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A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA AS CICATRIZES DE UM CICLO FUGAZ E O INÍCIO DA INDUSTRIALIZAÇÃO Borracha amazonia na

as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização

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A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A

A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O

Borracha amazonia

na

A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A

A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O

Borracha amazonia

na

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL

NOVEMBRO DE 2012

1a EDIÇÃO

QUATTRO PROJETOS

R I C A R D O B U E N O

A H I S T Ó R I A D A E C O N O M I A B R A S I L E I R A

A S C I C AT R I Z E S D E U M C I C L O F U G A Z E O I N Í C I O D A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O

Borracha amazonia

na

PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS

REALIZAÇÃO: QUATTRO PROJETOS I 51 3209.7568

www.quattroprojetos.com.br I [email protected]

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA

CONSULTORIA: VOLTAIRE SCHILLING

TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHILLING (CAPÍTULOS 1 E 3 E BOX CAPÍTULO 6 – “À MARGEM DA HISTÓRIA?”)

REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA

PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE

IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

REALIZAÇÃOPATROCÍNIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

B928b Bueno, Ricardo Borracha na Amazônia : as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início

da industrialização / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2012.

128 p. : fots. col. ; 23 x 31 cm. – (A história da economia brasileira ; v.2). História do ciclo da borracha e sua importância no cenário histórico e econômico da Amazônia. ISBN 978-85-64393-05-9 1. Amazônia – Borracha. 2. Economia – Ciclo da borracha.

Borracha – Economia. I. Título. II. Coleção.

CDU 316.31(81) 33(81-928.8)(091)

Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 51 30297042

A Case New Holland pertence a uma categoria especial de empresas: aquelas que ajudam a moldar o mundo. A CNH produz máquinas agrícolas, fundamentais no plantio, cultivo e colheita de alimentos, e equipamentos para a construção, utilizados em larga escala em vários tipos de obras.

Em seus mais de 60 anos no Brasil, a CNH sempre desempenhou um papel im-portante no desenvolvimento agrícola nacional. Suas soluções para a maior eficiência da agricultura e da produtividade do campo contribuíram para que o país conseguisse usufruir do seu imenso potencial agrícola, ajudando o Brasil a se tornar um dos líderes mundiais na produção de alimentos.

A CNH também participou, de forma ativa, de grandes momentos da história do país, como a consolidação de Brasília, a implantação de importantes rodovias federais e de diversas outras obras fundamentais na interiorização do desenvolvimento, além da construção das usinas de Furnas e de Itaipu.

Investir em hidrelétricas era um dos pilares do governo do então presidente Getúlio Vargas. Mesmo sem ver as principais obras prontas, ele vislumbrou, no Estado Novo, uma grande oportunidade para reduzir a dependência do país desses “ciclos”, em prol do avanço da industrialização.

O último ciclo vivido pelo presidente Vargas foi o da borracha, já na sua segunda fase, no final dos anos 1940. Mas a primeira grande participação da borracha na história do Brasil aconteceu no final do século XIX e no início do século XX, na Amazônia, quando a exploração deste vegetal proporcionou a atração de estrangeiros em busca de riquezas e a expansão da colonização, transformando sociedades e culturas e impul-sionando o crescimento de importantes cidades como Manaus, Belém e Porto Velho, além da compra e depois criação do Estado do Acre.

O “ciclo da borracha” e os “primeiros passos da industrialização brasileira” foram períodos riquíssimos da história do país, tão importantes que eles são os dois princi-pais temas do livro Borracha na Amazônia – as cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização”, que dá sequência, com maestria, à coleção “A História da Economia Brasileira”.

A primeira publicação, lançada em 2010, aborda os ciclos do pau-brasil, ouro e cana-de-açúcar. Já o ciclo do café foi o tema do segundo livro, lançado em 2011. Para 2013, a nova obra abordará a industrialização e o nacionalismo dos anos 50-60, entrelaçado com movimentos culturais. Toda a coleção é patrocinada pela CNH, com o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura.

Com ações como esta, a Case New Holland mostra que seu papel não se limita à construção física, mas também à construção cultural de nosso país.

Esta publicação comemora também o 20º ano do Prêmio CNH de Jornalismo Econômico.

VALENTINO RIZZIOLI PRESIDENTE DA CASE NEW HOLLAND E VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO DA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA

a cultura construindo

amazônia: da conquista à integração

introdução 14

20 32 54

sumário

a conquistado acre

ouro branco:martírio,riquezae cultura

70 94 112

fontes consultadas 122

trilhos noinferno verde

frustração e abandono em meio à floresta

os primeiros passos da industrialização

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P O R R I C A R D O B U E N O

históriassobre contadores de

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Há uma máxima no mundo da comunicação que diz o seguinte: para que um jornalista consiga ter sucesso em sua profissão, é necessário que ele seja um bom contador de histórias. Para tanto, além de talento na apuração e, depois, na narra-tiva, é preciso que ele goste de contá-las – toda e qualquer história. Evidentemente o jornalismo pressupõe lidar com fatos (ou as versões possíveis de serem levantadas e comprovadas sobre eles), diferentemente da literatura, que na construção de uma narrativa pode trabalhar com a realidade, com a ficção ou com ambas, simultaneamente. Mas o que significa, afinal, ser bem-sucedido como jorna-lista? Tal e qual um romancista, o segredo está em conseguir prender a atenção do leitor, conquistar seu interesse, estabelecer um canal de identificação dele com a narrativa, de forma a que se garanta que a informação/história seja transmitida na íntegra. A posterior avaliação sobre o que foi lido cabe ao leitor, que pode gostar, não gostar, acreditar, não acreditar. Acontece que, mesmo para bons apu-radores e contadores de histórias, se não houver um enredo minimamente atraente, dificilmente a conexão com o leitor/interlocutor vai funcionar.

Mas há também certas histórias que, quase independentemente da

forma como são contadas ou de quem as conta, por si só se sustentam,

tal a carga de dramaticidade que carregam, tal a riqueza de personagens

interessantes, conflitos, mistérios, sutilezas e curiosidades que as cercam.

Este é o caso do chamado ciclo da borracha, uma das atividades econômicas

mais relevantes na história de pouco mais de 500 anos do Brasil. Trata-se

de um episódio cujas tramas e dramas paralelos à atividade econômica

em si rendem não um, mas vários romances – alguns dos quais, inclusive,

já foram escritos; que rendem, como já renderam, muitos livros escritos

também por historiadores. Período esse da nossa história que, por mais que

se escreva e leia sobre ele, a sensação é a de que sempre há a possibilidade

de um novo olhar, a remexer e, quem sabe, reescrever o passado.

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Ainda que à história da extração e da exportação da borracha no

Brasil se possa, com relativa adequação, usar a palavra ciclo como de-

finidora – no sentido de um processo econômico que nasceu, cresceu,

expandiu-se e, de certa forma, encerrou-se, tudo isso em curtíssimo

espaço de tempo –, a realidade é que os fatos históricos que se corre-

lacionam, para quem busca entender o que efetivamente representou

a saga da extração do látex da hevea brasiliensis, são um terreno farto.

A começar pelos segredos, mistérios e fantasias que ainda hoje

envolvem a Amazônia, suas dimensões colossais, suas peculiaridades

dos pontos de vista geográfico, biológico, antropológico. Acrescente-

-se a esse cenário uma árvore de lindas e delicadas flores, que no

território amazônico se distribui de forma bastante esparsa, apenas

três ou quatro em um hectare, mas que esconde por trás de sua casca

um líquido precioso, cuja forma de extração, ao menos em meados

do século XIX, exigia de um ser humano uma capacidade quase in-

comensurável de resistência física e psicológica para sobreviver em

meio à floresta. Homens esses, quase todos, que chegavam fugidos

do flagelo de secas inclementes no Nordeste brasileiro, e que talvez

nem em sonho pudessem imaginar o significado para a humanidade

daquele gesto simples de abrir sulcos em algumas dezenas de árvores,

colocar copos para recolher o látex, e depois transformar o líquido em

estranhas bolas elásticas, mas resistentes.

Junte-se a esses personagens alguns outros, encarnados pelos homens

que os controlavam – e que de certa forma os aprisionavam –, e também os

patrões destes intermediários, donos de grandes terras ou investidores inter-

nacionais. Tempere essa relação de trabalho desigual com pitadas de muito,

muito dinheiro acumulado, que proporcionaria a transformação, quase da

noite para o dia, de duas pequenas e pacatas cidades do Norte brasileiro

em metrópoles modernas, dos pontos de vista urbanístico, cultural e social.

Faça uma pausa para tentar entender como se deu a luta, na floresta

e nos gabinetes dos diplomatas, pela agregação de um território que até

então pertencia a um país vizinho, o qual também se empenhava na

luta por mais e mais território de onde pudesse extrair a matéria-prima

da borracha, e que ansiava, mais do que tudo, por uma ligação com

introdução

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OS FATOS HISTÓRICOS QUE SE

CORRELACIONAM SÃO UM TERRENO

FARTO PARA QUEM TENTA ENTENDER OS

IMPACTOS DO CICLO DA BORRACHA

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introdução

NÃO HÁ UMA HISTÓRIA DO CICLO

DA BORRACHA, E SIM VÁRIAS LEITURAS

DAQUELE MOMENTO HISTÓRICO

E DAS CICATRIZES QUE DEIXOU

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o mar – qualquer mar. Depois, imagine que alguém teve a ideia de

construir na região uma ferrovia, talvez desconhecendo tão inóspito

cenário, cortado por rios e corredeiras, onde doenças as mais variadas

e pequenos insetos disputam, ainda hoje, o privilégio de aniquilar a

saúde de qualquer ser humano que por ali permaneça por mais de três

meses. Tente calcular o número de brasileiros e de muitos estrangeiros

que por aqui aportaram para trabalhar nessa obra insana, os quais

perderam a vida em meio a febres torturantes, chuvas torrenciais e

índios hostis, enquanto os dormentes eram assentados.

Avance no tempo e calcule o tamanho dos sonhos e ambições

do empreendedor que transformou não apenas a forma como o ser

humano se locomovia dentro das cidades, mas que também revolucio-

nou o modo como uma indústria deveria funcionar. Tente entender a

dimensão de sua frustração ao constatar que os milhões de dólares in-

vestidos no cultivo manejado de uma planta como aquela que brotava

no seio da selva amazônica estavam sendo implacavelmente devorados

por uma pequena criatura da natureza, apelidada de mal-das-folhas.

Siga o percurso da história, e reencontre novas levas de nordestinos

dirigindo-se para a Amazônia, mais uma vez seduzidos pelo sonho de

fazer fortuna na floresta, mas também de certa forma ludibriados por

uma campanha governamental que apelou para o seu patriotismo,

em nome de uma guerra que eles não sabiam exatamente qual era.

Costure tudo isso com o enredo de um país que buscava alternativas

a um modelo baseado na economia rural, e que tentava dar seus primeiros

passos rumo à industrialização e à criação de um mercado interno sólido,

reduzindo, assim, sua dependência dos oscilantes mercados externos.

Ao fim e ao cabo será fácil concluir que não há uma história do

ciclo da borracha no Brasil, e sim várias possíveis leituras daquele incrí-

vel momento histórico. A que está agora em suas mãos é apenas uma

delas. Esperamos conquistar sua atenção daqui até a última página.

Se assim acontecer, a missão desta série sobre ciclos econômicos no

Brasil e sua correlação com a cultura e a sociedade estará mais uma

vez sendo cumprida. O que não deixa de ser um enorme privilégio para

um jornalista que gosta de contar uma boa história – qualquer uma.

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amazôniada conquistaà integração

21

22

A Amazônia é a maior região florestal e hidrográ-fica do mundo. Ocupa grande parte do hemisfério setentrional da América do Sul, correspondendo a 42% do território brasileiro. Estende-se das mar-gens do Oceano Atlântico, no leste, até o sopé da Cordilheira dos Andes, no oeste. Espalha-se pelas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia, perfazendo mais de 6 milhões de km2. O vale amazonense é, ao sul, abastecido pelos rios que descem do Planalto Central brasileiro e dos que vêm da região das Guianas ao norte, e pelos filetes de água gelada que se desprendem da “corcova andina”, fazendo com que termine por assumir – como constatou o geólogo americano C.F. Marbut, que visitou-o em 1923 – a forma de um leque, pelo qual escorre 1/5 da água doce do planeta. O ensaísta nortista Raymundo Moraes, por sua vez, descreveu o vale como “o anfiteatro amazonense”.

Devido a sua inacessibilidade, insalubridade e as dificuldades para explorá-la economicamente, a Amazônia é uma das áreas mais subpovo-adas do globo. É um “deserto verde”, pertencente a uma época em que a Terra ainda amanhecia abrigando uma das populações mais primitivas que se conhece – o homem neolítico em estado puro. Para outros, como Pedro de Rates Hanequim, que viveu por mais de 20 anos no Brasil, havia sido a morada de Adão e onde se encontrava a Árvore da Vida. Tanta certeza tinha de ter habitado o Paraíso Terreal – sendo o Amazonas o maior rio do Éden – que, ao voltar a Portugal, deixou-se processar e executar – “afogado e queimado” – em 1744, por ordem de um Tribunal do Santo Ofício pelo crime de heresia e apostasia, sem jamais ter pedido clemência.

Os diversos governos, brasileiros e vizinhos, até hoje procuram integrá-la, promovendo sua ocupação, tanto por garimpeiros, por extrativistas, por sertanejos, criadores de gado ou empresas de mi-neração. O resultado disso são as intensas queimadas, ou coivaras, antigo método indígena de limpar o terreno para a lavoura, além de longas estradas que cortam as matas em todas as direções. Do Mato Grosso a Roraima, a fumaça toma conta dos ares e, por vezes, escapa completamente ao controle. Este é um dos temores do ecólogo Ro-bert Goodland e do botânico Howard Irwin: o de que o inferno verde torne-se um deserto vermelho, conforme o subtítulo do livro deles.

O destino da Amazônia, portanto, tem preocupado as mais diversas

amazônia: da conquista à integração

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“TRATA-SE [A AMAZÔNIA] DE UM GRANDIOSO ANFITEATRO

DE TERRAS BAIXAS, ENCERRADO ENTRE O ARCO INTERIOR DAS TERRAS

SUBANDINAS E O PLANALTO DAS GUIANAS E O PLANALTO BRASILEIRO.”

A Z I Z N A C I B A B ’ S Á B E R

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instituições, tanto a Organização das Nações Unidas (ONU), como as orga-nizações não-governamentais ambientalistas, que temem por um desastre irreversível, a qualquer momento. O governo brasileiro sofre pressões de todos os lados para tentar coibir a ocupação predatória, ao mesmo tempo em que é politicamente constrangido pelos interesses internos no sentido de que proporcione vantagens, isenções e benefícios a grupos, empresas ou classes, para acelerar sua exploração econômica. Nesta tensão entre os apelos internacionais e a satisfação das necessidades locais de crescimento, Brasília vai alternando, ao longo dos anos, suas políticas para a região.

PRIMEIRAS EXPEDIÇÕES

“Do abismo viu o profundo/ do profundo o paraíso/ do paraíso viuo mundo/ e do mundo viu o que quis” Gil Vicente, 1539

As primeiras notícias que os espanhóis tiveram da existência de uma imensa região de selvas do outro lado dos Andes foi-lhes dada pelos próprios

A FLORESTA AMAZÔNICA NA VISÃO DE JOSEPH LEONE RIGHINI

amazônia: da conquista à integração

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O RIO AMAZONAS À ESQUERDA, EM MAPA DE 1579, DE JACQUES DE VAU DE CLAYE

nativos em Quito e em Cuzco. Graças a sua fantasia de homens medievais, os conquistadores imaginaram de imediato que aquela área misteriosa e desconhecida abrigava o lendário El Dorado, uma serra repleta de ouro puro. Bastava chegar lá e carregar o que desse. É certo que o grande rio já era conhecido desde que Vicente Pinzón navegou na sua foz, em 1500, chamando-o de Mar Dulce, mas quem primeiro organizou uma expedição partindo foi Gonzalo Pizarro, irmão do conquistador do Peru.

Partindo de Quito, em 1541, comandando uma expedição com 150 soldados, 4 mil índios e 3 mil animais de tropa, inclusive com alpacas e lhamas, Gonzalo conseguiu transpassar os Andes por dificílimos caminhos, chegando às cabeceiras do rio Amazonas. As dificuldades encontradas fizeram com que ele destacasse Francisco Orellana para que, utilizando um barco lá mesmo construído, desse prosseguimento à missão exploratória. A viagem, assim, teve seguimento, até que atingiu a desembocadura do grande rio no Atlântico, em 1542, depois de terem sido percorridos por inteiro seus 5.825 km.

Deve-se, pois, a Orellana a denominação do lugar. Deparando-se, nas margens do rio, com um grupo de belicosas índias que acompanhavam os homens em combate, chamou-as de amazonas, confundindo-as com as

ORELLANA CHAMOU

AS ÍNDIAS QUE

COMBATIAM AO

LADO DE HOMENS DE

AMAZONAS,

COMO AS LENDÁRIAS

GUERREIRAS DA

MITOLOGIA GREGA

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lendárias guerreiras da mitologia grega. Ao retornar à Espanha, Orellana conseguiu ser nomeado adelantado, organizando uma nova sortida que o levou ao naufrágio e morte a bordo de um bergantim, provavelmente nas proximidades de Macapá, em 1550.

O feito de navegação de Orellana repetiu-se depois, em 1561, por Lopo de Aguirre, um celerado e doido que assassinou Pedro de Ursua, o chefe da expedição, aceitando ser o rei dos seus seguidores, os marañones.

FIXAÇÃO E PRIMEIRAS MISSÕES

“Esta incorporação definitiva do Amazonas ao Brasil fez-se comas ‘jornadas’ dos capitães, com as ‘entradas’ dos colonos e coma ‘catequese’ dos missionários. Tríplice elemento, oficial, particular, religioso, este simultaneamente particular e oficial, interdependentes, todos três, e nem sempre concordes.” Serafim Leite, S.J. – História da Companhia de Jesusno Brasil, Tomo III, 1943

Não demorou muito para que outros desbravadores viessem ins-talar feitorias na região amazônica, preferencialmente na embocadura do grande rio e suas circunvizinhanças. A presença dos heréticos ingleses e holandeses nas Guianas seguiu-se pela dos franceses no Golfão do Maranhão, onde fundaram o forte de São Luís em 1612. As autoridades da União Ibérica (entre 1580-1640, quando Espanha e Portugal estavam sob o mesmo governo) decidiram por expulsar os franceses de São Luís e fixar-se em definitivo no estuário amazônico.

A cidade caiu em mãos portuguesas em 1615 e, no ano seguinte, em 16 de janeiro de 1616, o capitão-mor Caldeira Castelo Branco fundou, na região que denominou de Lusitânia Feliz, o forte Presépio de Belém, a casa forte que deu origem à capital do Pará. Cidade essa, na baía de Guará, que se tornou a sentinela portuguesa na emboca-dura do Grande Rio e o trampolim para a conquista da hinterlândia amazonense.

