu crescimento espetacular. Em 1983, a renda nacional cresceu 9% e no ano seguinte 12%. A produção agrícola aumenta significativamente: em 1982, cresce 11,2% e nos dois anos seguintes, 9,5% e 14,5% respectivamente. Em 1984, a produção de cereais bate um recorde: 407,1 milhões de toneladas. O setor industrial também tem um desempenho

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notável: cresce 7,7% em 1982, 10,5% em 1983, 14,0% em 1984 e 17,7% em 1985. Os ramos que mais se expandem, em função das prioridades da economia, são os de bens de capital indispensáveis à produção de energia tais como: equipamentos para extração de recursos minerais (27,8%) e geradores de eletricidade (66,6%), bem como vários ramos da indústria, especialmente, o de eletrodomésticos (Ogura, 1986).

Os dois fatores responsáveis pela melhoria do desempenho da economia estão ligados a mudanças introduzidas nos setores agrícola e industrial. De um lado, o Governo enfrentou a modernização do campo através da desativação das Comunas Populares e a introdução do contrato anual de arrendamento de terras entre os agricultores e o Estado (atualmente cogita-se em contratos com prazos mais longos), criando o chamado "sistema de responsabilidade". A nova sistemática favoreceu o progresso da mecanização no campo, a melhoria da produtividade e a expansão do excedente para a comercialização nos "mercados livres", aumentando assim a renda familiar dos agricultores. O sucesso da política acabou gerando dois problemas novos ao próprio Estado: a necessidade de controlar o movimento migratório decorrente da mão-de-obra liberada das Comunas Populares através do desenvolvimento da agroindústria na zona rural e de comprar o excedente da produção agrícola pelo Estado que, em 1983, atingiu a 22,25 milhões de toneladas de trigo e 1,1 milhão de toneladas de algodão. "Foram necessários quatro anos para que a reforma econômica rural, lançada em 1979 produzisse seus efeitos em escala nacional. Baseada no princípio da descoletivização, ou seja, do desmantelamento da Comuna Popular à la Mao e de suas brigadas de produção, permitiu que a exploração familiar encontrasse sua plena autonomia e que fizesse novamente prova de sua eficácia, ao menos no estágio presente do desenvolvimento da sociedade chinesa" (Yingxiang, 1986).

De outro lado, o Governo concedeu às empresas o direito de conservar parte substancial de seus lucros, introduzindo o sistema de remunerações moduladas, segundo a produção individual e generalizando o princípio da autonomia de decisão para as empresas industriais.

No setor industrial a situação precisa ser encarada tanto do lado dos bens de consumo quanto dos bens de capital. As informações revelam que houve um aumento considerável na produção de bens de consumo até 1983 e que depois começaram a surgir alguns problemas setoriais. Se a produção de televisores, refrigeradores e máquinas de lavar continua a crescer, a de máquinas de costura e relógios de pulso está em queda. Já com relação à energia, as previsões do Sexto Plano Qüinqüenal (1981-1985) eram pouco ambiciosas, estimando um crescimento de 5,5% ao ano. Mesmo que a produção de gás natural, carvão, eletricidade e extração de petróleo bruto tenham aumentado até 1983, esta declina a partir de 1984, constituindo-se num dos estrangulamentos do desenvolvimento chinês. O problema, porém, depende menos da produção do que do transporte de energia (especialmente, carvão e eletricidade), afetando seriamente a criação de uma infra-estrutura econômica de base para o desenvolvimento industrial.

O problema que se coloca, segundo os especialistas em economia, é o da dificuldade de conciliar a necessidade de ampliar a capacidade de poupança dos chineses (apenas 3% do total da renda nacional), com o estímulo à aquisição de bens de consumo que se tornou um dos efeitos característicos da nova política. A conseqüência principal, é que uma das formas mais utilizadas para atrair investimentos novos para a economia é através de empresas mistas com capital chinês e estrangeiro (joint ventures) cujos contratos podem estender-se de trinta a cinqüenta anos (Ogura, 1986). A grande preocupação é que o estímulo à implantação de investimentos intensivos em zonas

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econômicas especiais possa produzir diferenciações entre regiões pobres e ricas, isolando-as enquanto regiões costeiras e desenvolvidas do resto do país.