Uma longa guerra – comercial e teológica – travou-se na região, até que em 1697 afixou-se mais ou menos a fronteira entre os interesses holandeses, ingleses e franceses de um lado, do lado das Guianas, e os lusitanos do outro, do lado do Amapá, tendo o cabo Orange, no rio Oiapoque, como o acidente geográfico divisor, acordo esse celebrado no Tratado de Lisboa, de 1701. As portas do Amazonas, desde então, abriram-se exclusivamente aos navegantes portugueses, que passaram a deter o monopólio sobre o vale amazônico. Em 1639, o capitão Pedro Teixeira, partindo do rio Tocantins, atingiu a extremidade da sua investida no rio Napo, seguindo dali até Quito, no Equador. Em seguida, entre 1648 e 1651, foi a vez de Antônio Raposo Tavares, um reinól dedicado às bandeiras que marchou por 10 mil quilômetros Amazonas adentro.

amazônia: da conquista à integração

SOMENTE EM 1697,

APÓS UMA LONGA

GUERRA COMERCIAL

E TECNOLÓGICA,

AFIXARAM-SE

AS FRONTEIRAS

DA REGIÃO

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MAPA DAS GUIANAS E REGIÃO AMAZÔNICA, DE JAN JANSSON (1588-1664)

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Paralelo aos capitães e desbravadores privados, assentaram-se as missões de jesuítas, franciscanos, mercedários, carmelitas e seculares, que se espalharam pelas vastas áreas entre os rios Solimões e Tapajós. Os missionários foram convocados para catequizar os gentios e também evitar a possível influência dos hereges protestantes. A orientação das ordens religiosas, por lá já encontradas em 1570, era de que aldeassem os nativos, geralmente dispersos em amplos territórios e divididos entre as nações tupinambás, urubus, gamelas, timbiras, apinajés, jurunas, caiapós, carajás, aimorés, munducurus, tapajós, aruaques, turumás, murás, jurimaguás, omáquas, manaus, barés e ianomâmis, para melhor evangelizá-los.

Quase que imediatamente iniciou-se um conflito entre as cha-madas “tropas de resgate”, chefiadas por mamelucos escravagistas, e os padres. A disputa se estendeu por mais de século, na luta pelo braço indígena. Os religiosos desejavam-nos orando a Deus e a Cristo, enquanto os colonos queriam-nos no eito, suando sobre a lavoura e a extração. Os sacerdotes, mais influentes, conseguiram uma série de decretos, provisões, leis e alvarás reais atribuindo-lhes autoridade sobre os nativos e proibindo sua escravidão. Foi o caso da lei de 30 de julho de 1609, que determinava que “fossem os índios tratados como pessoas livres, sem serem constrangidos a executar serviços contra a vontade”, desde que lhes divulgassem a fé – a qual, obviamente, poucas vezes foi obedecida. Como defensor da causa dos gentios, destacou-se o Padre Antônio Vieira, o grande sermonista, que desembarcou no Maranhão em 1653, a quem logo os nativos chamaram de paiacu, o grande pai.

amazônia: da conquista à integração

DUROU MAIS DE

UM SÉCULO A LUTA

ENTRE MISSIONÁRIOS

E MAMELUCOS

ESCRAVAGISTAS PELO

BRAÇO INDÍGENA

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OCUPAÇÃO E ADMINISTRAÇÃOEm 1640, Portugal recuperou sua independência, e a Espanha

voltou a ser sua adversária. Novos fortins foram instalados nas mar-gens do Solimões e nos encontros dos rios, como o forte de São José do Rio Negro, em 1699, onde bem mais tarde, nas suas proximidades, surgiu Manaus. Esse período foi marcado pela penetração extrativista e coletora atrás das “drogas do sertão” e, também pela captura, por bandeirantes vindos do Sul, da mão de obra indígena tornada escrava.

A resistência dos padres ao costume das “repartições”, onde os índios eram divididos entre os reinóis, agravada pela prática monopo-lista da Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, ativada em 1682, fez com que uma revolta eclodisse no Maranhão: a rebelião – antijesuítica e antimonopolista – do senhor de engenho Manuel Beckmann, a Revolta de Bequimão, que morreu executado em 1685.

Somente em 1750, pelo Tratado de Madri, Espanha e Portugal acordaram em relação às suas fronteiras. De Lisboa, o Marquês do Pombal, o todo-poderoso primeiro-ministro (1756-1777), enviara já o seu irmão Mendonça Furtado, em 1751, para supervisionar os negócios da companhia monopolista na Amazônia. A época do des-potismo ilustrado, representada por Pombal, na Metrópole, e por seu irmão, no Grão-Pará (como politicamente denominou-se a região do Amazonas), foi extremamente ativa. Os jesuítas que lá estavam desde 1607 foram expulsos em 1760. Novas lavouras foram introduzidas,

POMBAL (AO LADO) EXPULSOU

OS JESUÍTAS DA AMAZÔNIA.

NA PÁGINA AO LADO, OBRA

DE JACQUES BURKHARDT

RETRATA MANAUS EM 1865

30

amazônia: da conquista à integração

PASSAGEM DA FAMÍLIA REAL PELO PORTO DE BELÉM, EM 1807, É SAUDADA COM FESTA

PADRE ANTONIO VIEIRA E SEUS SERMÕES: DEFESA DA CAUSA DOS GENTIOS NA AMAZÔNIA

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como a do algodão, a do tabaco, a da cana-de-açúcar e a do café (trazido por Francisco de Melo Palheta – ver volume 2 desta coleção, Dos cafezais, nasce um novo Brasil). “Lusitanizou-se” o nome das ci-dades, abandonando-se a toponímica brasílica, e a língua portuguesa passou a ser ensinada. “Liberaram-se os silvícolas” dos seus encargos nos aldeamentos, bem como um pequeno número de colonos açoritas foi distribuído entre Belém, Santarém e Ourém, para viabilizar os empreendimentos.

Administrativamente, a região sofreu uma reforma: pelo ato régio de 20 de agosto de 1772, dividiu-se o antigo Estado do Grão-Pará – existente desde 1618 – entre o Estado do Maranhão e Piauí (com capital em São Luís) e o Estado do Grão-Pará e do Rio Negro (atual estado do Amazonas, com sede em Belém), ambos subordinados di-retamente a Lisboa. A integração política da Amazônia com o resto do Brasil só deu seus primeiros passos com a instalação da corte de D. João VI no Rio de Janeiro, em 1808, quando então as duas capitais, Belém e Manaus, se lhe subordinaram.

Os portugueses, dentro de um rígido mercantilismo, sempre mantiveram uma política de clausura das colônias. A Amazônia não foi exceção. Nem mesmo ao célebre naturalista alemão Alexander von Humboldt, que visitou a América entre 1799 e 1804 (dele, a propósito, é a expressão “hileia amazônica”) foi permitido penetrar no lado português da floresta. Essa política começou a ser reformada com a vinda da família real para o Brasil, e com o decreto da Aber-tura dos Portos às Nações Amigas. Durante o império, começaram a chegar ao país inúmeros naturalistas europeus, entre eles o francês Auguste Saint-Hilaire e os germânicos Spix e Martius, que coletaram informações sobre a botânica amazonense.

Mas o imperador D. Pedro II, apesar das pressões internacionais, negou-se, pelo menos até 7 de setembro de 1867, a liberar a navega-ção do grande rio aos estrangeiros, tarefa que desde 1853 estava ao encargo monopolista de uma empresa do Barão de Mauá. A propósito, a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira, quebrando com o monopólio de Mauá, foi um dos grandes debates políticos e ideo-lógicos da segunda metade do século XIX, no qual se antepuseram liberais contra os mercantilistas. Três anos antes, em 1850, em uma outra reforma administrativa, criara-se a Província do Amazonas, separando-a do Grão-Pará, tendo Manaus como sua capital.

A posição brasileira sobre a Amazônia era – e ainda é – ambígua. De um lado, reconhecia-se a escassez de recursos humanos e finan-ceiros para explorar o continente verde, e do outro, impedia-se que estrangeiros, por meio de acordos e tratados, o fizessem. Uma das razões mais fortes – talvez por dizer respeito às raízes psicológicas, ao imaginário popular – é que a maioria dos brasileiros vê naquela região, no seu verdor, nos seus imensos rios e matas, um dos símbolos maiores da nacionalidade, tendo dificuldades em aceitar sua exploração eco-nômica por mãos forâneas. Foi então que se deu o ciclo da borracha.

INTEGRAÇÃO POLÍTICA

DA AMAZÔNIA DEU

SEUS PRIMEIROS

PASSOS A PARTIR

DE 1808, COM A

CHEGADA DA FAMÍLIA

REAL AO BRASIL

32

martírioriqueza

ouro branco:

e cultura

33

34

Foi em 1743, quando descia o Amazonas, vin-do do Equador, que o naturalista francês Charles Marie de La Condamine tomou contato com uma árvore grande e descorada, de galhos altos e flores delicadas. Da planta, que posteriormente seria cha-mada de Hevea brasiliensis, os nativos extraíam um líquido leitoso e viscoso. Condamine reparou que esse líquido, após coagulado, produzia uma substân-cia maleável, de elasticidade e impermeabilidade sem-par, a qual os índios moldavam na forma de seringas, botas, garrafas e brinquedos. De volta à França, com certa quantidade do caoutchouc, como era chamado na Amazônia, o naturalista tentou fabricar uma roupa à prova d’água a partir do ma-terial, que seguiu importando da Guiana Francesa para dar suporte a várias experiências. Foi assim que a substância aos poucos ganhou mais e mais espaço na Europa, tendo os ingleses, inclusive, percebido que a goma era excelente para apagar, e então a batizaram de rubber.

As seringas e galochas deixaram de ser artigos incomuns na Europa do início do século XIX. Tanto que, em 1827, a Amazônia exportou 31 toneladas de borracha bruta, cifra que em 1830 subiria para 156 toneladas. O problema da matéria-prima, entretanto, era sua sensi-bilidade a mudanças de temperatura: as botas poderiam tanto ficar duras como pedra no auge do inverno, como grudentas no calor do verão. Somente em 1839 Charles Goodyear aperfeiçoou o processo de vulcanização, o que permitiu usar a borracha em rodas dentadas, correias, mangueiras, telhas, suspensórios, sapatos e capas de chuva. Mas o grande boom no consumo da borracha viria mesmo com a mania da bicicleta, inventada em 1890, seguida da popularização do automóvel, a partir de 1900 (Ford construiu seu primeiro carro em 1896). A fabricação de pneus, portanto, alteraria completamente o equilíbrio do mercado de borracha, que durante algumas décadas seria dominado pela produção amazônica.

No Brasil, apesar do período conhecido como ciclo da borracha ser comumente identificado como tendo ocorrido entre 1870 e 1910, constata-se que já a partir de 1840 toda a atividade econômica da região amazônica passou a girar em torno da extração do látex e da exportação do produto fabricado a partir de seu manuseio. De acordo

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

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A PARTIR DE 1840 TODA A ATIVIDADE ECONÔMICA DA REGIÃO

AMAZÔNICA PASSOU A GIRAR EM TORNO DA EXTRAÇÃO DO LÁTEX

GOODYEAR CONSEGUIU ESTABILIZAR QUIMICAMENTE A BORRACHA. ABAIXO, À ESQ., SERINGUEIRO, E À DIR., SEMENTES DA HEVEA

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ouro branco: martírio, riqueza e cultura

com Bárbara Weinstein, a penetração em novas zonas produtoras de borracha tornou-se preocupação especial já na década de 1860. Com o contínuo crescimento da demanda pelo produto no mercado mundial, a economia amazônica teve de incrementar sua produção do único modo que se julgava possível, até então: via expansão física para seringais ainda não explorados rio acima, especialmente na província do Amazonas.

Em decorrência, Belém assumiu o papel de principal porto de escoa-mento da produção gomífera. Mas diz Bárbara Weinstein: “Embora o Pará continuasse à frente na produção da borracha até anos avançados da década de 1880, a parcela que lhe cabia na produção total da região decaiu rapidamente de 1870 em diante. Enquanto durante os primeiros anos apenas uns poucos municípios paraenses (Breves, Anajás, Melgaço e Gurupá) haviam respondido pela maior parte da borracha produzida, na década de 1870 a extração da borracha havia se espalhado para o oeste, no baixo Xingu e no baixo Tapajós, no Pará, e de maneira ainda mais impressionante no Amazonas, nas zonas ricas em seringueiras dos rios Solimões, Madeira, Purus e Juruá”. Segundo Bárbara, embora muito distantes do mercado exportador de Belém, a densa concentração de

ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ SERIA IMPORTANTE CANAL DE ESCOAMENTO DA PRODUÇÃO DE BORRACHA A PARTIR DE 1912

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seringueiras ao longo desses rios e a relativa facilidade com que todos eles, com exceção do Madeira (ver capítulo 4), podiam ser navegados pela crescente frota de barcos a vapor do Amazonas, faziam com que fossem preferíveis aos trechos superiores do Xingu e do Tapajós, que corriam através de florestas também ricas em Heveas, mas semeados de corredeiras e quedas d’água intransitáveis. Ainda assim, era em Belém que quase toda a borracha amazônica continuava a ser armazenada, acondicionada e vendida para exportação.

De 1870 a 1910, ocorreu o maior surto econômico da região. Em 1871, a borracha alcançou o primeiro lugar nas exportações do Pará, com 4,8 milhões de quilos, contra 3,3 milhões de quilos de cacau. Segundo Bárbara Weinstein, em fins da década de 1880 o valor anual das exportações de borracha havia subido 800% na comparação com os números de 1860, e a borracha representava aproximadamente 10% do comércio exterior do Brasil, apesar da acentuada expansão da economia cafeeira no período (ver volume 2 desta coleção, Dos cafezais nasce um novo Brasil). “Na virada do século, a borracha se tornaria o segundo produto brasileiro, constituindo 24% da exportação total do país”, atesta Bárbara.

EM FINS DA DÉCADA

DE 1880, O VALOR

ANUAL DAS

EXPORTAÇÕES DE

BORRACHA HAVIA

SUBIDO 800% EM

RELAÇÃO A 1860

PARÁ DOMINOU A PRODUÇÃO DE BORRACHA ATÉ MEADOS DOS ANOS 1880

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ouro branco: martírio, riqueza e cultura

REGISTROS DE SERINGUEIRO PRODUZINDO BORRACHA DENTRO DE ABRIGO CONHECIDO COMO TAPIRI

NO SÉCULO XIX, GOVERNO DO AMAZONAS NÃO COGITAVA CULTIVO MAJENADO DA HEVEA

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OS SERINGUEIROSO ciclo da borracha alterou de maneira significativa, não apenas a

economia, mas também as relações sociais e culturais no Brasil de finais do século XIX. As duas mais importantes vertentes do processo dizem respeito, de um lado, às formas brutais de exploração da floresta, e de outro, à riqueza proporcionada pela borracha, que alterou completamente dois centros urbanos, Manaus e Belém, os quais, de cidades inexpressivas, em pouco tempo passaram a figurar como importantes e modernas metrópoles brasileiras. Vejamos de início como se dava a rotina de um seringueiro.

Euclides da Cunha definiu o seringueiro como “o homem que trabalha para escravizar-se”. Tão chocantes eram suas condições de vida e tamanha sua impotência que o próprio Euclides registrou, em sua narrativa Judas-asvherus, que na época da malhação do judas os seringueiros faziam um boneco a sua semelhança, um judas-seringueiro. Malhavam a si mesmos, como que se autopunindo por aceitarem aquela situação infeliz. Na visão de Euclides, o maior jornalista brasileiro da época, a exploração a que os seringueiros estavam sujeitos era tamanha que constituía “a organização do trabalho mais criminosa que podia ser imaginada pelo egoísmo mais revoltante”. Como isso se dava na prática?

Quando chegavam à Amazônia, os homens que imaginavam fazer fortuna trabalhando na floresta, quase todos eles vindos do Nordeste, fugindo da seca, eram obrigados a comprar não apenas os utensílios usados na extração do látex, mas também o pirarucu ou charque e alguns litros de farinha que cada um deles iria precisar nos primeiros dias na mata, enquanto não aprendessem a caçar. O patrão do seringueiro tanto podia ser o grande proprietário (seringalista), que arrendava suas terras ao se-ringueiro, como também o comerciante local, conhecido como aviador, que controlava informalmente a produção e o comércio da borracha na área, negociando a produção dos seringueiros e mantendo-os abastecidos de ferramentas, víveres e quaisquer outras extravagâncias a que pudessem se dar ao luxo.

Nas palavras de Warren Dean, respeitado brasilianista e autor de A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica, livro que se tornou um clássico sobre o tema, a técnica da coleta do látex “é fácil de explicar, mas difícil de imaginar”. Dean assim descreve o trabalho dos seringueiros em meados do século XIX e início do XX:

“A Hevea brasiliensis é uma espécie típica do estágio clímax da floresta pluvial amazônica. Como quase todas as espécies semelhantes, não se encontrava em arvoredos ou em grupos, mas bastante dispersa na floresta, comumente apenas duas ou três árvores por hectare. O seringueiro espe-rançoso tinha, primeiro, de localizar as árvores, depois abrir picadas – as chamadas estradas – ligando-as entre si. Essa tarefa poderia levar seis e até sete meses, tempo durante o qual pouca ou nenhuma extração podia ser feita. Normalmente o seringueiro abria duas ou três picadas com 60 a 150 árvores cada, o máximo que uma pessoa seria capaz de se ocupar. Os métodos de extração foram ligeiramente aperfeiçoados: em vez de deixar o látex escorrer tronco abaixo a partir de numerosas pequenas incisões feitas com uma machadinha, prendiam-se pequenos copos sob cada incisão. (...)

LOCALIZAR AS

ÁRVORES DA

HEVEA PODERIA LEVAR

DE SEIS A SETE MESES

DE TRABALHO, ANTES

DE SE INICIAR A

COLETA DO LÁTEX

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ouro branco: martírio, riqueza e cultura

Efetuava-se a sangria em dias alternados em cada estrada, a fim de permitir que as árvores se recuperassem. O seringueiro passava duas vezes por uma estrada. Na primeira vez, de manhã cedinho, quando o fluxo de látex era mais pesado, fazia as incisões. Depois, na segunda passagem, colhia o látex. À tarde, acocorava-se diante de um fogo alimentado por cocos, sobre o qual suspendia uma vara, que girava sem parar, enquanto o látex gotejava lentamente. Aos poucos, formava-se uma grande bola de borracha sólida”.

Prossegue Dean sobre a rotina do seringueiro:“A temporada de coleta resumia-se aos seis meses de pluviosidade

relativamente baixa, porque na estação das chuvas as trilhas se alagavam e os copos se enchiam de água. Dependendo das características variáveis das árvores, do tempo, do solo e dos seringueiros, essas técnicas propor-cionavam uma produção anual de 200 a 800 quilos por seringueiro, com a média ficando abaixo de 500 quilos. (...) O processo de extração muitas vezes transcorria de tal modo que as árvores logo se exauriam ou sua casca ficava tão danificada que não podiam mais ser exploradas. Embora o produto acabado, se cuidadosamente ‘defumado’, atingisse preços tão elevados quanto os da melhor borracha coagulada das plantações, ami-

DESENHO DE JEAN PIERRE CHABLOZ, DE 1943, MOSTRA SERINGUEIRO PRODUZINDO AS BOLAS DE BORRACHA

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úde era cheio de impurezas, umidade e adulterações, estas introduzidas para elevar o preço de venda. O seringueiro deve ter sentido que merecia algum tipo de compensação. As torturantes condições de isolamento, privação e perigo a que estava sujeito limitavam sua carreira a algumas poucas temporadas, durante as quais contrair malária, doença de Chagas e leishmaniose era uma certeza virtual.”

O seringueiro era o último elo da cadeia econômica da borracha. Apa-rentemente, era livre, mas a estrutura econômica o colocava em situação de trabalho semelhante à relação de servidão. Isto porque ele não tinha alternativa a não ser comprar os suprimentos necessários, a preço altíssimo, no armazém mantido pelo seringalista, e por isso estava sempre em débito na contabilidade e endividado, não conseguindo escapar da exploração do patrão. Aqueles que tentavam fugir de seus débitos eram remetidos de volta aos seringais, capturados em Belém ou Manaus.

Apesar da desigualdade absurda a que se submetiam os seringueiros, Warren Dean acredita que tal forma de organização era a única que acei-tariam: “Embora o sistema extrativo lhes impusesse taxas de mortalidade e uma exploração tão severa que sua reprodução se tornava impossível,

SERINGUEIRO

ESTAVA SEMPRE

ENDIVIDADO,

NÃO CONSEGUINDO

ESCAPAR DA

EXPLORAÇÃO

DOS PATRÕES

SERINGAL NO ACRE NOS DIAS DE HOJE: CULTIVO MANEJADO GARANTE RENTABILIDADE E MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO

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os seringueiros, segundo se afirma, preferiam a existência itinerante ao plantio, por um orgulho embriagador e uma idêntica predileção pelo en-riquecimento rápido em detrimento de uma remuneração fixa.”

A lucratividade da borracha era tanta e o domínio do mercado mun-dial, tão marcante, que pouco se cogitava, na época, de buscar métodos de plantio manejado. Como relata Warren Dean, “a seringueira nativa era invencivelmente superior à seringueira plantada. O governo do Amazo-nas exprimia sua confiança em que, quando a demanda desabrochasse, o Estado atrairia cada vez mais capital estrangeiro, o que reduziria os custos da coleta, estimulando, assim, o fornecimento nativo.” A crença na épo-ca, portanto, era de que, caso um dia os estoques naturais se esgotassem, os amazonenses poderiam plantar a Hevea quando bem quisessem, e a borracha resultante sempre seria mais barata e de melhor qualidade que a asiática, onde, por volta de 1890, se iniciaram as primeiras experiências de cultivo manejado. As sementes da Hevea brasiliensis que viriam a desen-cadear uma violenta alteração no mercado da borracha, cerca de 20 anos depois, teriam sido contrabandeadas do Brasil pelo inglês Henry Wickham, tendo as plantas que brotaram passado por um período de adaptação no Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra, antes de serem transportadas para Ceilão, Java e Sumatra, onde deram origem a enormes seringais. Em seu livro, Warren Dean narra com riqueza de detalhes toda a misteriosa operação de contrabando realizada por Wickham, que acabou inclusive recebendo, em 1926, um prêmio por ter sido “o Francisco de Mello Palheta dos ingleses” (Palheta é o sargento-mor que em 1726 teria contrabandeado para o Brasil as primeiras sementes de café, as quais transformariam o país no maior produtor mundial do grão).

BELÉM, DO PARÁ E DO MUNDOOs sacrifícios a que eram submetidos os seringueiros na floresta ama-

zônica eram apenas uma das faces do ciclo da borracha. Graças à riqueza proporcionada pela exportação do produto, Manaus e Belém viveram momentos de luxo e glamour. As duas cidades passaram a ser as mais desenvolvidas do Brasil e das mais prósperas no mundo, principalmente Belém, não só pela sua posição estratégica – quase no litoral –, mas tam-bém porque sediava um maior número de residências de seringalistas, casas bancárias e outras importantes instituições. Foram atraídas para a região, nesse período, levas de imigrantes estrangeiros, como portugueses, chineses, franceses, japoneses, espanhóis e outros grupos menores, com o fim de desenvolverem a agricultura nas terras da Zona Bragantina.

Maria de Nazaré Sarges, autora do estudo Belém – riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912), refere que todo o processo de transformação pelo qual passou a capital do Pará se deve ao fato de que uma parte do excedente que se originou da riqueza proporcionada pela borracha foi canalizada para os cofres públicos, os quais direcionaram o investimento para a área urbana, incluindo o calçamento de ruas com paralelepípedos

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

DE PEQUENAS E

MODESTAS CIDADES,

BELÉM E MANAUS SE

TRANSFORMARAM

EM MODERNAS

METRÓPOLES

RUA XV DE NOVEMBRO E OS TRILHOS DOS BONDES: MODERNIDADE NA CAPITAL PARAENSE

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de granito importados da Europa, construção de prédios públicos, casarões em azulejos, monumentos, praças etc. “Era preciso alinhar a cidade aos padrões da civilização europeia. Desse modo, a destruição da imagem da cidade desordenada, feia, promíscua, imunda, insalubre e insegura, fazia parte de uma nova estratégia social, no sentido de mostrar ao mundo civilizado (entenda-se Europa) que a cidade de Belém era o símbolo do progresso, imagem que se transformou na obsessão coletiva da burguesia”, refere a autora.

Da Europa, especialmente da França, é que veio o modelo de urbanis-mo moderno, reproduzido em Belém com expressividade. Foi durante a administração do Intendente Antônio José de Lemos que se construíram boulevards, praças, bosques, asilo, mercados. Na mesma época, implantou--se também uma rigorosa política sanitarista. “Belém vai sofrer alterações que se operam nas estruturas sociais, ocasionando uma intensificação da vida social e intelectual da cidade, aumento demográfico, maior comple-xidade nas relações sociais e a concentração de fortunas entre os novos setores dominantes”, atesta Maria de Nazaré.

Esse nova ordem econômica propiciou a composição de uma nova elite, formada por comerciantes, seringalistas, financistas, com destaque para os profissionais liberais, geralmente de famílias ricas e oriundos de universidades europeias. É este novo grupo dominante que, em nome

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

CHAFARIZ NO LARGO DA PÓLVORA E CASAL EM TRAJES DE ÉPOCA, EM FOTO DE BELÉM NO INÍCIO DO SÉCULO XX

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VER-O-PESO LOGO SE TRANSFORMOU EM UM DOS MAIS MODERNOS MERCADOS DO PAÍS

do progresso, vai direcionar a remodelação da cidade, imprimindo-lhe o brilho da chamada belle époque.

O cosmopolitismo do ciclo da borracha transformou Belém, e também Manaus, como se verá adiante, em pequenas reproduções de cidades europeias. Em Belém, entre 1890 e 1900, surgiram 25 novas fábricas – de biscoitos, açúcar refinado, caramelo, pão, café; de fibras e cordas; de artefatos de borracha, e até uma fábrica de licores, além da Fábrica de Cerveja Paraense, em 1905.

Não há dúvida de que a moda é um fenômeno típico da sociedade ur-bano-industrial, estimuladora do consumo. Na Belém do século XIX, mu-lheres das classes abastadas tinham um zelo especial pela indumentária,de tal forma que precisavam mandar buscar seus vestidos em Londres e/ou Paris. Para resolver essa questão, surgiram na cidade estabelecimentos comerciais para atender o requinte das damas e cavalheiros, entre eles Paris N’América, Bom Marché, Maison Française, além de lojas ambu-lantes que vendiam, em carros e tabuleiros, fazendas francesas, inglesas e diversas miudezas.

A navegação a vapor, introduzida em 1853, teve grande importância econômica para a exportação da borracha e o comércio internacional.

Os modernos extrativistas trataram de mandar seus filhos estudarem na Europa, visando a uma futura substituição dos burocratas administrativos

EXTRATIVISTAS

MANDAVAM OS FILHOS

PARA A EUROPA,

FORMANDO UMA NOVA

ELITE INTELECTUAL

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que comandavam o país até então. Essa elite de doutores e intelectuais influenciou na formação de novos hábitos: os donos de seringais, em sua maioria, moravam na cidade, atraídos pelos confortos que esta passara a lhes oferecer. Alguns dos novos ricos construíram suas residências inspira-dos no estilo art nouveau, com azulejos de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de ebanistas franceses. Mandavam buscar companhias artísticas na França, em Portugal e no Rio de Janeiro, que fizeram época no Teatro da Paz. Calcula-se que apenas de fevereiro a dezembro de 1878 foram apresentados aproximadamente 126 espetáculos no teatro.

Foram criadas linhas de bonde, bancos instalaram-se na cidade (em 1886 já funcionavam quatro estabelecimentos), assim como companhias seguradoras, essas últimas intimamente ligadas ao sistema financeiro es-tabelecido na região. Na verdade, franceses, ingleses e norte-americanos dirigiam a comercialização da borracha. Os ingleses chegaram a instalar na cidade uma agência do London Bank of South America, antes mesmo de outros bancos brasileiros. A libra esterlina circulava como mil-réis, e os transatlânticos da Booth Line faziam linhas regulares entre a capital amazonense e Liverpool.

Todo o processo de urbanização em Belém não esteve ligado somente à intensificação da vida industrial, como ocorreu nas cidades europeias e americanas. Aqui, as funções comercial, financeira, política e cultural tiveram influência decisiva. O crescimento populacional impactou a cida-de. Em 1872, a população do Pará era de 275 mil habitantes, 61.900 dos

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

O TEATRO DA PAZ, EM OBRA DE RIGUINI

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quais em Belém. Em 1900, estes números subiram para 445 mil no Estado e 96.500 na capital. Em 1920, o Pará tinha quase 1 milhão de habitantes, dos quais 236 mil em Belém.

Além dos lucros gerados pela extração e comercialização da borracha, a queda da Monarquia e a proclamação da República garantiram aos Estados maior autonomia e maior participação na renda concernente à exportação da borracha. Foi graças a esses recursos que surgiram na cidade o Merca-do Ver-o-Peso (1901), o Hospital Dom Luiz, o Grêmio Literário, a The Amazon Telegraph Company, o Arquivo e a Biblioteca Pública (1894), o já citado Teatro da Paz (1878), 43 fábricas (que produziam desde chapéus até perfumarias), cinco bancos, quatro companhias seguradoras, além da implantação da iluminação a gás, em 1905.

Do ponto de vista do saneamento e da limpeza pública, o objetivo era afastar os ares fétidos causados pela emanação mal cheirosa do lixo urbano. A utilização do crematório do lixo tornou-se imprescindível. O governo estabeleceu e divulgou a hora em que o arrematante da limpeza passaria nos prédios e casas para recolher os lixos e nos lugares públicos em que seus carros especiais passariam. Os infratores seriam multados. Graças à criação do Departamento Sanitário Municipal, viabilizou-se a construção de redes de esgotos e de água e a drenagem de pântanos. Até mesmo barbeiros, cabeleireiros e semelhantes foram obrigados a empregar materiais que não prejudicassem a saúde e a esterilizar seus instrumentos.

O conceito de “higienização” da cidade incluiu também uma nova

A IMPONENTE CATEDRAL DA CAPITAL DO PARÁ, TAMBÉM NA VISÃO DE RIGHINI

DEPARTAMENTO

SANITÁRIO CONSTRUIU

REDES DE ESGOTOS

E ÁGUA E DRENOU

OS PÂNTANOS

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ordem no que se refere às questões de moralidade. Ao observarem-se as condutas que passavam a ser proibidas, é possível detectar alguns dos hábitos frequentes dos cidadãos que moravam nos núcleos urbanos antes do boom da borracha. Pelo artigo 110 do Código de Posturas, por exemplo, ficava proibido “fazer algazarras, dar gritos sem necessidade, apitar, fazer batuques e sambas”. Já o artigo 128 proibia inclusive “proferir palavras obscenas nas ruas e lugares públicos, praticar atos ou gestos reputados ofensivos à moral e à decência, tomar banho nas praças e fontes públicas”. O inciso VII do mesmo artigo ia além: “... é proibido chegar à janela ou porta em traje indecente ou em completa nudez, ou conservar-se em casa em tais condições, de maneira que seja visto pelos transeuntes”.

Se de um lado Belém era dependente comercialmente da Inglaterra, de outro mantinha uma relação cultural muito próxima com a França, a qual se intensificou a partir de 1838, com a criação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. A babel de influências estrangeiras nos hábitos e costumes, de outra parte, se expressava na importação de biscoitos e cham-panha franceses; de vinagre e azeitonas portuguesas; de vinhos franceses, portugueses e espanhóis; de manteiga inglesa; de sabão americano e até de chá de Pequim. Os navios europeus, principalmente franceses, traziam também as notícias sobre as peças e livros mais em voga, as escolas filosófi-cas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e até as doenças.

Até a arborização fez parte do planejamento urbano, visando à qualidade de vida proporcionada pelo ar purificado, mas também o embelezamento da cidade, amenizando o clima tropical. O calçamento se intensifica, tomando o lugar das pedras soltas e areia. Nas vias que circundavam o Teatro da Paz, por exemplo, foram usados paralelepípedos de asfalto, para que o tráfego de veículos condutores de passageiros, quando feito junto a esse prédio, não perturbasse os assistentes das funções da casa de espetáculos.

O serviço de viação pública, a propósito, foi inaugurado em agosto de 1907. Havia vários tipos de bondes, incluindo-se carros-salões, com vestíbulo em cada extremo, 12 cadeiras móveis, seis janelas de ventiladores,

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

ALARGAMENTO DAS

RUAS E CONSTRUÇÃO

DE AVENIDAS E

SUNTUOSAS PRAÇAS

RENOVARAM O CENÁRIO

URBANO DE BELÉM

E DE MANAUS

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caprichado acabamento interno e até mesmo serviço de buffet. Quando ocorria a condução de autoridades em ocasiões especiais, acrescentavam--se ventiladores, cortinas, porta-chapéus e bengalas, vasos com plantas e pequenas mesas.

O alargamento das ruas, a construção de largas avenidas e suntuosas praças também integrava a renovação do cenário urbano de Belém. No Mercado de Ferro Ver-o-Peso, os balcões dos açougues eram de mármore e as ruas do interior calçadas a paralelepípedos de granito, sobressaindo-se na construção os gradis, a escada em espiral feita de ferro, tudo de acordo com o estilo art nouveau.

MANAUSManaus, simultaneamente, foi uma das primeiras cidades do Brasil

a vivenciar o espírito da belle époque, transformando-se de um sim-ples vilarejo à beira do rio Negro em uma pujante cidade, dotada de infraestrutura urbana moderna, tornando-se a sede dos negócios que giravam em torno da borracha na Amazônia ocidental. O governador Eduardo Ribeiro destacou-se por suas ações administrativas visando à estruturação urbana e paisagística da cidade, dotando-a, inclusive, com o Teatro Amazonas, inaugurado em dezembro de 1896 e considerada a mais importante demonstração de refinamento e bom gosto da belle époque no Brasil. Em janeiro de 1909, os amazonenses criaram aquela que é considerada a primeira universidade brasileira, que recebeu o nome de Escola Universitária Livre de Manaus, atualmente denominada de Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Os médicos Adolfo Lindenberg e Vítor Godinho publicaram, inicial-mente no jornal O Estado de S. Paulo, e depois em livro (Norte do Brasil através do Amazonas, do Pará e do Maranhão) as impressões de uma viagem que empreenderam em 1904. A respeito de Manaus, dizem eles:

“A cidade de Manaus lembra São Paulo por muitas razões: por seu cosmopolitismo, por seu progresso vertiginoso, por sua arquitetura, por suas obras municipais, por ter um monopólio comercial e pelo futuro que lhe está reservado. Há 50 anos, Manaus era uma cidade pequeníssima: contudo, os seus visitantes já lhe previam um futuro grandioso por sua situação privilegiada. Depois da República, ela tem aumentado extraor-dinariamente, devendo possuir hoje uma população de 50 mil a 55 mil habitantes. Pode-se dizer que foi a imigração maranhense que lhe levou a iniciativa e o progresso.”

Prosseguem Lindenberg e Godinho em sua narrativa:“O progresso de Manaus lembra o vertiginoso progresso de São Paulo,

porque se acentuou depois da República. (...) Em Manaus, há muito menos pedra de construção do que em São Paulo; por isso, as edificações são em sua grande maioria de tijolos, que se prestam a uma arquitetura muito mais fácil e mais em conta do que pedra. (...) Quase todas as casas têm platiban-das, o que as torna muito mais elegantes. Também as ruas são largas e bem alinhadas, e já se tem cuidado da arborização de alguma delas, e sobretudo das praças. Bonitos jardins existem, ostentando a exuberância da região amazônica, e nos arredores da cidade bosques bem aproveitados. (...) As

ALFÂNDEGA (ALTO) E SEDE

DO BANCO ULTRAMARINO

(ACIMA), EM MANAUS. NA

PÁGINA AO LADO, BANCO

COMERCIAL, EM BELÉM

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ruas centrais da cidade são bem calçadas a paralelepípedos de granito, importados de Portugal ou do Rio de Janeiro, e duas delas são asfaltadas. (...) É de lastimar. Os chopes consumidos em Manaus são de procedência alemã, e por isso custam caro, 1 mil réis. O consumo de cerveja é muito grande, como em geral de todas as bebidas alcoólicas. Os botequins e mercearias existem profusamente e são todos muito frequentados. Neles se nota um hábito muito europeu: as mesinhas dispostas nos passeios dos boulevares ou avenidas, nos trottoirs, como se diria em Paris.”

Mais adiante, comentam os médicos:“Em Manaus, não faltam doentes de impaludismo. Os seringueiros

que adoecem nas regiões mais paludosas vêm tratar-se na cidade, e são em tão grande número que dão meios de subsistência a um respeitável corpo clínico. Quando lá estivemos, havia na cidade cerca de 70 médi-cos. (...) O Palácio da Justiça é um monumento aparatoso tanto por sua construção como por sua mobília. (...) A mesma coisa se poderá dizer do teatro, que custou 11 mil contos de réis. Este tem enormes saguões, espa-çosos corredores, um recinto primoroso e um foyer magnífico. O foyer é circundado de vistosas colunatas fingindo mármore, e a decoração é obra de De Angelis. (...) A cúpula do teatro é toda de mosaico, com as cores da bandeira nacional, losangos amarelos em campo verde.”

A DECADÊNCIA Em janeiro de 1910, o mundo industrial foi subitamente acometido

de grave crise de “febre” da borracha. Após dois anos de aumentos de

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

CÚPULA DO TEATRO AMAZONAS: 36 MIL PEÇAS DE ESCAMAS EM CERÂMICA ESMALTADA E TELHAS VITRIFICADAS, VINDAS DA ALSÁCIA

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preço firmes, porém gradativos, uma alta sem precedentes no valor da borracha fez com que os capitalistas de todo o mundo se lançassem a investir apressadamente na produção da borracha bruta. Nos meses que se seguiram, centenas de companhias, representando milhões de libras esterlinas de capital, surgiram literalmente da noite para o dia. A Indian Rubber World, sempre tomando o pulso do mercado da borracha bruta, instava com seus leitores que não hesitassem em aceitar adquirir a borracha a 2 dólares a libra, advertindo ser pouco provável que os preços viessem a cair em futuro próximo. Mas já no mês de maio a febre estacou. Ninguém estava preparado para o violento mergulho que deu o mercado da borracha bruta nos meses restantes do ano de 1910, chegando a menos de um 1,20 dólar já em novembro.