A modernização mais delicada, no entanto, situa-se no campo da defesa porque lida com a instituição militar que se tornou o ponto de aglutinação dos opositores às reformas perseguidas por Deng. Na realidade, as reformas econômicas não apenas vão questionar o estatuto e os privilégios do exército, mas provocar seu processo de despolitização: "o Exército Popular de Libertação foi convidado a se calar transformando-se num exército regular e moderno" (Bellefroid, 1986).

O exército chinês historicamente foge ao padrão convencional: constituiu-se durante a Longa Marcha, conduzindo os comunistas ao poder. Esta circunstância provocou, desde suas origens, uma forte vocação política na instituição militar, o que explica a célebre frase de Mao: "o poder está no ponta do fuzil". Mais tarde, o exército maoísta durante a Revolução Cultural, sob o comando de Liu Piao, exacerbou essa tendência transformando-se numa instituição altamente politizada.

Deng ao receber a herança de simbiose entre exército e partido teve uma única saída para alterar a situação: neutralizar os seus adversários mais conservadores, despolitizando o exército em troca de sua modernização a curto e médio prazos. Esta política, combinada com o imediato controle dos comandos militares estratégicos, acabou por desarticular a influência dominante do exército sobre o Partido. Além disso, com a reforma da defesa restringe-se ainda mais o papel político do exército, ao transferir-se sua atribuição no campo da segurança interna, implantada pela Revolução Cultural, para a reativada "polícia popular armada". Retirou-se do exército também o monopólio, existente desde 1958, em matéria de pesquisa científica, através da Comissão Científica e Técnica da Defesa Nacional. Os especialistas reconhecem que "Deng conseguiu eliminar a maior parte dos opositores na Comissão Militar e seus adjuntos com idade superior a 65 anos, colocando-os em aposentadoria automática" (Bellefroid, 1986). A dificuldade principal, porém, é que em função da prioridade concedida a modernização civil (por exemplo, o ambicioso programa de construção habitacional nas grandes cidades), a preocupação com a defesa pode ser retardada excessivaxnente causando problemas políticos para o atual governo.

Se os setores agrícola e industrial constituem a base material da modernização da sociedade chinesa, a reforma do sistema educacional é a pedra angular do processo. O Comitê Central afirmou, em maio de 1985, que "um dos fatores-chave que determinarão o êxito e o fracasso de nossa causa consiste em contar com homens válidos, e para resolver o problema de sua formação, torna-se necessário imprimir um enérgico desenvolvimento da educação como base do desenvolvimento econômico". E conclui: "a educação deve servir à construção socialista, e esta deve apoiar-se naquela" (C. Central, 1985).

A área educacional tem merecido uma prioridade significativa no pós-maoísmo. Já em 1980, visando adaptar-se à mudança em curso, o Ministério de Educação convocou um "debate nacional sobre o trabalho de educação" onde foram planejadas as tarefas educacionais para a próxima década. Partindo da necessidade de "reforçar o trabalho político e ideológico nas escolas, a fim de reafirmar a confiança dos alunos na vitória do socialismo e de inculcar-lhes os valores morais comunistas", estabeleceram-se as bases da futura reforma: tentar atingir, até o final dos anos 80, a quase generalização do ensino primário; reformar a estrutura da educação secundária, enfatizando a formação técnica e profissional, a fim de formar para o país uma reserva de trabalhadores qualificados. As metas para o ensino superior visam a "reorganização e elevação de seu nível, objetivando melhorar a qualidade do ensino e o nível da pesquisa

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científica", bem como "desenvolver ativamente o intercâmbio científico e cultural no plano internacional" (Education et Sciences, 1985).

Nesta nova perspectiva que se opõe radicalmente ao clima sectário da Revolução Cultural, o Comitê Central em sua visão sobre a reforma educacional de maio de 1985, após reconhecer que os órgãos especializados do governo "exercem um controle demasiado rígido sobre os centros de ensino, principalmente sobre os centros de ensino superior", propõe "ampliar a autonomia dos centros de ensino superior no manejo dos assuntos do centro" dentro do marco de orientação do Estado e "reforçar seus vínculos com as entidades de produção, as instituições de investigação científica e outros setores sociais, dotando-os de uma capacidade e dinamismo, que lhes permita adaptar-se às necessidades do desenvolvimento econômico e social" (C. Central, 1985).

O plano de modernização educacional considera que "incumbe aos centros de ensino superior a importante tarefa de preparar pessoal especializado de alta categoria e de fomentar o desenvolvimento da ciência, tecnologia e cultura". Esta preocupação com um ambicioso programa de reformas no campo do desenvolvimento científico-tecnológico articulado com a ampliação do grau de autonomia didático-administrativa, converge para um sistema de avaliação em que "o critério para aquilatar o trabalho de qualquer centro docente não são os benefícios econômicos que haja obtido, mas a quantidade e qualidade do pessoal válido que tenha formado" (C. Central 1985).