Ao contrário do que também imaginavam os brasileiros, a partir de 1911 o preço do produto caiu vertiginosamente, à medida que uma quantidade cada vez maior da borracha de cultivo (originária da Ásia) chegava ao mercado. Numa onda especulativa, o produto brasileiro subiu para 15 mil réis o quilo em abril de 1910, mas em junho de 1911 caiu para 6 mil réis. Nas palavras de Bárbara Weinstein, “essa queda, longe de um simples interlúdio, acabou sendo o começo de uma de-cadência de dez longos anos que iria aleijar a economia extrativa da Amazônia”. Prossegue Bárbara: “Para tornar pior o que já estava mau, a causa real dessa febre de última hora da borracha era exatamente aquilo que iria desferir o golpe fatal na economia extrativa da região: após 20 anos de trabalho dedicado de botânicos e de empresários

TOMBADO COMO PATRIMÔNIO HISTÓRICO EM 1966, TEATRO TEM CAPACIDADE PARA 701 PESSOAS NA PLATÉIA E NOS CAMAROTES

QUEDA BRUSCA

DOS PREÇOS DA

BORRACHA, EM 1910,

DEU INÍCIO A UMA

LONGA E DEMORADA

DECADÊNCIA

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britânicos, as plantações de Hevea na Ásia tinham, afinal, começado a produzir borracha em quantidades consideráveis”.

Ao contrário do que caracterizava o modo de produção brasileiro, que previa a necessidade de mais e mais seringueiros embrenhando-se cada vez mais profundamente na floresta, a borracha cultivada quase não apresentava obstáculo à expansão, após o período de cinco a oito anos para as árvores atingirem a maturidade. Em termos gerais, as condições na Ásia eram extremamente favoráveis ao cultivo: enormes extensões de terra podiam ser ocupadas sem burocracia, o transporte era feito sem dificuldades e a preços baixos, enquanto a mão-de-obra era abundante e sabidamente barata. Com isso, não é de se estranhar que a área de cultivo da Hevea crescesse de 5,3 milhões de hectares, em 1905, para 46 milhões em 1910, e para incríveis 101 milhões de hectares em 1915. Como aponta Bárbara Weinstein, “se se calcular uma média de 200 árvores por hectare, torna-se logo evidente como o cultivo de Hevea conseguiu, em tão pouco tempo, eclipsar a economia da borracha silvestre”, com suas duas ou três árvores por hectare.

O governo brasileiro, tardiamente, tentou reagir, criando o plano Defesa Econômica da Borracha, que incluía prêmios para pessoas que tentassem um “cultivo racional” e recursos para estações agrícolas experi-mentais. De nada adiantou. Mais uma vez é Warren Dean quem sintetiza o momento: “Quando a crise atingiu a região, o crédito privado logo sofreu um colapso, juntamente com o do governo. Os aviadores e patrões estavam endividados, com pouca margem para honrar os exportadores credores. Diz-se que as perdas em 1913 chegaram a mais de 4 milhões de libras. A elite regional lutou para persuadir os investidores estrangeiros a renovarem seus investimentos na coleta da borracha. Procurou fundos para o banco regional proposto, para novos escritórios locais de compra das indústrias da borracha e para mais aquisições de seringais nativos pelas chamadas companhias de plantação”.

Mas tudo foi por água abaixo com a queda do preço da borracha. Em 1910, a exportação do produto correspondia a 134 mil contos de réis, para uma produção de 34 mil toneladas. Três anos depois, não alcançava 70 mil contos de réis. A crise se manifestou na falência das casas aviadoras, na queda da produção dos seringais, no caos das finanças públicas.

Luis Osiris da Silva assim resumiu a fase de decadência: “A Amazônia, descapitalizada, manietada pela falta de poupanças locais, presa a uma estrutura econômica retrógrada, viu passar desse modo sua chamada fase áurea. E assim, embora tenha sido a pedra de toque da conquista do vale para o Brasil, a borracha ficaria reduzida apenas ao mais vibrante capítulo do homem planiciário para constituição de sua economia”.

Se o primeiro ciclo da borracha estava encerrado, outros capítulos na história da região amazônica ainda estavam por ser escritos: a conquista do Acre, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a Fordlândia e a triste história dos soldados da borracha.

ouro branco: martírio, riqueza e cultura

SE O CICLO DA

BORRACHA ESTAVA

ENCERRADO, OUTROS

CAPÍTULOS NA

HISTÓRIA DA AMAZÔNIA

ESTAVAM POR

SER ESCRITOS

TEATRO AMAZONAS PASSOU POR COMPLETA RESTAURAÇÃO EM 1990

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do acrea conquista

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Trinta e cinco anos antes de eclodir o problema do Acre, território que o Brasil reconhecia ser da Bolívia, o governo do império do Brasil assinara o Tratado de Ayacucho, em 1867, com aquele país no sentido de mais ou menos fixar áreas limítrofes em comum. Dez anos depois, assombrados pela violenta seca de 1877/79, que devastou o Ceará, milhares de cearenses partiram para os fundões da Amazônia atrás de uma alternativa para a sua sobrevivência. Em 1882, fundaram o Seringal Em-presa, que mais tarde veio a ser a capital do Acre, rebatizada de Rio Branco.

Foi assim, na chamada “transumância amazônica”, que os nordestinos adentraram na região do rio Acre, situada no extremo noroeste do Brasil, atrás das valiosas seringueiras. A revolução dos transportes que andava a galopes nos países Europeus e nos Estados Unidos, paralela à expansão da eletricidade, tinha fome por borracha, que naquela época saía toda ela da Amazônia, sendo que 60% era extraída do território acreano.

Obviamente que o governo andino não via com bons olhos aquela arribada crescente dos brasileiros. Para os bolivianos, a situação pratica-mente repetia o que ocorrera na década de 1870, com a penetração de trabalhadores chilenos na área do Atacama atrás do salitre, que provocara a Guerra do Pacífico (1879-1883). A Bolívia, derrotada, perdeu sua saída para o Oceano Pacífico, tendo que aceitar ficar isolada dos oceanos do mundo.

Em um primeiro momento, José Paravicini, o embaixador boliviano no Rio de Janeiro, determinou que fosse fundado, em 3 de novembro de 1899, um posto alfandegário em Puerto Alonso, para se fazer presente na área. Ato de soberania que, se bem que legítimo, irritou profundamente os seringueiros brasileiros que cercaram o posto e expulsaram os funcio-nários dali.

Neste entremeio, entra em cena o aventureiro Luís Galvez, dito “o Imperador do Acre”. Luiz Galvez Rodrigues Arias era um jornalista de origem espanhola, que pretendeu ocupar o vazio deixado pela momen-tânea ausência das autoridades bolivianas, espantadas com a fúria dos seringueiros. Poliglota, duelista audaz e boêmio, Galvez era diretor do jornal Comércio do Amazonas, e escorado pelo governador Ramalho Júnior, tomou a peito realizar uma incursão ao Acre.

Tratou-se de uma epopeia rocambolesca, digna das páginas da litera-tura fantástica, visto que Galvez, um sem-raízes que vivia intrigando nas redações, consulados e palácios, terminou não somente proclamando a

a conquista do acre

IMAGEM DE J.A.CORREA RETRATA A FOME NO CEARÁ EM 1877-78

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Independência do Estado do Acre, na data simbólica de 14 de julho de 1899, como ainda, por nove meses (entre 14 de julho de 1899 e 1º de janeiro de 1900 e depois, entre 30 de janeiro e 15 de março), agiu por lá, nos velhos moldes ibéricos, como um ditador. Assumiu por igual a magistratura, mandou fazer selos, desenhou a bandeira acreana (a estrela vermelha pairando em meio às cores brasileiras), criou ministérios e até um serviço de bombeiros. Por igual abriu escolas para tentar dirimir o analfabetismo dos seringueiros.

É possível que, com a captura do Acre, ele quisesse realizar uma espécie de desforra contra os ianques, pois naquele mesmo ano, com o desastre da Espanha na Guerra Hispano-Americana de 1899, Cuba e Porto Rico haviam sido integradas aos interesses dos Estados Unidos. Tanto assim que, na formação do seu “exército”, Galvez conseguiu atrair uns 20 veteranos espanhóis que, foragidos do Caribe e enfiados no interior da Amazônia atrás da fortuna, se mostraram dispostos a embarcar no navio para dar uma lição nos prepostos dos americanos. Para eles, impedir que os ianques ocupassem o Acre era compensar-se da recente derrota.

Era um império de selva fechada e de barrancas de rio, habitado por uns 13 mil seringueiros com suas famílias. O sonho delirante acabou

A GRANDE SECA NO CEARÁ LEVOU MILHARES A MIGRAREM PARA O ACRE

AVENTURAS E

TRAPALHADAS DE

GALVEZ RENDERAM

LIVROS EM PORTUGUÊS

E ESPANHOL

a conquista do acre

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MONUMENTO A GALVEZ, EM FRENTE À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ACRE

CAPA DO LIVRO DE ALFONSO

DOMINGO SOBRE GALVEZ

quando tropas federais brasileiras, atendendo os reclamos dos bolivianos, deslocaram-se para lá para afastá-lo definitivamente. Luiz Galvez, que ao seu jeito, como modos de tirano, implementou o primeiro governo moder-nizador naquelas áreas, ainda que bem pouco conhecido, foi o derradeiro aventureiro espanhol a embrenhar-se na conquista da Amazônia, façanha começada no século XVI com Gonzalo Pizarro e Francisco Orellana.

Detido sem resistência no Acre, Galvez, levado de volta para Manaus, viu-se desterrado para Pernambuco, de lá embarcando de volta para a Espanha. Suas aventuras e trapalhadas atraíram a atenção do novelista amazonense Marcio de Souza, que narrou suas peripécias no livro Galvez, imperador do Acre, de 1976. Na Espanha, editou-se em 2003 o livro La Estrela Solitaria, de autoria de Alfonso Domingo, que conta a aventura do espanhol que criou o Estado Independente do Acre, concluindo que ele foi “o único espanhol que ganhou uma guerra contra os Estados Unidos”.

O BOLIVIAN SYNDICATECada vez ficava mais evidente de que a Questão do Acre repetia

Atacama, portanto La Paz precisava agir para manter o território em mãos nacionais. Além de enviar uma força para lá, engendraram um outro

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a conquista do acre

PLÁCIDO DE CASTRO E BARÃO DO RIO BRANCO: FIGURAS DECISIVAS NA HISTÓRIA DO ACRE

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caminho. A solução encontrada não podia ter sido pior. Fora o próprio Luís Galvez que, trabalhando então para o cônsul boliviano em Manaus, descobriu que os bolivianos estavam em tratativas de passar o controle do território do Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, que tinha o milionário Withridge como seu acionista principal. Era um contrato do tipo conhecido como chartered companies, muito em voga na África naquela época, pelo qual uma empresa concessionária qualquer, europeia ou americana, praticamente assumia as funções soberanas sobre certa área que ela desejava explorar economicamente. Detinha não só o monopólio sobre a produção e exportação, como também auferia os direitos fiscais, mantendo ainda as tarefas de polícia local.

Concretizado o contrato, o Bolivian Syndicate, associado à U.S. Rubber Co., que compraria toda a produção da borracha, fatalmente atrairia para dentro da região amazônica o poder dos Estados Unidos que, em última instância, assumiriam, ainda que indiretamente, a proteção dos interesses de uma empresa norte-americana no Acre que gozaria por lá de privilégios majestáticos. Portanto, qualquer de-savença que ocorresse entre os seringueiros e os interesses do Bolivian Syndicate oporia o Brasil aos Estados Unidos. Dois acontecimentos vieram, então, a atrapalhar aqueles planos dos bolivianos: a rebelião acreana de Plácido de Castro e a ação diplomática do Barão do Rio Branco, que considerou a concessão boliviana ao Bolivian Syndicate uma “monstruosidade legal”.

A REVOLTA DOS SERINGUEIROSOs conflitos anteriores entre brasileiros e bolivianos – entre os quais a

célebre “expedição dos poetas”, uma romântica aventura de intelectuais e estudantes amazonenses liderados por Orlando Corrêa Lopes que, partindo de Manaus a bordo do vapor Solimões, quiseram ajudar os seringueiros a “libertar o Acre”, fracassando lamentavelmente –, fizeram-se quase espontaneamente, sem planos, sem estratégia, sem liderança. Foi então que entrou em cena um novo personagem, que daria outros rumos aos acontecimentos.

A vida de Plácido de Castro ainda não gerou um romance a sua altura. Nem os poucos ensaios que lhe foram dedicados conseguiram capturar a diversidade dramática das suas façanhas. Gaúcho de São Gabriel, nasci-do em 9 de setembro de 1873 na estância Tapera da Genoveva, Plácido trazia no sangue o pulsar de um guerreiro. Descendia de uma dinastia de militares: seu pai, Prudente da Fonseca, havia lutado na Guerra do Paraguai; seu avô, José Plácido, esteve nas Guerras Cisplatinas, e um dos seus bisavós, Joaquim José Domingues, participou junto com Borges do Canto na ocupação das Missões, que levou à integração delas ao território do Rio Grande do Sul, em 1801.

Quando aluno do Colégio Militar, Plácido não acompanhou seus colegas de farda na época da Revolução Federalista de 1893. Antifloria-nista e anticastilhista, abandonou o exército e foi alistar-se junto ao líder maragato Gumercindo Saraiva (1852-1894), que assombrava o interior do Rio Grande do Sul com sua veia de combatente astuto e muito valente.

A VIDA DE PLÁCIDO

DE CASTRO AINDA

NÃO DEU ORIGEM A

UM ROMANCE QUE

ESTEJA À ALTURA

DE SEUS FEITOS

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Anistiado no posto de major aos 21 anos ao findar o levante, Plácido de Castro tinha alguns conhecimentos técnicos, e assim tornou-se inspetor do Colégio Militar do Rio de Janeiro e, logo depois, funcionário das docas de Santos. Curiosamente, justo quando estava na função de fiscal do cais do porto, obteve a provisão de agrimensor.

Entediado com aquilo, tomando por meio de um amigo ciência da carência de profissionais nas áreas da borracha, embarcou em 1899 para o Amazonas, atrás de fortuna. Pouco depois, quando estava demarcando áreas seringueiras no rio Purus, estourou o escândalo do Bolivian Syndicate, que implicava no arrendamento do território por 20 anos. Os seringais voltaram a se abalar com os gritos de guerra. A notícia do arranjo de La Paz com os americanos foi o elemento catalisador de todas as energias revolucionárias. Desta vez o furor dos acreanos teria um comandante profissional na liderança da insurgência. O tempo dos amadores impul-sivos, como Galvez e os poetas, passara. A Revolução Acreana, por fim, encontrara o seu caudilho.

Em uma reunião feita em Caquetá, no 1º de julho de 1902, Plácido e os demais insurgentes, formando a Junta Revolucionária, urdiram as bases do futuro Estado Independente do Acre, prevendo sua integração no Brasil. O gaúcho exigiu de todos o compromisso de obediência indiscutível ao Comandante-em-chefe do Exército do Estado Independente do Acre, não aceitando a dispersão da autoridade ou seu questionamento. Obteve, inclusive, a anuência do representante do governador do Amazonas, o doutor Gentil Norberto, que, mesmo sendo o homem do dinheiro e do fornecimento das armas, aceitou subordinar-se a ele.

A experiência de combate adquirida por ele junto à guerrilha maragata ajudou-o na montagem da estratégia. Em pouco tempo, um exército de 2 mil seringueiros estava à disposição nos arredores de Xapuri. Bastaram 33 deles, capitaneados por um tal de José Galdino, para capturarem o povoado. Em 6 de agosto de 1902, começara a etapa final do processo revolucionário com a imediata proclamação de independência, ato que se seguiu ao arriar a bandeira boliviana.

A LUTA NA SELVACercando as guarnições enviadas de La Paz com grandes cinturões

de homens armados com rifles e com arma branca (por força do ofício, os caucheiros eram exímios lutadores com facas), surgiam de repente do interior dos matos e punham todos os inimigos a correr. Diga-se que, na-quelas condições, caminhando pelas trilhas em meio à selva densa, mais medo tinham das feras e dos insetos do que de enfrentar homens.

Em uma campanha relâmpago, uma por uma das praças foram caindo no controle dos revoltosos, até que, 171 dias depois da tomada de Xapuri, em 21 de janeiro de 1903, Plácido de Castro contou com a vitória definitiva. Os combates mais importantes foram o da Volta da Empresa, travado em 18 de setembro de 1902 (ocasião em que os acreanos emboscaram a tropa do coronel Rosendo Rojas), e o da Nova Empresa (onde o mesmo oficial foi novamente batido quando submetido a um cerco em 6 de outubro de 1902).

a conquista do acre

A EXPERIÊNCIA DE

COMBATE ENTRE OS

MARAGATOS

AUXILIOU PLÁCIDO

A MONTAR A MELHOR

ESTRATÉGIA DE LUTA

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PLÁCIDO LIDEROU

2 MIL SERINGUEIROS,

MAS TERMINOU MORTO

EM UMA EMBOSCADA

NO BRASIL

UMA DAS RARAS IMAGENS DE PLÁCIDO DE CASTRO

EM COMBATE (NO ALTO, À DIREITA, A CAVALO)

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A operação derradeira foi concluída com o ataque de Plácido ao Porto Acre, manobra que se estendeu por nove dias, de 15 a 24 de janeiro de 1902, e que findou com o içar da bandeira branca por parte do governador boliviano e a assinatura da Carta de Rendição da Bolívia por Dom Lino Romero. Os remanescentes dos destacamentos bolivianos entregaram-se ou deram a volta para o interior do país.

Plácido de Castro pouco proveito tirou da vitória. Ainda que trans-formado em mito vivo aos olhos dos seringueiros, não conseguiu fazer frente às práticas traiçoeiras da política das selvas. No dia 8 de agosto de 1908, foi vítima de um atentado tramado pelo coronel Gambino Bezouro e pelo subdelegado Alexandrino José da Silva, que lhe mon-tou uma tocaia. Baleado pelas costas, Plácido veio a falecer dois dias depois na companhia do seu irmão, Genesco, em um lugarejo chamado Benfica. Seu corpo foi transladado para Porto Alegre e sepultado no Cemitério da Santa Casa, sendo que a família mandou gravar sobre a lápide o nome dos 14 jagunços que participaram do crime, para que a infâmia jamais fosse esquecida. O nome dele foi dado a um município que hoje conta com pouco mais de 15 mil habitantes.

Voltando a 1902: quando o governo da Bolívia, na presidência do ge-neral José Maria Pando (1899-1904), empenhou-se em uma mobilização de tropas, acenando com uma grande marcha para o Acre, a fim de recuperar o terreno perdido e dar fim nos “flibusteiros brasileiros”, a diplomacia do Barão do Rio Branco entrou em ação.

a conquista do acre

QUANDO O GOVERNO

BOLIVIANO AMEAÇOU

MARCHAR SOBRE O

ACRE, NA TENTATIVA DE

RECUPERAR O TERRITÓRIO

PERDIDO, ENTROU EM

CENA A HABILIDADE DO

BARÃO DO RIO BRANCO

O BARÃO DO RIO BRANCO

RETRATADO POR J.G.

FAJARDO, OBRA EXPOSTA NO

CONGRESSO NACIONAL

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TRATADO DE PETRÓPOLIS

ENTROU PARA A HISTÓRIA

DA DIPLOMACIA BRASILEIRA O TRATADO DE PETRÓPOLISEstimaram a multidão que o recepcionou em 10 mil pessoas, que se

espalhavam desde o cais do porto até as avenidas do centro do Rio de Janeiro. Todos lá estavam, naquele dia jubiloso de 2 de dezembro de 1902, para saudar o Barão do Rio Branco, o Juca Paranhos, como era conhecido entre os cariocas. Viram-no como um bom filho que retornava à casa, o Brasil. Recepcionaram-no desde o porto com bandas, palmas e aclamações, espalhando os retratos dele por toda parte. Até a estátua do pai do barão, o Visconde do Rio Branco, merecera uma bela ramada de flores.

Provavelmente muitos deles, dos que lá estavam presentes para aplaudir o novo ministro das Relações Exteriores, recém vindo da Eu-ropa, tinham estado umas semanas antes na frente do Palácio da Catete para vaiarem estrepitosamente o presidente Campos Sales, quando esse deixava o poder coberto de impopularidade. Enquanto o político paulista saía debaixo de apupos, o chanceler carioca desembarcava com vivas.

A república, o novo regime recém implantado no Brasil fazia 13 anos, tinha causado enormes decepções ao povo. Primeiro, pela inflação e pelos escândalos financeiros provocados pelo Encilhamento, em 1890/91; em seguida, a Armada rebelou-se por duas vezes, uma em 1891 e outra em 1893, disparando contra a própria Capital Federal, ocasião em que tam-bém rebentou no Rio Grande do Sul a sangrenta Revolução Federalista de 1893/95 e, mal cauterizada essa, foi a vez da revolta de Canudos fazer correr sangue no sertão da Bahia, em 1896/97.

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Como uma espécie de arremate de tanta desgraça, o presidente Campos Sales, herdando os rombos orçamentários daquilo tudo, teve que apelar para o Funding Loan, uma renegociação geral da dívida externa do país, acertada em 1898, que implicou em tomar mais 10 milhões de libras esterlinas das casas financeiras.

UMA REPÚBLICA SEM BONS EXEMPLOSDeodoro da Fonseca morrera, Floriano Peixoto também, Benjamin

Constant fora-se antes de todos os outros, a república não tinha heróis, não oferecia alguém de peso, um vulto ilustre, um varão a lá Plutarco com quem o povo pudesse se empolgar ou se orgulhar. Daí a vibração com o barão, ironicamente um monarquista, alguém do antigo regime derru-bado em 1889, mas que naquele momento muito especial, quase que de depressão coletiva, encarnava, por assim dizer, as melhores expectativas da nacionalidade. Rodrigues Alves (1902-1906), o novo presidente, o convidara para o ministério, e ele, deixando Londres, viera assumir o posto. E chegava em boa hora, porque os atritos na fronteira do Brasil com a Bolívia, lá longe, na floresta amazônica, soltavam chispas para todos os lados. Como observou Álvaro Lins, o melhor biógrafo do barão, “o caso do Acre fora a princípio de geografia e história, depois, uma questão de ordem política e econômica.”

Rio Branco estabeleceu dois frontes para evitar o choque militar com a Bolívia. Em um deles, arregimentou o apoio da Casa Rothschild, de Lon-dres, instituição financeira de históricas ligações com o Brasil, para que os banqueiros intermediassem um acordo com o Bolivian Syndicate de Nova York. Operação bem-sucedida, pois os norte-americanos aceitaram uma compensação de 110 mil libras esterlinas para desistir do negócio, o que enfraqueceu o lado do governo de La Paz. O outro, foi mostrar à Bolívia que o Brasil estaria mesmo disposto a ir à guerra na defesa do povo extrativista do Acre, visto que a opinião pública não aceitaria que o governo do Rio de

a conquista do acre

POR IRONIA, A

REPÚBLICA, QUE

NÃO TINHA HERÓIS,

FESTEJOU O RETORNO

AO PAÍS DE UM

MONARQUISTA

CENTENÁRIO DA MORTE DO BARÃO DE RIO BRANCO REUNIU DESCENDENTES EM BRASÍLIA

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FOTO DE PEDRO HESS, FEITA EM 1860-1870, MOSTRA PRAÇA DE PETRÓPOLIS

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a conquista do acre

MAPA DA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, DE HORACIO E. WILLIANS (1905)

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Janeiro cruzasse os braços, caso soubesse que os seringueiros seriam expulsos pelas armas daquela área. Um admirador exaltado da posição tomada pelo barão escreveu na imprensa: “Temos um homem no Itamaraty.”

Para dar prova de seriedade, como demonstração de força, ordenou--se a mobilização de tropas federais em Mato Grosso e no Amazonas para que se deslocassem para o território do Acre. Assim, com essa articulada combinação de diplomacia e do uso do argumento militar, só restou ao governo da Bolívia retroceder. Aceitou um acordo provisório, assinado em março de 1903, e decidiu por comparecer à mesa de negociação. O local acertado foi Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, honorável cidade imperial onde se encontravam as delegações estrangeiras no Brasil.

O princípio sustentado pelo Brasil na sua demanda para com a Bolívia foi o mesmo utilizado pelos portugueses nos tempos dos tratados de 1750 e 1777, assinados então entre o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para acertarem suas diferenças fronteiriças na América Ibérica: o do uti possidetis solis, quer dizer, tem direito ao território quem o possui; quem tomasse a terra contestada era o seu dono de fato. Pelo lado brasileiro, atuaram Ruy Barbosa e depois o gaúcho Assis Brasil, que o substituiu, enquanto que representando a Bolívia encontravam-se o senador Fernando Guachalla e o ministro Cláudio Pinilla. No primeiro dos seus dez artigos, fixou-se: “Do rio Beni na sua confluência com o Mamoré (onde começa o rio Madeira), para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada da sua margem esquerda, na latitude 10º20’, até encontrar as nascentes do rio Javari.”

O ACERTO FINALAcordou-se então que o Brasil indenizaria a Bolívia com 2 milhões de

libras esterlinas em troca de um território que incorporaria não somente o Acre inferior (142.000 km²) , como o Acre superior (48.000 km²), rico em florestas e reservas de seringais. O Brasil, por igual, comprometeu-se a entregar em permuta certas áreas da fronteira do Mato Grosso que, no total, perfaziam 3.164 km, bem como dar início à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, numa extensão de aproximadamente 400 km, para permitir uma saída da Bolívia para o Oceano Atlântico (promessa feita a primeira vez em 1867).

As negociações, entre os legatários bolivianos e os brasileiros, iniciadas em julho de 1903, encerraram-se quatros meses depois, com a assinatura solene do Tratado de Petrópolis no dia 17 de novembro de 1903. Consa-grou-se como uma das maiores vitórias diplomáticas do Brasil, visto que conseguiu incorporar ao território nacional, sem deflagrar guerra, uma extensão de terra de quase 200 mil km², entregue a 60 mil seringueiros e suas famílias para que lá pudessem exercer as funções extrativas da bor-racha. E, fundamentalmente, evitou-se um conflito bélico com a Bolívia, um país pobre e isolado do mundo. Guerra que, se travada, traria uma mancha indelével para a imagem do Brasil, pois o país iria aparecer no cenário mundial como um valentão prepotente tirando proveito dos mais fracos. O Barão do Rio Branco, por sua parte, foi homenageado pelo povo acreano com a fundação da Vila de Rio Branco, atual capital do estado do Acre. Em 2012, celebra-se o centenário de sua morte.

ALÉM DE AGREGAR

UM TERRITÓRIO DE

200 MIL KM2 SEM

DISPARAR UM SÓ TIRO,

TRATADO EVITOU QUE

BRASIL FICASSE MAL

VISTO NO CENÁRIO

INTERNACIONAL

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infernoverdetrilhos no

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Estrada dos trilhos de ouro, em que cada dor-mente representa uma vida, conhecida pela al-cunha de ferrovia do inferno, romanceada quase um século depois, no livro Mad Maria, de Márcio de Souza, que deu origem a uma minissérie de televisão. A história das tentativas de constru-ção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré rende excelente argumento para um romance, tais são as cores dramáticas e a miríade de interessantes personagens que a caracterizam.

A Ferrovia do Diabo, a propósito, é o nome do livro do jornalista Manoel Rodrigues Ferreira, cuja primeira edição foi publicada em 1960 e na qual se faz um relato minucioso deste fato histórico, o qual, até a publicação do livro, era pouco conhecido no país. Há outras importantes referências bibliográficas, como o livro The Jungle Route (O Caminho da Selva), escrito pelo norte-americano Frank W. Kravigny, que trabalhou na construção da ferrovia, e a biografia de Percival Farquhar, The Last Titan (O Último Titan), escrita por Charles A. Gauld sobre personagem-chave neste episódio, como se verá mais adiante. Cabe mencionar ainda o livro Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, escrito pelo norte-americano Neville B. Craig no século XIX e publicado no Brasil apenas em 1947.

Não fosse o genial trabalho de Dana B. Merril, fotógrafo contra-tado pelo empresário Percival Farquhar e que registrou, entre 1909 e 1910, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e ainda menos documentação se teria sobre o episódio. Merril produziu mais de 2 mil fotografias, boa parte das quais encontra-se na Coleção Museu de São Paulo e também na Biblioteca Nacional.

A construção da ferrovia, como já mencionado, era uma conse-quência do Tratado de Petrópolis, de 1903, pelo qual o Brasil se com-prometia a construir uma ligação da Bolívia com o Oceano Atlântico, via acesso ao rio Amazonas, em troca da anexação do território do hoje estado do Acre. De fato, tratava-se de uma antiga promessa, cuja primeiro registro é de 1867, e que até então não havia sido cumprida.

ANTECEDENTESO rio Amazonas, que é tipicamente um rio de planície, nasce

nos Andes peruanos, entra em território brasileiro na localidade de Tabatinga, e a partir daí percorre cerca de 3.100 quilômetros, até desembocar no Oceano Atlântico. O rio Madeira, seu maior afluen-te à margem direita, nasce na fronteira com a Bolívia, onde se dá a confluência de dois grandes rios bolivianos, o Mamoré e o Beni, e outro rio que nasce no Brasil, o Guaporé, mas que quando entra em território boliviano passa a se chamar Itenez. A partir desse ponto,

trilhos no inferno verde

A PROMESSA

BRASILEIRA DE

CONSTRUÇÃO DE UMA

LIGAÇÃO DA BOLÍVIA

COM O ATLÂNTICO FOI

FEITA PELA PRIMEIRA

VEZ EM 1867

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LIGAR GUAJARÁ-MIRIM A PORTO VELHO POR VIA TERRESTRE: O DESAFIO

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trilhos no inferno verde

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até o Amazonas, onde tem sua foz, o Madeira percorre cerca de mil quilômetros, boa parte deles – mas não sua totalidade – caracterizados por águas mansas em meio à planície amazônica.

Uma das questões de logística que marca a história da Bolívia diz respeito ao fato do país não possuir acesso soberano ao mar. Essa situação surgiu após a chamada Guerra do Pacífico (1889-93), ao final da qual o Chile incorporou a província de Tarapacá, até então pertencente ao Peru, e a província de Antofagasta, território que permitia a ligação da Bolívia ao Oceano Pacífico. De outra parte, uma das mais importantes ligações entre a Bolívia e o Brasil, e alternativa de acesso ao mar que havia sido percorrida por dezenas de viajantes portugueses e espanhóis já a partir do século XV, é a que vai da localidade de Guajará-Mirim, às margens do Mamoré – portanto, ainda em território boliviano –, até Santo Antônio, às margens do Madeira, pouco acima de Porto Velho, já em território brasileiro.

Nestes cerca de 400 quilômetros em descida (Guajará-Mirim fica a 140 metros de altitude em relação ao nível do mar), existem cerca de 20 acidentes geográficos, ora no curso do Mamoré, ora no do Madeira. Estes acidentes são genericamente chamados de cachoeiras, mas do ponto de vista de sua denominação técnica, são uma sequência que intercala sete cachoeiras, dez correntezas e três saltos (quedas com até 10 metros de altura). Se é verdade que, entre esses acidentes, existem diversos trechos nos quais as águas correm mansas, permitindo uma navegação tranquila (alguns deles com dezenas de quilômetros de extensão), de outra parte a tarefa de cruzar os três saltos e algumas das cachoeiras, utilizando-se embarcações maiores e carregadas de

ACIMA, EMBARCAÇÃO CRUZA UM VARADOURO. AO LADO, O RIO MADEIRA EM FOTO DE DANA MERRIL

NOS CERCA DE

400 QUILÔMETROS

EM DESCIDA, EXISTEM

20 ACIDENTES,

GENERICAMENTE

CHAMADOS DE

CACHOEIRAS

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mercadorias, era tarefa impossível, restando a opção de se contornar estes obstáculos por terra, através dos chamados varadouros.

Nestes locais, as embarcações eram ancoradas, e as cargas transporta-das via terrestre, até o ponto seguinte em que as águas voltavam a ser na-vegáveis. Em alguns trechos, as embarcações vazias, desde que conduzidas por remos habilidosos, conseguiam cruzar as águas revoltas. Acontece que nos saltos e em algumas das cachoeiras era preciso transportá-las também por terra, rolando-as sobre toros de madeira, chamados roletes. Calcule--se, portanto, o grau de dificuldade que caracteriza esta travessia, marcada por diversas paradas e, em boa parte do ano, realizada em meio às chuvas abundantes em território amazônico. Um outro tanto de complexidade deve ser adicionado à tarefa se o percurso for feito em sentido contrário, ou seja, subindo-se o Madeira a partir de Santo Antonio, onde fica a primeira cachoeira em território brasileiro, até alcançar Guajará-Mirim, último acidente geográfico do trecho, já nas águas do Mamoré. Por fim, tenha em mente que a região foi sempre altamente insalubre. É fácil chegar-se à conclusão de que subir o Madeira sempre foi uma epopeia.

Pois foi com o objetivo de tornar menos árdua e perigosa essa alter-nativa de ligação da Bolívia com o Oceano Atlântico que se pensou em construir, ali, uma ferrovia que margeasse o leito dos dois rios.

Foi o bandeirante Antônio Raposo Tavares o primeiro a conhecer todo o curso do rio Madeira, em 1650, quando desceu suas cachoeiras e chegou ao Amazonas. Entretanto, a façanha de vencer os obstáculos naturais no sentido contrário, e com o diferencial de contar com um auxiliar para registrar por escrito a viagem, coube ao sargento-mor Francisco de Melo

trilhos no inferno verde

ACIMA, DESCIDA DE UMA CACHOEIRA. AO LADO, A LOCALIZAÇÃO DOS OBSTÁCULOS

SUBIR OU DESCER O CURSO DO MADEIRA FOI

SEMPRE UM DESAFIO PARA OS VIAJANTES

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Palheta, que partiu de Belém em 11 de novembro de 1722 e chegou à confluência entre o Mamoré e o Guaporé/Itenez em 15 de agosto do ano seguinte. O trecho encachoeirado do Madeira foi percorrido por Palheta em 45 dias. Pouco tempo depois de concluída a façanha, o sargento-mor receberia outra importante missão, desta feita de caráter diplomático: a de viajar até a Guiana Francesa com o intuito de restabelecer com o governo local as fronteiras delimitadas pelo Tratado de Utrecht. As negociações tiveram resultados duvidosos, mas Palheta retornou da viagem com certa quantidade de sementes na bagagem, as quais teriam dado origem ao cultivo do café em terras brasileiras (para maiores detalhes sobre o ciclo do café, consultar Dos cafezais nasce um novo Brasil, volume 2 desta coleção).

O PRIMEIRO CICLOFoi somente em 1861 – quando o Brasil, a propósito, começava a

construir suas primeiras estradas de ferro, financiadas pela riqueza propor-cionada pelas crescentes exportações de café – que surgiram estudos sobre a possibilidade de estabelecer uma ligação ferroviária paralela ao curso do Madeira e do Mamoré, de forma a que se pudessem evitar seus muitos obstáculos. Não muito tempo depois, em 1867, Brasil e Bolívia assinariam o Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição, o qual, entre outros itens, previa a livre circulação dos bolivianos pelos rios navegáveis do Brasil (e vice-versa), facilitando-se, assim, o acesso do país vizinho ao Oceano Atlântico e ao mercado europeu. Assinados os papéis, quase simultaneamente ambos os países tomaram providências no sentido de efetivamente construir algum tipo de ligação no trecho.

Enquanto o Brasil contratou engenheiros para realizarem um estudo

trilhos no inferno verde

SOMENTE EM 1861

SURGIRAM OS

PRIMEIROS ESTUDOS

SOBRE UMA LIGAÇÃO

FERROVIÁRIA

PARALELA AO MADEIRA

E AO MAMORÉ

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sobre a possibilidade de uma ferrovia na região, a Bolívia negociou com o empresário e general norte-americano George Earl Church a concessão para organizar uma empresa de navegação que operaria no trecho Madeira--Mamoré, devendo, para tanto, canalizar suas cachoeiras. De pronto, ficou claro para Church que construir uma ferrovia seria bem mais viável do que apostar na navegação, e assim o contrato com os bolivianos foi modificado, tendo sido criada a Madeira & Mamoré Railway, que ficaria encarregada de administrar o projeto.

Como a ferrovia seria construída em território brasileiro, seria neces-sário solicitar às autoridades nacionais autorização para tocar em frente a empreitada. Uma vez fornecida a licença, sucederam-se idas e vindas envolvendo diferentes empreiteiras contratadas para dar conta da obra, todas elas resultando em retumbantes fracassos, sempre pelos mesmos motivos: as péssimas condições de trabalho em meio à floresta amazônica terminaram por afugentar duas empresas norte-americanas e uma inglesa, não sem antes terem sido contabilizadas centenas de baixas em seus qua-dros de funcionários, acometidos por febres e diversos outros males fatais. Mas Church não desistiu.

Em outubro de 1877, assinou novo contrato com uma emprei-teira, também norte-americana, a P&T Collins, cuja má sorte pa-receu estar selada logo de início, quando um dos quatro navios que zarparam para o Brasil com funcionários e equipamentos naufragou ainda nos Estados Unidos, matando por afogamento 80 dos mais de 200 passageiros. Sem conhecimentos detalhados das condições de trabalho às margens do Madeira, bastou pouco mais de um ano para

O PERSISTENTE

CORONEL CHURCH

ACREDITOU QUE A

P&T COLLINS DARIA

CONTA DA TAREFA

ACIMA E AO LADO, IMAGENS DOS CONSTANTES DESMORONAMENTOS DE TERRA

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que esta nova tentativa resultasse em mais uma frustração. Chuvas diárias, mosquitos, formigas vorazes, falta de alimentos, disenterias, malária, febres e ameaças constantes de ataques dos índios resultaram em centenas de mortes, em meio a um sem-número de deserções de homens desesperados com as condições selvagens para exercício do trabalho.

Ao mesmo tempo em que os donos da P&T Collins e o general Church tinham dificuldade em captar recursos na Europa para seguir financiando a empreitada, centenas de norte-americanos, italianos, irlandeses e mesmo brasileiros, cooptados no Ceará, perdiam a vida em meio àquele ambiente extremamente hostil. Calcula-se que o total de mortos, na época, tenha ficado entre 450 e 500. O próprio Philip Collins foi alvo dos índios, e por milagre sobreviveu a duas flechadas, uma das quais perfurou seu pulmão. No dia 19 de agosto de 1897, final-mente foi dada a ordem para que todos os cidadãos norte-americanos que ainda se encontravam no Brasil retornassem para seu país. Após 10 anos, fechava-se o primeiro ciclo de tentativas de construção da ferrovia, restando de tudo, além das mortes e da falência de vários empresários, apenas 7 quilômetros concluídos.

trilhos no inferno verde

MERRIL REGISTROU ENCONTRO DE EMPREITEIROS DA FERROVIA, EM 1909

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O DESAFIO PROSSEGUENo fatídico ano de 1897, a Bolívia envolveu-se em uma disputa com o

Chile, na qual foi derrotada e terminou por ver anexada pelo país vizinho justamente a faixa de seu território que garantia ligação com o Oceano Pacífico. Crescia de importância, portanto, a ideia de se buscar uma forma de se tornar menos complexa a saída de produtos bolivianos via rio Madeira e Amazonas, e depois pelo Atlântico. O Brasil, que seguia interessado comercialmente em franquear a livre circulação dos bolivianos no país, apostando no incremento da arrecadação pela cobrança de tarifas, decide assinar novo acordo com o país vizinho, firmado em 15 de maio de 1882. Com uma diferença: agora seria o Brasil quem estaria à frente do projeto.