A Universidade, portanto, busca responder de forma inovadora aos desafios da nova China: a prioridade à politização e à mobilização da comunidade acadêmica do maoísmo é substituída por uma nova orientação valorizando a renovação dos equipamentos e a formação de pesquisadores; a organização da carreira por critérios de competência e titulação; a seleção dos alunos ingressantes através de um exame nacional em que apenas 1/5 dos estudantes consegue entrar (em 1986, 600 mil sobre 3 milhões) e as universidades de maior prestígio disputam os melhores alunos. Em suma, uma universidade moderna, e articulada com o desenvolvimento do país. Um dos aspectos-chave da nova política é a prioridade atribuída à educação e à ciência e tecnologia, com a implantação de organismos com maior poder, mais recursos e maior flexibilidade operacional: a Comissão Estatal de Educação e a Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia.

A história da China imperial, republicana ou socialista é indissociável da educação e da escola. Esta nasce desde o século XI a.C., como escola privada, cujo programa era conhecido como das "seis artes" (ritos, músicas e danças cerimoniais, tiro e arco, condução de carros, história e matemática). Mais tarde a escola se consolida sob a influência de Confúcio, mas sempre interagindo, como vimos ao longo deste ensaio, com a sociedade de sua época.

A nova reforma educacional, especialmente a do ensino superior e o desenvolvimento científico e tecnológico, representam um esforço coerente e articulado com as outras reformas da sociedade chinesa. O reconhecimento pelo XII Comitê Central do PCC que "abriu um caminho amplo para desenvolver energicamente as forças produtivas da sociedade chinesa e elevar em grande medida a civilização socialista em nosso país tanto no material como no espiritual", demonstra a necessária inter-relação entre universidade e sociedade. A nova China ao propor as metas atuais e futuras de seu desenvolvimento não pretende necessariamente romper com o socialismo, mas, ao contrário, expondo-o a interação com o mundo exterior e com outros sistemas políticos e econômicos, descobrir de forma nova sua identidade chinesa num socialismo renovado.

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 Nota: Hélgio Trindade foi membro da missão científico-cultural CAPES/MEC que visitou a China em dezembro de 1986.   Notas bibliográficas BELLEFROID, Emmanuel. L'Armèe rentre dans le rang. In: CADART, Claude & NAKAJIMA, Mineo. Stratégie Chinoise ou la mue du dragon (un regard franco-japonais sur les mutations en cours). Paris, Autrement, 1986, p. 85-103. DECISION del COMITÊ CENTRAL del Partido Comunista da China sobre la reforma del sistema educacional. Ed. en Langues Étrangères, Beijing, China, 1985.  BU, Fa Wen. La modernisation à la Chinoise. Beijing information, Pekin, 1983.  DOMENACH,. J. L. La Chine ou les tribulations du totalitarisme. In: GRAWITZ, Madeleine & LECA, Jean. Traité de science politique (les règimes politiques contemporains). V. 2, Paris, Presses Universitaires de France, 1985.  Education et Sciences. Ed. en Langues Étrangères, Beijing, Chine, 1985.  HU, Chi-hsi. Mao-Tse-Tung et la construction du socialisme. Paris, Seuil, 1975.  OGURA, Kazuo. L'Économie: soubresauts et tâtonnements. In: CADART, Claude & NAKAJIMA, Mineo. Stratégie Chinoise ou la mue du dragon (un regard franco-japonais sur les mutations en cours). Paris, Autrement, 1986, p. 30-41.  ROUX, Alain. La revolution culturalle en Chine. Paris, Presses Universitaires de France. 1976.  SCHRAM, S. R. (ed.). Authority participation and cultural change in China. Cambridge, Cambridge University Press, 1973.  TRINDADE, Hélgio. O desafio de modernizar a Universidade. Diário do Sul, Porto Alegre, 1978, 17/jan. p. 7.  YINGXIANG, Cheng. L'Enfantement dans la douleur d'une grande nation moderne. In: CADART, Claude & NAKAJIMA, Mineo. Stratégie Chinoise ou la mue du dragon (un regard franco-japonais sur les mutations en cours). Paris, Autrement, 1986, p. 11-29.