Em janeiro de 1883, parte um vapor do Rio de Janeiro levando os integrantes da comissão Morsing, encarregada de verificar as condições locais e elaborar um novo plano. A chegada do grupo a Santo Antonio, depois de paradas e troca de embarcações em Belém e em Manaus, acon-teceu em 19 de março. No dia 9 de abril, portanto apenas 20 dias após o desembarque, 22 dos 60 integrantes da comissão já se encontravam ado-entados. No dia 11, em meio a torrenciais chuvas, o número subiu para 32, ou seja, mais de metade do grupo. A principal doença era a chamada

INTEGRANTES DA TROPA ARMADA AMERICANA QUE ZELAVA PELA SEGURANÇA DOS TRABALHADORES

APENAS 20 DIAS

APÓS A CHEGADA

A SANTO ANTONIO,

22 DOS 60 INTEGRANTES

DA COMISSÃO MORSING

JÁ SE ENCONTRAVAM

ADOENTADOS

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febre biliosa, muito comum na região do Madeira. Em 17 de maio, tendo falecido pouco antes o primeiro engenheiro da equipe, chamado Índio do Brasil, cai doente o chefe da missão, Carlos Alberto Morsing, que termina por ser removido para o Rio de Janeiro, a fim de buscar melhores condições para seu tratamento de saúde e, simultaneamente, relatar ao governo as dificuldades da empreitada.

Em 8 de agosto, todos os integrantes da comissão que haviam permane-cido em Santo Antônio encontravam-se doentes, e o então o engenheiro--chefe em exercício, Júlio Pinkas, decide pelo encerramento dos trabalhos, ordenando a retirada da equipe para Manaus. Contabilizaram-se, na oportunidade, as mortes de três engenheiros e de dezenas de trabalhadores.

Recuperado, Morsing retornaria a Santo Antônio, assim como Pinkas, que recebeu autorização para apresentar um novo projeto para a ferrovia. Iniciava-se, então, uma longa disputa e trocas de acusações e críticas entre os dois engenheiros, tendo como motivação definir qual plano era o mais viável. Acalorados debates sobre custos e o melhor trajeto da ferrovia se estenderiam até quase o final do século XIX, sem que o governo brasileiro adotasse uma posição.

Então veio a proclamação da República, e com ela, nova guinada: como o governo republicano buscava diferenciar-se ao máximo das políti-cas do Império, em 1891 foi autorizada nova concessão para a construção da ferrovia, com um detalhe fundamental: o projeto deveria prever o ponto inicial da ferrovia quase 200 km abaixo de Santo Antônio, tendo como ponto final a confluência dos rios Mamoré e Guaporé, 200 km acima de Guajará-Mirim. Em lugar dos estimados 362 km dos projetos até então desenvolvidos, a ferrovia alcançaria cerca de 800 km de extensão. For-malizado o contrato, em 30 de maio de 1891, nova frustração: passados 24 meses, os concessionários não conseguiram dar início aos trabalhos, e assim o prazo de concessão melancolicamente caducou, sem que um só dormente tivesse sido assentado.

NOVO TRATADO, ESPERANÇAS RENOVADASComo já mencionado anteriormente, pelo Tratado de Petrópolis,

assinado em 17 novembro de 1903, o Brasil ganhava o direito de anexar o território do Acre, mas o governo brasileiro (novamente) se compro-metia a construir, em quatro anos, uma ferrovia ligando Santo Antônio a Guajará-Mirim. O documento foi aprovado pelo Congresso Nacional em janeiro de 1904, e somente em 12 de maio de 1905 foram publicados os termos da concorrência visando à contratação de uma empresa particular para realizar a obra.

Neste mesmo ano, começa a ser conhecida no Rio de Janeiro a figura de Percival Farquhar, empresário norte-americano nascido na Pensilvânia e com vários projetos bem-sucedidos nos Estados Unidos e na América Cen-tral. Por essa época, Farquhar havia conhecido em Londres o empresário brasileiro Joaquim Catrambi, empreendedor de estradas de ferro cuja fama

trilhos no inferno verde

AO LADO, HENRY F. DOSE, ENGENHEIRO DA ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ

EM 1905,

PERCIVAL FARQUHAR

APROXIMA-SE

DO BRASILEIRO

JOAQUIM CATRAMBI

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trilhos no inferno verde

HOMENS ARRASTAM UM BATELÃO COM MATERIAL DE CONSTRUÇÃO

DEPOIS DE APENAS TRÊS MESES DE TRABALHO,

QUASE TODOS OS TRABALHADORES CAÍAM DOENTES

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não era caracterizada exatamente pela honestidade na condução de seus negócios, bem ao contrário. Entusiasmado com as perspectivas de lucros em negócios na região do Madeira, que lhe foram insistentemente enfatizadas por um certo engenheiro A. Moreira, Farquhar aliou-se a Catrambi. Não apenas comprou-lhe antecipadamente a concessão da estrada de ferro que ainda estava por ser licitada, como também auxiliou-o na formatação de uma proposta com valores bastante reduzidos. Catrambi de fato venceu a concorrência, enquanto em paralelo Farquhar constituía a construtora May, Jekill & Randolph. Tal era a convicção no sucesso da parceria que a empresa iniciou suas atividades na Amazônia em junho de 1907, oito meses antes de formalmente adquirir de Catrambi os direitos sobre a concessão. Curioso registrar que Farquhar jamais pisou na Amazônia em todo o período em que esteve à frente do empreendimento.

Em 2 de agosto de 1907 foi fundada a Madeira-Mamoré Railway Company, que pouco tempo depois compraria os direitos de construção da ferrovia, ato que foi reconhecido pelo governo brasileiro apenas em janeiro de 1908. A companhia seria também, uma vez concluídas as obras, a concessionária dos serviços, já que, formalmente, a ferrovia era propriedade do governo brasileiro.

De acordo com estatísticas da própria Madeira-Mamoré, ainda em 1908 foram registrados 65 óbitos entre os trabalhadores. O número de empregados foi aumentando no decorrer do ano. Eram 291 em janeiro, 374 em fevereiro, até chegar a 1.200 em julho, recuando para em torno de 900 até dezembro, quando somavam 1.800 pessoas. É interessante ressaltar que, ao longo do ano, a empresa teve que importar cerca de 2.450 homens para o trabalho, tal era o índice de abandonos, de invalidados ou mortos. Nem é para menos. Por mais fortes e dedicados que fossem, os trabalha-dores em média trabalhavam por três meses, e então caíam adoentados, raramente conseguindo se recuperar de forma a retomar suas atividades. A questão da mão-de-obra, portanto, era das mais complexas de serem administradas pelos construtores da ferrovia. Ademais, os seringueiros do vale do Amazonas viviam seu melhor período de ganhos, e dificilmente aceitavam as propostas para trabalharem na ferrovia. Restava aos empre-endedores buscar força de trabalho na América Central e Caribe.

As notícias sobre as péssimas condições eram tão impressionantes que nem mesmo trabalhadores espanhóis que haviam trabalhado na construção de uma ferrovia em Cuba, concluída em janeiro de 1908, aceitaram traba-lhar na empreitada brasileira. Dos 350 trabalhadores que embarcaram no vapor Amanda, no porto de Santiago de Cuba, com destino a Porto Velho, apenas 65 chegaram ao seu destino. Os demais, durante uma parada no porto de Belém, no Pará, ouviram relatos de tal forma aterrorizantes que se recusaram a prosseguir viagem. Explica-se, assim, por que em seis anos, entre 1907 e 1912, foram “importados” nada menos que 21.783 homens para trabalhar na construção da ferrovia.

E como era a Santo Antonio da época? O povoado, bastante fre-quentado por produtores de borracha, tinha cerca de 300 habitantes, dos quais a quase totalidade era composta de índios bolivianos, encarregados de transportar as cargas das canoas e batelões para um depósito, e daí

DE 350 ESPANHÓIS

CONTRATADOS EM

CUBA, NADA MENOS

QUE 285 DESISTIRAM

AO OUVIREM, EM

BELÉM, RELATOS

SOBRE AS CONDIÇÕES

DE TRABALHO

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para os vapores procedentes de Belém, e vice-versa. Havia três ou quatro armazéns cobertos com chapas metálicas corrugadas, provavelmente deixados ali no século passado. Havia ainda algumas tiendas e cantinas. Choças de bambu nativo e folhas de palmeiras, habitações dos índios bolivianos, completavam a vila. A ferrovia, entretanto, seria iniciada oito quilômetros abaixo de Santo Antonio, em Porto Velho (que anteriormente era conhecida como Ponto Velho).

Com o início das obras de construção da ferrovia, Santo Antonio se transformou em uma babel de estrangeiros. Em quantidade, destacavam-se trabalhadores vindos da Espanha, de Trinidad, Barbados, Jamaica, Panamá e Colômbia, mas havia também europeus e asiáticos, como gregos, italianos, franceses, hindus, húngaros, poloneses, dinamarqueses etc. O espanhol Benigno Cortizo Bouzas publicou um livro em 1950 narrando suas aventu-ras durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, chamado Do Amazonas ao Infinito. Antes de trabalhar na construção da ferrovia, Bouzas empregou-se em um hotel. Acompanhe alguns trechos do relato:

“A ideia que eu fazia do Amazonas, como um dos maiores do mundo, era a de que ele seria maravilhoso, pois o que eu conhecia de um rio era ele precipitando-se por cachoeiras, com arvoredo florido nas margens e relva, mas agora era coisa diferente: a água era cor de barro, a floresta era espessa e rente às margens, nem uma só flor e, em lugar de relva, lodo e mais lodo. Enfim, uma paisagem violentamente triste. (...) Dos três com-panheiros, dois morreram de malária 15 dias após chegarmos ali; o terceiro, apavorado, embarcou como passageiro clandestino para Manaus, mas o infeliz morreu a bordo. (...) As febres também me acometeram fortemen-te; fiquei sem cabelos, pálido e extremamente débil, mas sempre pude trabalhar. De manhã, tremia duas horas devido à febre intermitente, e o resto do tempo tinha que fazer o que era possível. (...) A clientela do hotel (devo esclarecer que o hotel não era nada do que geralmente se entende por tal: os dormitórios eram ganchos nas colunas e paredes, os hóspedes

trilhos no inferno verde

EUROPEUS PREPARAM SUA COMIDA EM RANCHO DE FOLHAS DE PALMEIRAS

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UMA DAS ETAPAS DA CONSTRUÇÃO DA FERROVIA

O ESPANHOL BOUZAS RELATOU QUE FOI ACOMETIDO POR FEBRES,

TENDO PERDIDO OS CABELOS E FICADO MUITO DEBILITADO

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trilhos no inferno verde

TÉCNICOS DA ESTRADA DE FERRO E O LENDÁRIO FOTÓGRAFO DANA MERRIL, À DIREITA

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amarravam as suas redes naqueles ganchos, e quem não tinha rede dormia no chão) era composta de gente de todas as partes do mundo. Além dos seringalistas e seringueiros, em sua quase totalidade brasileiros, bolivianos e peruanos, a companhia norte-americana levou para lá trabalhadores de todas as partes. Os que não trabalhavam ficavam à espreita, aguardando o dia de pagamento nas empresas, e por meio do jogo e trapaças, tiravam--lhes o dinheiro. Isto ocasionava confusões e brigas, com os conseguintes resultados de roubos e assassinatos. Também as confusões por causa de mulheres davam um forte contingente à desordem e à anarquia. A pro-miscuidade sexual era um hábito frequentíssimo. As poucas mulheres que existiam eram provenientes dos prostíbulos de Manaus.”

Atraído pelo salário – 150 mil réis, contra os 60 mil que ganhava no hotel –, Bouzas aceitou trabalhar nas obras, como ajudante de médico:

“Nos acampamentos, passava-se mais ou menos bem. Conservas da Califórnia não faltavam, bacalhau, carne seca e havia também toicinho. Todo acampamento tinha um caçador profissional, de maneira que quase todos os dias havia porcos-do-mato, veado ou cotia frescos. Os rios e lagoas também forneciam abundante pescado, algum de excelente qualidade. (...) A vida era dura, mas o pior de tudo eram as doenças. A malária e sua consequência, a avitaminose, deixavam os organismos expostos à primeira investida de um simples catarro. As baixas eram alarmantes. Eu tinha grandes desejos de ver montanhas, o mar. A monotonia da paisagem era enervante: desde Porto Velho até Guajará-Mirim, a paisagem não tinha variações: selva e mais selva de um verde-escuro e sem flores; rios e mais rios de águas turvas, tributários do Madeira; lagoas e lodaçais sem fim. Os mosquitos eram outro castigo terrível: de dia, o pium, o borrachudo e o maruim, e de noite, o carapanã, o mais perigoso, porque transmite o impaludismo.”

O dr H.P. Belt, que atuou como médico chefe na região, na mesma época, foi enfático: “Tenho praticado continuamente por 16 anos nos países tropicais, e sem hesitar desejo mostrar que a região a ser atraves-sada pela Madeira-Mamoré Railway é a mais doentia do mundo. (...) A nenhum homem branco deve ser permitido ficar no trabalho, con-tinuamente, por mais de nove meses, mesmo no caso que ele o queira e aparentemente se mostre capaz de suportar”. Não é de surpreender, portanto, que as 65 mortes de 1908 tenham pulado para 428 em 1909, ainda que seja preciso considerar que a média mensal de trabalhadores empregados naquele ano tenha sido de 2.200.

A respeito dos trabalhos realizados em 1909, um relato apresentado ao presidente da República dá conta do quadro de dificuldades para a construção da ferrovia:

“O mau estado sanitário de toda a zona, fazendo baixar ao hos-pital um número considerável de operários; a grande vazante do rio Madeira, dificultando sobremaneira o transporte dos materiais vindos do estrangeiro e descarregados em Itacoatiara; a má qualidade das terras em geral, demorando extraordinariamente a solidez dos aterros, principalmente na estação chuvosa e, consequentemente, a pouca segurança da linha assentada, motivando continuadas interrupções

AS 65 MORTES

REGISTRADAS

EM 1908 PULARAM

PARA 428 EM 1909

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nas viagens dos trens de mercadorias, de materiais e lastro, foram as causas principais da irregularidade do serviço de construção. Embora a companhia tivesse conseguido por em trabalho, no meado do ano, cerca de 4 mil operários, o serviço por eles executado foi relativamente insignificante, não correspondendo às grandes despesas efetuadas para transportá-los até Porto Velho, porque, para tanto, houve ne-cessidade de ser mantida uma corrente ininterrupta de gente que subia contratada, a fim de ser compensada a deserção cada vez mais acentuada pelo ermo da mata, que descia incessantemente em busca de outras paragens, onde a saúde tivesse a garantia e melhor aplicação dos lucros auferidos em poucos meses de trabalho.(...) A linha, que deveria chegar em setembro ao Jaciparaná, a 86 quilômetros do ponto inicial (Santo Antonio), só o atingirá talvez em fins de fevereiro do corrente ano (1910), pelos motivos já expostos e também pela falta de dormentes (...).”

O grande médico e sanitarista brasileiro, Oswaldo Cruz, que visitou a região na época, ficou tão impressionado com o que viu que chegou a dizer que a população local não tinha noção do que fosse o estado

trilhos no inferno verde

CONSTRUÇÃO DE PONTE SOBRE O RIO JACIPARANÁ

EM 30 DE ABRIL FOI

ASSENTADO O ÚLTIMO

DORMENTE, E EM

1º DE AGOSTO DE

1912 A FERROVIA FOI

INAUGURADA

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hígido, pois ali a condição de ser enfermo constituía a normalidade. Registrou Oswaldo Cruz: “De janeiro a junho de 1910 trabalharam em média 2.588 operários por mês. Baixaram ao hospital por acessos de impaludismo 1.736. Nos acampamentos, foram conhecidos 592 trabalhadores que interromperam o trabalho diariamente por causa dos acessos. Houve, pois, 2.328 casos conhecidos de manifestações agudas de malária em 2.588 operários!”

Apesar de tudo, o primeiro trecho da Estrada de Ferro Madeira--Mamoré, entre Santo Antonio e Jaciparaná, em uma extensão de 90 quilômetros, foi inaugurado em 31 de maio de 1910, com toda a pompa e circunstância. O segundo trecho, em uma extensão de 62 quilômetros, ou seja, até o km 152, à altura da cachoeira dos Três Irmãos, foi inaugurado em 30 de outubro de 1910. Em 1911, no dia 7 de setembro, foi inaugurado novo trecho, até o km 220. Por fim, em 30 de abril de 1912, assentava-se o último dormente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, no ponto final, em Guajará-Mirim. No dia 1º de agosto desse mesmo ano, realizava-se a inauguração do último trecho. Finalmente, depois de 190 anos em que o homem subira e descera

TRABALHADORES OPERAM UM BRITADOR DE PEDRAS

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aquela seção encachoeirada dos rios, em que milhares de vítimas foram contabilizadas em razão de um sem-número de naufrágios, doenças e ataques de índios, finalmente o progresso e a técnica haviam vencido.

A HISTÓRIA RECENTEDurante a Segunda Guerra Mundial, a Estrada de Ferro Madeira-

-Mamoré voltaria a ter grande valor estratégico para o Brasil, operando plenamente para suprir o transporte de borracha, utilizada no esforço de guerra aliado (ver capítulo seguinte). Em 1957, quando ainda regis-trava um intenso tráfego de passageiros e cargas, a ferrovia integrava as 18 empresas constituintes da Rede Ferroviária Federal.

Em 25 de maio de 1966, depois de 54 anos de atividades, a ferrovia foi desativada. A fim de que não se configurasse rompimento e descum-primento do acordo celebrado em Petrópolis, em 1903, com a Bolívia, foi necessário substituí-la por uma rodovia, o que materializou-se nas atuais BR-425 e BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Em 10 de julho de 1972, as máquinas apitaram pela última vez.

A partir de então, o abandono foi total, e em 1979 o acervo da rodovia começou a ser vendido como sucata para a siderúrgica de Mogi das Cruzes, em São Paulo. Somente em 1981 a ferrovia voltaria a operar, em um trecho de apenas sete quilômetros dos 366 do percurso original, apenas para fins turísticos, sendo novamente paralisada por completo em 2000.

Depois de muita movimentação no sentido de que sua história fosse valorizada, em novembro de 2005 a ferrovia foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em novembro

trilhos no inferno verde

CORREIOS

LANÇARAM EM 2012

SELO E CARIMBO

COMEMORATIVOS

AO CENTENÁRIO

DA FERROVIA

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de 2011, foi autorizado o início das obras de restauração da grande ofi-cina da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que possui 5.700 m2 e 13 metros de altura. O trabalho de revitalização será pago pelas compen-sações dos impactos causados pela construção das usinas hidroelétricas de Santo Antônio e Jirau, que integram o chamado Complexo do Rio Madeira. O projeto prevê também a retomada do funcionamento das locomotivas, como trem turístico, no trecho entre a Estação de Porto Velho e a de Santo Antônio, com aproximadamente 8 quilômetros. Em fevereiro de 2012, foi instalado o Comitê Pró-Candidatura da EFMM a Patrimônio Mundial da Unesco. E em 1º de agosto, quando se comple-taram exatos 100 anos de inauguração da ferrovia, os Correios lançaram o selo personalizado e carimbo comemorativo alusivos ao centenário.

LOCOMOTIVA NORTE-AMERICANA BALDWIN FOI UMA DAS ESTRELAS DA FERROVIA. AO LADO, IMAGEM DOS TRILHOS

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floresta

frustação eabandonoem meio à

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A crise da borracha brasileira iniciou-se por volta de 1910, o que pode ser comprovado pela força dos números. Em 1900, o Brasil havia produzido em torno de 27 mil toneladas de bor-racha, número que em 1919 subiu para 34 mil toneladas. Já na Ásia, o salto foi incrivelmente mais alto. De 3 mil toneladas no primeiro ano do século XX, a produção pulou para mais de 381 mil toneladas em 1919, em grande parte absorvida pela indústria automobilística norte--americana.

E no que diz respeito a esta indústria, a palavra automóvel, na-quele momento histórico, era sinônimo de Henry Ford. Idealizador da revolucionária linha de montagem que reinventou o capitalismo, Ford planejou controlar toda a cadeia de produção. Nos EUA, era dono de minas de ferro e carvão, matéria-prima que abastecia as metalúrgicas

frustração e abandono em meio à floresta

FUNCIONÁRIO AO LADO DE

SERINGUEIRA COM UM ANO

A TERRA SENDO PREPARADA PARA RECEBER AS SEMENTES DA HEVEA BRASILIENSIS

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que forjavam as peças automotivas. Não é de se estranhar que ele quisesse produzir também o principal insumo para seus pneus e todas as partes emborrachadas de seus carros.

Como se sabe, a história do controle inglês e holandês sobre a produção de borracha no mundo se iniciou com o contrabando de sementes da hevea brasiliensis feito por Henry Wickham em 1876, com a consequente aclimatação das plantas no Kew Garden, em Londres, e sua posterior adaptação no Ceilão, possessão britânica, e em Java, terri-tório holandês. Graças ao manejo do cultivo da hevea, em substituição ao modelo extrativista em meio à selva amazônica, foi possível aumen-tar a produção de tal forma que as 512 libras a tonelada de borracha brasileira caíram para 100 libras a borracha asiática. Se conseguisse reproduzir experiência semelhante na Amazônia, Ford teria um custo ainda mais baixo, e com a vantagem de utilizar a matéria-prima para abastecer seus próprios empreendimentos automobilísticos.

Por volta de 1927, iniciou as negociações com o governo brasileiro e, no início dos anos 1930 conseguiu a concessão de terras na região de Tapajós, ao sul de Santarém, no Pará, onde construiu a infraestrutura de um pequeno núcleo urbano que ficaria conhecido como Fordlândia. A área tinha cerca de 1 milhão de hectares.

FORD CONSEGUIU A

CONCESSÃO DE UMA

ÁREA COM CERCA DE

1 MILHÃO DE HECTARES

DIA DE PAGAMENTO EM FORDLÂNDIA: SALÁRIOS ACIMA DA MÉDIA PAGA PELOS CORONEIS DA REGIÃO

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frustração e abandono em meio à floresta

EM BELTERRA,

A SEGUNDA

FORDLÂNDIA, AINDA

HÁ MARCAS DA

PASSAGEM DOS

NORTE-AMERICANOS

NASCIMENTO E MORTE DA FORDLÂNDIAUm grande capital – no total, algo em torno de 20 milhões de dó-

lares, segundo alguns registros, ou pelo menos 12 milhões de dólares, de acordo com outras estimativas – seria investido no lugar até 1945. O aporte viabilizaria, além dos custos de manutenção e aquisição de sementes, também toda a infraestrutura, da qual fazia parte uma grande serraria, naquele tempo a maior de toda a América do Sul, de forma a se poder aproveitar a madeira proveniente das árvores que seriam derrubadas para o plantio das seringueiras.

Os cerca de 3 mil caboclos que seriam empregados pela Compa-nhia Ford Industrial do Brasil moravam em casas de madeira com até três quartos e água encanada. Contavam com um grande hospital, escola, piscina e salão de baile com telão para exibição de filmes. Recebiam pagamento muitas vezes superior ao que os coronéis da região costumavam pagar. Até um campo de golfe foi construído para o lazer dos executivos da Ford que estivessem na localidade. O cenário parecia perfeito.

Ford chegou a se entusiasmar quando, depois de dois anos, por volta de 1933, as cerca de 1 milhão de mudas plantadas começaram a crescer, mostrando-se aparentemente robustas e saudáveis. Mas ainda em 1932 o que para muitos era apenas uma questão de tempo aconteceu: o fungo Dothidella ulei começou a tomar conta das árvo-res plantadas em Fordlândia. Era o mal-das-folhas, que devastava as seringueiras e prejudicava a produção. Lenta e gradualmente, o sonho plantado em Fordlândia ia sendo literalmente dizimado.

Quatro anos depois, em 1935, Ford fez nova tentativa. Por sugestão de um técnico norte-americano chamado James R. Weir, trocou parte das terras de Fordlândia por outras, com algo em tor-no de 250 mil hectares de extensão, mas na outra margem do rio, agora mais próximas da foz do rio Tapajós, na localidade chamada de Belterra. Outros tantos milhares de dólares foram investidos, e apesar de todos os cuidados e aplicação de modernas tecnologias, como enxertos, mais uma vez a plantação seria devastada pelo mal--das-folhas. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Ford decidiu vender suas propriedades no Brasil por 250 mil dólares, valor suficiente para quitar seus compromissos trabalhistas de acordo com a legislação brasileira de então. A produção daquele ano não havia ultrapassado 115 toneladas, cerca de 2% do que poderia se esperar das 3,2 milhões de seringueiras que, de uma forma ou outra, haviam sobrevivido ao mal-das-folhas.

Da primeira Fordlândia, pouco restou. Em Belterra, que durante muito tempo pertenceu ao município de Aveiro, ainda há construções que testemunham a passagem dos norte-americanos pelo lugar. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) abriu processo para avaliar o possível tombamento do local. As discussões mais recentes dão conta da pertinência da construção ou não de uma creche no lugar, obra que já foi autorizada pelo Iphan.

99

SALÃO DE BAILE E CINEMA (ALTO), PISCINA (ACIMA) E CASAS DE MADEIRA EM FORDLÂNDIA (ABAIXO)

100

frustração e abandono em meio à floresta

CARTAZ DE JEAN PIERRE CHABLOZ QUE COMBINA DESENHO E COLAGEM

OS SOLDADOS DA BORRACHAPara fixar o trabalhador rural nos sertões de Goiás e de Mato

Grosso, o governo de Getúlio Vargas concebeu, nos anos 1930, em pa-ralelo a sua política de industrialização e substituição da mão-de-obra imigrante pela nacional (ver capítulo 6), um plano amplo chamado de “Marcha para o Oeste”, que logo se estendeu para a Amazônia. As secas no Nordeste eram a justificativa moral para oferecer essa opção àqueles que decidissem migrar. A conjuntura internacional, entretan-to, abalada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, colocou por terra o que se pretendia ser um plano de interiorização e colonização.

Acordos assinados em 1942 em Washington condicionaram a política externa brasileira. O controle japonês do abastecimento da borracha colocou aos países aliados o desafio de conseguir rapidamente um fornecedor daquele insumo, sobretudo para a indústria bélica. A Ásia, que poucos anos antes havia derrubado a cotação do valor da borracha, colocando por terra o ciclo que se desenvolvia no Brasil, estava agora amarrada pelos países do Eixo. O governo brasileiro, então, decidiu que a melhor forma de fornecer mão-de-obra barata para os seringalistas poderem produzir mais borracha em menos tempo na região amazônica era direcionar para lá a migração de nordestinos

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NA PRIMEIRA GUERRA,

CADA SOLDADO

CONSUMIA 16 QUILOS

DE BORRACHA. NA

SEGUNDA, ERAM 98

CAMINHÃO DO SEMTA PARTE PARA O AMAZONAS, EM 1943

– exatamente como havia ocorrido no final do século XIX. A seca de 1942, não tão intensa quanto a ocorrida entre 1897-99, em tese tornava a tarefa de convencimento menos árdua.

É importante destacar que os Estados Unidos há algum tempo se dedicavam a pesquisar dois diferentes modelos de produção da borracha: a chamada heveicultura, ou seja, o cultivo sistemático e racional de plantas resistentes e de alta produtividade (conceito que havia susten-tado o projeto de Henry Ford, inclusive) e a borracha sintética. Uma terceira opção, baseada no extrativismo, surgiu como decorrência de uma circunstância específica. A prática viria a confirmar que, de fato, este modelo de produção apresentava resultados mais do que modestos. A saber: entre 1943 e 1946, o Brasil viria a exportar 42,8 mil toneladas de borracha, quantidade insignificante diante do consumo dos Estados Unidos apenas no ano de 1943: foram 332,7 mil toneladas de borracha vegetal, 173,6 mil toneladas de borracha sintética e 162,7 mil de borracha regenerada. Mas o conflito bélico na Europa não deixava dúvidas quanto à necessidade de se encontrar um modelo que substituísse a produção asiática, ainda que parcialmente. Ademais, durante a Primeira Guerra Mundial, cada combatente utilizava no serviço militar 16 quilos de bor-racha. Na Segunda Guerra, essa quantidade aumentou para 98 quilos.

102

frustração e abandono em meio à floresta

De que forma o governo brasileiro procurou organizar aquele novo movimento migratório em massa? Criou-se de imediato o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para o Amazonas (Semta) e, em paralelo, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que tinha como objetivo sanear a Amazônia e a região do Vale do Rio Doce, onde se produzia borracha e minério de ferro, ambas matérias-primas chave no esforço de guerra norte-americano. Já a Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico (Sava) se encarregaria de efetivamente internalizar os trabalhadores, a partir de sua chegada a Belém. De início, o governo chegou a conceder 4 mil passagens no Lloyd Brasileiro e na Amazon River, na tentativa de atrair para a Amazônia o maior número possível de trabalhadores.

QUEM FISCALIZA?Para dar aparência de que haveria um efetivo monitoramento das

relações de trabalho, criou-se um modelo de contrato em que, de um lado, o próprio governo assumia determinados compromissos, no senti-do de garantir algumas condições para que os trabalhadores chegassem até os seringais; de outra parte, os seringalistas se comprometiam com garantias na relação de trabalho. Uma das principais preocupações do governo era com os preços dos gêneros fornecidos aos trabalhadores, pois sabia-se que este havia sido o calcanhar de Aquiles das relações desiguais nos seringais desde o século XIX.

UMA DAS PREOCUPAÇÕES DO GOVERNO ERA

COM O ENDIVIDAMENTO DOS TRABALHADORES

GETÚLIO VARGAS ESTEVE EM BELTERRA EM 1941, DURANTE A CAMPANHA

103

O ENXOLVAL DE UM SERINGUEIRO QUE ERA ENVIADO PARA A AMAZÔNIA

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Para evitar problemas com o endividamento irreversível dos se-ringueiros, Vargas determinou que os pagamentos dos trabalhadores deveriam ser feitos semanal ou quinzenalmente, não podendo ser realizados mediante a emissão de vales. Os proprietários das terras receberiam as quantias que os trabalhadores porventura quisessem depositar, sem cobrar juros por isso, estando obrigados a entregá-las quando solicitadas, escriturando as operações em cadernetas. Outro ponto estabelecia que os trabalhadores poderiam comprar gêneros alimentícios e utilidades onde lhes aprouvesse, e não apenas do tra-dicional aviador, que tinha exclusividade sobre determinadas áreas.

Ainda de acordo com o contrato, o seringalista se obrigava a en-tregar ao seringueiro peças de roupa e medicamentos de uso comum, utensílios e ferramentas necessários ao serviço e à extração de látex, inclusive arma e munição de caça, bem como as estradas arrendadas em condições que permitissem sua exploração imediata. Estrada era o nome dado a um grupo de 100 a 150 seringueiras que um homem talhava. Cada estrada era percorrida duas vezes ao dia: na ida, o se-ringueiro abria cortes na árvore e colocava o recipiente em que cairia o látex; na volta, recolhia o produto depositado nestes recipientes.

De sua parte, o seringueiro se comprometia a trabalhar seis dias por

frustração e abandono em meio à floresta

CHABLOZ (AO CENTRO) NA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA JOÃO FELIPE, DECORADA COM CARTAZES DA CAMPANHA

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semana, mesmo no período de entressafra. Toda a borracha produzida deveria ser entregue ao seringalista. Da borracha produzida pelo serin-gueiro, lhe seriam creditados no mínimo 60% sobre o preço oficial que vigorava nas praças de Manaus e Belém. O seringueiro também teria direito aos animais abatidos e poderia cultivar um hectare de terra, livre de qualquer ônus. Havia “apenas” um problema: quem faria a fiscalização do cumprimento de todas essas regras, em meio a um ambiente natural dos mais hostis? Ninguém.

ABANDONO QUE PERSISTEEm novembro de 2006, o jornal The New York Times publicou re-

portagem assinada pelo jornalista Larry Rohter intitulada “Há muito negligenciados, os ‘soldados da borracha’ do Brasil buscam recompensa”. Um dos personagens entrevistados por Rohter foi Alcidino dos Santos. “Em certa manhã de 1942, Alcidino estava a caminho do mercado para comprar legumes para sua mãe, quando foi parado por um oficial do exército, que lhe disse que estava sendo convocado como ‘soldado da borracha’. Homens eram necessários na Amazônia, a 4.800 quilômetros de distância, para extrair borracha para o esforço de guerra aliado, lhe foi dito, e que era seu dever patriótico servir”, escreveu Rohter.

DESENHO QUE CONSTAVA DA CARTILHA COM ORIENTAÇÕES SOBRE COMO COLETAR O LÁTEX

CUMPRIMENTO

DAS REGRAS DOS

CONTRATOS JAMAIS

FOI FISCALIZADO

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Alcidino, na época um auxiliar de pedreiro de 19 anos, protestou que sua mãe era viúva e dependia dele, mas sem sucesso. Ele receberia um salário de 50 centavos por dia, segundo lembra de lhe terem dito, além de transporte gratuito para casa assim que o conflito terminasse. Mas tinha que partir naquele mesmo dia. “Nós fomos enganados e depois abandonados e esquecidos”, disse Alcidino, que nunca mais viu sua mãe e na época da reportagem morava em uma casa simples de madeira no Acre, Estado que conta com a maior concentração de antigos soldados da borracha. “Nós fomos trazidos aqui contra nossa vontade e jogados na selva, onde sofremos terrivelmente. Eu estou perto do fim da minha vida, mas meu país deveria me tratar bem”, disse Alcidino à reportagem.

AS CORES E OS TONS DE UMA FARSAO pintor suíço Jean Pierrre Chabloz, que emigrou para o Rio de

Janeiro em 1940, foi um dos principais encarregados de criar as peças da propaganda oficial realizada pelo Semta. Chabloz produziu folhe-tos, cartilha, cartazes, cartazetes, caracterizou os caminhões em que os soldados eram transportados e fez os braceletes de identificação que levavam os trabalhadores. Trabalhou principalmente com duas técnicas: desenho e colagem com fotografias.

Para ilustrar a ideia do Estado Novo, de que a corrente migratória do desenvolvimento deveria ser no sentido do litoral para o interior, Chabloz desenhou um mapa do Brasil no qual podia-se observar os soldados no litoral, fazendo a defesa da fronteira, e, no interior amazô-nico, os seringueiros extraindo látex das árvores, tudo acompanhado do slogan “Cada um no seu lugar!”.

Outra peça emblemática de Chabloz é um cartaz em que a figura de um caboclo observa, passivamente, a alegre partida de um grupo de traba-lhadores para a Amazônia. O texto é uma espécie de convocação também para aquele que fica: “Vai também para a Amazônia protegido pelo Semta”.

Em outro cartaz, a exploração de borracha aparece como uma atividade de “fundo de quintal”. Toda a cena é idílica e indica far-tura: casas, lenha, porcos, galinhas, boi e, para completar o quadro, uma criança brincando e uma mulher pendurando roupas brancas no varal. Até mesmo a densa floresta amazônica não é tão fechada e deixa passar alguns raios de sol. A casa está cercada, e o homem está tirando látex de uma seringa vizinha ao cercado. Chabloz desenhou, ainda, uma peça mostrando o enxoval que cada trabalhador recebia: uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca, um prato fundo, um talher (que era colher e garfo ao mesmo tempo), uma rede e um saco de estopa. Outra ilustração mostra os instrumentos de trabalho e o procedimento para transformar o látex em borracha.

As peças tentavam, ainda, passar a ideia de que a migração seria um percurso entre dois pontos: um seco, de formações vegetais tor-

frustração e abandono em meio à floresta

CAPA DE RELATÓRIO (ACIMA)

E CARTAZ EM LITOGRAVURA,

DE 1943 (AO LADO)

CENÁRIOS

DESENHADOS POR

CHABLOZ MOSTRAVAM

UM CENÁRIO IDÍLICO

E FANTASIOSO

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108

109

tuosas e com espinhos, e outro verde e frondoso. Se a sequidade é a pobreza, a umidade é a riqueza.

Quase todos os milhares de trabalhadores nordestinos recrutados desde inícios de 1943 para trabalhar na região amazônica assinaram um contrato de encaminhamento no qual optavam pela assistência do Semta para suas famílias que ficaram no Nordeste. Muitas mulheres e filhos de trabalhadores permaneceram em seus lugares de origem ou reunidas em hospedarias improvisadas, esperando o momento para, também elas, fazerem a viagem que as levaria ao encontro de seus maridos. Outras aguardariam ali o retorno dos homens, após os dois anos previstos de permanência no seringal. Um grande número de mulheres e crianças ficaram no núcleo Parangabussu, casualmente dirigido por Regina Frota, mulher de Jean Pierre Chabloz.

O abandono das famílias chegou a tal ponto que um grupo de mulheres reunidas em Crato (Ceará) escreveu ao presidente da Re-pública reclamando que a assistência havia sido cortada, e que em seu lugar eram oferecidas passagens para o Amazonas. Lá, supostamente encontrariam com seus maridos, a respeito dos quais, entretanto, não sabiam se estavam vivos, muito menos seu domicílio, caso por lá tivessem permanecido. De fato, não se sabia se o trabalhador tinha abandonado o trabalho no seringal, pois a Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (Caeta) desconhecia o paradeiro dos migrantes. Presumia-se que muitos, ao chegarem ao Amazonas, desviavam-se para outro setor, mas não se sabia com quais deles isso teria acontecido.

Como refere María Verónica Secreto, os abusos nos seringais eram internacionalmente conhecidos. O escritor português Ferreira de Castro foi o autor de um dos romances em língua portuguesa mais traduzido em todo o mundo. A Selva, de 1930, é baseado em sua experiência de vida. Emigrado para o Amazonas com apenas 13 anos, por volta de 1911, durante quatro anos Castro trabalhou como caixeiro de arma-zém no Seringal Paraíso (onde hoje funciona um museu). Ali, sofreu e sensibilizou-se com o sofrimento dos seringueiros cearenses e paraenses.

Quem também retratou as mazelas da extração do látex na Amazônia foi Roger Casement, cônsul britânico no Rio de Janeiro em 1910. Case-ment foi designado para investigar a situação da exploração da borracha às margens do Putumaio, um rio com 1,5 km de extensão que nasce na Colômbia, marca a fronteira deste país com o Peru e que quando entra no Brasil, na região de Puerto Assis, recebe o nome de Içá. Em 1902, também na condição de cônsul, Casement havia produzido um memorandum sobre as atrocidades que eram cometidas no Congo, então sob domínio belga, contra os nativos africanos na exploração do caucho (árvore de onde se extrai também o látex). Extermínio e queima de aldeias inteiras e ampu-tações de membros faziam parte do teatro de horrores por lá.

No caso de Putumaio, o interesse da Inglaterra eram as atividades da companhia Peruvian Amazon Company e da empresa Casa Arana. Case-ment, entretanto, acrescentou em seu relatório detalhes sobre a utilização do trabalho escravo e sobre a forma como Arana descia o rio Amazonas

MAZELAS DA

EXTRAÇÃO DO

LÁTEX SÃO TEMA

DE ROMANCES

COMO O SONHO DO

CELTA E A SELVA

CARTAZETE NO FORMATO 15cm X 11cm

(ACIMA) E LITOGRAVURA MEDINDO

109cm X 68cm, DE 1943 (AO LADO)

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frustração e abandono em meio à floresta

PROJEÇÃO DE UM ACAMPAMENTO PARA 600 TRABALHADORES

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e ia até o Nordeste brasileiro, em especial ao Ceará, em busca de tra-balhadores. A saga de Casement está brilhantemente registrada no romance O sonho do celta, do peruano Mario Vargas Llosa, que recebeu pela obra o Prêmio Nobel de Literatura em 1910.

O SALDO DE UM EMBUSTEEm síntese, dos 50 mil soldados da borracha – entre trabalha-

dores e dependentes – que foram para a Amazônia entre 1943 e 1944, estima-se que quase a metade morreu ou desapareceu. Foi só a partir da Constituição de 1988 que os sobreviventes obtiveram o direito de receber o benefício de dois salários-mínimos mensais. Naquele mesmo ano, foi assassinado, em 22 de dezembro, na porta de sua casa, o sindicalista e seringueiro Chico Mendes, um dos principais defensores dos homens que se dedicam à produção da borracha e pioneiro nas causas ambientalistas no país.

E em 2012, em solenidade realizada no dia 4 de setembro, os soldados da borracha, como grupo, tiveram seus nomes inscritos no livro de aço do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. “É a primeira ocasião em que pessoas vivas chegam a esse posto simbólico que, por mais formal e burocrático que possa parecer, explicita a importância desses migrantes que lutaram em prol dos Aliados, fazendo borracha na flo-resta”, celebrou Cesar Garcia Lima. Ele foi o diretor do documentário Soldados da borracha, média-metragem realizado em 2010, no Acre, e que retrata a saga de seringueiros nordestinos e acreanos vivida entre o sertão, a floresta e a cidade.

SOLDADOS DA BORRACHA EM BRASÍLIA, EM SETEMBRO DE 2012

OS SOLDADOS DA BORRACHA ENTRARAM

PARA O PANTEÃO DA PÁTRIA E DA LIBERDADE

112

passos daos primeiros

industrialização

113

114

Ao final da Segunda Guerra Mundial, fracassado o projeto que levou milhares de nordestinos – os soldados da borracha – a atuarem na Amazônia, em prol dos países aliados, o Brasil dispunha de grandes reservas de moeda estrangeira, as chamadas divi-sas, fruto de ter exportado mais do que importado (o crescimento foi de 8,9% de 1946 a 1950). Esse processo, na verdade, é resultado de um novo ce-nário construído com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930. Vargas operou uma mudança decisiva no plano da política interna, afastando oligarquias tradicionais que representavam os in-teresses agrário-comerciais. O presidente, que deu um golpe de Estado durante seu próprio mandato, em 1937, quando foi implantado o chamado Es-tado Novo, adotou uma política industrializante, com a substituição da mão-de-obra imigrante pela nacional, que acabou se concentrando no Rio de Janeiro e em São Paulo, em função do êxodo rural (decorrente da decadência cafeeira) e dos sucessi-vos movimentos migratórios de nordestinos.

Para o professor doutor Pedro Paulo Zaluth Bastos, da Unicamp, o problema das definições do nacionalismo econômico varguista a partir dos meios pelos quais os interesses nacionais de desenvolvimento econômico seriam alcançados reside no fato de que Vargas não manteve, ao longo do tempo, a adesão a formas particulares de intervenção estatal e de associação com o capital estrangeiro. “O que apresenta maior continuidade é a ade-são ao ideário do nacional-desenvolvimentismo, ou seja, a vinculação do interesse nacional com o desenvolvimento, ativado pela vontade política concentrada no Estado, de novas atividades econômicas, particularmente industriais, associadas à diversificação do mercado interno”.

Prossegue Zaluth Bastos: “Desenvolver economicamente a nação se confundia, cada vez mais, com a redução de sua dependência de insumos industriais e energéticos importados, avançando na industrialização pesada, inclusive para poder mudar posteriormente a pauta de exportações. É por isto que Vargas alegaria que a questão do aço era o principal desafio para emancipação/desenvolvimento econômico nacional no início da década de 1930, assim como o petróleo e a energia hidrelétrica (e não mais ter-melétrica), e também as respectivas indústrias de bens de capital, seriam nas décadas posteriores.”

os primeiros passos da industrialização

115

VARGAS ALEGAVA, NA DÉCADA DE 1930, QUE A QUESTÃO DO AÇO ERA O

MAIS IMPORTANTE DESAFIO RUMO AO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

GETÚLIO ASSINA O ATO DE CRIAÇÃO DA PETROBRAS: O PETRÓLEO PASSAVA A SER NOSSO

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os primeiros passos da industrialização

AMPLIAÇÃO DA FÁBRICA DA GM DO BRASIL, EM 1948: PRIMEIRO CLIENTE DO AÇO PRODUZIDO PELA CSN

1953: GETÚLIO EM VISITA À REFINARIA PRESIDENTE BERNARDES, EM CUBATÃO

117

QUESTÃO DO

PETRÓLEO GANHOU

RELEVÂNCIA APÓS

O FIM DA SEGUNDA

GUERRA MUNDIAL

Assim, Vargas investiu forte na criação da infraestrutura industrial, na indústria de base e de energia, destacando-se a criação do Conselho Na-cional do Petróleo, em 1938, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941, da Companhia Vale do Rio Doce, em 1943, e da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945.

Com operações, escritórios, explorações e joint ventures espalhados pelos cinco continentes, hoje a Vale é a segunda maior mineradora do mundo. Com sede no Brasil, atua em 37 países e emprega 139 mil pes-soas (entre profissionais próprios e terceiros permanentes) e mais 60 mil terceiros em projetos.

A criação da CSN também foi um capítulo importantíssimo na his-tória brasileira. Vargas não se conformava com o desequilíbrio na balança comercial provocado pelas importações de aço, em especial dos Estados Unidos. Em paralelo, pretendia expandir o sistema de transportes nacional e fomentar a indústria de base, e assim deu início aos estudos para a criação de uma grande siderúrgica. Para financiar a empreitada, a primeira empresa procurada foi a United States Steel Corp., que declinou do convite, mui-to provavelmente em razão da incerteza sobre a condução dos assuntos internos no país. Como Vargas mantinha relações não tão distantes assim com o governo de Hitler, quem mostrou-se disposta a financiar a siderurgia nacional foi a alemã Krupp. Temerosos de que a influência dos países do Eixo tomasse proporções incontroláveis no país, assessores do presidente Franklin Delano Roosevelt sugeriram que os EUA revissem sua posição. Foi, portanto, com 20 milhões de dólares norte-americanos e outros 25 milhões de dólares captados pelo governo brasileiro que se deu a construção da CSN em Volta Redonda (RJ).

Em 1946, quando efetivamente teve início a produção de aço da CSN, abriram-se as perspectivas para o desenvolvimento industrial do país, já que o aço constitui a base ou a “matriz” para vários ramos ou tipos de indústria. A volta de Getúlio Vargas ao poder, reeleito pelo voto popular em 1950, consolidou uma nova forma de política de massas: o populismo. Ainda que hesitasse em consolidar uma democratização efetiva das grandes decisões políticas nacionais, o governo nacionalista de Getúlio Vargas pro-meteu libertar o país do subdesenvolvimento, realizando uma política de industrialização com base em grandes empresas estatais, como Eletrobras, Petrobras e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES).

A questão do petróleo, antes da Segunda Guerra Mundial, não tinha a mesma relevância que assumiria após o conflito bélico na Europa. Após a perfuração do primeiro poço brasileiro, em 1939, foram as empresas norte-americanas Texaco e Standard Oil que controlaram a produção e a distribuição do chamado ouro negro. Apenas em 1946 surgiria a campanha “O petróleo é nosso”, liderada pelo general Horta Barbosa, que resultaria na criação da Petrobras em outubro de 1953.

A Petrobras teve sua instalação concluída em 1954, ao herdar do Conselho Nacional de Petróleo duas refinarias, a de Mataripe (BA) e a de Cubatão (SP). Elas passaram a ser os primeiros ativos (patrimônio) da empresa. Em 10 de maio do mesmo ano, a empresa começou a operar, com uma produção de 2.663 barris, equivalente a 1,7% do consumo nacional.

CARTAZETE DA

CAMPANHA EM FAVOR

DO MONOPÓLIO

DO PETRÓLEO

118

os primeiros passos da industrialização

Em 1954, o petróleo e seus derivados já representavam 54% do consumo de energia no país. Para se ter uma ideia do crescimento da companhia, em 2011 o lucro líquido da hoje quinta maior empresa de energia do mundo foi de R$ 33 bilhões. A produção superou 2,6 milhões de barris de petróleo por dia e mais de 450 mil barris de gás natural. Presente em 28 países, a Petrobras emprega mais de 80 mil pessoas.

Na sequência do governo Vargas, após breve passagem de Café Filho pelo poder, surge a figura de Juscelino Kubitschek, que incrementa o caráter desenvolvimentista com o famoso Plano de Metas e o respectivo slogan “50 anos em cinco”. Mas esse já é um outro capítulo da história do país.

A BORRACHA HOJEA seringueira Hevea brasiliensis é a maior fonte de borracha natural do

planeta, utilizada no transporte, indústria e material bélico. Atualmente, existem no mercado global mais de 40 mil artigos no geral constituídos de borracha natural, sendo que são necessários cerca de 600 kg para um aeropla-no e 68 toneladas para um navio de guerra. Além disso, a borracha natural é matéria-prima estratégica para aproximadamente 400 dispositivos médicos.

Única entre os produtos naturais, a borracha natural, devido a sua estrutura molecular e alto peso molecular (> 1 milhão de daltons) é possuidora de resiliência, elasticidade, plasticidade, resistência ao desgaste e ao impacto, propriedades isolantes de eletricidade e impermeabilidade para líquidos e gases, que não podem ser obtidas em polímeros artificiais. A borracha natural é obtida das partículas contidas no látex, fluído cito-plasmático extraído continuamente dos vasos laticíferos situados na casca das árvores por meio de cortes sucessivos de finas fatias de casca, processo denominado de sangria.

A borracha sintética obtida do petróleo possui quase a mesma compo-sição química da borracha natural, porém suas propriedades físicas, viáveis para alguns manufaturados, são inferiores para luvas cirúrgicas, preserva-tivos, pneus de automóveis, caminhões, aviões e revestimentos diversos.

A Hevea brasiliensis é a espécie cultivada mais importante do ponto de vista comercial. A produção mundial de borracha natural em 2011 foi de 10,97 milhões de toneladas, para um consumo de 10,92 milhões de toneladas. Entre os maiores produtores, destaque para os países do Sudeste Asiático, como Tailândia (30,93% da produção mundial), Indo-nésia (22,66%), Malásia (9,08%), Índia (8,1%) e Vietnã (7,4%). Em 2011, o Brasil produziu 135 mil toneladas, o equivalente a cerca de 1,23% da produção mundial.

Os maiores consumidores de borracha natural em 2011 foram a China (32,98%), seguida pelos países da Comunidade Europeia (11,13%), Estados Unidos (9,42%) e Japão (7%). A indústria de pneumáticos consome quase três quartos da borracha produzida no mundo. As três maiores marcas de pneus (Michelin, Bridgestone e Goodyear) consomem 55% da produção mundial de pneus.

INDÚSTRIA DE

PNEUMÁTICOS

CONSOME QUASE

TRÊS QUARTOS DA

PRODUÇÃO MUNDIAL

DE BORRACHA

EXTRAÇÃO DO LÁTEX: CORTES SUCESSIVOS DE FINAS FATIAS DA CASCA

119

120

os primeiros passos da industrialização

O Brasil, berço do gênero Hevea, continua sendo importador de bor-racha natural. Para quem possui, em relação aos demais produtores, área incomparavelmente maior, apta para o plantio de seringueira, o déficit de produção significa, no mínimo, descaso para com um produto estratégico de tão alto valor econômico-social. Segundo estimativas do International Rubber Study Group (IRSG), em 2012, para um consumo de 350 mil to-neladas no Brasil, foram importadas 215 mil toneladas de borracha natural.

A oferta e a demanda encontram-se distanciadas no Brasil desde me-ados do século passado. De acordo com o site do Sistema de Informações Agroindustriais da Borracha Natural Brasileira (www.borrachanatural.agr.br), em 2020 o Brasil poderá produzir 250 mil toneladas diante de um con-sumo potencial de mais de 500 mil toneladas. A desigualdade só poderá ser resolvida pela substituição de borracha dos seringais por borracha sintética.

Os seringais paulistas são os mais eficientes do país, com produtividade média superior a 1.300 kg por hectare/ano, sendo que nas áreas em que há maior conhecimento tecnológico esse número supera 1.500 kg por hectare/ano. O desempenho coloca São Paulo entre as regiões mais produtivas do mundo. Sob o ponto de vista ambiental, também, é importante considerar o impacto positivo de uma plantação de seringueira. Após a implantação, um seringal constitui um sistema estável, apresentando características de floresta tropical. Além disso, a borracha natural necessita de pouca energia para a sua produção e as árvores contribuem na fixação de CO2, minimizando, assim, os problemas com o aumento do efeito estufa.

De acordo com o seringalista e representante do Espírito Santo na Câmara Setorial da Borracha do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), José Manoel Monteiro de Castro, a autossuficiên-cia em borracha natural é urgente. “Ser autossuficiente em borracha natural, assim como em aço e petróleo, é fundamental para qualquer país que pleiteia ser uma potência mundial”, defende Castro. Ele ressalta ainda que a extração da borracha é uma atividade que proporciona ao produtor se fixar no campo com boa qualidade de vida. “A remuneração paga pelo quilo da borracha permite uma renda mensal equiparada aos bons empregos do meio urbano”, afirma Monteiro de Castro.

EXTRAÇÃO DA

BORRACHA

PROPORCIONA

FIXAÇÃO NO

CAMPO COM BOA

QUALIDADE DE VIDA

121

À margem da história?Há uma permanente preocupação das autoridades

brasileiras, especialmente dos militares, de que se o Brasil não conseguir povoar e integrar economicamente a região amazônica, poderosos interesses estrangeiros tratarão de nos desqualificar da tarefa de guardá-la e resguardá-la. Imaginam, pois, ser possível sua internacionalização futura. A Amazônia poderia vir a ser “desnacionalizada” e dividida entre várias grandes corporações que têm interesse em explorá-la, basicamente em sua riqueza mineral. Outros cogitam dela transformar-se num “protetorado” da ONU.

Esse receio, da “perda” da Amazônia, parece-nos infundado, visto que nos dias de hoje não dominam, entre as potências, ideias colonialistas ou usurpadoras de apropriação direta de territórios. Além disso, a legislação brasileira permite a livre instalação e exploração de empresas estrangeiras. Por que elas haveriam de mobilizar expedições militares colonialistas, se conseguem obter o que querem, amparadas juridicamente nas concessões brasileiras? Tam-bém não se encontra entre os projetos da ONU nenhuma referência a ela assumir o controle da região amazonense em um futuro próximo ou remoto.

De 1920 a 1960, pode-se dizer que a região amazô-nica manteve-se ao largo do desenvolvimento do restante do país, reduzida a um estado de letargia econômica: “um grande Jardim do Paleozóico”, como disse Euclides da Cunha. Um acontecimento espetacular, porém, voltaria a colocá-la no cenário econômico e político nacional: a fun-dação, em 21 de abril de 1960, de Brasília, inaugurada no final do governo do presidente Juscelino Kubistchek. Com a mudança da sede do governo brasileiro para o interior do sertão brasileiro, criou-se uma vasta rede de rodovias ligando a nova capital com as demais partes da nação. Essa foi a razão de ser da Belém-Brasília, aberta entre 1958 e 1964, a primeira ligação terrestre do centro do país com a Amazônia. Posteriormente, no apogeu do regime militar, em 1970, cortou-se a região no sentido leste-oeste, com uma estrada transversal, a Transamazônica, e outra no sentido sul-norte, ligando Cuiabá a Santarém.

Políticas especiais de colonização, povoamento e eletrificação foram estimuladas pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), aceitando-se, inclusive, na fronteira do Pará com o Amapá, a instalação do projeto Jari, um imenso complexo de produção de celulose de propriedade do plutocrata americano Daniel Ludwig.

Os resultados demorados disso tudo estimularam a que se formasse uma Zona Franca em Manaus, usufruindo de isenção alfandegária para atrair indústrias e consumidores.

A facilitação na aquisição de terras para o gado gerou conflitos. Ao expandir a criação, os fazendeiros adotam as queimadas e a derrubada de árvores essenciais aos “povos da floresta”. Desde então, atritos entre garimpeiros e indígenas dão-se paralelos aos ocorridos entre criadores e seringueiros, os quais conduziram ao assassinato de Chico Mendes, um internacionalmente reconhecido líder serta-nejo. Além disso, particularmente no Pará, multiplicam-se os desacertos e crimes violentos que atingem os sem-terra mobilizados pela ação do MST, que terminam por enfrentar os pistoleiros de aluguel e as próprias autoridades policiais a serviço dos latifundiários.

Uma das maiores falácias a respeito da Amazônia é a da sua enorme riqueza. De fato, com algumas exceções, o solo da região é classificado, em sua maior extensão, como laterítico. Removido o manto vegetal, sobra uma couraça ferruginosa de escasso valor agrícola. A vegetação luxu-riante e variada é enganadora. Esconde o fato de que suas raízes enterram-se em areias. A floresta é alimentada pela água das chuvas tropicais e dela mesma, do seu húmus, da degradação das folhas e ramos que dela desprendem. Naturalmente que o mesmo não se aplica às estimativas das suas reservas minerais em ouro, manganês, cassiterita, alumínio e ferro, especialmente como ocorre na Serra dos Carajás. Enquanto isto, a Amazônia luta, tendo ao seu lado as poderosíssimas forças inerciais da natureza, por permanecer à margem da história.

“DE FATO, TODO O VALE

AMAZÔNICO, NO SEU

CONJUNTO, A PARTE VISÍVEL, É

IMPERTURBAVELMENTE IDÊNTICO

A SI MESMO, VISTO EMBORA

DE VÁRIAS LATITUDES.”

VIANNA MOOG, 1936

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ACERVO BIBLIOTECA BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN/USPPág. 46, 47, 48, 122, 124 e contracapa (centro)

ACERVO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. ARQUIVO GUILHERME DE LA PENHA. COLEÇÃO FOTOGRÁFICA MPEGPág. 17 e 38 (as duas, no alto)

ACERVO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. FOTOS GEORGE HUBNER – VISTAS DO PARÁ (c.1899)Pág. 43, 44 e 45

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